Open-access Programa Saúde na Escola: potencialidades e limites da articulação intersetorial para promoção da saúde infantil

RESUMO

O estudo objetivou compreender as potencialidades e os limites da articulação intersetorial do Programa Saúde na Escola para a promoção da saúde infantil, sob a ótica dos profissionais da atenção primária. Pesquisa de abordagem qualitativa, descritiva-exploratória, realizada com 20 profissionais da área da saúde, residentes em quatro municípios da Região da Grande Florianópolis. A coleta de dados foi desenvolvida por meio de entrevistas, no período de novembro de 2020 a março de 2021. Os dados passaram por análise de conteúdo e discutidos à luz do referencial teórico da promoção da saúde. Destacaram-se, como potencialidades, o acompanhamento das condições de saúde dos escolares, a ampliação do acesso à informação, a parceria com outros setores e a criação de vínculos com a comunidade escolar. Os limites evidenciados foram a cobertura parcial da rede escolar, o desconhecimento sobre o programa, a sobrecarga de atividades, os impactos causados pela pandemia da Covid-19, a falta de recursos humanos e de infraestrutura. Conclui-se que há necessidade de fortalecimento do Programa Saúde na Escola enquanto política pública, com vistas à efetivação de ações articuladas entre saúde e educação para o alcance da melhoria da qualidade de vida dos escolares, com atuação sobre os seus determinantes sociais.

PALAVRAS-CHAVES
Promoção da saúde; Colaboração intersetorial; Saúde da criança; Atenção Primária à Saúde; Serviços de saúde escolar

ABSTRACT

The study aimed to understand the potential and limits of the intersectoral articulation of the School Health Program for the promotion of children’s health from the perspective of primary care professionals. This research had a qualitative, descriptive-exploratory approach, carried out with 20 health professionals from different professional categories, in four municipalities in the Greater Florianópolis. Data collection was carried out through interviews from November 2020 to March 2021. The data underwent content analysis and discussed according to the theoretical framework of health promotion. It stood out as potential: monitoring the health conditions of schoolchildren, expanding access to health information, partnership with other sectors, and the creation of links with the school community. The limits highlighted were the partial coverage of the school network, the lack of knowledge about the program, the overload of activities, the lack of human resources and infrastructure, and the impacts caused by the COVID-19 pandemic. It is concluded that there is a need to strengthen the School Health Program as a public policy with the purpose of implementing articulated actions between health and education so that they can actually improve schoolchildren’s quality of life and act on their social determinants.

KEYWORDS
Health promotion; Intersectoral collaboration; Child health; Primary Health Care; School health services

Introdução

O movimento moderno de promoção da saúde vem se desenvolvendo de forma mais vigorosa nos últimos 30 anos, a partir da divulgação da Carta de Ottawa, a qual norteou a elaboração e a implementação de políticas públicas em diversos países, entre eles, o Brasil1. A adoção da promoção da saúde como elemento redirecionador das políticas do Sistema Único de Saúde (SUS) culminou com a Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS). A PNPS reafirma a relevância do setor saúde, trazendo como objetivo a promoção da qualidade de vida e a redução de vulnerabilidade e riscos à saúde relacionados com os seus determinantes e condicionantes - modos de viver, condições de trabalho, habitação, ambiente, educação, lazer, cultura, acesso a bens e serviços essenciais2.

Com a PNPS, impôs-se a necessidade de sistematizar propostas intersetoriais com vistas à superação da fragmentação dos conhecimentos e das estruturas sociais, a fim de produzir efeitos mais significativos na saúde dos indivíduos e das comunidades. Entende-se por intersetorialidade

a articulação de saberes, potencialidades e experiências de sujeitos, grupos e setores na construção de intervenções compartilhadas, estabelecendo vínculos, corresponsabilidade e cogestão para objetivos comuns3.

Esta representa um grande desafio na articulação e no planejamento do processo de trabalho, pois requer respeitar a visão do outro e sua contribuição para a construção de decisões no enfrentamento dos problemas e das situações levantados, sendo uma ação-chave no trabalho em equipe na Estratégia Saúde da Família (ESF)4.

