RESUMO
A população LGBTQIA+ tem demandas de saúde específicas, implicando ações diferenciadas. A Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT) reafirma o compromisso do Sistema Único de Saúde com a universalidade, a integralidade e a equidade. Objetivou-se avaliar o acesso ao acolhimento à população LGBTQIA+ por parte dos profissionais de saúde de um Centro Municipal de Saúde na cidade do Rio de Janeiro. Foi realizado um estudo descritivo, de forma participativa, empregando o método qualitativo. Para tanto, 60 profissionais participaram de rodas de conversa presenciais e responderam a um questionário on-line. A maioria (85%) dos participantes considera a população LGBTQIA+ vulnerável. Apesar de a maior parte não relatar dificuldades no acolhimento dessa população, mais da metade considera que não há treinamento e/ou capacitação apropriados. Foi identificado pelos profissionais que as maiores barreiras de acesso não foram as geográficas, e sim as dos próprios profissionais e usuários, indicando a fragilidade do vínculo. Para a melhoria do acesso ao acolhimento, processos de treinamento/capacitação dos trabalhadores são necessários. A discussão sobre o processo de saúde e doença da população LGBTQIA+ também requer a compreensão dos conceitos de orientação sexual e identidade de gênero, de modo que facilite as ações de aceitabilidade e acessibilidade por parte dos profissionais de saúde.
PALAVRAS-CHAVES
LGBTQIA+; Acesso; Acolhimento; Atenção Primária à Saúde; Avaliação em saúde
ABSTRACT
The LGBTQIA+ population has different health demands, implying different actions. The National Policy for Comprehensive Health of Lesbians, Gays, Bisexuals, Transvestites and Transgender ((PNSI-LGBT) reaffirms SUS commitment to universality, integrality and equity. The objective of this research was to evaluate the access to reception for the LGBTQIA+ population, by health professionals from a Municipal Health Center. A descriptive study with a qualitative method was carried out, in a participatory manner. To this end, 60 subjects participated in the research through face-to-face conversation circles and through online questionnaires. The majority (85%) of the participants consider the LGBTQIA+ population to be vulnerable. Although most do not report difficulties in welcoming this population, more than half consider that they do not have appropriate training. It was identified by the subjects that the greatest barriers to accessibility were not the geographic ones, but the professionals and users themselves, indicating the fragility of the bond. In order to improve access to reception, training processes are necessary for workers. The discussion about the health and disease process of the LGBTQIA+ population also requires an understanding of the concepts of sexual orientation and gender identity, in order to facilitate actions of acceptability and accessibility by health professionals.
KEYWORDS
LGBTQIA+; Access; Reception; Primary Health Care; Health assessment
Introdução
A população LGBTQIA+, que inclui lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis, queers, intersexos, assexuais e mais, tem demandas de saúde diferenciadas. Isso sinaliza a necessidade de novos modelos de acolhimento para essa população, especialmente, na porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente realizada na Atenção Primária à Saúde (APS). No Brasil, a população LGBTQIA+ está entre as minorias sociais marginalizadas com menor acesso aos serviços de saúde, não recebendo, assim, a devida assistência em face dos julgamentos e juízos de valor de profissionais dos serviços de saúde, cuja discriminação existe tanto em diversos espaços da sociedade como nos lugares de produção do cuidado11 Santos AR, Santos RM, Souza ML, et al. Implicações bioéticas no atendimento de saúde ao público LGBTT. Rev. Bioét. 2015; 23(2):400-408.. Essa população permaneceu, por muito tempo, desamparada, além de ser alvo de um processo complexo de violação da autonomia, da dignidade e do direito à saúde. Ressalta-se que, em uma sociedade preconceituosa, a orientação sexual não heteronormativa e a não adequação de gênero com o sexo biológico instauram violações dos direitos humanos básicos e frequentemente proporcionam uma situação de vulnerabilidade a essas pessoas11 Santos AR, Santos RM, Souza ML, et al. Implicações bioéticas no atendimento de saúde ao público LGBTT. Rev. Bioét. 2015; 23(2):400-408..
A violação dos direitos acontece muitas vezes por questões de deslegitimação das diversas orientações sexuais e identidades de gênero – também pela rejeição dos pais e da rejeição social decorrente da não aceitação. É importante ressaltar que, quando se trata de adolescentes, isso favorece os contextos de solidão, violências, trabalho sexual e morte. Além disso, promove antecipação da possibilidade de discriminação das pessoas LGBTQIA+, o que resulta em menor procura dos serviços, pois já entendem que serão discriminadas, assim como dificuldade por parte dos profissionais de saúde na compreensão das especificidades da população LGBTQIA+ e suas demandas, podendo resultar na promoção de uma assistência precária e tratamento ofensivo. Muitos são os pontos de violação dos direitos humanos11 Santos AR, Santos RM, Souza ML, et al. Implicações bioéticas no atendimento de saúde ao público LGBTT. Rev. Bioét. 2015; 23(2):400-408.. Segundo Schadec e Zeifert22 Schadeck R, Zeifert AP. A violação dos direitos humanos em razão da orientação sexual. In: Anais do 22. Seminário de Iniciação Científica; 2014; Ijuí. Santa Rosa, Panambi, Três Passos: Unijuí; 2014., as maiores dificuldades apresentadas por essa minoria estão basicamente ligadas ao preconceito e à violação de direitos humanos. Ainda assim, vários são os movimentos de repúdio à homofobia no mundo, incluindo a Organização das Nações Unidas (ONU), que vem desempenhando grandes esforços para combater esses problemas.
