RESUMO
O artigo analisou a construção do perfil de atuação profissional dos Agentes Comunitários de Saúde - conhecidos internacionalmente como Community Health Workers -, apoiado na discussão sobre as disputas em torno do seu trabalho. Foram examinados documentos das políticas de saúde, com destaque para as inflexões produzidas sobre suas atribuições e formação profissional. Buscou-se compreender a racionalidade e os argumentos que sustentam as alterações induzidas pelas políticas e seus possíveis resultados sobre as práticas. Identificou-se que esse trabalho tem assumido conformações crescentemente próximas da educação para a saúde em uma vertente biomédica, agravada por mecanismos de gestão que promovem sua fragmentação e simplificação. Não houve avanço na implementação do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde e, em paralelo, vêm se instituindo qualificações breves e impulsionadas por demandas pontuais. Entende-se que as políticas dirigidas a esse trabalhador se orientam por uma perspectiva de curto prazo e expressam, no contexto brasileiro atual, o próprio enfraquecimento do Sistema Único de Saúde. Observa-se a redução do papel do Agente Comunitário de Saúde na consolidação de estratégias que poderiam contribuir para concretizar a Atenção Primária à Saúde como espaço de fortalecimento da universalidade e da integralidade.
PALAVRAS-CHAVE
Agentes Comunitários de Saúde; Atenção Primária à Saúde; Saúde da família; Política de saúde
ABSTRACT
The article analyzed the construction of the profile of professionals internationally known as Community Health Workers, supported in the discussion about the disputes surrounding their work. Health policy documents were examined, with emphasis on the inflections produced on their attributions and professional training. It was sought to comprehend the rationality and the arguments that sustain the changes induced by the policies and their possible results on the practices. It was identified that this work has assumed conformations increasingly close to health education in a biomedical aspect, aggravated by management mechanisms that promote its fragmentation and simplification. There was no progress in the implementation of the Technical Course of Community Health Worker and, in parallel, short qualifications have been introduced and driven by specific demands. It is understood that the policies directed to this worker are guided by a short-term perspective and express, in the current Brazilian context, the very weakening of the Unified Health System. It is observed the reduction of the role of the Community Health Worker in the consolidation of strategies that could contribute to implement Primary Health Care as a space for strengthening universality and integrality.
KEYWORDS
Community Health Workers; Primary Health Care; Family health; Health policy
Introdução
Os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) somavam, em agosto de 2018, 263.756 trabalhadores, presentes em 98% dos municípios brasileiros, integrando as equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF)11 Brasil. Ministério da Saúde. Histórico de cobertura de municípios com equipes de saúde da família, credenciadas pelo Ministério da Saúde. [acesso em 2018 ago 18]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php.
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. Instituídos no Sistema Único de Saúde (SUS) em 1991, por meio do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs), têm contribuído para a extensão de cobertura e a estruturação da Atenção Primária à Saúde (APS) no País.
Desde as experiências anteriores ao Pacs, prevaleceu, como elemento central do trabalho do ACS, a articulação entre os serviços de saúde e a vida no território, a partir da compreensão dos determinantes sociais do processo saúde-doença e da necessidade de conjugar ações de cuidado, prevenção e promoção da saúde. Ao longo de 27 anos de sua trajetória no SUS, importantes indicadores do perfil da categoria se modificaram, particularmente a escolaridade. Na primeira década de implantação do Pacs/Programa Saúde da Família (PSF), a exigência de escolaridade restringiu-se a 'saber ler e escrever'. A partir da Lei nº 10.507/200222 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 10.507 de 10 de julho de 2002. Cria a profissão de Agente Comunitário de Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. 10 Jul 2002., passou-se a exigir o ensino fundamental. Naquele contexto, apenas 18,2% dos ACS tinham completado o Ensino Médio (EM); e 0,6%, o Ensino Superior (ES). Atualmente, dados da pesquisa de Pinto, Medina e Pereira et al.33 Pinto ICM, Medina MG, Pereira RAG, et al. Avaliação do perfil dos agentes comunitários de saúde no processo de consolidação da atenção primária à saúde no Brasil [relatório de Pesquisa]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2015. 430 p. conformam um quadro com expressivas alterações: 70,97% dos agentes têm o EM completo, e 12,71%, o ES completo.
Considerando que muitos ACS complementaram sua escolaridade após o ingresso na profissão, conclui-se que o trabalho impulsiona a continuidade dos estudos. Predomina a formação em saúde, com 30,5 % dos ACS estudados formados como auxiliares e técnicos de enfermagem. Essas informações refletem a inclusão dos ACS nas turmas do Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem (Profae). Além disso, a enfermagem é um grupo profissional que, em seu cotidiano na ESF, mantém fortes ligações com as atividades dos ACS44 Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018..
Quanto aos cursos de nível superior, além da enfermagem, destacam-se o serviço social e a psicologia, também ligados a demandas das comunidades e importantes para o trabalho intersubjetivo, que caracteriza as ações educativas realizadas pelos ACS. Fica claro que há um anseio por profissionalização que não encontrou espaço para se efetivar por meio da formação específica, tal como propõe o Referencial Curricular do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde, publicado em 200455 Brasil. Ministério da Saúde. Referencial curricular para o curso técnico de agente comunitário de saúde. Brasília, DF: MS; 2004..
As modificações relativas à forma de contratação e ingresso no trabalho apontam para condições menos vulneráveis. Entre os contratados mais estáveis, temos os ACS estatutários que somam 55,53%, e os empregados públicos via CLT com 26,33%. O ingresso no trabalho se dá principalmente por meio de concurso público (54,02%), seguido pela seleção pública (39,56%). Entretanto, registra-se uma situação destoante no Sudeste, onde o percentual de estatutário é de 22,54%, e o de celetista é de 27,23%33 Pinto ICM, Medina MG, Pereira RAG, et al. Avaliação do perfil dos agentes comunitários de saúde no processo de consolidação da atenção primária à saúde no Brasil [relatório de Pesquisa]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2015. 430 p., fato preocupante devido à presença de importantes capitais brasileiras, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, nas quais predomina a terceirização intermediada por Organizações Sociais (OS).
Apesar dessas importantes alterações, muitas condições se mantiveram: trata-se de uma categoria predominantemente composta por mulheres que residem na área em que atuam, com carga horária de trabalho de 40 horas semanais. A Visita Domiciliar (VD) segue como a atividade a qual os ACS conferem maior importância e que compõe a sua rotina de trabalho33 Pinto ICM, Medina MG, Pereira RAG, et al. Avaliação do perfil dos agentes comunitários de saúde no processo de consolidação da atenção primária à saúde no Brasil [relatório de Pesquisa]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2015. 430 p.,66 Ramos MN, Morosini MV, Fonseca AF, et al. Processo de Trabalho dos Técnicos em Saúde na perspectiva dos saberes, práticas e competências [relatório de Pesquisa]. Rio de Janeiro: OPAS; Fiocruz; 2017..
