Resumo
O artigo coteja a premissa freudiana do mal-estar da civilização com a leitura do conceito de semiformação em Adorno. Apresentam-se as ideias principais do ensaio “Teoria de la seudocultura” (Adorno, 1966), em que é proposto que a formação cultural (Bildung) afasta o homem da natureza e do corpo. A noção de semiformação pressupõe que a civilização teria, já em sua origem, o germe de seu colapso, pelo fato de buscar a dominação da natureza e do corpo. Desse modo, observamos que Adorno não é estranho a Freud quando concebe a violência instalada no cerne mesmo da civilização. Em 1930, Freud constata que não é mais possível partilhar do entusiasmo pela civilização como um bem precioso que conduziria todos os homens à mais elevada perfeição. Há um antagonismo entre as exigências da pulsão e as restrições da civilização que faz com que o conflito seja insolúvel e o desamparo, irremediável.
Palavras-chave: barbárie; civilização; Freud; Adorno; semiformação cultural
Resumen
El presente artículo coteja la premisa freudiana del malestar en la civilización con la lectura del concepto de la semiformación en Adorno. Presentamos las ideas principales del ensayo "Teoría de la seudocultura" (Adorno, 1966), donde se propone que la formación cultural (Bildung) alejó el hombre de la naturaleza y del cuerpo. La noción de semiformación presupone que la civilización hubiera tenido ya en su origen, el germen de su colapso, debido a la búsqueda de la dominación de la naturaleza y del cuerpo. De esa manera, vemos que Adorno no es ajeno a Freud, cuando concibe la violencia instalada en el corazón mismo de la civilización. En 1930, Freud señala que ya no es posible más compartir el entusiasmo por la civilización como un activo valioso, que conduciría a todos los hombres a la más alta perfección. Existe un antagonismo entre las exigencias de la pulsión y las restricciones de la civilización, lo que hace que el conflicto sea insoluble y el desamparo, irremediable.
Palabras clave: la barbarie; la civilización; Freud; Adorno; semiformación cultural
Abstract
This article correlates the Freudian premise of the malaise in civilization with Adorno’s concept of semi-formation. The main concepts in the essay “Theory of Pseudo-culture” (Adorno, 1966) are presented. In it, Adorno proposed that cultural formation (Bildung) shifts man away from nature and the body. The notion of semi-formation assumes that civilization would have, in its origin, the seeds of its collapse, by way of its quest for domination of nature and the body. Thus, Adorno is seen as no stranger to Freud, when he conceives violence as installed in the very core of civilization. In 1930, Freud realizes it is no longer possible to share the enthusiasm for civilization as a valuable asset that would lead all men to the highest perfection. There is an antagonism between the demands of drive and the restraints of civilization that makes conflict insoluble and helplessness unavoidable.
Keywords: barbarism; civilization; Freud; Adorno; cultural semi-formation
Em O mal-estar na civilização (1930/1974), Freud desenvolve os impasses da civilização moderna, mostrando que o mal-estar é permanente, oriundo da exigência de renúncia das pulsões sexuais e agressivas.
Gostaríamos de partir deste mote do texto de 1930 para propor que, ao impor a supressão da agressividade, a civilização acaba se tornando ela mesma produtora de violência.
Para desenvolver essa ideia, cotejaremos as ideias freudianas com a elaboração feita por Adorno em “Teoria de la seudocultura” (1966), que mostra como a civilização produz aquilo que pretende dominar, a barbárie. Segundo a visão da Escola de Frankfurt, o modo pelo qual se dá a formação cultural afasta o homem da natureza e do corpo, separando o mundo entre os homens cultivados e os não cultivados. Neste contexto, a semiformação é vista como uma espécie de “deseducação” que engessa a consciência, prejudicando o exercício da autonomia, sendo característica tanto dos regimes totalitários quanto, em larga medida, do capitalismo tardio (Duarte, 2003).
Embora sejam autores com diferentes perspectivas teóricas, buscamos indicar, no presente artigo, algumas de suas proximidades, em defesa de uma utilização mais clara do esquema conceitual que se quer apresentar.
