Open-access Gênero e a pandemia Covid-19: revisão da produção científica nas ciências da saúde no Brasil

RESUMO

Este artigo analisou a produção científica brasileira do campo das ciências da saúde que incorpora questões de gênero aos estudos sobre a pandemia da Covid-19. A busca pelas publicações foi realizada nas bases bibliográficas da área da saúde; seus resultados foram categorizados em eixos temáticos e, em seguida, analisados. Busca-se não apenas caracterizar como a assimetria de gênero é tratada no campo das ciências da saúde, mas também apreender as repercussões da pandemia apontadas sobre a saúde das mulheres. Elas sofreram duramente com aumento do desemprego, da sobrecarga doméstica, da violência pelos parceiros, dos transtornos emocionais e de sua qualidade de vida mostrando que as ações políticas para o enfrentamento da pandemia, quando não pensadas sob as lentes das desigualdades de gênero, são potencialmente produtoras de maiores vulnerabilidades para grupos já vulneráveis antes da crise sanitária, como é o caso das mulheres, especialmente quando negras, pobres e idosas. Isso inclui a devida qualificação profissional da rede de assistência básica e dos profissionais de saúde no que tange à abordagem de gênero, como notou a literatura aqui revisada.

PALAVRAS-CHAVE
Pandemias; Covid-19; Saúde da mulher; Gênero e saúde; Revisão

ABSTRACT

This paper analyzes the Brazilian scientific production in health sciences, which incorporates gender issues into the COVID-19 pandemic studies. We searched for publications in the bibliographic health databases; their results were categorized into thematic axes and then analyzed. Our work does not only aim to characterize how gender asymmetry is addressed in health sciences but also acknowledges the repercussions of the pandemic pointed out on women’s health. Women suffered severely from increased unemployment, domestic overload, partner violence, emotional disorders, and their quality of life, showing that political actions to fight the pandemic, when not inspected through the lens of gender inequalities, potentially prompt more significant vulnerabilities for groups already vulnerable before the health crisis, such as women, notably when racialized and poor, which also includes proper professional qualification of the primary care network and health professionals with regards to gender approaches, as noted in the literature reviewed.

Introdução

A pandemia causada pelo vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, trouxe efeitos inimagináveis sobre as dinâmicas sociais e a saúde de diferentes grupos. Diversos estudos vêm sendo publicados, desde 2020, em diferentes áreas do conhecimento, visando compreender os efeitos provocados e as formas de mitigação. No campo da saúde coletiva, destaca-se, especialmente, a importância de conhecer como a pandemia intensificou as desigualdades em saúde no Brasil, atingindo fortemente grupos historicamente vulnerabilizados. No País, as mulheres, especialmente as negras e pobres, têm sido as mais afetadas pela injustiça social, por estarem sujeitas a condições mais precárias no mercado de trabalho e no acesso aos direitos sociais1.

A teoria feminista e os estudos de gênero, em sua diversidade de perspectivas teóricas e abordagens, problematizaram a produção de conhecimento até então realizada, demonstrando que as relações de poder entre os sexos dificultavam ou mesmo inviabilizavam a abordagem de gênero na ciência2.

Em suas primeiras configurações, esses estudos objetivavam desnaturalizar a crença da determinação biológica sobre os comportamentos. A ideia precursora era a de que a condição feminina foi criada culturalmente pelas estruturas socioeconômicas3,4. A crítica à determinação biológica, associada às análises sobre a condição da mulher, revelou que essa condição trazia, em seu bojo, uma relação de opressão pelos homens.

Assim, a abordagem do gênero como uma categoria relacional e não universalista desenvolveu-se, e as perspectivas teóricas que emergiram chamaram atenção para a importância de articular tal categoria com outras, como classe social, raça, etnia, orientação sexual, geração, e território5,6,7. A análise dessas inter-relações vem se expandindo de forma interdisciplinar e se desenvolvendo em meio a perspectivas críticas e à consolidação do movimento social feminista em várias partes do mundo8,9,10.

Com base no referencial dos estudos de gênero e de teorias feministas, o artigo tem por objetivo analisar a produção científica brasileira do campo das ciências da saúde que incorpora questões de gênero aos estudos sobre a pandemia da Covid-19. Busca-se apreender as repercussões da pandemia sobre a saúde das mulheres e contribuir para o fortalecimento do enfoque de gênero nas políticas e ações de saúde.