O fato de haver uma jornada definida na Política Nacional de Atenção Básica (PNAB)77 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União. 28 Mar 2006.,88 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012 [acesso em 2016 ago 16]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo= publicações/pnab.
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,99 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017. e mecanismos de controle, como assinatura de ponto, não elide o problema desses trabalhadores atuarem para além do seu horário. Ao menos três fatores combinam-se, para a ampliação do tempo de trabalho: a moradia na comunidade, a necessidade de demonstrar disponibilidade como forma de legitimação aos moradores, e a dificuldade de acesso aos serviços de saúde, especialmente agravadas no contraturno de funcionamento das unidades básicas. Há um quarto elemento que diz respeito à lógica de gestão dos serviços, baseada na aferição de produtividade que implica o alcance mensal de um determinado número de famílias visitadas. Quando um imóvel está fechado durante o dia, há relatos de ACS que fazem a visita à noite para encontrar os moradores.
Um primeiro momento de reconfiguração do trabalho do ACS foi a sua inserção no PSF, quando ele passou a integrar uma equipe multiprofissional. Mais recentemente, a incorporação crescente de novos modelos de gestão dos serviços e do trabalho na APS têm sido o principal vetor de mudanças em seu trabalho.
A análise dessas modificações abrange vários aspectos. Destacamos os efeitos sobre as condições em que o trabalhador atua, os direitos associados ao trabalho e as contribuições para o processo de atenção à saúde e realização dos princípios do SUS. Aqui, trataremos o trabalho do ACS como um indicador sensível das disputas que se colocam no campo da APS quanto ao modo de compreender o processo saúde-doença; o que é objeto da atenção à saúde; a definição do escopo e da abrangência dos serviços e das ações; assim como a configuração das práticas e do processo de trabalho.
Neste artigo, refletimos sobre as mudanças que têm sido operadas neste trabalho, relacionando-as com pontos importantes de inflexão da PNAB em torno do modelo de atenção e os efeitos projetados na configuração da APS. Trata-se de uma reflexão necessária particularmente no momento em que estão em curso: a implementação de uma nova PNAB e alterações na regulamentação do trabalho do ACS e na sua formação, em um contexto de aprofundamento do desmonte do SUS como um sistema público e universal.
O ACS na Estratégia Saúde da Família: trama de conquistas, perdas e desafios
Os agentes de saúde foram inicialmente responsáveis pelo desenvolvimento de atividades sanitárias consideradas de baixa complexidade e alto impacto, como a terapia de reidratação oral, o estímulo à vacinação e ao aleitamento materno, bem como o acompanhamento de gestantes e do crescimento de crianças, alcançando significativas melhoras em indicadores como a morbidade e a mortalidade materna e infantil.
Uma mudança marcante para o trabalho do ACS é quando esse trabalhador passa a integrar uma equipe multiprofissional e sua atuação é remetida às necessidades da organização do trabalho, a partir da dinâmica das unidades de atenção à saúde, na qual predomina as consultas médica, de enfermagem e odontológica, quando houver. Em plano complementar, encontram-se os procedimentos realizados pelos técnicos e auxiliares de enfermagem e de saúde bucal. É nesse contexto que o seu papel de mediador entre os serviços, os profissionais de saúde e os moradores dos territórios é exaltado, e a alusão ao ACS como elo entre serviços e a comunidade torna-se uma ideia que, apesar de vaga, propaga-se como uma síntese de seu papel no SUS, convergindo com a maioria dos perfis internacionais do trabalhador comunitário em saúde1010 Olaniran A, Smith H, Unkels R, et al. Who is a community health worker? a systematic review of definitions. Glob Health Action [internet]. 2017 [acesso em 2018 maio 10]; 10(1). Disponível em: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5328349/.
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Atualmente, em vez de testemunharmos maior integração de suas atribuições com as das equipes de saúde, observamos a progressiva dependência do ACS diante do processo de trabalho projetado para essas equipes, cujos objetivos estão crescentemente submetidos à lógica do monitoramento dos indicadores de resultados e de produtividade.
Na rotina do ACS, a atividade preponderante é a VD, que consiste no acompanhamento das condições de saúde das famílias de sua microárea e na busca ativa de situações específicas. Nas VD, os agentes cadastram os membros da família (condição para o acesso às unidades), realizam orientações diversas, informam sobre a dinâmica de funcionamento dos serviços, entre outras ações. As VD são a principal expressão da presença do ACS no território.
Nesses encontros com os moradores, os ACS identificam situações de saúde, muitas vezes não manifestas como demandas, que só chegam a se expressar para o sistema de saúde pela atuação do ACS. Embora isso seja um objeto da crítica à medicalização promovida pela ESF1111 Saffer DA, Barone LR. Em busca do comum: o cuidado do agente comunitário de saúde em Saúde Mental. Physis [internet]. 2017 jul [acesso em 2018 maio 30]; 27(3):813-833. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext& pid=S0103-73312017000300813&lng=pt. http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312017000300022.
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, supomos que reduzir ou reverter essa possível medicalização depende do investimento em processos formativos que possam problematizar essa questão, bem como da preservação dos espaços de discussão do processo de trabalho das equipes.
No interior das unidades, os ACS apoiam atividades coletivas associadas aos tradicionais programas de saúde, como grupos de hipertensos, além de outras atividades mais relacionadas com a promoção da saúde, como a educação física. Deveriam participar também das reuniões de equipe e com o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (Nasf). Outra atividade atribuída ao ACS na unidade é o acolhimento, ou seja, ele tem sido a primeira pessoa a receber, escutar e interpretar as necessidades dos usuários.
Grande carga de trabalho dos ACS tem se destinado à realização de atividades que refletem um escopo mais reduzido e de grande interface com tarefas de apoio e burocratizadas. Para ilustrá-las, citamos: a separação de fichas/prontuários dos usuários, a anotação do peso em consultas coletivas, a organização de espaços físicos para as atividades, a orientação de filas e até mesmo as atividades de limpeza. Essas atividades foram repetidamente observadas na pesquisa 'Processo de Trabalho dos Técnicos em Saúde na perspectiva dos saberes, práticas e competências'66 Ramos MN, Morosini MV, Fonseca AF, et al. Processo de Trabalho dos Técnicos em Saúde na perspectiva dos saberes, práticas e competências [relatório de Pesquisa]. Rio de Janeiro: OPAS; Fiocruz; 2017..