No Brasil, o SUS deve garantir que todos sejam tratados com equidade, e por mais que exista a lei que dá garantias a estas pessoas, vive-se em uma sociedade cis-heteronormativa, na qual é estabelecido um padrão para todos os indivíduos. Dessa forma, aqueles que não se encontram em conformidade com esse padrão normativo estariam à margem da sociedade. Nessa perspectiva, o sexo também é uma categoria sociocultural, pois é construído ao lado de gênero, que é uma categoria formada a partir de práticas, discursos e vivências individuais na sociedade. Butler33 Butler J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 11. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2016. 288 p. busca lançar a questão da hetero/bi/homossexualidade em novas linhas de reflexão; faz críticas sobre algumas pressuposições ontológicas e epistemológicas há muito tempo radicadas nas ciências humanas, como: o que é ser/estar mulher, o que é ser/estar homem? Essas questões fazem ampliar a percepção da multiplicidade de sexualidades e de ‘gêneros’, por consequência, de demandas diferenciadas.
Em 2011, no intuito de promover saúde integral, equidade e minimização do preconceito, foi sancionada a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (PNSI-LGBT), com o propósito de atender às demandas específicas e reparar a desassistência no âmbito da saúde desse grupo, incluindo ações para visibilidade LGBTQIA+44 Cardoso MR, Ferro LF. Health and LGBT community: needs and specificities under discussion. Psicol. Ciênc. Prof. 2012; 32(3):552-563.. A PNSI-LGBT foi um momento decisivo para as políticas públicas de saúde no Brasil, pois norteou e legitimou as necessidades e especificidades, em conformidade com os postulados de equidade previstos na Constituição Federal e na Carta dos Usuários do SUS. Contou com o fortalecimento da participação de representações da população LGBTQIA+ nos conselhos e conferências de saúde; a garantia do uso do nome social de travestis e transexuais; a implementação de ações educativas nas rotinas dos serviços de saúde voltadas à promoção da autoestima; o monitoramento e a avaliação dos indicadores de saúde e de serviços para a população LGBTQIA+, incluindo os recortes étnico-racial e territorial; o oferecimento de atenção e cuidado à saúde de adolescentes e idosos que fazem parte da população LGBTIA+; a qualificação das redes de serviços do SUS para atenção e cuidado integral; a realização de estudos e pesquisas relacionados ao desenvolvimento de serviços e tecnologias voltados às necessidades de saúde da população.
Essa legislação é um marco histórico de reconhecimento das demandas dessa população em condição de vulnerabilidade. As equipes de saúde atuando na APS devem estar abertas para perceber as demandas e as peculiaridades de cada situação que se apresenta, buscando agenciar os tipos de recursos que ajudem a aliviar o sofrimento, melhorar e prolongar a vida, evitar ou reduzir danos, melhorar as condições de vida, favorecer a criação de vínculos positivos, diminuir o isolamento e o abandono, aumentando o vínculo e o acesso. Em relação à demanda dos cuidados de saúde para o grupo LGBTQIA+, notoriamente, enfatiza-se a saúde sexual, deixando de atender a outras questões essenciais para essa população, que também é afetada por distintos problemas de saúde55 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Acolhimento à demanda espontânea. Brasília, DF: Ministério da Saúde; 2013. (Cadernos de Atenção Básica; n. 28, v. 1)..
Alguns estudos têm demonstrado a importância do processo patologizante operado pela racionalidade biomédica, justamente por um imaginário que ainda relaciona a homossexualidade como condição que por si só predispõe a doenças e pela associação frequente da saúde da população LGBTQIA+ com Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e aids. A epidemia de aids havia provocado novos estigmas a essa população pela associação aids-homossexualidade, com a abordagem da saúde das pessoas homossexuais apenas relacionada com a sua sexualidade, negligenciando-se outras causas de adoecimento dessas pessoas. Esse processo contribuiu para o desenvolvimento de ações afirmativas e políticas específicas de enfrentamento da descriminação66 Guimarães RCP, Lorenzo CFG, Mendonça AVM. Sexualidade e estigma na saúde: uma análise da patologização da diversidade sexual nos discursos de profissionais da rede básica. Physis. 2021; 31(1):e310128.. Nesse sentido, muitos artigos apontam sobre a promiscuidade e o comportamento atribuído aos gays, desse modo, a maioria das demandas oferecidas pelos profissionais de saúde acaba se relacionando com isso. Como dito anteriormente, isso não passa de um grande estigma, o que acarreta o desenvolvimento de muitas outras políticas contra a discriminação.