Material e métodos

A pesquisa bibliográfica foi realizada por meio do Portal Regional da Biblioteca Virtual em Saúde (BVS), com consulta às bases Medline e Lilacs, uma vez que o objetivo foi pesquisar o campo da saúde coletiva. Em que pese reconhecer a saúde coletiva como um campo interdisciplinar, optou-se por trabalhar com as bases de dados características da saúde e não incorporar as de ciências sociais e humanas. Os resultados encontrados foram categorizados em eixos temáticos, os quais estruturam a análise.

A busca foi dirigida à produção brasileira, no período de março de 2020 a julho de 2021, e incluiu estudos de abrangência nacional, estadual e municipal. Foram realizadas duas buscas, com critérios amplos, com o intuito de abarcar todos os trabalhos. A primeira usou os seguintes filtros: 1) termos: (pandemia or coronavirus or covid) and (mulher or gênero or feminino); 2) termos presentes no título ou resumo ou assunto; 3) com texto completo ou não; 4) período 2020-2021; e 5) idioma ‘português’. Na segunda busca, os termos foram os mesmos, exceto pelo quinto e último, que foi ‘Brasil’ (neste caso, o filtro idioma não foi utilizado). A mudança desse filtro teve o objetivo de encontrar publicações que abordassem a realidade brasileira, mas que tivessem sido publicadas em outro idioma.

Foram encontrados 1.048 registros. Inicialmente, foram eliminadas, pelo título, as repetições. Em seguida, foram excluídos os trabalhos publicados em revistas que não eram do campo do conhecimento ciências da saúde, conforme classificação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). No passo seguinte, foram lidos todos os resumos e foram descartadas as publicações fora do tema ou cujos resultados não poderiam ser analisados sob a perspectiva de gênero, como diretrizes terapêuticas, notas técnicas sobre aspectos clínicos, entre outros. No caso dos artigos científicos, foram também descartados aqueles que estavam na condição de preprint, ou seja, publicados nas bases antes do aceite final da revista aos quais foram submetidos. Essa situação foi frequente, sobretudo no primeiro ano da pandemia. Também foram excluídos os artigos de opinião, as reflexões e os relatos de experiência. Ao final, restaram 38 artigos científicos, que compuseram o corpus para análise.

Resultados

De acordo com a Capes, a grande área de ciências da saúde é composta pelas seguintes áreas de conhecimento: medicina, nutrição, odontologia, farmácia, enfermagem, saúde coletiva, educação física, fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional. As 38 publicações revisadas estão assim distribuídas: saúde coletiva (23), enfermagem (8), medicina (5) e educação física (2). Houve concentração de publicações no segundo semestre de 2020 e primeiro trimestre de 2021, conforme pode ser visto na figura 1:

Figura 1
Linha do tempo das publicações, em ciências da saúde, sobre gênero e pandemia da Covid-19 no Brasil, de janeiro de 2020 a julho de 2021

Geralmente, as publicações possuíam mais de 3 autores, com uma média de 4 autores por publicação. Com exceção de 1 artigo, as mulheres estão presentes na autoria de todas as publicações aqui revisadas, sendo que, em 24 delas (63%), elas são a primeira autora. Diversos foram os temas abordados nas publicações, mas foi possível agrupá-los em eixos temáticos. Em sua maioria, eles eram consistentes com as questões centrais dos estudos de gênero. A exceção diz respeito à adesão a medidas preventivas contra a Covid-19, um tema especificamente relacionado com a pandemia, que emergiu de forma relevante, como veremos adiante. Como a imunização no País ainda não estava em curso nesse período, apenas um artigo tratou das vacinas. Os eixos sistematizados foram: Repercussões emocionais e saúde mental (11); Trabalho e renda (8); Adesão às medidas preventivas (7); Hábito e estilo de vida (5); Violência contra a mulher (5); e Saúde e direitos sexuais e reprodutivos (2). A figura 2 mostra a distribuição das publicações por eixo temático.

Figura 2
Distribuição proporcional das publicações revisadas por eixos temáticos

Os trabalhos apresentaram intersecção quanto aos eixos de análise, mas a classificação impõe escolhas quanto ao objeto considerado principal. Por exemplo, os estudos que tinham transtornos mentais como tema preponderante foram inseridos no eixo de repercussões emocionais e saúde mental ainda que, por vezes, apresentassem motivações econômicas como razão dos transtornos. Escolhas semelhantes foram feitas para os demais eixos.

