RESUMO
O artigo objetivou a análise da política industrial brasileira para o setor saúde nas últimas duas décadas por meio da descrição da condição de sustentabilidade organizacional vis-à-vis à indução da Parceria para o Desenvolvimento Produtivo (PDP) do Ministério da Saúde. O estudo do caso de um grande Laboratório Farmacêutico Oficial (LFO) identificou os efeitos não antecipados associados à indução governamental na área industrial. O estudo de caso foi a opção metodológica para a análise de questões de natureza organizacional que não podem ser explicadas com precisão pela descrição quantitativa. Como resultado, o artigo aponta que a PDP foi bem-sucedida na ampliação da capacidade produtiva no setor público na área farmacêutica. Contudo, para o caso de Farmanguinhos, os resultados da PDP devem ser avaliados com cautela. O artigo conclui que a unidade produtiva da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) enfrentará sérios desafios à sustentabilidade em função da sua singular inserção na PDP. As compras governamentais promovidas pela PDP não favoreceram ganhos de escala e escopo, afetando negativamente os LFO com elevada capacidade de produção, como é a condição de Farmanguinhos.
PALAVRAS-CHAVE
Política pública; Indústria farmacêutica; Laboratórios
ABSTRACT
The article analyzes the Brazilian industrial policy for the health sector in the last two decades by describing the conditions of organizational sustainability vis-à-vis the induction of the Ministry of Health’s Partnerships for Productive Development (PDP). The case study of a large Official Pharmaceutical Laboratory (LFO) identified unanticipated effects caused by governmental induction in the industrial area. The use of the case study method was essential for the analysis of organizational issues that cannot be accurately explained by simple quantitative description. It is shown in the article that PPDs have successfully expanded the productive capacity of the public sector in the pharmaceutical area. However, PPDs results should be carefully evaluated in the case of Farmanguinhos. The article concludes that the production unit of Fiocruz (Oswaldo Cruz Foundation) will probably face serious challenges regarding sustainability. Government purchases under PPDs did not favor gains in scale or scope, negatively affecting the LFOs with high production capacity, as is the case of Farmanguinhos.
KEYWORDS
Public policy; Drug industry; Laboratories
Introdução
Este artigo tem como objetivo analisar os efeitos da Parceria para o Desenvolvimento Produtivo na Saúde (PDP) pelo Ministério da Saúde (MS) sobre a sustentabilidade do Instituto Tecnológico em Fármacos (Farmanguinhos), laboratório farmacêutico federal da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). A relevância de estudar o caso específico de Farmanguinhos deve-se à sua pioneira atuação na produção local de antirretrovirais para o programa brasileiro de Aids, inaugurando uma trajetória bem-sucedida de internalização tecnológica para o Sistema Único de Saúde (SUS)11 Vieira VMM. Competências para Inovar no Setor Farmacêutico: o caso da Fundação Oswaldo Cruz e de seu Instituto Tecnológico em Fármacos - Farmanguinhos [tese]. Campinas. Universidade de Campinas; 2005..
Com o estudo de caso de Farmanguinhos, o artigo chama a atenção para o risco à sustentabilidade dos grandes Laboratórios Farmacêuticos Oficiais (LFO) advindo da pulverização da aquisição de medicamentos ao MS adotada pela PDP. Por força da importante articulação da modelagem da PDP com a política de compras de medicamentos de alto custo do MS22 Fonseca EM, Costa NR. Federalismo, Complexo Econômico da Saúde e Assistência Farmacêutica de Alto Custo no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2015; 20(4):1165-1176., é também destacada a presença dos interesses da federação no processo de decisão, impulsionando a pulverização do mercado público de fornecimento de medicamentos.
A PDP é uma política do Executivo federal brasileiro, implantada em 2008, que busca o desenvolvimento de novas aptidões tecnológicas para os LFO33 Torres RL. Estratégias de Aprendizado Tecnológico na Indústria Farmacêutica In: Hasenclever L, Oliveira MA, Paranhos J, et al. Desafios de Operação e Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde. Rio de Janeiro: E-Papers; 2016.. Até o início de 2019, foram realizadas pelo MS cinco rodadas de concorrência para a seleção de projetos para a PDP, durante os governos Lula (2009 e 2010), Dilma Rousseff (2011, 2013 e 2015) e Temer (2017)44 Brasil. Ministério da Saúde. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo [internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018. [acesso em 2018 dez 27]. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/ciencia-e-tecnologia-e-complexo-industrial/complexo-industrial/parceria-para-o-desenvolvimento-produtivo-pdp.
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A PDP tem sido estabelecida entre duas ou mais instituições públicas e as empresas privadas, contemplando o desenvolvimento, transferência e absorção de tecnologia, produção de insumos e medicamentos estratégicos para o atendimento às demandas do SUS33 Torres RL. Estratégias de Aprendizado Tecnológico na Indústria Farmacêutica In: Hasenclever L, Oliveira MA, Paranhos J, et al. Desafios de Operação e Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde. Rio de Janeiro: E-Papers; 2016.. Ela tem possibilitado que o laboratório público oficial realize a intermediação da função de compra do MS de um medicamento ou produto da empresa privada por meio de Termo de Execução Descentralizada (TED), ou por meio de convênio (no caso dos laboratórios dos governos estaduais)44 Brasil. Ministério da Saúde. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo [internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018. [acesso em 2018 dez 27]. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/ciencia-e-tecnologia-e-complexo-industrial/complexo-industrial/parceria-para-o-desenvolvimento-produtivo-pdp.