O acolhimento é uma prática presente em todas as relações de cuidado, nos encontros reais entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e escutar as pessoas, podendo acontecer de formas variadas77 Valenzuela-Valenzuela AV, Cartes-Velásquez R. Ausencia de perspectiva de género en la educación médica. Implicaciones en pacientes mujeres y LGBT+, estudiantes y profesores. Iatreia. 2020; 33(1):59-67.. É preciso ter um acolhimento diversificado, deslocado do modelo cis-heteronormativo e uma escuta qualificada a fim de não negligenciar os direitos de cidadania dos usuários. Entende-se que sua realização poderá repercutir no acesso e no atendimento adequado dessa população, bem como propor ações de educação continuada e permanente que possibilitem que os profissionais da saúde saibam lidar com as situações que se apresentam em sua prática cotidiana relacionadas com as questões da população LGBTQIA+. Portanto, este artigo tem como objetivo avaliar o acesso ao acolhimento da população LGBTQIA+ por parte dos profissionais de saúde de um Centro Municipal de Saúde (CMS) do Rio de Janeiro.
Material e métodos
Foi realizado um estudo qualitativo, de natureza descritiva, com abordagem participativa. A pesquisa foi dividida em duas etapas: a primeira, no mês de maio de 2023, envolveu coleta de informações sobre o que os sujeitos entendiam sobre o acolhimento à população LGBTQIA+ por meio de um questionário enviado por e-mail para agentes de saúde, técnicos de enfermagem, enfermeiros, dentistas e médicos; e a segunda, em junho do mesmo ano, para a realização das rodas de conversa com esses profissionais, objetivando uma discussão mais rica e aprofundada sobre o tema.
A pesquisa foi realizada em um CMS da Zona Norte do Rio de Janeiro que atua com 8 equipes de Saúde da Família com aproximadamente 35 mil pacientes cadastrados. As equipes são compostas por 5 Agentes Comunitários de Saúde (ACS), 2 técnicos de enfermagem, 1 enfermeiro, 1 médico e 1 dentista (pela Estratégia Saúde da Família – ESF, um dentista pode compor mais de uma equipe), totalizando aproximadamente 72 integrantes da saúde. O CMS oferece serviços de atenção primária, assim como os que são oferecidos pelas Clínicas da Família, tais como atendimentos de livre demanda (queixas agudas) e agendamentos de consulta de linhas de cuidados (pré-natal, puericultura, hipertensão, diabetes, tuberculose, entre outros), e tem como área de atuação dois bairros da Zona Norte (Bonsucesso e Ramos) do município do Rio de Janeiro.
A unidade possui 8 estações de trabalho (guichês), onde permanece 1 ACS por equipe durante todo o funcionamento da unidade (07h-18h), totalizando 8 ACS durante o período de trabalho. Caso o paciente esteja na unidade por questões de demanda aguda, ele será direcionado a um consultório para que o enfermeiro realize uma escuta qualificada, a fim de identificar os problemas e encaminhar com resolubilidade. Esse enfermeiro atende todas as demandas agudas que chegam até a unidade e as distribui de forma equivalente para a demanda médica ou de enfermagem, de acordo com o que for necessário.
Os participantes da pesquisa de campo foram os profissionais da equipe de ESF, sendo 8 médicos, 8 enfermeiros, 16 técnicos de enfermagem, 37 ACS e 3 dentistas, totalizando 72 participantes. Os critérios de inclusão da pesquisa foram: ser profissional de saúde da ESF atuando na unidade de saúde selecionada há pelo menos um ano. Os critérios de exclusão foram: profissionais de licença/férias ou com menos de um ano de atuação.
Os sujeitos foram contactados via e-mail para realização das duas etapas. Na primeira etapa (maio de 2023), eles poderiam escolher responder ao questionário na própria unidade, pois foram reservados tempo e computador para isso, pelo celular ou em casa. Do total previsto, 60 participaram efetivamente. Alguns profissionais encontravam-se de férias ou de licença, por isso, não puderam contribuir. Já a segunda etapa (junho de 2023) foi realizada ao longo de algumas semanas, de acordo com as reuniões de equipe que aconteciam regularmente na própria unidade. Portanto, nenhuma das duas etapas teve custo ou prejuízo para os entrevistados. Foram programadas e realizadas rodas de conversa por equipe, todas gravadas para serem transcritas na íntegra a fim de serem analisadas posteriormente. Todas as oito equipes participaram.
O roteiro do questionário e da roda de conversa visou explorar questões sobre o acesso e a vulnerabilidade da população LGBTQIA+, o sentido e a forma de realização do acolhimento e os processos de capacitação/qualificação em serviço para o atendimento a essa população.
O acesso e o acolhimento foram analisados a partir das dimensões acessibilidade e aceitabilidade, fatores principais que influenciam nas questões de barreiras e na criação de vínculo. A acessibilidade está vinculada à localização geográfica, incluindo a forma de deslocamento, o tempo de deslocamento e distância entre a residência do usuário e a instituição. Refere-se à relação entre os recursos de poder dos usuários e os obstáculos colocados pela instituição. Já a aceitabilidade refere-se às atitudes dos usuários quanto à aceitação do atendimento prestado na unidade de saúde e o vínculo. Estes serão avaliados pelos profissionais de saúde e suas experiências com os usuários na unidade88 Penchansky R, Thomas JW. The concept of access: definition and relationship to consumer satisfaction. Med. Care. 1981; 19(2):127-140..