Repercussões emocionais e saúde mental

Este eixo temático reuniu 11 artigos, distribuídos nas áreas de saúde coletiva (5), enfermagem (4) e medicina (2). Ele contém investigações que buscaram, no início da pandemia ou ao longo desta, conhecer as principais repercussões emocionais do isolamento e da pandemia, assim como os grupos sociais mais afetados emocionalmente. Foi constatado que as mulheres foram as mais afetadas pelos sentimentos de solidão, isolamento, ansiedade, tristeza, depressão, perda de suporte social, trauma ou estigma e discriminação.

Malta et al.11 destacaram que esses sentimentos estavam associados ao aumento do consumo de cigarros e à piora da qualidade do sono e da saúde mental nas mulheres. Romero et al.12 mostraram que a redução da renda e o aumento da sobrecarga doméstica repercutiram negativamente na saúde emocional e mental de mulheres idosas, especialmente entre aquelas mais vulnerabilizadas socialmente. Moraes-Filho et al.13 discutiram a importância da amizade para superar tensões durante a pandemia. Eles indicaram que ser do sexo feminino, da raça branca e ter maior renda contribuíram para maiores níveis de tolerância nas relações de amizade.

Dos artigos aqui revisados, três tratavam de categorias profissionais da biomedicina. Mulheres demonstraram maior sofrimento psíquico em todos eles. Teixeira et al.14 abordaram especificamente os/as estudantes de medicina; já Santos et al.15 e Dal’Bosco et al.16, os/as profissionais de enfermagem. No caso da pesquisa com estudantes de medicina, as mulheres demonstraram maior prevalência de sofrimento psíquico (80%), o que também ocorria entre as enfermeiras do estudo realizado no setor privado (86,7% das respondentes), sendo que as mulheres racializadas, com renda mensal inferior a cinco salários mínimos, apresentaram mais sintomas sugestivos de transtornos mentais15. O estudo de Dal’Bosco et al.16 abordou profissionais majoritariamente brancas do sexo feminino e com renda maior que três salários mínimos. No entanto, chegou à conclusão similar, qual seja, a de que estas também padeciam de ansiedade e depressão. A ansiedade prevaleceu (49%) sobre a depressão (25%), e mulheres casadas na faixa etária de 31 a 40 anos foram as mais atingidas.

Três estudos realizados nos primeiros meses da pandemia concluíram que as mulheres mais vulnerabilizadas tiveram piora da saúde mental. Zhang et al.17 constataram que ser mulher, ter baixa renda, menor nível educacional e ter sofrido redução de renda foram fatores relacionados com a piora da saúde mental. Souza et al.18, em estudo mais amplo, dedicaram-se ao tema do isolamento social durante os meses de abril e maio de 2020 e chegaram a resultados similares. Barros et al.19 abordaram os problemas de sono no início da pandemia e identificaram que mais de 40% de pessoas que não tinham problemas de sono passaram a ter, e que 50% das que já tinham problemas de sono tiveram o quadro agravado. Mulheres foram as mais afetadas em ambos os casos, segundo os autores. Lima et al.20 verificaram, durante 30 dias no início da pandemia, o aumento ou a incidência dos problemas do sono segundo condições demográficas e econômicas prévias à pandemia. Em seguida, as compararam com as mudanças nas condições financeiras, ocupacionais e tarefas domésticas durante a pandemia. Entre os grupos que apresentaram maiores alterações do sono, mulheres foram as mais afetadas (82%), e isso podia ter a ver com o aumento da sobrecarga das tarefas domésticas, concluíram.

Apenas um estudo tratou especificamente de mulheres. Santos et al.21 investigaram a saúde mental das mulheres privadas de liberdade, a partir de auto relatos de sintomas de ansiedade relacionados com a Covid-19, em uma unidade prisional em Salvador, na Bahia. Nas narrativas colhidas de 41 mulheres (majoritariamente jovens), 95% destas relataram algum sintoma de ansiedade. Aspectos como ser de raça negra, pertencer às classes populares, ter baixa escolaridade, ser mãe solo e não ter contato com a família aumentavam as chances dessas mulheres para o desenvolvimento de transtornos psíquicos.

Trabalho e renda

Os oito estudos que se dedicaram ao impacto do trabalho sobre a saúde das mulheres durante a pandemia se distribuíram nas áreas de saúde coletiva (6) e enfermagem (2). Predominaram análises que destacaram a sobrecarga observada no trabalho do cuidado remunerado (care) e não remunerado (doméstico) das mulheres, em especial, profissionais da saúde, que enfrentaram também maior exposição ao contágio e ao burnout. Os estudos desse eixo apresentaram intersecções relevantes com os demais eixos aqui trabalhados, principalmente o de saúde mental.