Entretanto, ainda que não sendo a visada central do trabalho, consideramos importante destacar algumas diferenças centrais entre os dois autores. Mesmo tendo sofrido forte influência da psicanálise, a interpretação que a teoria crítica faz da obra de Freud sempre foi em uma perspectiva histórica e social. Para Adorno, a psicanálise como técnica terapêutica não fazia sentido, pois seria um modo de adaptação a um mundo ruim que, a seu ver, deveria ser profundamente criticado.
De forma distinta, a visão de Freud sobre a sociedade teve sempre um cunho psicológico, ligado à proposta de definir uma saída terapêutica seja para a sociedade, seja para o indivíduo. Mesmo nos textos tardios, onde encontramos um Freud já atravessado pelo “desencantamento do mundo” e articulando todo o seu arcabouço conceitual em torno da noção de desamparo (Birman, 2005), observamos que ele não abre mão de buscar caminhos e soluções psíquicas possíveis para o mal-estar. Por exemplo, podemos verificar que certa crença na ciência é afirmada em Futuro de uma ilusão (1927/1974). A ciência é vista como via possível de emancipação do homem em oposição à posição infantil do discurso religioso (Souza, 2011). Também em Mal-estar na civilização (1930/ 1974) podem ser testemunhadas algumas propostas de resolução face à barbárie. Freud postula a presença das pulsões agressivas e eróticas na cultura - afirmando-se, portanto, como um pensador da barbárie - e, ao mesmo tempo, propõe ser possível superar o mal-estar produzido em torno das renúncias impostas pela lei do pai, recomendando renúncias menores para os indivíduos. Ao mesmo tempo que expõe argutamente os impasses da civilização moderna, ele não deixa de buscar saídas para se fazer frente ao irremediável desamparo (Menegat, 2004).
Outra diferença crucial entre os dois autores pode ser encontrada nas críticas que os frankfurtianos fazem ao mito de Totem e Tabu, através do qual Freud descreve a instauração de uma instância da lei que pode eliminar a violência anterior. De acordo com Adorno, a lei apenas regula o direito de uso da violência no interior da sociedade, mas não a elimina. A representação mítica de Freud, neste contexto, visaria “extirpar a tentação de recair na natureza” (Menegat, 2004, p. 4), proposta impensável para os autores da Escola de Frankfurt, para quem a divisão do trabalho seria a forma dominante da renúncia pulsional conforme esta ocorre no mundo do trabalho social (Menegat, 2004).
Segundo Adorno (1966), sob a perspectiva da semiformação, a civilização, ao se constituir a partir de uma dominação tem, já em sua origem, o prenúncio de seu colapso. Essa forma dominante da renúncia incide sobre a natureza, o corpo e o outro não cultivado, elementos vistos como inferiores do ponto de vista dos que defendem um projeto civilizatório calcado na espiritualização.
A leitura que Adorno faz do ensaio freudiano sobre o mal-estar vai nesta mesma direção - a repressão da agressividade não faz mais do que recrudescê-la:
Em virtude da pressão que sobre os homens exerce, perpetua neles a deformação que se imaginava ter de novo conformado, a agressão. Tal seria, na concepção de Freud, a razão do mal-estar que em si leva a cultura; e a sociedade adaptada é o que na história do espírito recorda seu conceito: mera história natural darwinista, que premia a survival of the fittest. (Adorno, 1966, p. 226)
A tentativa de dominar a natureza aparece também no movimento de querer excluir a práxis, o trabalho corporal, o corpo. Deste modo, o equilíbrio da cultura permanece tênue, na medida em que aquilo que ela prega é o que a conduz à sua ruína. Como se explica o colapso da Bildung? Ao supervalorizar a espiritualização, a cultura “glorifica a separação socialmente disposta entre trabalho corporal e espiritual: justifica-se a antiga injustiça como superioridade objetiva do princípio dominante” (Adorno, 1966, p. 227). Assim, a tentativa de dominação progressiva da natureza está fadada ao logro, uma vez que a parte indomável da natureza volta a triunfar sempre de novo, levando o espírito a enfraquecer-se. Esta é a dinâmica própria da formação cultural: “No ideal de formação que a cultura erige de forma absoluta irrompe o problemático da cultura” (Adorno, 1966, p. 229).