Foi realizada análise de conteúdo temático99 Sampaio RC. Análise de conteúdo categorial: manual de aplicação. Brasília, DF: Enap, 2021., que envolve um procedimento sistemático, para criar inferências válidas sobre determinados conteúdos verbais, visuais ou escritos, buscando descrever, quantificar ou interpretar certo fenômeno em termos de seus significados, intenções, consequências ou contextos e análise de frequência simples das respostas para direcionar as questões exploradas.
A pesquisa foi aprovada pelos Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca com Certificado de Apresentação de Apreciação Ética (CAAE) nº 55375222.0.0000.5240 e parecer nº 5.282.993 e pelo CEP da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro com CAAE nº 55375222.0.3001.5279 e parecer nº 5.387.995.
Resultados e discussão
A maioria (83%) dos profissionais convidados para a pesquisa respondeu ao questionário enviado, compostos por: 8 médicos, 8 enfermeiros, 3 dentistas, 14 técnicos de enfermagem e 27 ACS, totalizando 60 participantes. A idade de 25 a 44 anos correspondeu a aproximadamente 57% dos entrevistados. A escolaridade de nível superior ou acima foi em torno de 50% dos participantes. Em relação ao tempo de trabalho no CMS, 51,6% dos profissionais trabalhavam havia pelo menos 5 anos na unidade.
A maioria (85%) dos participantes considera a população LGBTQIA+ vulnerável. Acreditam que a vulnerabilidade não decorre apenas do contexto financeiro, mas também social e de saúde. Identificam, ainda, dificuldades no acesso dessa população ao acolhimento de livre demanda.
A vulnerabilidade parece remeter ao sentido de fragilidade, podendo estar vinculado à diferentes campos temáticos. Segundo Ayres1010 Ayres JR, Paiva V, França Júnior I, et al. Vulnerability, human rights, and comprehensive health care needs of young people living with HIV/AIDS. Am. J. Public Health. 2006; 96(6):1001-1006., o conceito de vulnerabilidade é ligado à garantia da cidadania de populações politicamente fragilizadas na perspectiva dos direitos humanos. Para Kowarik1111 Kowarick L. Viver em risco – sobre a vulnerabilidade socioeconômica e civil. São Paulo: Editora 34; 2009., a vulnerabilidade remete à deterioração dos direitos civis, à perda de garantias adquiridas, à fragilização da cidadania. Destacam-se a desigualdade perante a lei e a sujeição à violência; a dificuldade de acesso à moradia, serviços de saúde, assistência social e emprego; a coexistência de modalidades arcaicas e modernas de trabalho com importante participação da informalidade não legalmente protegida, sendo marcante o apartheid social nos ambientes urbanos.
Duas das equipes que atuam em lugares denominados ‘cena de uso’ (cena aberta de consumo de drogas e de população em situação de rua) relatam ser um dos locais muito frequentados pela população LGBTQIA+, principalmente por travestis e transgêneros. Uma das ACS relatou que ‘as meninas’ (referindo-se às travestis) mostraram-se ‘muito agressivas’ e que isso dificulta o vínculo. Percebeu, contudo, que estavam com baixa autoestima, dessa forma, conseguiu doações de bolsas, brincos, batons e outras maquiagens, realizando uma ação social nesse local do território. Além disso, também organizou distribuição de quentinhas para ajudar na alimentação.
A baixa autoestima na população LGBTQIA+, muitas vezes consequente do preconceito social, é considerada desencadeadora de episódios depressivos, sentimento de culpa, medo, desconfiança, confusão, insegurança, ansiedade, vergonha, isolamento social, dificuldades de estabelecer e manter relacionamentos amorosos, disfunções sexuais, hostilidade, distúrbios alimentares e abuso de álcool e drogas44 Cardoso MR, Ferro LF. Health and LGBT community: needs and specificities under discussion. Psicol. Ciênc. Prof. 2012; 32(3):552-563.. Acredita-se que o uso abusivo de substâncias psicoativas no grupo LGBTQIA+, embora se trate de um processo exclusivo e individualizado, poderia ser uma forma de enfrentamento dos vários sentimentos negativos, como insegurança e ansiedade quanto à própria aceitação da orientação sexual1212 Hequembourg AL, Dearing RL. Exploring shame, guilt, and risky substance use among sexual minority men and women. J. Homosex. 2013; 60(4):615-38.. Os achados deste estudo apontaram para essa direção.
De maneira unânime, os sujeitos entrevistados nas rodas de conversa e nas entrevistas sinalizaram não sentir dificuldades em chamar os pacientes pelo nome social, mas relatam que nem sempre o sistema de prontuário oferece essa opção para o registro, causando constrangimento para ambas as partes. De acordo com Hannauer e Hemmi1313 Hanauer OFD, Hemmi APA. Caminhos percorridos por transexuais: em busca pela transição de gênero. Saúde debate. 2019; 43(esp8):91-106., o nome de registro possui um peso importante para as pessoas transexuais, e algumas delas almejam sua alteração. Além de algumas pessoas demandarem por mudanças corporais, a mudança do nome nas instâncias judiciais é uma reivindicação frequente pela população transexual. Ademais, relatam que chamar um paciente por um nome masculino e aparecer uma paciente mulher não seria adequado, pois acabam expondo de forma negativa essa paciente. Destacam também que alguns pacientes reclamam dos ACS, como se não quisessem chamar pelo nome correto. Contudo, o problema estaria na opção de registro do sistema, ou, nesse caso, na falta dessa opção, conforme os relatos a seguir:
Sinto dificuldade em ver a pessoa e saber que o nome no sistema não está de acordo com o gênero apresentado e não ter como mudar, pois, o próprio sistema não tem essa opção. (ACS).