As atividades realizadas nas unidades também se desdobram em atividades burocráticas no território, como a entrega de resultados de exames, Kit-odonto e agendamentos. Esse conjunto de ações, associado àquelas relacionadas com a produção e com o registro de informações, tem crescido e concorrido com a disponibilidade para o trabalho mais elaborado de educação em saúde no território. Compromete-se o tempo e a direção dada às atividades na comunidade. As VD, por exemplo, tendem a ser breves e simplificadas, com predomínio das ações que podem ser mais facilmente quantificáveis, em detrimento da interação subjetiva com os moradores. As ações de mobilização social e de atuação intersetorial, que exigem discussões, planejamento e diálogo com pessoas e instituições, são também relegadas a segundo plano, aguardando uma oportunidade de serem inseridas na agenda, o que raramente se confirma1212 Fonseca AF, Mendonça MHM. A interação entre avaliação e o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde: subsídios para pensar sobre o trabalho educativo. Saúde debate [internet]. 2014 out [acesso em 2018 maio 30]; 38(esp):343-357. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042014000600343&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
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Entre a política e a regulamentação, a profissionalização dos ACS
Em relação ao ingresso em uma esfera de formalização, destacam-se as conquistas no plano legislativo que criam a profissão de ACS e passam a regulamentá-la22 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 10.507 de 10 de julho de 2002. Cria a profissão de Agente Comunitário de Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. 10 Jul 2002.,1313 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2o da emenda constitucional nº 51, de 14 fev. 2006, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 2006. (Leis nº 10.507/2002 e nº 11.350/2006). Tal posição se confirma, dede a PNAB 2006, pela definição de atribuições específicas para esse trabalhador. Dá-se um processo de deslocamento do ACS de uma situação de informalidade para a integração nas relações sociais pertinentes a um trabalhador do SUS. Criam-se condições para a organização e para as lutas coletivas que têm resultado em importantes avanços, como a crescente desprecarização das formas de contratação e a instituição do piso salarial nacional para a categoria. Podemos afirmar também que os ACS são e se reconhecem como uma força política com participação em âmbito nacional1414 Nogueira ML. O processo histórico da Confederação Nacional dos agentes comunitários de saúde: trabalho, educação e consciência política coletiva [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2017 [acesso em 2018 ago 10]. 541 f. Disponível em: http://ppfh.com.br/wp-content/uploads/2018/05/tese-normalizada-VERS%C3%83O-FINALIZADA-MARIANA-NOGUEIRA.pdf.
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A formação profissional representou, em certo momento, um espaço de avanço que não se confirmou. A preparação para o trabalho, inicialmente sem parâmetros definidos, tem uma trajetória que inclui o curso introdutório, de carga horária e conteúdos variados e a capacitação em serviço, com a participação dos enfermeiros e ACS mais antigos. Essas formas de qualificação breves e intermitentes surgem como alternativa à permanente demanda dos serviços por mais profissionais com condições de viabilizar suas inúmeras atividades1515 Morosini MV. Educação e trabalho em disputa no SUS: a política de formação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2010 [acesso em 2018 maio 10]. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l145.pdf.
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. Assim, são tomadas como uma solução imediata, mas, no médio prazo, tornam-se um problema, pois nenhuma delas converge para uma profissionalização de fato, nem promove uma formação consistente.
A publicação dos Referenciais Curriculares do Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde, em 200455 Brasil. Ministério da Saúde. Referencial curricular para o curso técnico de agente comunitário de saúde. Brasília, DF: MS; 2004., contribuiu para que a formação técnica representasse um caminho potencialmente consistente para se aliar trabalho e educação, em um contexto de valorização de ambos. Essa formação tornou-se uma realidade em poucos municípios, não tendo alcançado a grande maioria dos ACS. Portanto, significa mais uma expectativa do que um avanço propriamente dito44 Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018..
O processo de desprecarização dos vínculos ganhou impulso com a Lei nº 11.350/2006 que determinou a contratação direta desses trabalhadores por instituições vinculadas "órgãos ou entidade da administração direta, autárquica ou fundacional"1313 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2o da emenda constitucional nº 51, de 14 fev. 2006, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 2006.(1). Em muitos municípios, os ACS passaram a ser contratados como estatutários ou empregados públicos, via Consolidação das Leis do Trabalho (CLT)33 Pinto ICM, Medina MG, Pereira RAG, et al. Avaliação do perfil dos agentes comunitários de saúde no processo de consolidação da atenção primária à saúde no Brasil [relatório de Pesquisa]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2015. 430 p.. Embora o percentual de ACS com vínculos precários tenha diminuído, a preocupação persiste devido à importância da terceirização em grandes centros urbanos, e à recente modificação da legislação trabalhista que fortalece esse tipo de vinculação e aponta para a redução de direitos e a ampliação da insegurança no trabalho. Acrescentam-se a esse cenário as modificações projetadas para a Atenção Básica (AB) na PNAB 201799 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017.,1616 Morosini MV, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate [internet] . 2018 jun [acesso em 2018 maio 28]; 42(116):11-24. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042018000100011&lng=en.
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O piso salarial também não foi implementado em todos os municípios e permanece como pauta estratégica do movimento organizado desses trabalhadores. Esse problema guarda relação com as restrições financeiras que afetam os municípios e que tendem a se ampliar no contexto da Emenda Constitucional 95 que congela o orçamento público durante 20 anos.
Os gestores municipais reiteradamente alegaram que a Lei de Responsabilidade Fiscal era um obstáculo para a desprecarização dos vínculos, para a implementação da formação técnica - que supunham estar associada à elevação salarial - e para a instituição do piso da categoria. No tocante aos vínculos, esses argumentos se diversificaram. A preocupação com a folha de pagamento perdeu posição perante as possíveis vantagens que os contratos flexíveis trazem para a gestão1717 Girardi SN. Monitoramento da qualidade do emprego na Estratégia de Saúde da Família [relatório final]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2014 [acesso em 2018 maio 10]. Disponível em: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/pesquisa/simples/MONITORAMENTO.
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No caso dos obstáculos postos à realização da formação técnica, não se pode desconsiderar a influência de uma concepção que valoriza os atributos subjetivos, ligados à origem comunitária dos ACS, e considera que esta formação poderia produzir um distanciamento entre esse trabalhador e a realidade das pessoas de sua comunidade. Este argumento, reiterado durante muitos anos, hoje, perdeu força. A elevação da escolaridade geral da categoria aqui já referida, por um lado, contribui para desmistificar esse argumento contrário à formação profissional dos ACS, mas, de outro, aporta novo problema. Percebe-se que muitos ACS já buscaram um caminho próprio de profissionalização, inclusive de nível superior, fragilizando ainda mais o projeto de uma formação própria, representada pelo Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde.