Nos termos freudianos, o mesmo argumento se coloca quando se afirma que não há como separar a civilização do excesso pulsional que lhe subjaz. Há uma tensão permanente entre pulsão e cultura justamente pelo fato de a segunda não conseguir erradicar a pressão exercida pela primeira. O excesso pulsional faz parte dos processos civilizatórios e, por isso mesmo, estes não são sem conflito, tensão e mal-estar.
Nesta perspectiva, Adorno se aproximaria de Freud, ao conceber o mal-estar como algo inerente à construção da civilização. Para ambos os autores, o mal-estar constitui-se como elemento intrínseco à civilização. Dessa maneira, nossa hipótese é que a leitura de Adorno permite que projetemos luz sobre um ponto fundamental - não somente a renúncia da agressividade causa tensão pelo represamento pulsional em prol da vida coletiva, como também tal renúncia leva a que a civilização seja ela mesma fonte de violência.
Em “Teoria de la seudocultura” (1966), como já dito, Adorno faz esta aproximação pela leitura freudiana do mal-estar, associando-o à necessidade de supressão da agressividade. Esta seria uma das fontes da barbárie: a dominação e a alienação da natureza. A tentativa de “salvação do natural” faz a explosão advir ali mesmo onde se queria extingui-la: a tensão permanente indica a dominação que a cultura exerce sobre a natureza e sobre “as explosões em direção ao caótico que se produzem periodicamente justo ali aonde se estabelece a tradição da cultura espiritual” (Adorno, 1966, p. 226). A espiritualização da cultura visa à acomodação e à adaptação do homem animal mediante o cultivo de si, da educação que teria por objetivo alçar os homens a um estágio civilizatório mais elevado. Todavia, as duas grandes guerras do século XX manifestaram o oposto de tal objetivo. Ali mesmo onde se supunha uma coletividade preparada pela formação cultural para o convívio harmonioso é que ocorreram grandes barbáries.
Adorno (1966) ressalta que quando o campo de forças que se busca constituir por meio da formação cultural se congela em categorias fixas, como natureza e espírito, soberania e acomodação, as categorias se colocam em contradição e oposição, fazendo com que cada uma, separada da outra, fomente uma formação regressiva. Desse modo, observamos que Adorno não é estranho a Freud ao conceber a violência como instalada no cerne mesmo da civilização. É dali, de onde se esperaria, como já mencionado, que a violência fosse contida, que ela emana.
Em O mal-estar na civilização (1930/1974), Freud constata que não é mais possível partilhar do “preconceito entusiasta” de que a civilização seria um bem precioso que conduziria todos os homens à mais elevada perfeição. Há um antagonismo entre as exigências da pulsão e as restrições da civilização que faz com que o conflito seja irremediável, não havendo a possibilidade de o programa do princípio do prazer ser plenamente desenvolvido.
Nesse ensaio de 1930, o desamparo passa a ocupar lugar central nas teorizações freudianas sobre o mal-estar, articulado ao fato de que não há como erradicar totalmente a pulsão de morte. A relação com o outro é paradoxal - ao mesmo tempo que há uma dependência necessária do outro, há também a constatação de que este mesmo outro pode ser estranho e hostil. Esse duplo caráter do outro - dependência e hostilidade - é importante para entender a irredutibilidade do mal-estar. O “fator hostil do outro”, fórmula usada por Freud para descrever a ameaça sempre presente na relação com o outro, torna remota a possibilidade de o outro nos “salvar” do desamparo. Se, por um lado, precisamos do outro para o cuidado e para o amparo, rapidamente damo-nos conta de que ele é simultaneamente fonte de ameaças e perigos. Dessa forma, o fator hostil do outro pode ser desdobrado para a análise da presença da violência na civilização. O preceito “Amarás a teu próximo como a ti mesmo” é posto em questão, pois o outro só será objeto do amor quando for com ele estabelecida uma aliança de semelhança e identificação. Quando os valores ou sentidos da vida não são compartilhados, o outro se torna um estranho e, como tal, objeto de ódio.