[...] O sistema utilizado hoje não facilita e nem oferece opções básicas como nome social e sexo no primeiro acesso. Dificuldades em conhecer os protocolos de saúde da população LGBTQIA+ em geral, o preconceito, falta de empatia, respeito e os rótulos. (Enfermeiro).
De acordo com os autores Penchansky e Thomas88 Penchansky R, Thomas JW. The concept of access: definition and relationship to consumer satisfaction. Med. Care. 1981; 19(2):127-140., a aceitabilidade depende do vínculo que o profissional de saúde conseguirá criar com o paciente. No entanto, os agentes de saúde afirmam que muitos dos pacientes não retornam ao atendimento por não criarem esse tipo de vínculo e confiança.
A Nota Técnica da Secretaria de Estado de Saúde do Rio de Janeiro (SES-RJ), publicada no Dia Internacional da Visibilidade Trans, em 31 de março de 2009, instituiu o uso do nome social em todas as unidades de saúde do estado, além de orientar gestores, servidores, contratados e prestadores de serviço a observarem a garantia a esse direito em suas unidades. Travestis, mulheres e homens transexuais têm o direito de ser identificados como desejam ser conhecidos em todos os órgãos da administração direta, indireta e prestadores de serviço da SES-RJ1414 Secretaria de Estado de Saúde (RJ). Nota Técnica publicada: Dia Internacional da Visibilidade Trans, de 31 de março de 2009. Rio de Janeiro: SES-RJ; 2022..
As principais queixas que os profissionais relataram sobre o acolhimento por nome social estão destacadas nas frases ditas pelos profissionais de saúde, a seguir, destacando que o prontuário eletrônico possui falhas na exibição de nome social e que muitas vezes o próprio paciente não identifica os pronomes de como quer ser chamado e cadastrado.
Aceitação dos agentes acolhedores a aprender a chamar pelos nomes sociais, tomando cuidado com os pronomes utilizados já que no prontuário nem sempre aparece. (ACS).
Dificuldades quando o paciente não deixa explícito seu gênero ou até mesmo o nome social para que o atendimento seja da forma que a pessoa deseja. Fica complicado de usar um nome que não aparece no prontuário. (Médico).
É interessante observar como o profissional poderia ter dificuldade de se confrontar com seu próprio preconceito, por muitas vezes já enraizado. Em alguns momentos da pesquisa, não fica claro se o profissional percebe isso, pois pareceria responsabilizar o sistema ou até culpabilizar o próprio paciente.
Mais da metade dos sujeitos respondeu que não se sente capacitada para o atendimento diferenciado e específico para a população LGBTQIA+, colocando-se disponível para possíveis capacitações. Dez profissionais disseram que fizeram cursos de extensão ofertados pela Rede Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS)1515 Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Gestão e do Trabalho e da Educação na Saúde, Universidade Aberta do SUS. Curso livre, Política Nacional de Saúde Integral Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UNA-SUS/UERJ; 2022. [acesso em 2023 nov 10]. Disponível em: https://www.unasus.gov.br/cursos/curso/35988.
https://www.unasus.gov.br/cursos/curso/3...
, cujo objetivo é contribuir para a atuação dos profissionais de saúde, para que realizem suas ações de cuidado, promoção e prevenção da população com qualidade e de forma equânime, garantindo a essa população acesso à saúde integral. A seguir, algumas falas:
A falta de capacitação e preparo dos profissionais é o fator dominante para o atendimento/acolhimento adequado. Não há conhecimento dos programas de saúde voltados para essa população, dificultando o atendimento de qualidade. (Enfermeiro).
Os cursos do UNA-SUS são bons e fáceis de serem realizados, além de gerar certificação no final. Assim que entrei na Unidade, por ser recém-formado, realizei algumas capacitações nessa plataforma, incluindo o de atendimento à população LGBT. (Enfermeiro).
Em relação à saúde da mulher, todos os entrevistados disseram que acolheriam uma mulher lésbica para realização do exame preventivo (citopatológico). Alguns estudos descrevem sobre os desafios relatados por um grupo de mulheres lésbicas durante o atendimento e o acolhimento, por exemplo, a crença equivocada de profissionais de saúde de que lésbicas e bissexuais não têm risco de desenvolver cânceres de mama e de colo de útero1616 Bittencourt DD, Bittencourt FD. Citologia oncótica cervicovaginal na população lésbica e transgêneros. Femina. 2020; 48(8):504-508..
A avaliação periódica de colo de útero tem sido negligenciada nessas mulheres devido ao julgamento frequente de profissionais de saúde de que as práticas sexuais delas não induzem ao risco de câncer. Uma vez que não há sustentação científica verdadeira para esse julgamento, a conduta revela apenas uma racionalidade estigmatizante que, ainda assim, sente-se cientificamente respaldada66 Guimarães RCP, Lorenzo CFG, Mendonça AVM. Sexualidade e estigma na saúde: uma análise da patologização da diversidade sexual nos discursos de profissionais da rede básica. Physis. 2021; 31(1):e310128..