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É importante salientar que, no arranjo da PDP, o escopo e a escala de produção dos LFO, a exemplo de Farmanguinhos, dependem da preferência decisória do Executivo federal. Por meio da compra centralizada, o MS tem também a prerrogativa de comprador único (monopsônio), definindo as condições de produção e o portfólio dos produtores estatais e das empresas privadas33 Torres RL. Estratégias de Aprendizado Tecnológico na Indústria Farmacêutica In: Hasenclever L, Oliveira MA, Paranhos J, et al. Desafios de Operação e Desenvolvimento do Complexo Industrial da Saúde. Rio de Janeiro: E-Papers; 2016..
O incentivo à capacitação tecnológica nacional pretende responder ao deficit estrutural na balança comercial produzida pela importação de medicamentos e insumos de saúde44 Brasil. Ministério da Saúde. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo [internet]. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2018. [acesso em 2018 dez 27]. Disponível em: http://portalms.saude.gov.br/ciencia-e-tecnologia-e-complexo-industrial/complexo-industrial/parceria-para-o-desenvolvimento-produtivo-pdp.
http://portalms.saude.gov.br/ciencia-e-t...
. Nesse contexto, a política pública da PDP tem se concentrado na criação de condições de produção local para assegurar o acesso a medicamentos e produtos e no fortalecimento do denominado Complexo Econômico-Industrial da Saúde (Ceis) brasileiro. A PDP responde, assim, à demanda por adensamento tecnológico do setor saúde e promoção de desenvolvimento inclusivo e competitivo, que favoreceria também a inserção do País no cenário global55 Gadelha CAG, Costa LS. Saúde e Desenvolvimento no Brasil: Avanços e Desafios. Rev. Saúde Públ. 2012; 46(supl1):13-20..
A PDP tem também como alvo o crescimento exponencial das despesas com a incorporação de novos medicamentos e produtos ao SUS, impondo limites financeiros à ampliação da cobertura de programas estratégicos, como a distribuição gratuita de antirretrovirais66 Grangeiro A, Teixeira L, Bastos FI, et al. Sustentabilidade da Política de Acesso a Medicamentos Anti-retrovirais no Brasil. Rev. Saúde Públ.; 2006; 40(supl1): 60-69..
Especialmente em função da garantia do direito à saúde na Constituição Federal de 1988 (CF 1988), os projetos de PDP intencionam reduzir as despesas com a aquisição dos medicamentos e produtos do SUS. A ideia da cidadania social contemplada pela CF 1988 tem produzido efeitos positivos na condição de acesso a benefícios e serviços nas áreas de educação, assistência, saúde e previdência.
Nesse contexto, o direito à saúde por força do pacto constitucional tem imposto ao Executivo o compromisso de responder com presteza às demandas judiciais por medicamentos e insumos de alto custo. Nesse sentido, além da pressão da comunidade de especialistas das profissões de saúde, como assinalam Lago e Costa77 Lago RF, Costa NR. Comunidades de Especialistas e Formação de Interesses no Programa de Aids do Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2017; 22(5):1479-1488., e da mobilização política da sociedade civil destacada por Parker88 Parker RG. Civil Society, Polítical Mobilization, and the Impact of HIV Scale Up on Health Systems in Brazil. J Acquir Immune Defic Syndr. 2009; 52(supl1):1-4., o setor público de saúde brasileiro tem respondido às exigências da incorporação tecnológica de alto custo na assistência individual ante a imposição legal99 Brasil. Ministério da Saúde. Avanços e Desafios no Complexo Industrial em Produtos para Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2007..
O arranjo da PDP busca, portanto, a redução da vulnerabilidade do MS na aquisição de insumos estratégicos e da dependência produtiva e tecnológica nacional vis-à-vis às demandas por direito ao cuidado na saúde em um ambiente de inovação tecnológica acelerada. A dinâmica de inovação de medicamentos e produtos para saúde pode apresentar um ciclo de vida tecnológico curto, acarretando a obsolescência e descarte precoce. Essa característica está diretamente associada à evolução e absorção de avanços tecnológicos99 Brasil. Ministério da Saúde. Avanços e Desafios no Complexo Industrial em Produtos para Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2007..
Finalmente, cabe considerar a pressão exercida por regras da propriedade intelectual sobre as decisões políticas locais orientadas à garantia do acesso a medicamentos de inovadores e de alto custo, como os antirretrovirais de última geração. Não raras vezes, a institucionalização na CF 1988 do acesso universal ao tratamento farmacológico no Brasil tem entrado em rota de colisão com as regras supranacionais que regem a propriedade intelectual e o direito de patentes de medicamentos de alto custo1010 Biehl J. Will to Live: AIDS Therapies and the Politics of Survival. Princeton: Princeton University Press; 2007..