Quanto a isso, cabe destacar o trecho do ensaio de 1930 em que é descrita de maneira contundente a relação de ódio e violência que pode ser estabelecida com o outro:
Não meramente esse estranho é, em geral, indigno do meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele possui mais direito à minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não parece apresentar o mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração para comigo. Se disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me prejudicar; tampouco pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida contém alguma proporção com a extensão do dano que causa em mim. Na verdade, não precisa nem mesmo auferir alguma vantagem; se puder satisfazer qualquer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de mim, em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder; e, quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se comporte dessa maneira para comigo. (Freud, 1930/1974, p. 131).
Portanto, a face do amor é somente um dos aspectos do outro, estando sempre presente, concomitantemente e causando ambivalência de sentimentos, a face do ódio.
Na última frase do trecho citado, vimos que Freud traz o tema do desamparo - “quanto mais seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se comporte dessa maneira para comigo” - para reforçar a ideia de o quanto o outro pode ser hostil, articulando desamparo com produção de violência. Voltaremos a isso mais adiante. No momento, é nosso intento demonstrar que Freud abre mão, como já dito, do ideal de civilização como algo que protegeria o homem ou mesmo, como propagava o romantismo alemão, como algo que o levaria a um maior aperfeiçoamento: “Tivemos o cuidado de não concordar com o preconceito de que civilização é sinônimo de aperfeiçoamento, de que constitui a estrada para a perfeição, pré-ordenada para os homens” (Freud, 1930/1974, p. 117).
Com efeito, o segundo dualismo pulsional faz operar uma virada teórica na concepção freudiana da cultura. Após a formulação da pulsão de morte em “Mais além do princípio do prazer” (Freud, 1920/1976), não há mais como ver a civilização como a redentora da barbárie. Ao contrário, a pulsão de morte lhe é inerente, visto que “o homem é o lobo do homem”, como lembra Freud ao citar Hobbes. A pulsão de morte, estabelecida no campo teórico do segundo dualismo pulsional, indica os limites da pulsão de vida e dos vínculos de amor entre os homens. Ela representa as dissoluções, as rupturas e as inclinações da agressividade. A pulsão de morte mostra a parcialidade do vínculo amoroso, apontando o limite do laço social e o fato de não existir uma pulsão de aperfeiçoamento que levaria ao progresso e ao melhoramento da raça humana:
Pode ser difícil, para muitos de nós, abandonarmos a crença de que existe em ação nos seres humanos uma pulsão para a perfeição, pulsão que os teria trazido até a seu atual alto nível de realização intelectual e sublimação ética, e do qual se pode esperar que zele pelo seu desenvolvimento em super-homens. Não tenho fé, contudo, na existência de tal pulsão interna e não posso perceber por que essa ilusão benévola deva ser conservada. (Freud, 1920/1976, p. 60).
Logo, a constatação da presença da pulsão de morte na cultura leva ao declínio da ilusão de que a raça humana pode ser conduzida a qualquer espécie de “melhoramento”. Não há mais lugar para o humanismo nas teorizações freudianas.
Neste ponto, é importante enfatizarmos um deslocamento interno à obra freudiana. A partir do segundo dualismo pulsional, encontramos um Freud não mais sustentando os ideais iluministas.
Segundo Birman (2005), ao cotejarmos o ensaio “Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna”, de 1908, com o texto de 1930, vemos dois discursos teóricos opostos no que diz respeito à relação do homem com a civilização. Enquanto o artigo de 1908 apresenta uma espécie de resolução para o conflito entre o sujeito e a civilização, o ensaio de 1930 abre mão de qualquer promessa nesta direção. O mal-estar seria insuperável, pois não haveria harmonia possível para a tensão entre sujeito e civilização.