Em relação ao homem trans, a maioria (90%) dos entrevistados informa que acolheria o paciente para realização do exame. Essa pergunta se tornou relevante uma vez que os homens transgêneros apresentam maiores chances de ter um exame citopatológico inadequado, além de uma menor propensão a ter um rastreamento conforme o preconizado, quando em comparação com mulheres cisgêneras (que se identificam com o sexo feminino que lhes foi designado ao nascer), sendo necessário que esse público seja sempre recordado da necessidade da realização desse exame1717 Lam JSH, Abramovich A. Transgender-inclusive care. CMAJ. 2019; 191(3):E79.. Deve-se pontuar que o acolhimento precisa garantir a equidade, sendo adequado pelo profissional que não haja preconceitos ou distinção na hora do atendimento. Este deverá explicar sobre a importância do exame e acerca de outras questões sobre o planejamento sexual e reprodutivo na consulta. Vale ressaltar que a capacitação em serviço nunca deve deixar de existir, principalmente por se tratar de um atendimento que precisa ser integral. Além disso, as unidades de saúde devem se esforçar para combater o preconceito que possa existir por parte de alguns profissionais. Nesse contexto, o desejo de ignorar seus órgãos reprodutivos, a ansiedade por precisar se submeter a exames da região genital, o uso de terapia androgênica que, no decorrer do tempo, acaba atrofiando o canal vaginal, bem como outros fatores psicológicos e sociais, tornam-se desafios para a realização do exame de Papanicolau nos homens transgêneros1818 Peitzmeier SM, Reisner SL, Harigopal P, et al. Female-to-male patients have high prevalence of unsatisfactory Paps compared to non-transgender females: implications for cervical cancer screening. J. Gen. Intern. Med. 2014; 29(5):778-784..
Sobre o processo transexualizador e hormonização, os locais que oferecem esse tipo de atendimento no município do Rio de Janeiro são o Hospital Universitário Pedro Ernesto e o Instituto Estadual de Diabetes e Endocrinologia. A maioria dos participantes (60%) desconhece os serviços por não fazer parte da atenção básica, e relata que já ouviu falar sobre eles, mas não sabe a fundo o que significam ou como se daria o tipo de acolhimento ou atendimento mesmo sendo oferecido pelo SUS. Ou seja, a maior parte responde que não conhece o fluxo de encaminhamento para atenção secundária ou que a atenção primária também faz parte de um dos fluxos a ser seguido. O fluxo de hormonização é totalmente esclarecido na APS.
Os profissionais não são capacitados o suficiente e os fluxos existentes não absorvem toda essa população em tempo oportuno. Não sabemos nem informar o tempo de espera do Processo Transexualizador. O que acaba aumentando a chance dessa população começar esse processo por meios próprios e colocando sua saúde em risco. (Médico).
Entendo o básico do assunto, não sei a fundo do processo num todo como funciona. (Enfermeiro).
Um rapaz veio fazer injeção pra não engravidar, fiquei sem jeito e acolhi para o procedimento. (ACS).
Algumas vezes recebo pacientes do sexo masculino com prescrição de contraceptivos, e não entendo o motivo. (Técnico de Enfermagem).
Como apontam Carvalho e Phillipi1919 Carvalho LS, Phillipi MM. Percepção de lésbicas, gays e bissexuais em relação aos serviços de saúde. Univ. Ci. Saúde. 2013; 11(2):83-92., é importante que os usuários dos serviços de saúde tenham conhecimento de seus direitos enquanto cidadãos brasileiros para melhor exercê-los, pois são peças principais de vários movimentos. Dessa forma, faz-se de extrema importância estar a par de alguns programas desenvolvidos, que lutam pelos direitos à igualdade dessa população. Afinal, existem direitos, mas também deveres de ambas as partes, tanto do atendimento quanto do usuário, e ter ciência disso é algo extremamente relevante, ainda mais por se tratar de saúde, um fator principal e determinante na vida de um ser humano.
Pacientes trans estão entre a parcela das pessoas LGBTQIA+ que é socialmente mais estigmatizada, além disso, poucos funcionários ou prestadores têm conhecimento sobre a saúde trans ou são treinados para respeitar a identidade de gênero de usuários desse grupo, assim como as suas necessidades especiais de confidencialidade2020 Bockting W, Robinson B, Benner A, et al. Patient satisfaction with transgender health services. J. Sex. Marital Ther. 2004; 30(4):277-94.,2121 Mascarenhas AB. Satisfação do (a) usuário (a) trans com os serviços ofertados por um ambulatório de referência no Distrito Federal. [dissertação]. Brasília, DF: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021.. De acordo com os entrevistados, isso acaba refletindo na acessibilidade dos pacientes para um serviço específico, sendo um fator dificultador, visto que, de acordo com Penchansky e Thomas88 Penchansky R, Thomas JW. The concept of access: definition and relationship to consumer satisfaction. Med. Care. 1981; 19(2):127-140., a acessibilidade diz respeito à localização geográfica e ao deslocamento, à distância entre a residência do usuário e a unidade, ao tempo de ida e volta, entre outros recursos. Nesse sentido, esses são obstáculos do próprio CMS, uma vez que ele está localizado em Ramos, onde os pacientes residem, área adscrita da Zona Norte. Os hospitais que oferecem os serviços estão localizados em Vila Isabel e no Centro da Cidade do Rio de Janeiro ficando, respectivamente, a 20 minutos de carro e a 50 minutos de transporte público, e a 18 minutos de carro e a 40 minutos de transporte público de distância do CMS. Os ACS relatam que nem todos os pacientes possuem carro ou condições de pagar passagens. Já quanto ao atendimento na unidade básica, eles conseguem acessar andando ou de bicicleta.