A proposta de formação técnica dos ACS, que não obteve o aval da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), foi progressivamente perdendo importância na agenda do Ministério da Saúde (MS) e sempre ocupou uma posição subordinada, na pauta do movimento organizado dos trabalhadores, diante das urgências relativas ao salário e aos vínculos.
Em relação às atribuições dos ACS, documentos normativos de abrangência nacional - programas, portarias, decretos e leis - têm-se ocupado da sua definição. Destacam-se: a Portaria nº 1.886 do MS, publicada em 19971818 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.886/GM de 18 de dezembro de 1997. Aprova as Normas e Diretrizes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde e do Programa de Saúde da Família. Diário Oficial da União. 22 Dez 1997., o Decreto nº 3.189, de 19991919 Brasil. Decreto nº 3.189 de 04 de outubro de 1999. Fixa diretrizes para o exercício de atividades de Agente Comunitário de Saúde (ACS) e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 1999., a Lei nº 10.507, de 200222 Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 10.507 de 10 de julho de 2002. Cria a profissão de Agente Comunitário de Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. 10 Jul 2002., e a Lei nº 11.350, de 20061313 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2o da emenda constitucional nº 51, de 14 fev. 2006, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 2006.. Desde 2006, a configuração do trabalho dos ACS passa a ser objeto das definições estabelecidas nas Políticas Nacionais de Atenção Básica de 200677 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União. 28 Mar 2006., 201188 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012 [acesso em 2016 ago 16]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo= publicações/pnab.
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e 201799 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017..
Até 2006, nos documentos normativos, as atribuições dos ACS enfatizavam o caráter educativo do trabalho, com atividades de orientação e acompanhamento das famílias e de grupos específicos, de mobilização social, de articulação intersetorial e de produção de informação. O lócus de atuação prioritário era o território, e a visita domiciliar era a estratégia principal. Coexistiam duas perspectivas de trabalho educativo: uma, baseada na concepção de educação para a saúde, fortemente limitada por parâmetros biomédicos, voltada à disseminação de comportamentos saudáveis; e outra, mais abrangente, vinculada à participação social, implicando a mobilização política e assumindo como horizonte do trabalho intervir na determinação social do processo saúde-doença2020 Morosini MVGC, Fonseca AF. Configurações do trabalho dos Agentes Comunitários na Atenção Primária à Saúde: entre normas e práticas. In: Mendonça MHM; Matta G, Gondim R, Giovanella L, organizadores. Atenção Primária à saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Ed Fiocruz, 2018, p. 369-406..
A partir da publicação da primeira PNAB, explicita-se um redirecionamento nas diretrizes do trabalho. Perdem centralidade as ações de educação que passam a ser apresentadas como meios de efetivação de outras atividades principais de promoção, prevenção e vigilância. Em 2011, com a segunda edição da PNAB88 Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012 [acesso em 2016 ago 16]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo= publicações/pnab.
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, essa tendência se acentua. Ao exemplificar as atividades educativas realizadas pelos ACS, o texto da política cita apenas doenças, e as associa à prevenção e ao controle de riscos.
As atividades dos ACS que enfocam a participação popular são excluídas dos textos das PNAB e, com elas, é suprimida também a expressão 'qualidade de vida', tão cara ao campo da promoção da saúde.
Embora publicada no mesmo ano que a PNAB 2006, a Lei nº 11.350 assume uma perspectiva mais ampla do papel dos ACS. Esta diferença é tributária da participação do movimento organizado dos agentes na sua formulação, especialmente da Confederação Nacional dos Agentes Comunitários de Saúde (Conacs), e ao apoio da Secretaria de Gestão do Trabalho e Educação em Saúde (SGTES) do MS, cuja agenda política volta-se, à época, para o fortalecimento dos trabalhadores e a valorização da gestão pública no SUS44 Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018..
O substrato político do trabalho do ACS vai sendo progressivamente debilitado nos documentos da política. O próprio termo 'política' desaparece da definição de suas atribuições nas PNAB 2006 e 2011. Mais uma vez, a Lei nº 11.350 representa um contraponto, estabelecendo atividades de "estímulo à participação da comunidade nas políticas públicas voltadas para a área da saúde"1313 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2o da emenda constitucional nº 51, de 14 fev. 2006, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 2006.(1) e a participação desse trabalhador em "ações que fortaleçam os elos entre o setor saúde e outras políticas que promovam a qualidade de vida"1313 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2o da emenda constitucional nº 51, de 14 fev. 2006, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 2006.(1).
Apesar de não suprimir o termo 'comunidade', as PNAB o utilizam com menor frequência e restringem o seu significado ao local de exercício das atividades de promoção e prevenção - 'na comunidade'. Anteriormente, 'comunidade' indicava o sujeito da participação política que o trabalho do ACS deveria promover44 Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018..
O diagnóstico demográfico e sociocultural da comunidade deixa de ser atribuição do ACS, assim como as ações voltadas ao fortalecimento da relação entre o setor saúde e outras áreas das políticas públicas. Não se trata aqui de verificarmos perdas pontuais, mas de caracterizarmos a alteração de sentido que se produz em torno do trabalho do ACS. Consolida-se o compromisso com atividades fragmentadas, como 'cadastrar todas as pessoas de sua microárea e manter os cadastros atualizados'. Caracteriza-se a transição de uma atividade com escopo amplo e complexo (produção do diagnóstico) para uma tarefa de cunho predominantemente operacional (cadastramento). Estudos desenvolvidos no âmbito do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ) alertam para a negligência com o contexto sociocultural na produção do mapeamento dos territórios2121 Teixeira MB, Casanova AO, Oliveira CM, et al. Avaliação das práticas de promoção da saúde: um olhar das equipes participantes do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica. Saúde debate [internet]. 2014 out [acesso 2018 maio 13]; 38 (esp):52-68. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042014000600052&lng=pt.
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
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Essa mudança de sentido vai redefinindo não apenas o escopo de práticas dos ACS, mas também o significado do território para o seu trabalho. Ao permitir que o ACS desenvolva atividades no interior da unidade, a PNAB 200677 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União. 28 Mar 2006. legitima o deslocamento do seu eixo de trabalho do território para a instituição. O tempo de trabalho no território é duplamente afetado: por um lado ocorre uma subtração para realizar as tarefas na unidade; por outro, ele é gradativamente orientado por objetivos com recortes bastante pontuais. O trabalho passa a se organizar a partir de uma racionalidade que atende a propósitos muito específicos, cujos nexos remetem mais fortemente à lógica gerencialista, em detrimento de princípios estruturantes da ESF, que nos apontam o território como espaço de relações em múltiplas dimensões e não o reduzem a local de intervenção sanitária44 Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018..