Com efeito, a questão levantada em 1908 é sobre como a moral sexual civilizada pode ser a causadora da doença nervosa ao proibir o livre curso da sexualidade nos homens, estabelecendo um antagonismo entre a constituição individual e as exigências da civilização. Assim, a etiologia da neurose se encontraria no recalque da vida sexual, motivo do adoecimento advindo da moral sexual civilizada. Os neuróticos apresentariam uma supressão “aparente” das pulsões, o que repercutiria em um problema para se pensar a sublimação como uma saída possível para a tensão entre pulsão sexual e civilização, pois tal supressão deixava-os empobrecidos para investir na civilização.
De início, a sublimação poderia talvez mostrar-se como uma resolução para este conflito, já que colocaria a intensidade das pulsões sexuais a serviço da civilização, ao possibilitar às pulsões sexuais “a capacidade de deslocar seus objetivos sem restringir consideravelmente a sua intensidade” (Freud, 1908/1976, p. 192). Mas tal saída mostrou-se problemática. Aquilo que a sublimação deveria resolver, isto é, possibilitar acesso enriquecedor dos sujeitos à civilização, não se alcançaria, uma vez que o sujeito eroticamente empobrecido se encontra também diminuído em seu potencial simbólico. A supressão da pulsão sexual atende, por um lado, às exigências da civilização, mas isso tem um preço, pois o sujeito neuroticamente adoecido não terá como se engajar nas tarefas civilizatórias. A neurose lhe subtrai toda a energia criativa e laboral que poderia despender no mundo e no laço social. Portanto, o domínio da sublimação só pode ser efetuado por uma minoria, visto que a maior parte dos indivíduos adoece ante as exigências da moral sexual civilizatória (Freud, 1908/1976).
Porém, uma resposta é oferecida face ao fato de que a sublimação não oferece a solução para o mal-estar da civilização, Freud sugere que a via da satisfação sexual pode ser um meio de se libertar dos males da moral sexual civilizada. Neste sentido, a psicanálise poderia auxiliar os sujeitos contra os perigos da supressão das pulsões sexuais, advertindo-os quanto aos males que dela advêm e possibilitando-lhes a libertação da neurose. Por conseguinte, as descobertas da psicanálise serviriam como proposta terapêutica para uma possível reforma social, como pode ser verificado no final do texto de 1908:
Certamente não é atribuição de um médico propor reformas, mas me pareceu que eu poderia defender a necessidade de tais reformas se ampliasse a exposição de Von Ehrenfelds sobre os feitos nocivos de nossa moral sexual “civilizada”, indicando o importante papel que essa moral desempenha no incremento da doença nervosa moderna. (Freud, 1908/1976, p. 208)
Encontramos, assim, ao longo deste texto, a premissa de que a psicanálise pode ser de grande serventia, ao revelar os efeitos da moral na produção da neurose.
Uma proposta bem diferente é apresentada em 1930. Como indica Birman (2005), a harmonia possível entre o registro do sujeito e o campo do social foi então colocada incisivamente em questão. Quando entram em cena nas teorizações freudianas os conceitos de desamparo e de pulsão de morte, a relação entre sujeito e cultura passa a ser enunciada pelo viés da desarmonia, sendo o conflito entre o registro do sujeito e o campo da cultura visto então como irremediável.
Com efeito, como estamos vendo, a noção de desamparo torna-se crucial para a compreensão do segundo dualismo pulsional formulado nos anos 1920. O Hilflosigkeit sofreu diversas reelaborações ao longo da obra. Surge pela primeira vez em um manuscrito bem inicial, “O Projeto para uma psicologia científica”, de 1895, designando a dependência radical e absoluta do ser humano ao outro. O bebê humano não é capaz de realizar sozinho a ação específica necessária para eliminar as tensões provenientes do frio, da fome, da dor que vem do corpo e outras. É preciso, então, que uma pessoa mais madura, seu cuidador, intervenha no sentido de efetuar a ação que conduzirá ao apaziguamento das necessidades. É no fato de o bebê precisar da ajuda do outro que reside o desamparo primordial. Em vista disso, nesse ensaio de 1895, o desamparo inicial é equivalente ao desamparo motor, relativo à incapacidade muscular e motora da criança para realizar as ações que conduzem à satisfação (Freud, 1895/1977). Nessa primeira perspectiva, o desamparo é considerado um estágio da vida inicial do ser humano, marcado por uma radical dependência ao outro, mas que será superado com o crescimento e amadurecimento do indivíduo. Como sinaliza Pereira (1999), desde essa primeira formulação a noção de desamparo é compreendida como o fundamento da constituição psíquica, sendo aquilo que está na base da busca da experiência de satisfação e dos processos desejantes.