Desse modo, a busca por práticas integradas e com abordagens intersetoriais tem sido a estratégia adotada por políticas públicas para o desenvolvimento de ações de promoção à saúde de escolares, considerando que os hábitos, as atitudes e as crenças formados durante a infância têm grandes chances de serem perpetuados até a vida adulta5, 6. Na tentativa de contingenciar as vulnerabilidades às quais o público infantil está exposto, iniciativas direcionadas ao contexto escolar ganharam destaque, especialmente pela educação ser considerada um dos principais determinantes para a saúde, que contribui para o empoderamento dos sujeitos, promovendo seu desenvolvimento pessoal e social e, consequentemente, como um instrumento de transformação social7.

Nesse sentido, orientada pelo referencial teórico contemporâneo da promoção da saúde e em consonância com as ações propostas na PNPS, que estimula a articulação entre os diferentes setores, os Ministérios da Saúde e da Educação elaboraram e aprovaram a regulamentação do Programa Saúde na Escola (PSE), representando um marco no processo de apropriação do espaço escolar como campo de saúde8. Essa política intersetorial, fundamentada nos princípios da integralidade, da territorialidade e da intersetorialidade, visa trabalhar com ações de prevenção de doenças, promoção e recuperação da saúde para colaborar para a formação integral dos escolares, materializando-se na parceria escolas públicas e Unidades Básicas de Saúde (UBS)6.

O PSE encontra-se em permanente movimento de ampliação, com um panorama cada vez mais expandido no território brasileiro, sendo o principal programa voltado para atenção à saúde dos estudantes das escolas públicas, dado o seu caráter inovador de ação intersetorial8. Cerca de 99,7% dos estudantes brasileiros da educação básica, na faixa etária de 6 a 14 anos, frequentam escolas no País, sendo perceptíveis a importância e o alcance potencial do PSE, visto que a aproximação e a atuação conjunta dos setores saúde e educação, com a participação de estudantes e familiares, possibilitam ações concretas na abordagem das vulnerabilidades e condicionantes sociais do processo saúde-doença9 10 11.

No entanto, em virtude do caráter inovador da proposta de ação intersetorial, a sua efetiva operacionalização ainda é um desafio aos gestores. Conduzir a informação, articular os setores e atores envolvidos, sobrepujar a medicalização da educação, inclusive nas normativas, encadear ações permanentes e integrais com seu monitoramento continuam como adversidades a serem superadas no cotidiano do PSE6. Nesse sentido, a realização de estudos sobre o PSE é importante, pois estes permitem estimar o rumo das estratégias adotadas para favorecer a ação intersetorial nos territórios e o alcance da sua utilização para promover a saúde das crianças e suas famílias, em prol da redução das iniquidades sociais.

Diante desse contexto, despontou a seguinte questão de pesquisa: ‘Quais as potencialidades e os limites da articulação intersetorial do Programa Saúde na Escola para a promoção da saúde infantil?’. A partir de então, o objetivo do estudo foi compreender as potencialidades e os limites da articulação intersetorial do PSE para a promoção da saúde infantil, sob a ótica dos profissionais da atenção primária.

Metodologia

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho descritivo - exploratório, fundamentada nos pressupostos teóricos da promoção da saúde3, 12. Foi desenvolvida na Região da Grande Florianópolis, em Santa Catarina, Brasil, envolvendo quatro municípios com o maior contingente populacional: Florianópolis, São José, Palhoça e Biguaçu, os quais possuem adesão ao PSE.

Participaram do estudo 20 profissionais da saúde, sendo que a seleção ocorreu por conveniência, em virtude do envolvimento com a saúde do escolar, indicados pelos coordenadores de cada UBS. Todos os profissionais convidados aceitaram participar do estudo, não havendo recusas. Consideraram-se como critérios de inclusão: ser profissional da saúde e atuar na prática assistencial e/ou gerencial com as crianças escolares de 6 a 10 anos de idade, em instituição pública, independentemente do tipo de vínculo empregatício, com experiência prévia de atuação no PSE. Optou-se por incluir no estudo várias classes profissionais envolvidas nas ações do PSE da Região da Grande Florianópolis, de nível médio e superior, com vistas a dar voz a esses trabalhadores, de diferentes municípios e realidades. Como critérios de exclusão, adotaram-se: profissionais com lotação inferior a um ano ou que estivessem afastados por férias ou licença de qualquer natureza no período da coleta de dados.