Para corroborar a informação acima, entre os problemas específicos frequentemente observados na população trans, ressalta-se a indisponibilidade de insumos básicos necessários para a terapia hormonal, pois os medicamentos preconizados não estão incorporados no SUS. Também se observou a dificuldade de acesso a tratamentos cirúrgicos, especialmente de redesignação sexual. Consequentemente, os cuidados de saúde específicos para transgêneros são escassos, limitando suas escolhas no acesso aos cuidados de saúde dos quais têm urgência. Isso faz com que os poucos serviços disponíveis sejam ainda mais críticos e de acesso limitado quanto ao processo transexualizador2222 Lerner JE, Robles G. Perceived barriers and facilitators to health care utilization in the United States for transgender people: a review of recent literature. J. Health Care Poor Underserved. 2017; 28(1):127-152.. Além disso, o preconceito e a falta de capacitação técnica dos profissionais envolvidos acabam por tornar o acolhimento e o atendimento, muitas vezes, desumano e traumático, limitando a aderência ao seguimento multidisciplinar2121 Mascarenhas AB. Satisfação do (a) usuário (a) trans com os serviços ofertados por um ambulatório de referência no Distrito Federal. [dissertação]. Brasília, DF: Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz; 2021.,2323 Rocon PC, Wandekoken KD, Barros MEB, et al. Acesso à saúde pela população trans no Brasil: nas entrelinhas da revisão integrativa. Trab. Educ. Saúde. 2020; 18(1):e0023469..
Em relação às rodas de conversa, estas foram importantes para aprofundar e complementar algumas das informações previamente obtidas pelos questionários. Todos os participantes relataram se sentir à vontade e importantes em contribuir para o estudo. Além disso, informaram que tinham algumas dificuldades com o novo sistema de prontuário eletrônico (Vita Care) e com o modo de acolher pacientes da população LGBTQIA+. Confessaram que, além da dificuldade desse novo prontuário, sentiam medo de pedir ajuda na hora de acolher algum paciente que fugisse do padrão heteronormativo e serem taxados de preconceituosos, visto que a dificuldade de preenchimento e a falta de conhecimento de todos os campos limitavam o processo de acolhimento e cadastramento do usuário.
Os momentos compartilhados nas rodas de conversa foram bem potentes, e os participantes puderam expressar suas percepções a partir das questões disparadoras. Um dos assuntos levantados no questionário foi sobre a vulnerabilidade da população, em que a maioria sinalizou que ela existia. Conforme o tema foi explorado na roda de conversa, foi possível perceber que a vulnerabilidade que eles acreditavam ser por falta de dinheiro não era apenas isso, e que outros fatores como saúde mental e falta de segurança eram também importantes. De acordo com o texto-base da Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais: a proteção do direito à livre orientação sexual e identidade de gênero não é apenas uma questão de segurança pública, mas envolve também, de maneira significativa, questões pertinentes à saúde mental e a atenção a outras vulnerabilidades atinentes a esses segmentos44 Cardoso MR, Ferro LF. Health and LGBT community: needs and specificities under discussion. Psicol. Ciênc. Prof. 2012; 32(3):552-563..
É importante destacar que os ACS são os primeiros a serem acionados para qualquer tipo de acolhimento ou atendimento, e os enfermeiros são responsáveis por toda demanda espontânea da unidade, ou seja, qualquer demanda espontânea passa pelo ACS que encaminha para o enfermeiro para atendimento ou orientação. Tal como identificado nos questionários, alguns profissionais relatam dificuldade para o acolhimento devido à dificuldade de criar vínculo com essa população. Relatam que alguns pacientes demoraram meses até solicitar uma primeira consulta. O CMS fica geograficamente próximo da residência dos usuários que fazem parte da área adscrita do território, não existindo grandes barreiras geográficas, visto que todos conseguem acessar a unidade sem necessidade de condução. Isso faz acreditar que uma das maiores dificuldades é a aceitabilidade, pois é ela que define se os pacientes e os agentes de saúde estão mantendo uma relação boa o suficiente para caracterizar o cuidado para o acolhimento e o atendimento, tal como descrito a seguir.
Eu ia no território, via sempre uma cabeleireira que ficava me encarando, mas ela não falava nada, isso aconteceu por algumas vezes até eu abordar e perguntar se precisava de alguma ajuda. A mesma falou: preciso agendar uma consulta de coleta de preventivo para minha esposa. Levei o caso para minha enfermeira, e logo depois passei para entregar a data da consulta. A paciente ficou muito feliz, pois se sentiu acolhida, e disse que no outro local onde morava, ninguém da unidade tinha feito essa pergunta sobre a saúde. (ACS).