Contudo, tal conceito adquire outra perspectiva nos textos mais tardios da obra freudiana, passando a ser compreendido não como um estágio superável, mas como uma condição estruturante do próprio psiquismo humano. É nesta última concepção que o termo é apresentado em “O futuro de uma ilusão” (Freud, 1927/1974) e “O mal-estar na civilização” (Freud, 1930/1974), nos quais o desamparo expressa “a condição última de falta de garantias do funcionamento psíquico, que o homem tem de enfrentar quando se livra de todas as ilusões protetoras que cria para si mesmo” (Freud, 1927/1974, p. 13), ou seja, constitui-se como uma condição que acompanha o sujeito por toda a sua existência, e não apenas nos primeiros anos de sua vida.
Assim, o deslocamento da compreensão do desamparo remete a uma mudança no olhar que se tem acerca da civilização:
A maneira de encarar esse conflito, de manejá-lo, se transformou aos olhos de Freud. Se na versão inicial o conflito poderia ser curável, digamos assim, na versão final seria necessária uma espécie de gestão interminável e infinita do conflito pelo sujeito, de forma tal que este não poderia jamais se deslocar de sua posição originária de desamparo (Birman, 2005, p. 209).
Também em “O futuro de uma ilusão” (Freud, 1927/1977), tal deslocamento se apresenta. A noção de desamparo é descrita nesse ensaio como a perda da ilusão da proteção da figura paterna. Apesar de existir no homem a busca pelos deuses e o anseio pelo pai, procurando por esta via a proteção contra os perigos provenientes da natureza e do destino, bem como contra os sofrimentos e as privações impostos pela vida civilizada, persiste sempre “a desagradável suspeita de que a perplexidade e o desamparo da raça humana não podem ser remediados” (Freud, 1927/1974, p. 29).
O ponto importante para o debate que propomos no presente artigo é que conceber o desamparo como condição estruturante do sujeito está totalmente associado à constatação de que não há como erradicar a pulsão de morte do psiquismo humano. Não há, portanto, e aqui Freud e Adorno se encontram, como dissociar, estabelecendo como polos antinômicos, civilização e barbárie. Se as oposições entre cultura e natureza, civilização e barbárie, corpo e pensamento, dentre outras, constituíram-se como marcas da modernidade, Freud e Adorno enunciaram, a partir de diferentes pontos de vista, suas críticas quanto a estas antinomias.
Por isso, há uma correlação direta entre desamparo e violência. A vulnerabilidade da existência é solo para a produção da violência tanto no contexto social mais amplo, quanto nas relações intersubjetivas. Ela pode ser fonte de violência psíquica, na medida em que, por causa do desamparo, a relação com o outro pode se estabelecer sob formas distintas de crueldade, seja pela via do masoquismo, seja por meio do sadismo.
Vale lembrar que a problemática do desamparo do sujeito no campo social foi a marca decisiva da leitura de Freud sobre a modernidade. As leituras que Freud e Adorno fizeram sobre a cultura disseram respeito não a uma cultura qualquer, mas à modernidade. Se em Adorno a semiformação é correlacionada à indústria cultural e ao capitalismo tardio, o mal-estar da civilização descrito por Freud é, na verdade, o mal-estar produzido pela cultura da modernidade.