A coleta dos dados foi conduzida por uma das autoras, enfermeira, doutoranda, com experiência nesse tipo de abordagem. Ocorreu no período de novembro de 2020 a março de 2021, por meio de entrevistas individuais. Utilizouse um roteiro contendo questões semiestruturadas, as quais envolveram temáticas sobre as potencialidades e os limites da articulação intersetorial do PSE e dados sociodemográficos dos participantes. Em virtude das restrições impostas pela pandemia da Covid-19, foram oferecidas duas modalidades para a realização das entrevistas, presencial ou virtual, escolhidas a critério dos participantes.

Para o registro das informações, utilizou-se a gravação de áudio nas entrevistas presenciais, por um aplicativo disponível no smart-phone; e nos encontros virtuais, por meio do recurso audiovisual disponível na plataforma do Google Meet®. Posteriormente, as informações foram transcritas de forma fiel à fala dos participantes, organizadas com auxílio de um editor de texto do programa Google Drive® e armazenadas em pastas digitais com acesso limitado às pesquisadoras.

Na sequência, procedeu-se à análise de conteúdo das entrevistas, que compreendeu três etapas: 1) Pré-análise; 2) Exploração do material; 3) Tratamento dos resultados obtidos, inferência e interpretação13. Após a transcrição das entrevistas, realizou-se leitura repetida e exaustiva, permitindo assim a ordenação do conjunto dos dados obtidos. Iniciou-se, dessa forma, uma primeira classificação para apreender as estruturas relevantes, possibilitando o desvelamento das categorias empíricas, interpretadas com base no referencial da promoção da saúde e de literatura atual relacionada com o tema.

O estudo seguiu as normas e as diretrizes previstas nas Resoluções n° 466/2012 e n° 510/2016. A investigação teve início somente após a aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos de uma Universidade pública de Santa Catarina, protocolada sob o n° 39239820.2.0000.0121, na data de 9 de fevereiro de 2021. O aceite de participação no estudo foi formalizado pelos profissionais com a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, sendo assegurado o anonimato mediante a substituição dos nomes pelas iniciais das palavras ‘Profissionais da Saúde’, com um numeral arábico, por exemplo: PS1, PS2, e assim sucessivamente.

Resultados

Os 20 participantes do estudo eram profissionais da saúde, atuantes na atenção primária, assim especificados por município: 4 de Biguaçu, 5 de São José, 5 de Palhoça e 5 de Florianópolis. A tabela 1 caracteriza o perfil dos participantes.

Tabela 1
Caracterização dos participantes do estudo Florianópolis, SC, Brasil, 2021

A partir da análise de conteúdo, emergiram duas categorias temáticas: 1) Potencialidades da articulação intersetorial do PSE; 2) Limites da articulação intersetorial do PSE, as quais serão apresentadas a seguir.

Como potencialidades, os profissionais evidenciaram o estreitamento das relações entre as equipes de saúde e comunidade escolar, o que beneficiou o programa, melhorando o processo de comunicação entre os setores e favorecendo o alcance de crianças e famílias que, muitas vezes, não eram assistidas pela UBS.

Eu acho uma potência gigantesca essa interação, todos os trabalhos que eu fiz com as equipes no território com as escolas foi sempre muito rica. Então a gente tem inclusive grupo de WhatsApp do PSE que a gente fica ali de suporte, a ideia não é ali ficar atendendo urgência, mas que a gente se comunique, que a gente possa conversar nas situações que precisam. Porque a ideia é realmente a gente dialogar e, entendendo que as situações são complexas, precisam de mais pessoas atuando e mais políticas trabalhando junto sabe, senão a gente não dá conta. (PS9).

A articulação entre esses setores também potencializou o acompanhamento das condições de saúde dos escolares, com avaliação antropométrica, de saúde bucal e verificação da situação vacinai:

Então com as crianças até a 5- série, mais ou menos uma vez por semestre, a gente faz essa avaliação de triagem de peso, altura, caderneta de vacinação. (PS11).

A gente verificava a caderneta de vacinação, questão da escovação dos dentinhos das crianças, fazíamos medição de peso, estatura das crianças. Também foi feito um estudo do IMC, então do peso e estatura dessas crianças, se tava abaixo, se tava acima. (PS16).