Com dados do estado da Bahia, Almeida et al.22 indicaram que, nos casos notificados de março a setembro de 2020, 2.920 estiveram relacionados com o contágio no trabalho, com predominância no sexo feminino (64,5%), com faixa etária de 30 a 39 anos (39,9%). O setor da saúde foi o mais afetado em termos do quantitativo de profissionais infectados (37,1%), sendo que as categorias profissionais que mais se infectaram foram: técnicos e auxiliares de enfermagem (25,7%), seguidos por enfermeiros (13,3%), médicos (6,3%) e agentes comunitários de saúde (4,9%). Para as autoras, a maior frequência de casos de Covid-19 entre a força de trabalho feminina do setor de saúde decorre da divisão sexual do trabalho, que reserva às mulheres o trabalho mais direto no cuidado, quanto mais pobres e racializadas elas são. Bittencourt e Andrade23 chamaram a atenção para o fato de que esse trabalho, desempenhado na sua maioria por mulheres das classes populares, é desvalorizado e mal pago, e tem se precarizado cada vez mais nas últimas décadas, com o aumento de contratos temporários, perdas de direitos trabalhistas, sobrecarga das atividades, péssimas condições de trabalho, entre outros. Na pandemia, essa condição foi ainda mais agravada pela falta de equipamentos de proteção individual, pelo medo do contágio, preocupações com filhos e familiares, e as vivências diante da morte e o adoecimento de si e dos(as) colegas de profissão. Trata-se de um trabalho que não só exige do corpo, mas também das emoções. Bittencourt e Andrade23 utilizaram as contribuições dos estudos de gênero para analisar o trabalho do cuidado realizado pelas mulheres, especialmente em saúde, na sua dupla face: a esfera produtiva e a reprodutiva, enfatizando as especificidades do cuidado enquanto trabalho. Elas se utilizaram do conceito da divisão sexual do trabalho e, também, do trabalho de care, problematizando as desigualdades entre homens e mulheres e as condições às quais estão expostas as mulheres na saúde e, em especial, na pandemia da Covid-19.

Por meio de conteúdos dos vídeos do YouTube, Carvalho et al.24 abordaram o protagonismo das enfermeiras na produção do cuidado durante a pandemia e a insegurança que elas enfrentam no exercício da profissão. Os autores apontaram a sobrecarga da função do cuidado na própria atividade profissional da enfermagem, historicamente submetida à precarização e à desvalorização na hierarquia do setor saúde.

Em comum, Carvalho et al.24 destacaram que, ao trabalho do cuidado remunerado, soma-se o trabalho doméstico, este invisível porque não é remunerado. Além do provimento econômico, as mulheres também são, na maioria das vezes, as cuidadoras primárias de crianças, idosos e enfermos de suas famílias e vizinhanças. Ao analisar a saúde das crianças que nasceram prematuras na pandemia, Silva et al.25 chamaram a atenção para a sobrecarga física e emocional das mães com os afazeres domésticos, a casa, a família, além dos próprios cuidados neonatais. Camarano26 mostra que idosas ficaram também mais propensas ao risco de contágio, ao desemprego e à sobrecarga doméstica na pandemia, pois permanecem responsáveis primárias pelo cuidado da família.

Pizzinga27 analisou a situação das trabalhadoras domésticas na pandemia da Covid-19 diante das vulnerabilidades da categoria e dos decretos federais que definiram as atividades essenciais. Ela analisou as diferenças entre homens e mulheres, verificando a inserção maior de homens nas atividades essenciais e das mulheres nas não essenciais e informais, o que as deixava mais suscetíveis à perda do vínculo durante a pandemia, conclusão corroborada também por Castro et al.28. Pizzinga27 detectou também sobrecarga doméstica nessas trabalhadoras que, quanto mais racializadas, tinham vínculos menos estáveis, aprofundando ainda mais as condições vulnerabilizantes em que se encontravam diante da crise gerada pela pandemia. Outro estudo que captou bem as condições sociais dessa categoria foi o de Manfrinato et al.29, sobre a insegurança alimentar nas primeiras semanas da política de distanciamento físico em duas favelas no Brasil. Manfrinato et al.29 revelaram que 88% dos domicílios atingidos pela insegurança alimentar incluíam mulheres jovens que trabalhavam como faxineiras ou ajudantes de cozinha e em serviços de vendas. Apenas um quinto delas recebia auxílio do programa Bolsa Família, e 92% das famílias tinham crianças. A incerteza sobre a aquisição ou recebimento de alimentos atingiu 89% dos participantes, 64% informaram comer menos do que se deveria, 46% não eram capazes de comer alimentos saudáveis e nutritivos e 39% pulavam uma refeição. No total, 47% dos participantes experimentaram insegurança alimentar moderada ou grave no período analisado.