Se a civilização não era mais vista como algo que protegeria os sujeitos, o olhar que Freud tem acerca dela não é mais o de esperança e promessa. A mesma posição incrédula pode ser testemunhada em uma resposta escrita a Einstein em 1932, quando este pede a Freud conselhos sobre quais seriam os meios civilizatórios de livrar a humanidade da guerra, e o segundo responde com descrença e, inclusive, com certo enfado, dizendo que este seria um assunto a ser tratado por estadistas. Einstein escolhe Freud como seu interlocutor nessa matéria para que ele “proporcione a elucidação do problema mediante o auxílio de seu profundo conhecimento da vida instintiva do homem” (Freud, 1932/1974, p. 241). Em sua réplica, Freud discorre que a guerra constitui a mais óbvia oposição ao processo de civilização, e que não teria de forma alguma a resposta sobre quais os meios a erradicariam da comunidade dos homens: “não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se tentar desviá-los em um grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra” (Freud, 1932/1974, p. 255). Como o ímpeto para a guerra é um efeito da presença da pulsão destrutiva nos homens, faz-se necessário, para contrapor-se-lhe, fortalecer os instintos de Eros, a pulsão de vida. No entanto, nada garante que esta última sairá vitoriosa deste embate, o que leva Freud a concluir sua “carta-resposta” da seguinte forma: “Espero que o senhor me perdoe se o que eu disse o desapontou” (Freud, 1932/1974, p. 259).
O desapontamento vivido por Freud face à constatação de que os valores da formação cultural não seriam suficientes para salvar o homem da barbárie é revelado em vários momentos da carta. Ele não lança mão nem da importância dos métodos educativos, que seriam a bandeira dos defensores da Bildung e da Kultur, nem da necessidade de fortalecer a política, como queriam aqueles que cultuavam a Zivilisation. Por isso mesmo, ele pronuncia no início do texto “O futuro de uma ilusão” (Freud, 1927/1974) sua falta de preocupação com a distinção entre os dois termos: “desprezo ter que distinguir entre cultura e civilização” (p. 16). Não importa mais, para o problema em questão, se a domesticação da pulsão de morte seria feita pela cultura ou pela civilização, pois, seja por uma ou por outra, a pulsão é determinante para que permaneça “sempre um resto não trabalhado e não trabalhável” (Lo Bianco, 1998, p. 79), isto é, não passível de ser capturado pelos sistemas civilizatórios.
Dessa maneira, Freud se contrapõe a alguns pensadores representantes do romantismo alemão, como, por exemplo, Thomas Mann, Schiller e Goethe, ferrenhos defensores da Bildung como a via privilegiada para a construção de uma relação harmoniosa do sujeito com o coletivo. Portanto, Freud tem uma leitura contrária àquela dos animadores da Bildung, visão que a posteriori se mostrou muito mais próxima da realidade. Enquanto estes defensores da Kultur são tomados de surpresa pela catástrofe trazida pela guerra, os escritos freudianos já a anunciavam (1927/1974). Por outro lado, ele observa nestes “sustentadores da cultura” - referindo-se às visões de mundo que tentavam normativizar os vínculos entre os sujeitos - uma tentativa de união, de “amância”, fadada desde sempre ao insucesso”. (Lo Bianco, 1998, p. 77)
Nesse sentido, este resto ao mesmo tempo incapturável e indomável da pulsão faz com que a violência não seja algo distante e separável do próprio processo civilizatório. Àqueles que em sua época defendiam a formação cultural, Freud respondeu com a formulação do segundo dualismo pulsional. Aos que em seu tempo acreditavam nas promessas tecnológicas do capitalismo tardio, Adorno mostrou como as bases em que se apoiavam conduziam ao colapso da cultura.
Referências
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- Birman, J. (2005). O mal-estar na modernidade e a psicanálise. Physis - Revista Saúde Coletiva, 15, 203-224.
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- Lo Bianco, A. C. (1998). A bildung alemã e a cultura em Freud. In N. Sampaio (Org.),Cultura da Ilusão - IV Fórum Brasileiro de Psicanálise(pp. 65-80). Rio de Janeiro: Contra Capa.
- Menegat, M. (2004). Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie Rio de Janeiro: Relume Dumará.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
2017
Histórico
-
Recebido
15 Jun 2015 -
Revisado
12 Jan 2016 -
Aceito
20 Fev 2016