Muitas das avaliações são realizadas pelos profissionais de ambas as áreas, mediante capacitação, como exame de acuidade visual, e outras são de competência técnica exclusiva da saúde, como os procedimentos odontológicos. Assim, ao identificarem possíveis agravos, os participantes referiram a continuidade do acompanhamento do escolar na rede de saúde quando necessário, por intermédio de marcação de atendimento na UBS.

Ano passado a gente teve algumas ações em relação à obesidade, crianças que foram avaliadas pelo PSE. E aí, conforme a percepção, as crianças que estavam acima do peso e tal, essas crianças foram remetidas para a unidade de saúde para acompanhamento, foram pedidos exames, depois elas vinham para gente avaliar (PS17).

Outro fator considerado como potencialidade foi a ampliação do acesso à informação em saúde. Dessa forma, evidenciaram que realizam ações de promoção da saúde e prevenção de agravos, com orientações, visando ao autocuidado dos escolares:

Dentro de cada ano escolar, de uma forma pela idade, a gente foi vendo o que seria mais viável, o tema a ser trabalhado. O primeiro ano recebia escovação e orientação de saúde bucal, segundo ano era higiene e falar sobre verminose, que é doença de exclusão, terceiro ano a gente falava sobre alimentação saudável e atividade física, quarto ano dengue, quinto ano era acidentes e violências. (PS19).

Somado a isso, com vistas a transcender a realização de ações pontuais da equipe de saúde na escola e o foco meramente na doença, mencionaram que buscam atrelar ao currículo escolar os temas do PSE para que sejam trabalhados pelos professores no cotidiano nas atividades pedagógicas:

A educação abraçou muito isso, por conta dos currículos, a gente sempre estimulou pra que as ações de educação em saúde fossem incluídas nos projetos políticos pedagógicos das escolas, em ações trans-disciplinares. Então, que alguns assuntos fossem trabalhados na aula de educação física, na aula de ciências, em outras aulas também, porque não necessariamente o profissional de saúde é que tem que ir lá trabalhar com questões relacionadas à saúde. Um professor bem orientado, bem treinado, bem capacitado, ele consegue trabalhar isso no dia a dia de sala de aula, que vai fazer muito mais diferença na vida daquela criança do que o profissional ir lá, uma vez ou outra no ano, fazer uma palestra e ir embora. (PS5).

Também destacaram as atividades de educação permanente realizadas com os professores, em que buscam abordar prioritariamente as temáticas relativas ao PSE, conforme a realidade e a necessidade de cada instituição.

A ideia é de estar fazendo a capacitação dos professores, para poder capacitar eles e os deixando mais confortáveis para falar sobre higiene, dengue, fazer capacitações sobre cada tema com os professores específicos, da educação física para fazer a antropometria, explicar qual a importância de uma alimentação saudável [...] porque eles já fazem muito esse trabalho dentro da escola, e às vezes, o que precisam é de um apoio, de uma capacitação. (PS19).

A diretora precisou outro dia que eu trabalhasse com alguns professores sobre cuidados com crianças que foram violentadas em casa, como eles iriam trabalhar com essas crianças, como que eles iriam abordar essas crianças, então eu levei uma psicóloga comigo, foi bem legal. (PS18).

De forma ainda incipiente, abordaram que buscam aproximar as famílias em algumas ações desenvolvidas, com vistas a orientá-las e a esclarecer as dúvidas dos pais nos temas que envolvem os cuidados com a saúde e a educação das crianças:

Fui convidada algumas vezes para fazer, que era uma parceria da saúde e da educação pelo PSE, que era escola em família. Então os profissionais se disponibilizavam e iam à noite nas escolas pra fazer conversas com os pais, a gente tinha um cronograma. Assim, por exemplo, eu falava sobre o estabelecimento de limites, a gente já falou sobre a questão de violência, então várias temáticas, conforme também eles levantavam em determinadas escolas. (PS20).

Como grande potencializador dessa articulação, os profissionais citaram as parcerias estabelecidas, seja da equipe multiprofissional do Núcleo Ampliado de Saúde da Família (Nasf), seja de outros setores, principalmente os vinculados à Assistência Social, como o Centro de Referência de Assistência Social (Cras).