O que chama atenção na política da PDP é que ela emerge e é desenvolvida em um contexto posterior ao Acordo Trips (Agreement on Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) e ao novo regime de propriedade intelectual1111 Shadllen KC. The Post-TRIPS Politics of Patents in Latin America In: Haunss S, Shadllen KC, organizadores. Politics of Intellectual Property Contestation Over the Ownership, Use, and Control of Knowledge and Information. Massachusetts: Edward Elgar Publishing, Inc; 2009. p. 13-38., promovendo coalizões para a transferência tecnológica entre empresas privadas multinacionais e LFO até então limitadas ao setor de vacinas1212 Homma A, Martins RM, Jessouroum E, et al. Desenvolvimento Tecnológico: elo deficiente na inovação tecnológica de vacinas no Brasil. História Ciência e Saúde-Manguinhos. 2003; 10(supl2):671-696..
Material e métodos
A metodologia de estudo de caso possibilitou a descrição das questões singulares de uma dinâmica organizacional que não podem ser explicadas com razoável grau de precisão apenas pela análise de contexto institucional, sistêmico ou indicadores quantitativos. O estudo de caso de Farmanguinhos descreve os condicionantes da capacidade de adaptação de um laboratório governamental à política pública de internalização tecnológica. A investigação por meio de estudos de caso toma como referência a função produtiva tecnicamente específica de Farmanguinhos no arranjo da PDP, recorrendo aos estudos prévios que descreveram a posição da unidade na produção local de medicamentos estratégicos.
O artigo adotou três procedimentos de produção de informação primária: a) revisão documental da implantação da PDP e a contextualização com base na literatura; b) análise de indicadores de arrecadação, produção de unidades farmacológicas e do portfólio da oferta de medicamentos de Farmanguinhos e c) descrição da demanda de Farmanguinhos nas rodadas de seleção de propostas da PDP.
O artigo tomou como pressuposto que a política da PDP produz profundas mudanças na posição dos LFO nas compras governamentais. Para medir os efeitos dessas mudanças, foi utilizado o Índice de Hirschman-Herfindahl (IHH), que possibilitou identificar o padrão de dispersão/concentração dos projetos da PDP após as rodadas de avaliação. O índice Herfindahl-Hirschman (HH) mensura a concentração ou desconcentração de um mercado ou setor da economia. É obtido pela soma da participação percentual de cada empresa, elevada ao quadrado, em uma distribuição de atividade setorial ou na produção de produtos com características similares.
Para a análise da variação da quantidade anual de unidades farmacêuticas produzidas por Farmanguinhos, o artigo utiliza o modelo log-lin descrito pela equação ln Yt = β1 + β2t + µt. Esse modelo é como qualquer outra regressão linear na qual os parâmetros β1 e β2 são lineares. A diferença, neste caso, é que o regressando é o logaritmo de Y e a variável independente é tempo, representado por ‘t’, que assumirá os valores de 1,2,3, +...+ n, [...], correspondentes ao período analisado1313 Gujarati DM. Basic Econometrics. New York: McGraw-Hill; 1995. p. 155-190..
Resultados e discussão
O contexto institucional da PDP
A ampla agenda de desenvolvimento e inovação tecnológica da PDP foi beneficiada por iniciativas conjunturais de política industrial das últimas duas décadas, em contexto democrático: i) a Política Industrial e Tecnológica e de Comércio Exterior (Pitce) de 2003, que definiu a cadeia produtiva farmacêutica como estratégica por articular tecnologias cruciais, como a nanotecnologia, a biotecnologia e a química fina; ii) a Política de Desenvolvimento Produtivo, que situou o complexo da saúde como uma das seis áreas estratégicas e iii) o Plano Brasil Maior, que elegeu o setor saúde como um segmento estratégico para o País e estabeleceu as diretrizes para a implantação de parcerias para o desenvolvimento produtivo e uso do poder de compra do Estado no setor como instrumento de indução1414 Palmeira Filho PL. Catch-Up da Indústria Farmacêutica Nacional e Financiamento à Inovação: o caso do Profarma. 2018. [tese] Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; 2018. 202 p..
Gadelha e Costa55 Gadelha CAG, Costa LS. Saúde e Desenvolvimento no Brasil: Avanços e Desafios. Rev. Saúde Públ. 2012; 46(supl1):13-20. destacam também que o Plano de Ação de Ciência, Tecnologia e Inovação 2007-2010 do Ministério da Ciência e Tecnologia situou o setor saúde como estratégico no âmbito do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia & Inovação. A atuação do Departamento do Complexo Industrial e Inovação em Saúde (Deciis) da Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos do MS, criado em 2009, foi igualmente crucial nas decisões alocativas voltadas para o desenvolvimento e inovação no âmbito do Ceis.
Por meio do Deciis, o MS utilizou o poder de compra centralizada para fomentar acordos de transferência tecnológica de empresas privadas nacionais e multinacionais para LFO1414 Palmeira Filho PL. Catch-Up da Indústria Farmacêutica Nacional e Financiamento à Inovação: o caso do Profarma. 2018. [tese] Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; 2018. 202 p.. Por força dessa opção, a PDP apresentou uma trajetória independente em relação à agenda do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma)1515 Viana ALA, Sila HP, Ibañez N, et al. A Política de Desenvolvimento Produtivo da Saúde e a Capacitação dos Laboratórios Públicos Nacionais. Cad. Saúde Pública. 2016; 32(supl2):1-14..