Adesão a medidas preventivas

As medidas preventivas contra a Covid-19 incluem o uso de máscara, a restrição do contato interpessoal e os cuidados com a higiene. No período da busca, a imunização por vacinas ainda não estava disponível. Em um total de sete estudos que analisaram a adesão às medidas preventivas contra a Covid-19, das áreas de saúde coletiva (6) e enfermagem (1), demonstrou-se que as mulheres aderiram mais do que os homens.

Lima et al.30, em uma pesquisa on-line, observaram que as mulheres se percebiam mais em risco de contaminação que os homens, situação creditada pelos autores ao maior senso de autocuidado das mulheres. Avaliaram que essa percepção de maior risco também poderia estar relacionada com a inclusão de muitos profissionais de saúde no estudo, força de trabalho predominantemente feminina e sob maior risco.

Batista et al.31 mediram a ocorrência de comportamentos de proteção contra a Covid-19 na população brasileira com 50 anos ou mais. O estudo mostrou maior adesão ao isolamento social (não sair de casa) entre as mulheres em comparação aos homens. A maior frequência de comportamento de proteção entre mulheres foi explicada pela sua maior conscientização sobre os hábitos relacionados com a prevenção de doenças e promoção da saúde, sobretudo por serem elas as principais provedoras dos cuidados às famílias e estarem mais restritas ao ambiente doméstico. O melhor desempenho das mulheres no isolamento social também foi encontrado por Lima-Costa et al.32, por meio de entrevistas telefônicas; e por Guimarães et al.33 e Szwarcwald et al.34, em inquéritos nas redes sociais, sendo que estes últimos evidenciaram que os homens tiveram quase o dobro de chances de não fazer qualquer restrição ou pouco restringir o contato físico comparativamente às mulheres.

Quanto ao uso e reuso inapropriado de máscaras, é possível discernir nos estudos de Pereira-Ávila et al.35 os contrastes de gênero. Por meio de formulários individuais, disponibilizados em redes sociais, foi identificado que ser mulher aumentava a chance de usar máscaras e diminuía a possibilidade de reutilização de máscaras cirúrgicas – prática desaconselhada pelas autoridades sanitárias.

Por fim, Oliveira et al.36 estimaram a prevalência e fatores associados à hesitação na vacinação contra o vírus Sars-CoV-2 no Maranhão, caso as vacinas estivessem disponíveis. Os autores mostraram que as mulheres hesitaram mais e supuseram que, como elas são mais propensas a tomar decisões de saúde para seus filhos, também podiam estar mais propensas a buscar informações sobre vacinas e ser expostas a conteúdo antivacinação.

Hábitos e estilo de vida

Neste eixo, foram agrupados cinco trabalhos que buscaram discutir os impactos da pandemia nos hábitos, lazer e estilo de vida das mulheres. Eles foram publicados em periódicos de saúde coletiva (3) e educação física (2). Os estudos sobre a prática de exercícios físicos e mudanças de estilo de vida durante a pandemia detectaram prejuízo entre as mulheres porque estas se encontravam mais sobrecarregadas com o cuidado doméstico. Crochemore-Silva37, Rodrigues et al.38 e Gonçalves et al.39 apontaram também que aquelas inseridas em contextos socioeconômicos piores eram ainda mais afetadas. Rodrigues et al.38 e Malta et al.40 salientaram que a discrepância entre os sexos na participação em atividades físicas já era anterior ao período da pandemia. Rodrigues et al.38 sinalizaram ainda que isso pode ser explicado pela mesma sobrecarga de cuidados familiares e atividades domésticas, que penaliza historicamente as mulheres, sobretudo negras e pardas, retirando delas o tempo para o lazer e o autocuidado.

No que tange ao consumo de tabaco, de bebidas alcoólicas, à alimentação e à atividade física durante o isolamento, Malta et al.40 perceberam, em ambos os sexos, aumento do consumo de frituras, congelados, processados e, especificamente entre mulheres, de doces. Enquanto homens aumentaram o consumo de bebidas alcoólicas, elas recorreram mais ao tabagismo como forma de compensar afetos negativos.