Uma vez por mês a gente tinha no centro de saúde a reunião do Programa Saúde na Escola junto com as equipes de saúde, representantes de cada equipe, que eu participava, junto com outros profissionais Nasf, junto com o Cras, com representantes das escolas, sempre tinha a presença, ou da coordenadora, ou da orientadora educacional, ou alguma professora. (PS6).

A gente tentava fazer essa avaliação um pouco mais multi, trabalharem conjunto, integrado com as escolas, assistência social, conselho tutelar, quando necessário, fazia discussão de caso, cada equipe com suas situações. (PS8).

Na segunda categoria, em que os profissionais abordaram sobre os limites da articulação intersetorial do PSE, evidenciou-se que enfrentam cotidianamente limites para a implantação e desenvolvimento do PSE nos municípios estudados. Em alguns locais, os processos de pactuação são recentes, e a cobertura das escolas públicas é parcial, sendo priorizadas as que são vinculadas à rede da prefeitura.

A gente só fez a adesão em 2017, pactuou em torno de 11 escolas, sendo metade centro de educação infantil [creches] e metade centro educacional municipal [escolas] só municipais. Até hoje nunca trabalhamos com estadual, até pelo número enorme que tem e por estarmos começando. (PS19).

No último biênio, de 2019 a 2020, nós tivemos a contratualização mais ampliada no PSE, para todos os bairros do município, incluindo desde escola de ensino básico e em algumas estaduais de ensino médio. (PS12).

Além disso, os profissionais mencionam o desconhecimento sobre o programa ou visões reducionistas sobre ele por parte dos profissionais da educação, com pouca participação no planejamento, execução e discussão das atividades desenvolvidas, geralmente centrada na direção da escola.

A gente teve dificuldade de acesso na escola da nossa área. A gestora lá acreditava que a nossa entrada atrapalhava um pouco a questão da organização deles. Mas, depois ela compreendeu o objetivo e a gente conseguiu fazer várias atividades. (PS13).

No entanto, o maior entrave sinalizado foi a demanda excessiva de atividades designadas à equipe de saúde da Atenção Primária à Saúde (APS), que, muitas vezes, não consegue priorizar as ações no contexto escolar.

Acho que a gente não tem conseguido trabalhar [o PSE], mas não necessariamente pela escola, mas talvez por uma limitação nossa. Na atenção primária a gente tem muitas demandas de atendimento e cada vez vem mais coisas pra equipe desenvolver. A gente não tava conseguindo dar conta de todas as coisas assim, de grupos, de atendimentos, de vigilância e ações de território. (PS6).

Além disso, atrelaram que a falta de recursos humanos na saúde contribui para agravar essa situação, sobretudo quando relacionados com as equipes multiprofissionais do Nasf, que dão suporte às equipes básicas em muitas ações:

Atualmente eu sou, desde que eu entrei, a única assistente social de todas as unidades de saúde, então a demanda é assim, bem grande, [...] imagina, uma profissional para um município que a gente considera bastante vulnerável. (PS1).

Hoje nós somos quatro psicólogos para toda a atenção básica, então isso é enxugar gelo, assim, é uma demanda gigante, isso que eu ainda divido minha carga horária [...] a gente circula entre as unidades. (PS20).

Outro fator limitador foi a pandemia da Covid-19. Houve uma redução significativa no número de profissionais atuantes presencialmente nas UBS, pois alguns mantiveram-se em teletrabalho por pertencerem ao grupo de risco. Somado a isso, sobrecarregou ainda mais as equipes de saúde que se voltaram para o atendimento dessa demanda, o que interferiu negativamente na execução das atividades do PSE.

Agora na fase da pandemia, a gente não tá indo, não tá mais realizando atividade educativa, tá tudo parado por toda essa questão que a gente tá vivenciando. O nosso foco agora é dentro da unidade, a gente continua com os atendimentos da criança, mas essa parte de educação [em saúde], essa parte da escola, a gente precisou dar uma parada. (PS16).

A gente tinha um planejamento junto com a equipe de saúde e educação, só que infelizmente veio a pandemia e a gente não conseguiu pôr em prática. Mas a gente pretende seguir com esse mesmo planejamento quando melhorar essa situação (PS1).