Desenvolver parte do trabalho na unidade não é, por si, um problema. Esta poderia ser uma oportunidade de integração do ACS na equipe técnica, dado que o trabalho multiprofissional tem a articulação como um requisito. Entretanto é a natureza das atividades que têm sido atribuídas aos ACS no interior das unidades que sublinha a necessidade de crítica em relação à forma como esse processo de trabalho vem se transformando. Em geral, o ACS é encarregado de desempenhar tarefas que o aproximam de um auxiliar genérico dos demais profissionais. Por vezes, essas ações podem ser realizadas para suprir a ausência de outros trabalhadores ou estarem incorporadas à dinâmica de organização do trabalho.
Verifica-se uma transição do sentido do trabalho do ACS. Anteriormente, identificava-se uma finalidade própria, centrada na educação em saúde, e um papel de articulação com as ações desenvolvidas pelos serviços. Hoje, este trabalho tende a se caracterizar como uma atividade meio, instrumentalizada e utilitarista, mais comprometida com objetivos imediatistas do que estruturantes de um novo modelo de atenção.
Os problemas agravados pelos novos modelos de gestão
Várias inflexões no trabalho dos ACS resultam da adoção, no setor público, da lógica, das práticas e dos instrumentos baseados na Nova Gestão Pública (NGP), originalmente concebidos para o gerenciamento do setor privado. Na saúde, a implementação da NGP promove a reestruturação do processo de trabalho, direcionando-o para o alcance de metas cujo desenho permita a aferição de resultados mensuráveis; instituindo instrumentos de controle; e construindo formas de contratação entre o setor público e o privado para a oferta de serviços2222 Sano H, Abrucio FL. Promessas e resultados da Nova Gestão Pública no Brasil: o caso das organizações sociais de saúde em São Paulo. Rev Adm Empresa [online]. 2008; 48(3):64-80..
A APS não está isenta dessa racionalidade que é viabilizada por meio de mecanismos de gestão inseridos na lógica da avaliação, mas limitados às práticas de monitoramento. Resultados, indicadores e metas tornam-se componentes que organizam a reflexão sobre o que tem valor no trabalho e integram-se ao vocabulário que media as interações profissionais. Essa concepção de gestão inclui a adoção de incentivos financeiros, com previsão de remuneração diferenciada, para profissionais, equipes, serviços e, até mesmo, níveis intermediários de gestão, em função da produtividade alcançada.
Essa lógica requer a distinção dos eventos sobre os quais se aplicam relações de causa e efeito e para os quais se possam dirigir atividades quantitativamente mensuráveis. Para reforçá-las, a gestão institui mecanismos de estímulo, controle e cobrança que as privilegiam. Foi desse modo que as 'linhas de cuidado' alcançaram o status prioritário, em uma relação explícita com a prevenção de doenças: linha de cuidado do câncer, da diabetes, da hipertensão, por exemplo.
A mensuração quantitativa exige um grau importante de parcelamento das atividades e imprime um reconhecimento fragmentado do trabalho, com decorrente atribuição de parcelas a cada um dos profissionais. Essa elaboração sobre o trabalho e sobre a gestão incide de forma muito nociva sobre o ACS, na medida em que o seu trabalho já é tratado como menos complexo e mais difuso, sendo mais permeável às variadas demandas dos serviços. Os principais efeitos desse processo são a simplificação de suas atribuições e o reforço da polivalência. Tal combinação é amparada por qualificações pontuais frequentemente impulsionadas por urgências sanitárias44 Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018., cuja lógica se assenta na instrumentalização dos saberes e não na construção de conhecimentos sólidos que apoiem a prática profissional.
Amplia-se a desqualificação do trabalho dos ACS que se aprofunda na mesma proporção em que se retoma o predomínio da racionalidade biomédica. As ações de educação em saúde são particularmente sensíveis a esse tipo de inflexão e tendem crescentemente a se tornar ações de educação para a saúde. Não somente o tempo, mas também a energia dos ACS passam a ser disputados por duas lógicas: uma que valoriza o trabalho educativo em si e outra que o circunscreve à condição de viabilizador do acesso ao território e do alcance das metas.
Quanto aos vínculos, apesar do avanço dos contratos regulares, a terceirização da gestão tem-se confirmado como tendência em algumas capitais, sobretudo por intermédio da contratação das OS33 Pinto ICM, Medina MG, Pereira RAG, et al. Avaliação do perfil dos agentes comunitários de saúde no processo de consolidação da atenção primária à saúde no Brasil [relatório de Pesquisa]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2015. 430 p.. Ainda que minoritários em relação ao total de municípios brasileiros, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Porto Alegre são exemplos dessa tendência que, devido à sua importância política e econômica, devem ser observados com atenção. Essa realidade dificulta a generalização do que está previsto na Lei nº 11.350 para a contratação dos ACS: diretamente pelos entes públicos, seja como funcionários estatutários ou como empregados públicos, via CLT.
Alterações recentes no trabalho e na formação dos ACS: PNAB 2017, Lei nº 13.595/2018 e Portaria nº 83/2018
Em meados de 2017 e início de 2018, três documentos aportaram alterações significativas no que tange às atribuições e à formação dos ACS: a PNAB 201799 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017., a Portaria nº 83/20182323 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 83 de 10 de janeiro de 2018. Institui o Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde - Profags. Diário Oficial da União. 10 Jan 2018. do MS que trata da formação técnica em enfermagem dos agentes de saúde, e a Lei nº 13.595, de 20182424 Brasil. Presidência da República. Lei nº 13.595 de 5 de janeiro de 2018. Altera a Lei 11.350, para dispor sobre a reformulação das atribuições, a jornada e condições de trabalho e outras definições sobre o trabalho dos ACS e ACE. 5 jan 2018. - Lei Ruth Brilhante, que modificou a Lei nº 11.350/20061313 Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2o da emenda constitucional nº 51, de 14 fev. 2006, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 2006.. Analisando em conjunto tais documentos e os argumentos que os sustentam, percebemos a influência de duas ideias-força publicamente veiculadas pelos gestores do SUS, especialmente, no âmbito do MS, pelo menos desde 2016, quando ocorreu o VII Fórum Nacional de Gestão da Atenção Básica. Tais ideias podem ser assim sintetizadas: 1) o ACS não é um trabalhador necessário em todos os contextos; 2) o ACS é pouco resolutivo.