Por fim, o estudo de Teotônio et al.41, que examina a qualidade de vida no Brasil durante a pandemia, indicou a percepção de menor qualidade de vida entre as mulheres se comparada à percebida pelos homens, sem levantar hipótese que explique o resultado.

Violência contra a mulher

Apesar de ser considerada na literatura especializada um dos maiores problemas de saúde da mulher, especialmente durante a pandemia, o eixo de Violência contra a Mulher (VCM) concentrou apenas cinco artigos, distribuídos nas áreas de saúde coletiva (3), enfermagem (1) e medicina (1). Durante a pandemia, o Brasil recomendou e, por vezes, impôs o distanciamento social, com fechamento parcial de atividades econômicas, escolas e restrições de eventos e serviços públicos. Isso tornou a convivência familiar mais intensa na residência. Os artigos analisados argumentaram que o isolamento teria propiciado o aumento dos casos de violência doméstica e, ainda, dificultado às vítimas o acesso a redes e serviços públicos de informação e ajuda42,43,44,45.

Entre os fatores listados pela literatura que mais contribuíram para o aumento da violência masculina contra a mulher no Brasil em tempos de pandemia, Silva et al.46 identificaram: o isolamento social com os parceiros; o consumo de álcool e demais drogas pelos parceiros; a pressão da crise econômica sobre o casal; a sobrecarga feminina; e o enfraquecimento da rede de apoio da mulher. Alguns estudos adicionaram o medo de adoecer e a incerteza da conjuntura entre esses fatores43,44. Os elementos elencados acima figuraram, de forma mais ou menos abrangente, em todos os textos revisados nesse eixo.

Vieira et al.44 enxergam a VCM não como uma consequência direta da pandemia, mas como a intensificação de uma violência historicamente estruturada, que expressa em um novo contexto o sistema de poder patriarcal. Ela apontou que o controle das finanças domésticas, a divisão das tarefas domésticas, o sentimento de posse e a sensação de perda do poder nos homens teriam sido fatores que atuaram no aumento da tensão dentro de casa, acionando nos parceiros comportamentos violentos, porém ainda bastante tolerados porque a sociedade é patriarcal, androcêntrica e misógina. Para elas, o isolamento ampliaria a margem de ação do parceiro na manipulação psicológica da mulher e na vigília de sua comunicação com a rede de apoio, ao mesmo tempo que o acesso a essa rede, particularmente nos setores de assistência social, saúde, segurança pública e justiça, foi reduzido por causa do medo do contágio.

Todos os autores aqui revisados buscaram identificar os desafios da VCM e enfatizaram a necessidade de ampliar a rede de apoio/cuidado e de prover alternativas e meios para a proteção/acolhimento das mulheres42,43,44,46. Entre os desafios mais relevantes elencados, figuram: a redução brusca da renda familiar; o aumento do uso abusivo de álcool e outras drogas por parte dos parceiros; a qualificação profissional para a abordagem interseccional da rede de apoio; e o trabalho com os homens agressores.

Ao buscar conhecer as estratégias de enfrentamento da violência doméstica contra a mulher divulgadas pelas mídias digitais no início da pandemia da Covid-19, Fornari et al.42 concluíram que a maior parte delas era adaptada de serviços já existentes, centradas na denúncia da violência pelas próprias mulheres. Entre as medidas propostas pela literatura revisada para mitigar o problema, estiveram: o uso de tecnologias digitais para o socorro; o aumento das equipes nas linhas diretas de prevenção e resposta à violência; a devida divulgação dos serviços disponíveis. Também enfatizaram a necessidade de capacitar os trabalhadores da saúde para identificar situações de risco e de expandir e fortalecer redes de apoio, ampliando o número de vagas nos abrigos para mulheres sobreviventes, além de redes informais e virtuais de suporte social e material. Por fim, consideraram essencial também a mudança do discurso de governantes que acabam atuando na contramão do enfrentamento da VCM e a qualificação da rede assistencial para a abordagem de gênero.

Saúde e direitos sexuais e reprodutivos

Duas publicações abordaram a saúde da mulher, ambas na área de conhecimento de medicina. O artigo de Wenling et al.47 comparou a patogênese, a patogenia e características clínicas entre mulheres grávidas infectadas com Sars-CoV-2 e infectadas com Mers-CoV. Os autores destacam que, até 18 de junho de 2020, foram notificados 124 casos de morte materna no Brasil e salientaram que a alta mortalidade poderia ser um alerta para a pior evolução da doença e pior prognóstico. Apontam o cenário adverso, como número insuficiente de trabalhadores de saúde e restrição de recursos de cuidado intensivo como negativo para a saúde de mulheres grávidas.