Ademais, cabe destacar que, em virtude da emergência pandémica, foi incorporada como ação prioritária a prevenção ao novo Coronavirus. Diante desse cenário, apontaram que houve impacto na oferta das atividades presenciais, o que demandou a adoção de novas estratégias nas modalidades remotas ou híbridas para desenvolver ações neste período:

Nós gravamos um teatro de fantoche que falava das orientações do Covid, formas de transmissão e cuidados de higiene. Esse vídeo foi encaminhado para os diretores das escolas para que eles passassem aos professores e estes multiplicassem para os alunos. (PS4).

A gente tá começando a construir materiais educativos para colocar nos portais educacionais, então, nas plataformas que as secretarias de educação estão usando, seja o Google Classroom, ou o Portal Educacional próprio da Secretaria Municipal de Educação. São materiais educativos para as crianças fazer, desenhar, pintar, vídeos, folhetos, para que isso seja incluído ali dentro dos portais educacionais ou das plataformas que as escolas usam para que as crianças tenham acesso aos conteúdos de saúde. (PS5).

No estudo, identificaram-se mecanismos potencialmente integradores entre a saúde e a educação para promover melhoria nas condições de vida dos escolares. No entanto, há limitações que interferem no processo de implantação e de desenvolvimento das ações do PSE, as quais dificultam a adoção de uma lógica de atuação intersetorial.

Discussão

A escola, como instituição, define-se por sua função de ensino, cujo objetivo é realizar a formação humana, tendo como ponto de partida o reconhecimento das necessidades das pessoas. Espaço de saber que saúde emerge como tema recorrente de aprendizagem, abrigando amplas possibilidades, tais como: ações de diagnóstico clínico e/ou social; estratégias de triagem e/ou encaminhamento aos serviços de saúde especializados ou de atenção básica; atividades de educação e promoção da saúde, que, com a participação da família e o apoio das políticas públicas, deve ser o primeiro contato das crianças sobre o entendimento de saúde14,15.

A inclusão da saúde na escola traz benefícios para a qualidade de vida dos educandos e, consequentemente, melhora o acesso dessa população aos serviços de saúde, o que interfere positivamente na educação. Essa relevância é confirmada em um estudo que destaca a escola como um ambiente de importantes interações sociais entre professores, alunos, familiares e profissionais de saúde. É um espaço do qual emergem diversas demandas e necessidades que podem ser problematizadas em seu contexto mais amplo16, revelando-se como uma importante potencialidade para a efetivação e a articulação intersetorial do PSE.

O espaço escolar não deve ser utilizado para consultas médicas, com o intuito da medicali-zação ou de diagnóstico clínico-psíquico dos fracassos do processo ensino-aprendizagem, mas para detecção de sinais e sintomas de agravos em saúde, por sua objetividade e ganho de escala em ambiente coletivo17. Nesse sentido, torna-se necessário superar a lógica do modelo higienista e preventivista que perdurou na trajetória da educação em saúde, com componentes normativos e conteúdos predefinidos sobre o que deveria ser feito e discutido em saúde nas escolas, com ênfase na mudança de comportamento ou de fatores de risco, em uma perspectiva individual6,15.

Para ampliar o acesso à informação em saúde, mediante propostas que estimulem a capacidade crítica e a autonomia das pessoas, encontra-se na promoção da saúde um contraponto a esse modelo18. Esta é entendida como um conjunto de estratégias promissoras de enfrentamento dos múltiplos problemas de saúde que afetam os indivíduos e as comunidades, com vistas a diminuir as diferenças nas condições de vida da população por meio de um desenvolvimento social mais equitativo19. Partindo de uma concepção ampla do processo saúde-doença e de seus determinantes, essa estratégia propõe a articulação de saberes técnicos e populares, com mobilização de recursos institucionais e comunitários, públicos e privados, a favor da qualidade de vida1.

Nesse sentido, reforça-se a importância do PSE, o qual necessita considerar a dimensão escolar e social, bem como o diagnóstico de saúde local do estudante. O programa deve tratar a saúde e a educação integrais como parte de uma formação ampla para a cidadania; permitir a progressiva ampliação das ações executadas pelos sistemas de saúde e educação, em busca da atenção integral de crianças; e promover a articulação de saberes, a participação de estudantes, pais, comunidade escolar e sociedade em geral na construção e controle social da política pública17.