Duas inovações legais no âmbito do direito administrativo público permitiram, no plano institucional, a intervenção do Deciis na oferta pública de medicamentos estratégicos: i) a Lei de Parcerias Público-Privadas (nº 11.079, de 30 de dezembro de 2004), que instituiu as chamadas concessões patrocinadas e administrativas, trazendo novas possibilidades e limites à exploração de empreendimentos governamentais por terceiros e ii) a Lei de Inovação (nº 10.973, de 2 de dezembro de 2004), que possibilita a constituição, com empresa privada, dos mais variados tipos de parceria estratégica dos entes públicos da administração direta para o desenvolvimento da indústria e o incremento da autonomia tecnológica do País1616 Sundfeld CA, Pagani R. Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo em Medicamentos e a Lei de Licitações. 2013. RDA. 2013; 26(1):131-133..
Esse arranjo indica a complexidade do desenvolvimento da política industrial setorial, sustentada por LFO e por empresas privadas nacionais e multinacionais em disputa pelas compras de medicamentos e produtos do MS.
O modelo da PDP tem sido avaliado como exemplo bem-sucedido de combinação da política industrial com a política social para assegurar a produção local e provisão de medicamentos estratégicos para o setor público1717 Shadllen KC, Fonseca EL. Health Policy as Industrial Policy: Brazil in Comparative Perspective. Politics & Society. 2013; 41(4):561-587.. Até então, os estudos nas ciências sociais assinalavam que a única experiência reconhecida de política industrial de sucesso do País era a do regime autoritário de 19641818 Schneider B. Burocracia Pública e Política Industrial no Brasil. São Paulo: Sumaré; 1994..
Ainda assim, cabe destacar que a preocupação com efeito colateral da ação do governo federal sobre as organizações privadas e as unidades produtoras governamentais inexistiu quando da formação da agenda ou nas raras tentativas de avaliação da PDP. Essa constatação não deixa de surpreender em razão da presença dos mecanismos claramente indutivos da PDP sobre a escala (eficiência produtiva) e o escopo (diversidade de produtos) dos entes públicos e empresas privadas.
Curiosamente, a formação da agenda da PDP sequer menciona as empresas e laboratórios públicos estratégicos para a produção local de insumos de saúde. Apenas as dimensões tributárias, regulatórias e licitatórias são identificadas como barreiras relevantes ao desenvolvimento do Ceis99 Brasil. Ministério da Saúde. Avanços e Desafios no Complexo Industrial em Produtos para Saúde. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2007..
Do mesmo modo, Gadelha e Temporão1919 Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):1891-1902. avaliam a PDP pela perspectiva sistêmica, o que deixa de lado a reflexão sobre a condição de resposta ou sustentabilidade dos LFO e empresas privadas diante da pressão adaptativa proposta pela agenda de inovação do MS. Na perspectiva da análise organizacional adotada por este artigo, considera-se como crucial o entendimento do contexto decisório e da capacidade de adaptação dos LFO à política de indução isomórfica. A teoria do isomorfismo de Powell e Di Maggio2020 Di Maggio PJ, Powell WW. The Iron Cage Revisited: institutional isomorphism and collective rationality in organization fields. American Sociological Review. 1983; 48(2):147-160. valoriza o entendimento do processo impositivo que obriga dado elemento de uma população (indivíduos ou organizações) a assemelhar-se a outro para responder às exigências do ambiente institucional.
A questão que orienta este artigo é que o MS, ao optar por uma abordagem distributivista para a avaliação dos projetos da PDP desconsiderando a assimetria de capacidade instalada de produção ou a folga organizacional, pode ter levado os LFO à condição de insustentabilidade pela perda de escala produtiva. O artigo reconhece que o distributivismo no processo decisório da PDP foi, sem dúvida, resultado de um constrangimento institucional associado ao pacto federativo.
Samuels2121 Samuels D. Ambition, Federalism, and Legislative Politics in Brazil. Cambridge: Cambridge University Press; 2003. destaca a importância do federalismo brasileiro na compreensão dos processos decisórios nacionais. Para ele, o federalismo configura as ambições políticas regionais, e os efeitos dessa ambição direcionam o processo decisório mais amplo do País. Em decorrência, os constrangimentos e incentivos para a sobrevivência política ao nível regional interferem nas iniciativas de natureza nacional. Nesse sentido, é importante ressaltar que, mesmo na condição de comprador único exercida pelo MS, o processo decisório da PDP não ocorreu em um vácuo institucional. Ao contrário, as empresas estaduais posicionadas para a oferta ao MS influenciaram, legitimamente, as decisões dos agentes públicos.
É reconhecido que o estabelecimento de fontes orçamentárias e de competências particulares para o setor saúde por governos regionais e locais é também parte da estratégia de construção de influência dos grupos de interesses da federação sobre decisões nacionais. As vinculações constitucionais ampliaram a participação dos governos regionais e locais no financiamento da política de saúde e na destinação de recursos necessários aos programas definidos nacionalmente como prioritários nas duas últimas décadas2222 Paiva AB, Gonzalez RHS, Leandro JG. Coordenação Federativa e Financiamento da Política de Saúde. Mecanismos vigentes, mudanças sinalizadas e perspectivas para o futuro. Novos Estudos CEBRAP. 2017; 36(2):55-81.. O comprometimento financeiro de estados e municípios resultou, como previsível, no aumento da influência da federação na formação da agenda nacional da saúde, como o caso da produção local de medicamentos. Cabe lembrar que a recentralização da aquisição e distribuição de medicamentos de alto custo no SUS em 2007 foi uma decisão pactuada entre o MS e os governos estaduais22 Fonseca EM, Costa NR. Federalismo, Complexo Econômico da Saúde e Assistência Farmacêutica de Alto Custo no Brasil. Ciênc. Saúde Colet. 2015; 20(4):1165-1176., tornando possível a compra centralizada do governo federal a partir de 2008 no âmbito da PDP.