As alterações promovidas por cada documento em consonância com essas ideias-força são as seguintes:
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O ACS não é um trabalhador necessário em todos os contextos - a não definição, na PNAB 2017, do número mínimo de ACS por equipe de saúde da família e a previsão de financiamento federal para as equipes de AB que não incluem ACS em sua composição mínima; o veto presidencial à Lei nº 13.5952424 Brasil. Presidência da República. Lei nº 13.595 de 5 de janeiro de 2018. Altera a Lei 11.350, para dispor sobre a reformulação das atribuições, a jornada e condições de trabalho e outras definições sobre o trabalho dos ACS e ACE. 5 jan 2018., no item que definia a presença obrigatória dos ACS na estrutura da AB;
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O ACS é pouco resolutivo - a inclusão, pela PNAB 2017, de atividades típicas de enfermagem na lista de atribuições dos ACS (aferição de pressão arterial, medição da glicemia capilar, aferição da temperatura axilar e realização de técnicas limpas de curativo); a publicação do Programa de Formação de Agentes de Saúde (Profags), instituindo a formação técnica em enfermagem para os agentes comunitários de saúde e os agentes de endemias, conforme disposto na Portaria nº 83/2018 do MS2323 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 83 de 10 de janeiro de 2018. Institui o Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde - Profags. Diário Oficial da União. 10 Jan 2018.; os vetos presidenciais interpostos à Lei nº 13.595 de 20182424 Brasil. Presidência da República. Lei nº 13.595 de 5 de janeiro de 2018. Altera a Lei 11.350, para dispor sobre a reformulação das atribuições, a jornada e condições de trabalho e outras definições sobre o trabalho dos ACS e ACE. 5 jan 2018., nos itens que demarcavam atribuições específicas dos ACS e Agentes de Combate às Endemias (ACE), e no que se referia à oferta da formação técnica em ACS.
A segunda ideia está diretamente articulada à primeira, supondo que, para manter-se pertinente, o ACS deve assumir atribuições do campo clínico, características do acompanhamento de condições crônicas de saúde e procedimentos simplificados. Essa questão remete à delimitação do escopo de práticas entre profissionais, mais especificamente do ACS em relação à categoria de enfermagem e evidencia conflitos que não podem ser desconsiderados.
Antes que se conclua que o ACS se tornou prescindível ou descaracterizado como um trabalhador comunitário, esse conjunto de preocupações deve nos conduzir ao diálogo com princípios estruturantes da reformulação do modelo de atenção à saúde. A ideia de um ACS pouco resolutivo evoca uma noção de resolutividade ainda apoiada em uma concepção estreita da clínica, na qual a efetividade depende da assistência no seu sentido mais restrito, materializada em procedimentos simplificados, como é característico do perfil do agente comunitário em países da África, por exemplo2525 Christopher JB, May A, Lewin S, et al. Thirty years after Alma-Ata: A systematic review of the impact of community health workers delivering curative interventions against malaria, pneumonia and diarrhoea on child mortality and morbidity in sub-Saharan Africa. Human Resources for Health. 2011; 9(27):2-11.. Isso se dá em detrimento da perspectiva do cuidado integral e da compreensão do processo saúde-doença como expressão das determinações sociais.
Transigir quanto à presença dos ACS nas equipes indica um movimento regressivo em relação ao horizonte de transformação do modelo de atenção, associado à uma ampliação do acesso à saúde, visando à sua universalização. Quanto ao modelo, a ESF tem representado o compromisso com uma atenção à saúde orientada pela conjugação entre necessidades de saúde, territorialização, adscrição de clientela, vínculo, responsabilidade sanitária e cuidado centrado na pessoa. Em um contexto no qual a PNAB admite a composição de equipes com um número reduzido de ACS (ou mesmo sem eles), flexibiliza a cobertura e segmenta o sistema de saúde pela diferenciação de padrões de oferta de serviços (essenciais e ampliados), reforça-se a concepção de APS seletiva. Simultaneamente, enfraquece-se a perspectiva de substituição do modelo de atenção e de ordenamento da rede a partir da AB, recuperando a modalidade tradicional de serviços básicos de saúde, estruturados segundo a lógica da 'queixa-conduta'.
Supor que a resolutividade do ACS depende da incorporação de práticas clínicas nos conduz a uma reflexão que evidentemente não se restringe a esse profissional, mas abrange o sistema de saúde. Ainda que seja verdadeiro dizer que se alcançou um deslocamento da atenção centrada no hospital para a APS, o mesmo não se pode afirmar quanto à estruturação do trabalho, que se mantém fortemente orientado pela racionalidade biomédica. Mantida a crítica quanto aos limites desse modelo na produção de melhores níveis de qualidade de vida, indaga-se se não seria oportuno reinvestir no potencial do ACS de trazer, para o cuidado em saúde, práticas que valorizam as várias dimensões condicionantes do processo saúde-doença. Essa perspectiva impõe ideias condizentes com o perfil de um trabalhador comunitário preparado para atuar na promoção da saúde, apoiar a clínica ampliada e subsidiar a organização e participação popular.
Tais ideias articulam-se com a questão da formação dos ACS. A Portaria nº 83, de janeiro de 20182323 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 83 de 10 de janeiro de 2018. Institui o Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde - Profags. Diário Oficial da União. 10 Jan 2018., ao instituir um programa de formação técnica em enfermagem para 250 mil ACS e ACE, coloca em prática o que parece ser um projeto de transformação, em larga escala, dos ACS em técnicos de enfermagem, desconsiderando a existência do Referencial Curricular para Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde que o próprio MS publicou em parceria com o Ministério da Educação (MEC)55 Brasil. Ministério da Saúde. Referencial curricular para o curso técnico de agente comunitário de saúde. Brasília, DF: MS; 2004.. As distorções implicadas nessa transformação ficam mais claras ao se comparar o perfil de conclusão dos respectivos cursos técnicos2020 Morosini MVGC, Fonseca AF. Configurações do trabalho dos Agentes Comunitários na Atenção Primária à Saúde: entre normas e práticas. In: Mendonça MHM; Matta G, Gondim R, Giovanella L, organizadores. Atenção Primária à saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Ed Fiocruz, 2018, p. 369-406..
Perfis de conclusão dos Cursos Técnico de Agente Comunitário de Saúde e de Enfermagem, segundo o Catálogo Nacional de Cursos Técnicos/MEC, 2016
O Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde baseia-se em um perfil de atividades complexas, localizadas na interface entre a área social - com ênfase na educação e na comunicação - e a clínica/epidemiologia. Do ponto de vista do conhecimento e da perspectiva política, requisita a compreensão dos determinantes sociais e da dinâmica de produção da vida e dos problemas de saúde específicos dos territórios, bem como prevê o desenvolvimento da capacidade de articulação com as instituições de saúde e de outros setores. Tem interface com a clínica, mas predomina a direcionalidade da prevenção e da promoção da saúde44 Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018.,2020 Morosini MVGC, Fonseca AF. Configurações do trabalho dos Agentes Comunitários na Atenção Primária à Saúde: entre normas e práticas. In: Mendonça MHM; Matta G, Gondim R, Giovanella L, organizadores. Atenção Primária à saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Ed Fiocruz, 2018, p. 369-406..