Um estudo com representatividade em todo o Brasil avaliou os dados da Pesquisa Nacional de Saúde do Escolar (PeNSE), no ano de 2012, sendo que os resultados apontaram fragilidade das ações políticas para a promoção de saúde do escolar. Identificaram-se significativas desigualdades regionais, entre as quais: as regiões Sul e Sudeste tendem a ter melhores escores e maior proporção de alunos em escolas que contemplam os indicadores de promoção de saúde avaliados20.

A promoção da saúde, portanto, enquanto relevante paradigma na saúde, deve nortear não somente a prática, mas também o ensino dos profissionais, visto que seu ensino se assenta em uma abordagem transdisciplinar, integrativa, que envolve diversas áreas do saber, oportunizando a integração de conhecimentos relevantes à sua prática. Para isso, requer-se uma formação profissional alinhada à construção de capacidades que facilitem a efetivação dos princípios teórico-metodológicos desta, englobando a concepção holística de cuidado, a intersetorialidade, o empoderamento comunitário e a participação social, a busca pela equidade e a atuação sobre os determinantes sociais da saúde21.

Destaca-se ainda, na atuação entre os setores da educação e da saúde, que os profissionais podem e devem buscar a formação de parcerias para resolver as dificuldades vivenciadas cotidianamente, a fim de tornar as ações mais efetivas18. Estas são vistas como uma potencial ferramenta para atuação do PSE, eficiente e viável, capaz de melhorar e/ou resolver diversos problemas por meio da união de esforços de setores e parceiros que, em colaboração com várias áreas do conhecimento, podem aumentar o impacto e a sustentabilidade de qualquer ação desenvolvida22. Nessa perspectiva, todos os profissionais envolvidos no PSE compartilham saberes individuais e coletivos para formar cidadãos críticos e informados, com habilidades para agir em defesa da vida e de sua qualidade17, sendo uma importante potencialidade na articulação intersetorial desse programa para a promoção da saúde infantil.

O desenho do PSE propõe a organização e a oferta de serviços em uma determinada área geográfica para que a articulação ocorra entre as equipes de Saúde da Família (eSF) e as escolas do território adstrito17. Embora a implantação da ESF no Brasil tenha experimentado expressiva expansão de cobertura na última década, com ritmos diferentes entre as regiões e porte populacional dos municípios, existem importantes diferenças na cobertura, no acesso e na oferta de cuidados nas UBS, em parte em função de mecanismos de gestão e das desigualdades sociais do País, com repercussões relevantes no acesso e uso dos serviços de saúde, como a adesão e a implantação do PSE23. Além do mais, a complexidade do modelo intersetorial e multidisciplinar para construir uma escola promotora de saúde dificulta o desenvolvimento do programa no contexto dos municípios6, desvelando-se como fator limitante para a efetivação e articulação intersetorial do PSE.

Ainda que se tenha aproximado o diálogo entre os setores saúde e educação, a relação entre os serviços apresenta fragilidades relacionadas com o envolvimento para formulação, implantação, acompanhamento ou avaliação conjunta das ações no cenário da escola, ratificado pela fala dos profissionais. Um estudo que investigou as práticas vinculadas ao PSE em um município da Bahia verificou que o planejamento, as atividades e as avaliações, mesmo informais, são protagonizados pelo setor saúde, gerando desigualdade no comprometimento, nas responsabilidades e nas decisões tomadas, sendo a participação do setor educação tida como periférica, o que certamente restringe a potencialidade do programa10.

O desconhecimento sobre o PSE, seus objetivos e a forma de atuação do outro setor, assim como problemas de comunicação entre os profissionais e entre os setores e os diferentes níveis de gestão, são fatores que limitam a ação intersetorial. Há outras limitações, tais como: incompatibilidades de agendas; excesso de atividades e número reduzido de profissionais; cumprimento de prazos e metas; planejamento centralizado; divergências e desrespeito entre os setores e dificuldade na adoção de novas posturas11. Esses fatores contradizem o paradigma promocional da saúde, que expõe a necessidade de que o processo de produção do conhecimento e das políticas públicas ocorra por meio de construção e gestão compartilhadas16.