Takemoto et al.48 descreveram as características clínicas de grávidas com Covid-19 no Brasil e examinaram fatores de risco para mortalidade. Trabalhando com as mesmas notificações e baseados nas 124 mortes maternas, calcularam uma taxa de letalidade de 12,7% na população obstétrica. Essa alta taxa estaria relacionada não apenas com fatores de risco clínicos, como início da síndrome respiratória aguda no pós-parto, obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares. Os achados também indicaram que ser branca tinha um efeito protetivo, ao passo que barreiras de acesso à saúde, que afetam mais a população não branca, estavam relacionadas com o aumento da mortalidade.

Discussão

Os artigos aqui revisados tiveram o mérito de oferecer dados e discussões de diferentes áreas de conhecimento da saúde, que tornaram possível abordar a pandemia também sob a perspectiva das relações de gênero e suas interseccionalidades. Eles explicitaram aspectos que, com ou sem pandemia, subjazem às relações sociais assimétricas entre os sexos.

Embora a maior parte dos artigos não se dedique exclusivamente às mulheres, estas ocuparam boa parte das análises, seja por formarem um contingente significativo da força de trabalho responsável pelos cuidados em saúde, seja por viverem em condições sociais que historicamente as vulnerabilizam mais. Essas condições decorrem de situações que constituem objetos de interesse da literatura feminista, como divisão sexual do trabalho, assimetrias nas relações de poder e a socialização para o cuidado49.

Categorias e conceitos do campo teórico feminista foram utilizados em boa parte das publicações revisadas, mostrando que o campo da saúde vem incorporando, progressivamente, as contribuições das ciências humanas e sociais sobre gênero. Contudo, os artigos, em geral, não aprofundam o diálogo com as teorias sociais ou mesmo explicitam suas perspectivas teóricas. A maior parte deles privilegiou o desenho dos estudos e seus achados em detrimento de aprofundamento teórico que explique a realidade encontrada. Essa pode ser uma característica das publicações desse campo, cuja forma e conteúdo privilegiam mais a empiria que as reflexões teóricas. As variáveis de sexo, raça, classe e orientação sexual, por sua vez, foram incorporadas nas publicações, o que se mostrou importante para a compreensão da diversidade que envolve as mulheres como grupo social.

A saúde coletiva foi a área de conhecimento que respondeu pelo maior número de publicações selecionadas23, praticamente dois terços do material revisado. Essa é uma área interdisciplinar que dialoga com outras áreas de conhecimento, como a epidemiologia, as ciências sociais e humanas, a filosofia e a administração50. Em segundo lugar, a enfermagem, com 8 artigos, privilegiou a abordagem de temas ligados ao exercício profissional na pandemia, como os direitos sociais, a maternidade, a violência, entre outros. Isso se deve, basicamente, à composição da força de trabalho da área, majoritariamente feminina e, principalmente, ao cuidado como razão do exercício profissional.

O eixo de trabalho e renda mostrou que as mulheres foram muito afetadas economicamente pela pandemia no Brasil, sobretudo as negras e pobres, o que evidenciou as injustiças sociais que, segundo a literatura feminista, afetam historicamente mais as mulheres51,52. A literatura aqui revisada mostra que a preocupação com o sustento e o aumento do trabalho doméstico não remunerado tiveram efeitos diretos na saúde mental e emocional das mulheres. Vale destacar o forte impacto, em especial, sobre as trabalhadoras da enfermagem, como evidencia a literatura sobre o tema53.

Os estudos revisados mostraram ainda que, na pandemia, o trabalho emocional ou a chamada ‘carga mental’, que diz respeito ao gerenciamento das tarefas domésticas e emocionais do entorno, aumentou. O esforço de antecipar e de atender às necessidades dos outros, típico do trabalho do cuidado, foi mais exaustivo emocionalmente para as mulheres do que já era antes. Isso se refletiu também na menor disposição e disponibilidade para a rotina de exercícios físicos (autocuidado) e na piora dos hábitos e estilo de vida. A socialização que subjetiva as mulheres para cuidado do outro, permitindo que elas tenham maior percepção do risco, hábitos de prevenção e higiene, entre outros, também explicaria a maior adesão delas às medidas preventivas contra a Covid-1954.