O Curso Técnico de Enfermagem2626 Brasil. Ministério da Educação. Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. Brasília, DF: MEC; 2016. baseia-se em um perfil de atividades ligadas à assistência clínica, com ênfase nas práticas de enfermagem. Do ponto de vista do conhecimento, requer a compreensão da assistência à saúde, visando ao domínio de técnicas de apoio, preparação e acompanhamento dos procedimentos de diagnóstico, tratamento e reabilitação44 Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018.,2020 Morosini MVGC, Fonseca AF. Configurações do trabalho dos Agentes Comunitários na Atenção Primária à Saúde: entre normas e práticas. In: Mendonça MHM; Matta G, Gondim R, Giovanella L, organizadores. Atenção Primária à saúde no Brasil: conceitos, práticas e pesquisa. Rio de Janeiro: Ed Fiocruz, 2018, p. 369-406..
Diante desse novo perfil, a condição de morador da comunidade, exigida aos ACS e mantida nos documentos normativos analisados, parece restringir-se ao interesse institucional de dispor de um trabalhador apto a circular nos territórios e a acessar os domicílios. Isso se dá em detrimento da valorização de seu poder de compreender a dinâmica de vida nesses territórios e colocar esse conhecimento em articulação com as necessidades das pessoas/coletividade, elevando o potencial de ação dos serviços.
A escolha pela formação em enfermagem indica o propósito de ampliar a participação, na AB, do perfil profissional e do escopo de práticas de base clínica, com caráter assistencial. Tem, portanto, a capacidade de impactar negativamente o ainda frágil processo de implementação de um novo modelo de atenção, e não somente o trabalho do ACS.
Além dessas alterações, a PNAB 201799 Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017. define atribuições comuns entre ACS e ACE, justificadas pela necessidade de integrar a vigilância à atenção à saúde. Alguns argumentos colocados pelo próprio MS referem-se à possibilidade de fazer uso mais racional da presença dos agentes no território. O risco iminente é de sobrecarga de um agente pelo trabalho do outro e uma provável redução de postos de trabalho. Diante de um programa de formação em enfermagem, financiado pelo MS, esse risco parece agravado pela 'criação' de um trabalhador sobre o qual irão sobrepor-se três escopos de práticas: do ACS, do ACE e do técnico de enfermagem.
Tais expressões da atual política governamental no campo da saúde, tanto a PNAB 2017 quanto o Profags, foram contestadas por diversos sujeitos políticos coletivos importantes no cenário do SUS, com destaque para o Conselho Nacional de Saúde. Esta instância participativa que congrega representações paritárias da gestão e dos usuários e mobiliza entidades nacionais, instituições acadêmicas e trabalhadores têm rechaçado as alterações pretendidas. Em seu diagnóstico, o próprio SUS está em risco de inviabilização, e as medidas em tela se somam a outras alinhadas aos interesses privatistas. No presente momento, o edital do Profags foi suspenso pelo MS. Além da proposta de impugnação apresentada por uma entidade privada, admite-se a hipótese de que essa suspensão se deva ainda às reações contrárias e aos mais recentes cortes no financiamento do SUS.
A Lei nº 13.5952424 Brasil. Presidência da República. Lei nº 13.595 de 5 de janeiro de 2018. Altera a Lei 11.350, para dispor sobre a reformulação das atribuições, a jornada e condições de trabalho e outras definições sobre o trabalho dos ACS e ACE. 5 jan 2018. também tem questões controversas, mas sendo oriunda do movimento organizado dos ACS, especialmente da Conacs, consegue uma boa adesão dos trabalhadores. Justifica-se como reação a medidas que colocaram em xeque o ACS e suas atribuições, antecipando-se na proposição de mudanças sobre as quais eles tenham maior concordância. Os vetos presidenciais interpostos à referida Lei foram parcialmente retirados, em reposta à luta dos trabalhadores. Entre os vetos destacados nesse texto, foi mantido o que se refere à obrigatoriedade da oferta de formação técnica em ACS pelos entes federados. A manutenção desse veto evidencia o quanto a formação específica dos agentes representa uma ameaça para a gestão, talvez porque condense as possibilidades de configuração de um perfil profissional, de base comunitária, com maior autonomia e capacidade de resistência a medidas, por vezes autoritárias e distanciadas de um projeto de saúde como direito universal e integral.
Considerações finais
A presença dos ACS nos mais diferentes contextos já alcançados pela ESF e aos quais ainda se pretende fazer chegar, assim como a natureza do seu trabalho, está em risco e encontra na PNAB 2017 a expressão mais contundente de uma crise. A análise dessa questão não pode ser feita de modo aligeirado, sob a urgência que um contexto restritivo impõe. Entende-se aqui que é sempre necessário recuperar a perspectiva da universalidade e da integralidade como princípios éticos que balizam a reflexão e a proposição de rumos.
Assumindo a educação em saúde como o eixo principal do trabalho dos ACS e o compromisso com uma APS forte, reafirma-se a necessidade de produzir políticas públicas direcionadas para a qualificação desse trabalho de modo a atender às diferentes configurações da vida e das relações sociais, nos diversos territórios e contextos nos quais o processo saúde-doença se constrói e se expressa.
Um caminho necessário para essa construção futura é a retomada da formação técnica dos ACS. Assumi-la como um processo que precisa ser implementado integralmente e oferecido a todos os ACS é condição para que se fortaleçam parâmetros nacionais para a sua formação e profissionalização.
Ao contrário disso, o que tem prevalecido para os agentes é o delineamento, pelo cotidiano do trabalho, de um perfil de atividades submetido a uma lógica utilitarista, por meio da qual a fragmentação se alia à simplificação e à intensificação do trabalho. Essas configurações do trabalho têm sido potencializadas por modelos de gestão centrados no alcance de metas e que funcionam de modo mais harmônico com a racionalidade biomédica, em que a educação em saúde de caráter emancipatório é deslocada pela educação para a saúde. Uma das implicações diretas dessa configuração do trabalho do ACS é o perigo dele tornar-se, no território, um instrumento avançado de uma ação com traços acentuadamente medicalizadores, com impacto questionável sobre a qualidade de vida da população.