A presença dos laboratórios estaduais na produção de antirretrovirais em meados da década de 2000 já indicava o crescimento do interesse dos governos regionais na produção local de medicamentos de alto custo. Como apontam Lago e Costa2323 Lago RF, Costa NR. Antiretroviral Manufacturers and the Challenge of Universal Access to Drugs through the Brazilian National STD/AIDS Program. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(10):2273-2284., os laboratórios estaduais Lafepe (Pernambuco), Iquego (Goiás), Furp (São Paulo), Funed (Minas Gerais) e Lifal (Alagoas) receberam parcela significativa da produção local de antirretrovirais nessa década. Os novos entrantes no mercado público relevante de fornecimento de antirretrovirais levaram ao declínio da posição de liderança de Farmanguinhos como fornecedor do MS.
Farmanguinhos e a PDP
A reconhecida ascensão tecnológica de Farmanguinhos foi realizada dentro das possibilidades e limites institucionais escolhidos pelo Brasil, em fins da década de 1990, para o desenvolvimento da indústria de medicamentos. Entre 1998 e 2000, Farmanguinhos realizou a engenharia reversa de seis medicamentos do coquetel para tratamento da Aids – didanosina comprimido, estavudina cápsula, lamivudina, comprimido, zidovudina cápsula, nevirapina comprimido e indínavir cápsula –, tornando-se capaz de identificar seus insumos e produzi-los. Além dos antirretrovirais, Farmanguinhos produziu 1.375 bilhão de unidades farmacêuticas em 2002 – os medicamentos de uso contínuo para doenças do sistema cardiovascular e nervoso central e para os programas de hipertensão e diabetes11 Vieira VMM. Competências para Inovar no Setor Farmacêutico: o caso da Fundação Oswaldo Cruz e de seu Instituto Tecnológico em Fármacos - Farmanguinhos [tese]. Campinas. Universidade de Campinas; 2005..
A inexistência da proteção à propriedade intelectual (apenas formalizada pela Lei de Propriedade Intelectual nº 9.279, de 1996) possibilitou à unidade da Fiocruz saltar alguns estágios em Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) na produção de antirretroviral. A literatura identifica quatro estágios de P&D de medicamentos: o primeiro, de maior exigência tecnológica, é o de pesquisa e desenvolvimento de novos princípios ativos (fármacos); o segundo é o de produção industrial de fármacos; o terceiro estágio é o da produção do medicamento; o quarto é da divulgação e comercialização2424 Pinheiro ES. A Indústria Farmacêutica Transnacional e o Mercado Brasileiro In: Bonfim JRA, Bermudez JAZ, organizadores. Medicamentos e a Reforma do Setor Saúde. São Paulo, Hucitec/Sobravime; 1999..
Pinheiro2424 Pinheiro ES. A Indústria Farmacêutica Transnacional e o Mercado Brasileiro In: Bonfim JRA, Bermudez JAZ, organizadores. Medicamentos e a Reforma do Setor Saúde. São Paulo, Hucitec/Sobravime; 1999. assinala que o Brasil detinha, naquela conjuntura, posição apenas no terceiro e quarto estágios por força do desenvolvimento retardado da P&D de medicamentos. Em fins da década de 1990, o autor sinalizava que a falta de investimentos no primeiro e segundo estágios pelas empresas e o reconhecimento internacional de leis de patentes colocariam os países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, em situação de dependência crítica da transferência tecnológica exógena2424 Pinheiro ES. A Indústria Farmacêutica Transnacional e o Mercado Brasileiro In: Bonfim JRA, Bermudez JAZ, organizadores. Medicamentos e a Reforma do Setor Saúde. São Paulo, Hucitec/Sobravime; 1999.. De fato, em menos de uma década, a liderança tecnológica de Farmanguinhos foi desafiada pela entrada de novas drogas no tratamento da Aids, protegidas pelo novo regime de patente e importadas2323 Lago RF, Costa NR. Antiretroviral Manufacturers and the Challenge of Universal Access to Drugs through the Brazilian National STD/AIDS Program. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(10):2273-2284..
A PDP criou um cenário institucional sem precedentes para os produtores governamentais ao instituir a cooperação horizontal com empresas líderes de inovação setorial, inclusive as multinacionais. Entretanto, a entrada de Farmanguinhos na PDP ocorreu com a unidade detendo baixo controle sobre dois pilares fundamentais do regime de inovação setorial como sugere Malerba2525 Malerba F. Sectorial Systems of Innovation: basic concepts In: Malerba F. Sectorial Systems of Innovation. Cambridge: Cambridge University Press; 2004.: as condições institucionais (os interesses dos governos estaduais prevaleceram nas decisões da PDP) e o regime tecnológico (a unidade já tinha perdido a posição de liderança tecnológica na produção de antirretrovirais).