Ressalta-se que a gestão é considerada pelas equipes de saúde um elo entre os demais setores, no entanto, lida com escassos recursos para desempenhar esse trabalho. Nesse sentido, torna-se premente proporcionar meios adequados às equipes e à gestão para executarem suas ações, com influência direta sobre a produção e a qualidade do trabalho em saúde. Dificuldades burocráticas também acontecem, como a ausência ou desconhecimento de como estimular financiamento de ações intersetoriais para concretizá-las4, sendo estes outros fatores que podem limitar as ações do PSE.

Vale lembrar que o evento inesperado da pandemia da Covid-19 agravou a sobrecarga dos profissionais, que precisaram readequar as atividades para atender a essa demanda e à necessidade de manutenção do distanciamento social e prevenção do risco de contágio. Um estudo realizado para verificar a atuação do enfermeiro da APS nas ações de cuidado de rotina à saúde da criança durante a conjuntura pandêmica evidenciou que determinadas ações deixaram de ser realizadas, havendo suspensão de atendimentos de rotina para priorização de casos, acolhimento e consulta somente para queixas agudas24, o que também foi mencionado pelos participantes como um fator limitante para a articulação intersetorial do PSE em prol da promoção da saúde infantil. Assim, com vistas a dar continuidade às ações e com a inclusão da temática relacionada com o coronavírus no PSE, um estudo apontou que a adoção de estratégias utilizando o ensino

remoto possibilitaram, de certa forma, a continuidade na integração com as atividades desenvolvidas pelo programa, conforme também verificado neste estudo25.

Ante o exposto, verifica-se que as ações práticas entre saúde e educação carecem de muitos debates, aproximação teórica e outras formas de parcerias para que, juntas, possam substituir o pensamento linear e unidirecional por conhecimentos circulares e multirreferenciais22. No entanto, embora apresente algumas limitações estruturais e gerenciais, evidencia-se o PSE como ferramenta capaz de propiciar melhorias na qualidade de vida dos escolares, com potencialidades que podem repercutir positivamente nas famílias e comunidades16.

Dessa forma, há necessidade de fortalecimento dessa política pública mediante a incorporação da articulação intersetorial na rotina de gestores e profissionais para que, paulatinamente, adquiram habilidades no desenvolvimento de ações de promoção da saúde realmente impactantes, almejando melhoria das condições de saúde da população4. Como limitação deste estudo, aponta-se a dificuldade de conciliar horário para a realização das entrevistas com os profissionais participantes, que, diante das demandas, sobretudo no en-frentamento da pandemia, estavam em uma rotina intensa de trabalho.

Considerações finais

Ao desvelar a percepção dos profissionais acerca da articulação intersetorial do PSE como uma das possibilidades para promover a saúde infantil, identificaram-se potencialidades, tais como: criação de vínculos entre as equipes de saúde e a comunidade escolar; acompanhamento das condições de saúde dos escolares; ampliação do acesso à informação em saúde; maior aproximação das famílias às ações desenvolvidas; e parceria com outros setores.

No entanto, para os participantes deste estudo, existem limites que necessitam ser superados para que ocorram transformações na realidade, quais sejam: a pactuação dos municípios estudados ainda é recente e com cobertura parcial; o desconhecimento do programa pelos educadores, em uma visão reducionista e com escassa participação no planejamento das atividades; falta de recursos; a intensa demanda dos profissionais atuantes na APS, sobretudo no período pandêmico, o que dificultou o desenvolvimento das ações do PSE no âmbito escolar. Portanto, há necessidade de fortalecimento do PSE enquanto política pública, para a efetivação de ações articuladas entre os setores e o alcance de novas parcerias, para que se possa, de fato, promover a saúde dos escolares e atuar sobre seus determinantes sociais, com repercussões benéficas a toda a comunidade.

O presente estudo não pretendeu esgotar o debate sobre o assunto. Sendo assim, torna-se pertinente e necessário o investimento em novas pesquisas, a fim de aprofundar a compreensão sobre o trabalho intersetorial. Ademais, considera-se relevante o desenvolvimento de pesquisas futuras abarcando outros atores envolvidos no contexto, como família, educandos, equipes de educação e demais parceiros, no intuito de compreender a visão destes acerca do PSE como uma política de promoção da saúde.

  • Suporte financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) - Processo nº MCTI/CNPQ/B426445/2018

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
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