A noção de resolutividade a partir da qual o trabalho do ACS vem sendo desqualificado merece uma reflexão crítica. Confirmando-se a adesão ao entendimento do processo saúde-doença como relativo às múltiplas dimensões da vida humana, com expressões individuais e coletivas, a noção de resolutividade que orienta as diretrizes da AB precisa expressar essa compreensão. Desse modo, não se desvincula da perspectiva de uma APS forte, concebida como porta de entrada e eixo organizador do cuidado, articulada com uma rede de serviços que possibilita o acesso aos outros níveis de atenção. Este tem-se demonstrado um nó crítico tanto para o trabalho dos ACS quanto das equipes da ESF.
É importante que a reflexão sobre essas questões seja inserida em um contexto maior de análise e discussão do processo de trabalho das equipes da ESF, das atribuições de seus integrantes e dos arranjos institucionais que a apoiam, em particular os Nasf, considerando a necessidade de articularmos a perspectiva de ampliação de cobertura à perspectiva de reconfiguração do modelo de atenção.
Em um ambiente democrático que valoriza a participação popular, a construção de uma pauta de enfrentamentos relativos ao campo do trabalho do ACS requer uma construção em diálogo com os trabalhadores. Não se poderia pensar diferente, especialmente diante de uma categoria profissional bastante organizada, ainda que dispersa e pressionada pela conjuntura de ameaças que atingem todos os trabalhadores e afetam os direitos sociais de um modo geral.
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Suporte financeiro: não houve
Referências
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1Brasil. Ministério da Saúde. Histórico de cobertura de municípios com equipes de saúde da família, credenciadas pelo Ministério da Saúde. [acesso em 2018 ago 18]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php
» http://dab.saude.gov.br/historico_cobertura_sf/historico_cobertura_sf_relatorio.php -
2Brasil. Ministério da Saúde. Lei nº 10.507 de 10 de julho de 2002. Cria a profissão de Agente Comunitário de Saúde e dá outras providências. Diário Oficial da União. 10 Jul 2002.
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3Pinto ICM, Medina MG, Pereira RAG, et al. Avaliação do perfil dos agentes comunitários de saúde no processo de consolidação da atenção primária à saúde no Brasil [relatório de Pesquisa]. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Instituto de Saúde Coletiva; 2015. 430 p.
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4Morosini MVGC. Transformações no trabalho dos agentes comunitários de saúde nos anos 1990 a 2016: a precarização para além dos vínculos [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Faculdade de Educação; 2018.
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5Brasil. Ministério da Saúde. Referencial curricular para o curso técnico de agente comunitário de saúde. Brasília, DF: MS; 2004.
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6Ramos MN, Morosini MV, Fonseca AF, et al. Processo de Trabalho dos Técnicos em Saúde na perspectiva dos saberes, práticas e competências [relatório de Pesquisa]. Rio de Janeiro: OPAS; Fiocruz; 2017.
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7Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 648, de 28 de março de 2006. Política Nacional de Atenção Básica. Diário Oficial da União. 28 Mar 2006.
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8Brasil. Ministério da Saúde. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2012 [acesso em 2016 ago 16]. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo= publicações/pnab
» http://dab.saude.gov.br/portaldab/biblioteca.php?conteudo= publicações/pnab -
9Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.436, de 21 de setembro de 2017. Aprova a Política Nacional de Atenção Básica, estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Diário Oficial da União. 21 Set 2017.
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12Fonseca AF, Mendonça MHM. A interação entre avaliação e o trabalho dos Agentes Comunitários de Saúde: subsídios para pensar sobre o trabalho educativo. Saúde debate [internet]. 2014 out [acesso em 2018 maio 30]; 38(esp):343-357. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042014000600343&lng=en&nrm=iso&tlng=pt
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13Brasil. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 11.350, de 5 de outubro de 2006. Regulamenta o § 5º do art. 198 da Constituição, dispõe sobre o aproveitamento de pessoal amparado pelo parágrafo único do art. 2o da emenda constitucional nº 51, de 14 fev. 2006, e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 2006.
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14Nogueira ML. O processo histórico da Confederação Nacional dos agentes comunitários de saúde: trabalho, educação e consciência política coletiva [tese]. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2017 [acesso em 2018 ago 10]. 541 f. Disponível em: http://ppfh.com.br/wp-content/uploads/2018/05/tese-normalizada-VERS%C3%83O-FINALIZADA-MARIANA-NOGUEIRA.pdf
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15Morosini MV. Educação e trabalho em disputa no SUS: a política de formação dos agentes comunitários de saúde. Rio de Janeiro: EPSJV, 2010 [acesso em 2018 maio 10]. Disponível em: http://www.epsjv.fiocruz.br/sites/default/files/l145.pdf
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16Morosini MV, Fonseca AF, Lima LD. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde debate [internet] . 2018 jun [acesso em 2018 maio 28]; 42(116):11-24. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-11042018000100011&lng=en
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17Girardi SN. Monitoramento da qualidade do emprego na Estratégia de Saúde da Família [relatório final]. Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais; 2014 [acesso em 2018 maio 10]. Disponível em: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/pesquisa/simples/MONITORAMENTO
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18Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 1.886/GM de 18 de dezembro de 1997. Aprova as Normas e Diretrizes do Programa de Agentes Comunitários de Saúde e do Programa de Saúde da Família. Diário Oficial da União. 22 Dez 1997.
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19Brasil. Decreto nº 3.189 de 04 de outubro de 1999. Fixa diretrizes para o exercício de atividades de Agente Comunitário de Saúde (ACS) e dá outras providências. Diário Oficial da União. 5 Out 1999.
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22Sano H, Abrucio FL. Promessas e resultados da Nova Gestão Pública no Brasil: o caso das organizações sociais de saúde em São Paulo. Rev Adm Empresa [online]. 2008; 48(3):64-80.
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23Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 83 de 10 de janeiro de 2018. Institui o Programa de Formação Técnica para Agentes de Saúde - Profags. Diário Oficial da União. 10 Jan 2018.
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24Brasil. Presidência da República. Lei nº 13.595 de 5 de janeiro de 2018. Altera a Lei 11.350, para dispor sobre a reformulação das atribuições, a jornada e condições de trabalho e outras definições sobre o trabalho dos ACS e ACE. 5 jan 2018.
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25Christopher JB, May A, Lewin S, et al. Thirty years after Alma-Ata: A systematic review of the impact of community health workers delivering curative interventions against malaria, pneumonia and diarrhoea on child mortality and morbidity in sub-Saharan Africa. Human Resources for Health. 2011; 9(27):2-11.
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26Brasil. Ministério da Educação. Catálogo Nacional de Cursos Técnicos. Brasília, DF: MEC; 2016.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Set 2018
Histórico
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Recebido
10 Jun 2018 -
Aceito
23 Ago 2018