Os estudos de gênero e as teorias feministas apresentam inúmeras contribuições para a compreensão da divisão social do trabalho entre os sexos ou divisão sexual do trabalho49. As pesquisas sobre o care, em suas várias vertentes, têm revigorado as análises sobre o tema55. A divisão desigual de tarefas domésticas, que sobrecarrega especialmente as mulheres casadas e com filhos, mostrou que a presença masculina no lar não representou, na pandemia, uma distribuição de tarefas; muito pelo contrário, sobrecarregou e até ameaçou a integridade física e emocional das mulheres, explicitando o ambiente do lar como mais uma esfera de exercício do poder masculino.

A VCM já era alta no Brasil antes da pandemia e aumentou mais após a Covid-19 em todo o mundo56. Ela costuma ocorrer no contexto familiar e doméstico, sendo perpetrada, na imensa maioria das vezes, por parceiros íntimos e parentes próximos. Stockl et al.57 estimaram que uma em cada três mulheres em idade reprodutiva já sofreu violência física ou sexual perpetrada por um parceiro íntimo durante a vida, e eles respondem por mais de um terço dos assassinatos de mulheres no mundo. Em que pese a relevância da VCM na agenda feminista58, poucos foram os artigos dedicados ao tema. Em geral, os estudos enfatizaram a pressão do isolamento físico-social sobre os parceiros, com o aumento do consumo do álcool e outras drogas devido às tensões da conjuntura. As dificuldades para inserção econômica, que restringiram mais as mulheres ao âmbito doméstico, elevaram também a sua exposição à convivência com parceiros. Pouca atenção foi dada, entretanto, aos aspectos de socialização que expõem mulheres a relações violentas ou a ações que mirem nos agressores e na prevenção da agressão.

A questão da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos é central nos estudos de gênero. No campo da saúde, múltiplos aspectos relacionados com a experiência do nascimento vêm sendo abordados, como acesso e atenção pré-natal e ao parto, violência obstétrica e desigualdades sociais59,60,61, entre outras. Nesta revisão, sobressaíram, nos dois artigos analisados, os temas da morte e mortalidade maternas. Entretanto, esperava-se um número maior de artigos sobre esses tópicos, visto que representam um problema de saúde de grande magnitude no Brasil, amplificado pela pandemia da Covid-1962,63. Uma possível explicação é que os artigos destinados a esses temas usem descritores específicos e, por isso, não tenham sido recuperados na busca realizada para este trabalho.

Considerações finais

Os estudos revisados mostram que a pandemia da Covid-19 trouxe duras consequências para as mulheres, como o aumento do desemprego, da sobrecarga doméstica, dos transtornos emocionais e da violência dos parceiros. Isso evidencia que ações técnicas e políticas para o enfrentamento da crise sanitária, quando não pensadas sob as lentes das desigualdades de gênero, são, potencialmente, produtoras de mais injustiça social para grupos já vulnerabilizados, especialmente as mulheres negras, pobres e idosas. A literatura aqui revisada apontou para a necessidade de políticas públicas que fortaleçam as redes de proteção social e a qualificação dos(as) trabalhadores(as) de saúde no que tange à abordagem de gênero.

Vale destacar a presença de mulheres na autoria da maior parte das obras, em todos os eixos, o que reforça a importância do protagonismo feminino para a inserção de temas ligados ao gênero na agenda científica da saúde.

Como limitação deste estudo, deve-se mencionar que não foi feita a apreciação da qualidade dos artigos incluídos. Uma forma de mitigar essa limitação foi excluir do corpus da análise artigos em preprint, de opinião, reflexões e similares; e incluir apenas artigos científicos revisados por pares. Isso retirou publicações que abordavam as consequências da pandemia em grupos específicos, como lésbicas e mulheres trans, revelando uma lacuna quanto a essas populações nos artigos científicos. Outo hiato importante diz respeito às mulheres indígenas, não contempladas em nenhum estudo aqui revisado. Vale ressaltar que elas não foram localizadas nem mesmo nas etapas iniciais da seleção dos artigos nas bases e áreas do conhecimento abarcados.

Para estudos futuros, recomenda-se estender a busca para a produção científica das ciências sociais e humanas no que concerne à saúde. Isso permitiria mapear outros temas e abordagens que envolvam as relações de gênero e, principalmente, ampliar o conhecimento dos efeitos da pandemia sobre as mulheres. Assim, será possível fortalecer as políticas e ações de saúde para esse grupo populacional, que compõe mais da metade da população mundial.

  • Suporte financeiro: não houve
  • *
    Orcid (Open Researcher and Contributor ID).

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Dez 2021

Histórico

  • Recebido
    01 Ago 2021
  • Aceito
    30 Dez 2021
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