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Porto MF, Rocha DF, Fasanello MT. Saúde, ecologias e emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s)

A PUBLICAÇÃO DO LIVRO ‘SAÚDE, ECOLOGIAS E EMANCIPAÇÃO: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s)’11 Porto MF, Rocha DF, Fasanello MT. Saúde, ecologias e emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s). São Paulo: Hucitec; 2021., dos autores Marcelo Firpo Porto, Diogo Ferreira Rocha e Marina Tarnowiski Fasanello, mostra-se um aporte conceitual, teórico e metodológico imprescindível no subsídio de pesquisadores, professores universitários e estudantes para o desafio de produzir conhecimento e práticas em articulação com movimentos e lutas sociais. Trata-se de um marco para a própria saúde coletiva ao anunciar uma renovação teórica crítica para o enfrentamento das crises contemporâneas em suas várias dimensões – sociais, sanitárias, ecológica e civilizatória.

Em cinco capítulos, o leitor encontrará caminhos para operacionalizar metodologias sensíveis por meio do diálogo intercultural e estratégias co-labor-ativas: após essa introdução, no segundo capítulo, é apresentada a articulação conceitual de três campos de conhecimento – saúde coletiva, ecologia política e os referenciais pós-coloniais, base para as quatro noções de justiça: social, sanitária, ecológica e cognitiva. O terceiro capítulo analisa a questão ambiental a partir da ecologia política baseada no projeto do Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, apontando resistências e alternativas a partir das lutas sociais e territoriais. O quarto capítulo apresenta a proposição de metodologias colaborativas e não extrativistas, inspirada em Boaventura Santos. No quinto capítulo, encontram-se sugestões de agendas de pesquisa, a partir da saúde coletiva, que apontam possibilidades emergentes de processos emancipatórios.

A obra expressa a produção do Núcleo Ecologias, Epistemologias e Promoção Emancipatória da Saúde da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca – Fundação Oswaldo Cruz. Remetendo a uma visão integrada, os autores buscam contribuir para a transformação e o fortalecimento de processos emancipatórios de povos e comunidades, tanto os tradicionais de populações dos campos, florestas e águas como aqueles espaços periféricos urbanos. O necessário desenvolvimento de diálogos interdisciplinares e interculturais na produção do conhecimento com, e não sobre os sujeitos oprimidos e radicalmente excluídos exige assumir o desafio de descolonizar e reinventar as bases epistemológicas atuais, valorizando outras cosmologias e epistemologias e incorporando os saberes e o diálogo com movimentos que buscam o direito de existir para além do modelo de desenvolvimento econômico hegemônico eurocêntrico e suas facetas violentas e fascistas.

A globalização tem implicado crises em ritmos e escalas planetárias. A publicação incide justamente na necessidade de repensar nossas existências e formas de viver em termos societários. Busca-se assim superar as crises social, ecológica, econômica e democrática contemporâneas, a partir da compreensão e da conexão dos processos emancipatórios voltados à promoção de justiça, dignidade, saúde e direitos territo riais, por meio da ampliação da noção de emancipação. Contribui para a construção de um pensamento que adote novos olhares e permeie as bases de compreensão da sociedade atual, com foco nos efeitos do modo de funcionamento errático da ‘modernidade’ e seus efeitos sobre o ambiente e as condições de reprodução da vida de povos e grupos sociais. A reinvenção da emancipação social emerge, portanto, como estratégia de enfrentamento da crise civilizatória mais ampla da modernidade, que articula os eixos de dominação do capitalismo, o colonialismo racista e o heteropatriarcado, que afetam principalmente os povos e grupos sociais do Sul global.

No ‘Sistema Mundo’, a crise e a destruição se tornam componentes essenciais da dinâmica de seu funcionamento22 Wallerstein IM. O fim do mundo como o concebemos: ciência social para o século XXI. Rio de janeiro: Revan; 2002.. A saúde como metáfora é potente para pensar as crises e as possibilidades de superação. Influenciados pelas obras de Georges Ganguilhem, epistemologia histórica sobre o normal e o patológico; Charles Perrow, acidentes tecnológicos complexos; e Brian Wynne, sociologia dos riscos industriais ‘anormalidade normal’, os autores postulam que, no desfecho da crise, a perspectiva da saúde se depara em uma dupla encruzilhada com três caminhos possíveis: 1. a continuidade do desequilíbrio patológico ‘anormalidade normal’ enquanto normalização da nova condição; 2. o prenúncio do fim do ciclo patológico, sendo, em tese, o objetivo de toda medicina, tradicional ou científica; e 3. o desfecho derradeiro, com a chegada da morte.