Nessa condição, ao contrário do que sugerem Gadelha e Temporão1919 Gadelha CAG, Temporão JG. Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciênc. Saúde Colet. 2018; 23(6):1891-1902., Farmanguinhos não foi especialmente favorecida pela PDP. O exame das rodadas de seleção de projeto revela que as preferências da federação prevaleceram (tabela 1). Nos sete editais da PDP, os laboratórios estaduais concentraram 76% dos projetos aprovados.
Participação dos Laboratórios Estaduais (Lab Est) em projeto de PDP aprovados pelo MS – 2009-2017
A tabela 2 mostra que a participação de Farmanguinhos nas várias rodadas de julgamento de projetos da PDP foi especialmente bem-sucedida porque obteve, em média, 76% dos seus projetos aprovados entre 2009 e 2017. A média para os demais LFO foi de 45% dos projetos aprovados.
Distribuição dos projetos submetidos e aprovados dos laboratórios públicos e de Farmanguinhos na PDP 2009-2017
Parcela dos projetos aprovados de Farmanguinhos apresentava elevada convergência com a trajetória tecnológica da unidade, especialmente na produção de antirretrovirais. Entretanto, ao contrário de Bio-Manguinhos, por exemplo, nenhum projeto de Farmanguinhos visou à nova rota tecnológica dos medicamentos biológicos cuja base de conhecimento é distinta daquela empregada na maioria dos LFO.
Chama atenção a observação de Torres, Hasenclever e Nascimento2727 Torres RL, Hasenclever L, Nascimento TC. Avaliação das Capacidades Tecnológicas e das Estratégias de Aprendizado na Indústria Farmacêutica para a Produção de Medicamentos Biológicos In: Hasenclever L, Paranhos J, Chaves G, et al., organizadores. Vulnerabilidades do Complexo Industrial da Saúde - Reflexos das Políticas Industrial e Tecnológica na Produção Local e Assistência Farmacêutica. Rio de Janeiro: E-Papers; 2018. p. 25-52., que assinalam, nesse contexto, que a rota biotecnológica exige conhecimentos de biologia molecular, engenharia genética e cultivo de células, reforçando a necessidade da articulação com a ciência básica na trajetória de inovação setorial.
Cabe destacar na tabela 2 que, nos editais de 2009-2017, do total de 413 projetos submetidos por LFO, Farmanguinhos participou de 7,5% dos projetos. Ao optar por um caminho de concorrência seletiva e surpreendentemente residual em comparação à oferta global dos laboratórios públicos concorrentes por quatro anos seguidos, Farmanguinhos obteve taxa de sucesso elevada dos projetos, porém a perda de protagonismo na PDP parece evidente.
Cabe também chamar a atenção na tabela 2 que, no Edital de 2015, o quantitativo de projetos aprovados pela PDP para todos os LFO ficou abaixo de 2 dígitos. Nessa rodada, as mudanças introduzidas no mecanismo de avaliação de projetos pela Portaria nº 2.531, de 12 de novembro de 2014, ampliando a governança da PDP, tiveram influência decisiva no resultado de 2015.
Farmanguinhos obteve a aprovação de um projeto de dois submetidos. O quantitativo de projetos apresentados pela unidade foi residual no conjunto dos entes públicos concorrentes, que submeteram 34 propostas em 2015.
Em 2017, a nova coalização pós-impeachment no Executivo federal não promoveu o desmantelamento da PDP e manteve a posição dos laboratórios estaduais. No edital de 2017, Farmanguinhos obteve a aprovação de quatro projetos (100% dos submetidos). Na rodada de 2017, os laboratórios estaduais submeteram 80 projetos, com taxa de aprovação de 45%.
A presença competitiva dos laboratórios estaduais conformou um padrão concorrencial e pulverizado de compras do governo federal no âmbito da PDP. Como mostra a tabela 3, em 2017, por exemplo, o valor do IHH de 957 para a distribuição das compras futuras do MS dos medicamentos comprova a notável dispersão da distribuição de titularidade no fornecimento dos medicamentos estratégicos. O IHH abaixo de 1.500 indica a conformação de um padrão de oferta com muitas empresas, como mostra a tabela 4. O IHH entre 1.500 e 2.500 indica concentração moderada. O IHH acima 2.500 indica concentração.
Distribuição das aquisições governamentais dos laboratórios públicos na PDP na rodada de 2017
Nesse cenário, o esforço adaptativo pela PDP trouxe resultados pontuais a Farmanguinhos ao possibilitar o crescimento do valor médio das unidades farmacêuticas produzidas, como mostra a tabela 4. Este crescimento no valor agregado do mix de produtos indica uma mudança importante em relação aos preços praticados por Farmanguinhos na década passada, quando os valores das unidades farmacêuticas eram precificados em centavos de dólar11 Vieira VMM. Competências para Inovar no Setor Farmacêutico: o caso da Fundação Oswaldo Cruz e de seu Instituto Tecnológico em Fármacos - Farmanguinhos [tese]. Campinas. Universidade de Campinas; 2005..