Os autores argumentam que a modernidade não tem fortalecido o caminho da cura em seu sentido mais pleno. Ao contrário, cria subterfúgio cognitivo nos planos individual e coletivo quanto aos processos vitais que os mantêm saudáveis, entendidos como o aprimoramento da inteligência pessoal e comunitária e suas dimensões mentais, corporais e afetivas, próximo à ideia de sabedoria. Essas manobras cognitivas decorrem da excessiva artificialização da vida moderna e da desconexão de mente com o corpo e a natureza, uma forma de alienação pouco explorada pelo intelectualismo da era da razão. Recorrem a Ivan Illich (Nêmesis da Medicina) que alertava para a ameaça da institucionalização e desumanização da medicina moderna, associada à perda da autonomia das pessoas e comunidades para cuidarem da sua própria saúde.

A ciência moderna se afastou progressivamente da compreensão dos processos vitais e dos cíclicos da natureza. Em contrapartida, a tecnologia em saúde forneceu à saúde pública um enorme poder de ‘cura’, prevenção e melhoria na qualidade e longevidade de vida. Entretanto, ao reduzir a complexidade das interações entre as esferas social, comunitária, ambiental e biológica a um conhecimento técnico ‘neutro’, renunciou a seu papel politizador e de intervenção sobre as condições sociais, econômicas e ambientais. De um lado, a ciência moderna apresenta grande facilidade de operacionalização do combate a doenças, de outro, reduz as estratégias de promoção da saúde. A principal consequência desse enfoque biomédico é o reducionismo das causas dos problemas de saúde, sejam as consideradas externas decorrentes dos processos ambientais e sociais, sejam as internas decorrentes dos processos espirituais e anímicos, que, na perspectiva tradicional, são renomeados de mentais, psíquicos e psicológicos, ou seja, morte e sofrimento desnecessários, causados por formas de organização social opressivas e distópicas.

Assim, ainda subjazem os embates entre a medicina social e coletiva com as visões biomédicas reducionistas que seguem operando hegemonicamente no campo da saúde. Esse embate tem sido enfrentado nos últimos 40 anos no Brasil e em diversos países latino-americanos pelo desenvolvimento da teoria da Determinação Social da Saúde. Entretanto, esses avanços encontram-se ameaçados pela ascensão do neoliberalismo, do fascismo social e do negacionismo.

Com a perda do sentido da morte como parte da vida decretado pela modernidade, dimensões como espiritualidade, dignidade e mistério foram relegadas aos planos artísticos e religiosos, apartando-as da produção de conhecimentos, resultando na estagnação de um diálogo respeitoso e produtivo com as diferentes percepções presentes nas cosmovisões, culturas e modos de vida do Sul global, consideradas atrasadas, primitivas, selvagens, no máximo exóticas. De outro lado, foram produzidas novas amarras em nome da concepção moderna de liberdade e realização que acarretaram o apagamento de ideias de ciclos, finitude e continuidade. Contudo, o desafio emancipatório para a transição civilizatória passa, na perspectiva dos autores, pelo resgate da natureza, das noções de ciclo e finitude, mas também de encantamento e contemplação diante dos mistérios sem os quais a vida humana se empobrece e se coisifica em termos de consciência e complexidade.

Ainda, em tempos de pandemia de Covid-19, o momento é propício para buscarmos caminhos que apresentem novas chaves de leitura, novas formas de pensar e sentir que nos animem na tarefa de produzir conhecimentos e práticas mediante encontros sensíveis e engajados, envolvendo diversos sujeitos sociais e seus múltiplos saberes a partir da interação de diversas linguagens e narrativas cientistas, artísticas, poético-musicais e populares que integrem razão e afeto. A questão fundamental não é o negacionismos dos avanços obtidos pela ciência moderna. Os avanços nesse campo, na visão dos autores, dependerão dos rompimentos das linhas abissais que deslegitimam todas as outras formas de conhecimento não validáveis pelo método científico e na construção de uma relação mais horizontal e dialógica entre diferentes saberes, o que o filósofo Edgar Morin chamou de ciência com consciência, e que Sérgio Arouca, no campo da saúde, instigou-nos a compreender enquanto processo civilizatório, visionando o Sistema Único de Saúde (SUS).

Ao final, os autores fornecem ferramentas essenciais para a compreensão e o enfrentamento das crises contemporâneas, superando os desafios para uma transição civilizatória mediada por processos emancipatórios e destacando a importância de estabelecer pontes entre o passado e o presente em direção a outros futuros que reaproximem economia, cultura, ciência e natureza.

  • Suporte financeiro: não houve

Referências

  • 1
    Porto MF, Rocha DF, Fasanello MT. Saúde, ecologias e emancipação: conhecimentos alternativos em tempos de crise(s). São Paulo: Hucitec; 2021.
  • 2
    Wallerstein IM. O fim do mundo como o concebemos: ciência social para o século XXI. Rio de janeiro: Revan; 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jun 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2022
  • Aceito
    08 Abr 2022
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