Cabe ainda assim destacar, na tabela 3, que laboratórios públicos que migraram para plataforma dos medicamentos biológicos (como Bio-Manguinhos e Tecpar) tiveram maiores retornos com a produção de medicamentos com preço 52,5 vezes superiores ao máximo obtido por Farmanguinhos.
A implantação da PDP, em 2008, encontrou Farmanguinhos em curva declinante na produção de unidades farmacêuticas, como mostra a figura 1-A. Entre 2003 e 2017, a queda na produção de unidades farmacêuticas em Farmanguinhos foi de 21% ao ano. O nível mais alto de utilização da capacidade instalada aconteceu em 2005 (2 bilhões e 500 milhões de unidades farmacêuticas).
No começo da década de 2000, Farmanguinhos mantinha a produção das linhas de desenvolvimento de tecnologia e de produção de medicamentos órfãos, assim denominados pelo desinteresse do setor privado em desenvolvê-los ou produzi-los em função das baixas perspectivas de retorno econômico. São os casos da produção para as doenças como tuberculose, hanseníase, malária etc.
Farmanguinhos desfrutava também de posição relevante na produção de medicamentos similares em resposta ao crescimento da demanda do Programa de Saúde da Família e do tratamento de diabetes e ao acesso privilegiado por meio da compra centralizada do MS. Essa situação confortável mudou abruptamente por força da descentralização da compra de medicamentos pelos municípios a partir de 20053030 Mandelli M. Governança e Inovação: uma proposta de arranjo organizacional para Farmanguinhos. [dissertação]. Rio de Janeiro: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2004. 108 p.. O lançamento do Programa Farmácia Popular (PFP) em 20043131 Alencar TOS, Araújo PS, Costa ED, et al. Programa Farmácia Popular do Brasil: uma análise política de sua origem, seus desdobramentos e inflexões. Saúde debate. 2018; 42(supl1):159-172. não modificou este quadro crítico porque a demanda feita à Farmanguinhos foi irrelevante, como mostrado adiante. Além disso, como já assinalado, desde 2003, a unidade da Fiocruz perdera o monopólio do fornecimento de antirretrovirais ao MS por força da entrada dos laboratórios estaduais, especial destaque para o Lafepe e para a entrada dos novos medicamentos no Programa DST/Aids2323 Lago RF, Costa NR. Antiretroviral Manufacturers and the Challenge of Universal Access to Drugs through the Brazilian National STD/AIDS Program. Cad. Saúde Pública. 2009; 25(10):2273-2284..
Diante desse quadro do declínio produtivo, não é surpreendente que a Controladoria Geral da União (CGU) tenha questionado a produção de apenas 66 milhões de unidades farmacêuticas em 2016, que representou a utilização de somente 1% da capacidade operacional do Complexo Tecnológico de Medicamentos (CTM), sua unidade fabril adquirida em 2004 (https://auditoria.cgu.gov.br/download/10000.pdf. Consultado em 16/01/2019)3232 Brasil. Controladoria Geral da União. Relatório de Auditoria Anual de Contas. Secretaria Federal de Controle. Unidade Auditada Fiocruz; 2016. [acesso em 2019 jan 16]. Disponível em: https://auditoria.cgu.gov.br/download/10000.pdf.
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, como demonstra a figura 1-A.
Segundo a auditoria da CGU,
as principais razões que explicam, especificamente, a queda na produção de 2016, são as seguintes: a) Redução na demanda do Ministério da Saúde dos medicamentos do Programa DST/AIDS que são fabricados por Farmanguinhos, especificamente Efavirenz e Lamivudina + Zidovudina, que são os de maior volume; b) Substituição da produção do Lamivudina pela aquisição do medicamento Tenofovir + Lamivudina do laboratório Blanver Farmoquímica Ltda, parceiro privado da Parceria para o Desenvolvimento Produtivo – PDP; c) Impossibilidade de fornecimento do medicamento Amoxicilina, que está com o registro na Anvisa suspenso [...]. Dessa forma, em termos absolutos, a principal explicação para o atingimento da produção mínima em 2016 foi a queda na demanda do Ministério da Saúde por medicamentos do portfólio de Farmanguinhos. Cabe destacar que a estratégia adotada por Farmanguinhos para retomada da produção, com os medicamentos decorrentes de treze Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo – PDPs, ainda não surtiu resultados3232 Brasil. Controladoria Geral da União. Relatório de Auditoria Anual de Contas. Secretaria Federal de Controle. Unidade Auditada Fiocruz; 2016. [acesso em 2019 jan 16]. Disponível em: https://auditoria.cgu.gov.br/download/10000.pdf.
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A preocupante conclusão da CGU deve ser avaliada com cautela. É importante lembrar que o efeito da PDP sobre a estrutura produtiva de Farmanguinhos ainda não pode ser completamente avaliado porque o ciclo de transferência tecnológica dos projetos vigentes não foi concluído. O fato não mencionado pela CGU é que o exercício da função de compra de medicamentos vinculada à transferência tecnológica da PDP possibilitou um expressivo aumento da arrecadação da unidade a partir de 2011, revertendo o viés de queda do biênio anterior, como mostra a figura 1-B. A definição de arrecadação na figura 1-B considera a soma das vendas de medicamentos do portfólio tradicional com os recursos destinados à unidade para a aquisição de medicamentos e transferência tecnologia para a PDP por meio de TED. Em 2015, pico da série histórica, a unidade arrecadou R$ 990 milhões (valor corrente).
A figura 1-C demonstra que foi residual a contribuição do Programa Farmácia Popular do Brasil (PFPB) para a arrecadação oriunda de Farmanguinhos no período 2009-2017. Os grandes vencedores do PFPB têm sido as empresas líderes nacionais de genéricos3131 Alencar TOS, Araújo PS, Costa ED, et al. Programa Farmácia Popular do Brasil: uma análise política de sua origem, seus desdobramentos e inflexões. Saúde debate. 2018; 42(supl1):159-172.. De fato, a arrecadação de Farmanguinhos tem como fonte majoritária ainda o Programa DST/Aids e os medicamentos do portfólio tradicional (não contemplados pela PDP). Contudo, a importante participação da fonte PDP já parece indicar que Farmanguinhos pode ampliar a sua escala de produção, ainda que sob o constrangimento da condição de monopsônio exercida pelo MS.
Considerações finais
Lall3333 Lall S. A Mudança Tecnológica e a Industrialização nas Economias de Industrialização Recente da Ásia: conquistas e desafios. In: Kim l, Nelson RR. Tecnologia, Aprendizado e Inovação. As Experiências das Economias de Industrialização Recente. Campinas: Unicamp; 2005. destaca a importância da função de demanda na configuração das aptidões tecnológicas das organizações por afetar não só o desenvolvimento do produto, gestão de qualidade, práticas de marketing, como também a escala e o escopo da produção. Para o autor, as empresas se submetem a um aprendizado custoso, incerto, prolongado e imprevisível, mesmo quando as tecnologias em questão são bem conhecidas.
Por isso, devido à economia de escala inerente a muitas atividades industriais, o incentivo à conformação de empresas competitivas de grande porte pode ser também a opção para a redução da incerteza sobre a capacidade de adaptação tecnológica3333 Lall S. A Mudança Tecnológica e a Industrialização nas Economias de Industrialização Recente da Ásia: conquistas e desafios. In: Kim l, Nelson RR. Tecnologia, Aprendizado e Inovação. As Experiências das Economias de Industrialização Recente. Campinas: Unicamp; 2005.. O artigo demonstra que este não foi o caminho escolhido pela PDP. A opção do Executivo federal pela desconcentração das aquisições de medicamentos de alto custo afetou, paradoxalmente, a sustentabilidade do maior LFO de propriedade do próprio governo central.
O artigo indica, assim, que a internalização tecnológica proposta pela inovadora agenda da PDP para os LFO pode estar repleta de eventos não antecipados pelo conhecimento convencional. Trabalhou com o pressuposto de que as organizações se movimentam por trajetórias tecnológicas específicas em que o aprendizado anterior leva à determinada direção adaptativa. Uma vez adotada, a trajetória tecnológica é de difícil alteração, e os custos enterrados tendem a persistir durante longo período3232 Brasil. Controladoria Geral da União. Relatório de Auditoria Anual de Contas. Secretaria Federal de Controle. Unidade Auditada Fiocruz; 2016. [acesso em 2019 jan 16]. Disponível em: https://auditoria.cgu.gov.br/download/10000.pdf.
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Diante da folga organizacional de Farmanguinhos, a elevada dispersão da distribuição da produção local de medicamentos estratégicos pela PDP entre os laboratórios estaduais e federais não favoreceu o aumento da eficiência e a diversificação de escopo da unidade da Fiocruz. Para Farmanguinhos, o uso eficiente da elevada capacidade produtiva instalada – com ganho de escala – exigiria que fosse concentrada nele parcela substancial da demanda governamental gerada pela PDP. Não foi isso o que aconteceu.
A dispersão do processo de compra tem atuado como força isomórfica sobre os LFO. A PDP não só decide a estratégia de incorporação tecnológica como também a condição de oferta por força da função de comprador único do MS, não sendo apresentada a alternativa ao LFO da busca por outros mercados.
Quanto ao escopo, constata-se no artigo que a PDP favoreceu a incorporação de medicamentos biológicos para alguns LFO, possibilitando a oferta de multiprodutos e a criação de uma rota tecnológica singular. Esse é o caso exemplar de Bio-Manguinhos, que ao longo do desenvolvimento da PDP transitou de laboratório especializado em um único produto (vacinas) para a perspectiva de produção de medicamentos biológicos com tecnologias já maduras. Já o avanço adaptativo observado em Farmanguinhos não possibilitou a transição para uma nova rota tecnológica de multiprodutos, a despeito do aumento da complexidade e preço dos medicamentos incorporados ao portfólio em decorrência da PDP.
Diante desse quadro, o artigo identifica que o desafio futuro imediato de Farmanguinhos é a gestão da sua elevada folga organizacional causada pelo modelo de compra do MS no âmbito da PDP. Este caminho pode abrir espaço para a redução da alta dependência à compra centralizada pelo MS e possibilitar a exploração de novos mercados.
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Suporte financeiro: não houve
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Orcid (Open Researcher and Contributor ID).
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
13 Jul 2020 -
Data do Fascículo
2019
Histórico
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Recebido
22 Mar 2019 -
Aceito
12 Jun 2019