A aceitabilidade se inicia pelo acolhimento do profissional de saúde, normalmente pelo ACS; e quando encontram alguma dificuldade, procuram, usualmente, os médicos ou os enfermeiros para auxiliar na solução da demanda do usuário.
Eu vi um rapaz sentado no acolhimento por quase uma hora. Percebi que começou a me olhar fixamente e eu fui abordar, quando cheguei perto, perguntou se podia falar comigo na porta da unidade porque ali estava muito cheio. Chegando na porta, solicita realizar testes rápidos para sífilis, HIV e hepatites porque teve uma relação desprotegida com o parceiro, mas que tinha vergonha de falar isso perto de outras pessoas. Eu disse que tudo bem, que iria acolher para o procedimento e que era só aguardar ser chamado pelo nome, que o enfermeiro estaria ciente e já levaria em um consultório para que ficasse mais à vontade. (ACS).
Foi relatado um caso de paciente solicitando hormonização, em que o profissional teria ficado um pouco desconfortável por não saber o fluxo correto para o atendimento.
Eu sei que o SUS fornece tratamento de hormonização, mas não sei para onde iria encaminhar, por mais que a gente estude e se esforce, os fluxos são muito complexos e falta um pouco de organização. O paciente foi encaminhado depois de algumas ligações, mas não consegui orientar em relação ao tempo de espera. (Médico).
Em 2017, Guimarães2424 Guimarães RC, Cavadinha Et, Mendonça AV, et al. Assistência à saúde da população LGBT em uma capital brasileira o que dizem os Agentes Comunitários de Saúde. Tempus (Brasília). 2017; 11(1):121-139., por meio de estudo qualitativo, identificou a existência de preconceitos nos ACS que funcionam como barreiras e da necessidade de melhor capacitação das equipes. Nesse estudo, os profissionais não demonstraram nenhum tipo de preconceito na hora de responder aos questionários ou na participação nas rodas de conversa. Contudo, o primeiro autor deste estudo atua como enfermeiro responsável técnico da unidade, e talvez isso tenha limitado as falas de alguns sujeitos devido à relação hierárquica desigual.
Todos os sujeitos relataram dificuldade de colocar em prática uma busca ativa efetiva priorizando a promoção de saúde, pois os pacientes aparecem apenas quando já estão com algum sintoma de doença, que, por mais que passem no território para oferecer consultas, a maioria da população LGBTQIA+ só vai até a unidade para casos de emergência. Isso corrobora o que Mello et al.2525 Mello L, Perilo M, Braz CA, et al. Políticas de saúde para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais no Brasil: em busca de universalidade, integralidade e equidade. Sex., Salud Soc. (Rio J). 2011; (9):7-28. defendem: por haver dificuldades na implementação de ações de saúde para a população LGBTQIA+, esse grupo social acaba procurando serviços de saúde apenas em situações de emergência. Ainda assim, os profissionais mostram-se interessados em realizar busca ativa para promoção de saúde, solicitam capacitação para serviços de saúde para o público, a fim de se manterem informados e conseguirem passar essas informações adiante.
Considerações finais
Este estudo teve como objetivo avaliar o acesso ao acolhimento à população LGBTQIA+ na perspectiva dos profissionais de saúde, no sentido de contribuir para a melhoria do processo de trabalho em uma unidade de atenção primária. Utilizaram-se como critérios a aceitabilidade e a acessibilidade. Foi identificado pelos sujeitos que as maiores barreiras do acesso não foram as geográficas, e sim aquelas relacionadas com a atuação dos próprios profissionais e usuários, indicando a fragilidade do vínculo, da capacidade profissional de acolhimento e da dificuldade de implementação das diretrizes e normas que regem a atenção integral à população LGBTQIA+ no SUS. Ainda existem muitos estigmas, principalmente na questão de o acolhimento ser baseado principalmente nas práticas sexuais, em que foi referido anteriormente que não é a única demanda a ser analisada. Essa população não pode ser invisibilizada ou negligenciada.
A realização da pesquisa propiciou que os profissionais que atuam na ESF desse CMS se manifestassem e se expressassem como vivenciam o acesso ao acolhimento à população LGBTQIA+, gerando uma importante troca de saberes e informações entre todos os participantes. De início, acreditou-se não ser possível realizar tudo em tão pouco tempo, porém, os participantes se mostraram disponíveis e interessados, fazendo com que desenvolvimento do estudo fosse viável.
A partir dos resultados, podem-se considerar como facilitadores do processo de acolhimento: a disponibilidade dos profissionais para o acolhimento apesar da falta de processos educativos específicos; a capacidade de realizar consultas com pessoas LGBTQIA+ para coleta de exames preventivos; a realização de ações voltadas para a população LGBTQIA+ no território, educando a população sobre quais serviços são oferecidos na unidade de atenção básica.
As principais barreiras ao processo de acolhimento foram o prontuário eletrônico, que não permite a inserção do nome social; a falta de conhecimento/divulgação dos fluxos do processo transexualizador; a dificuldade de formação de vínculo entre usuários, ACS e demais profissionais de saúde; e o déficit de processos de educação permanente em saúde no tema específico.
Como recomendações para a gerência do CMS, propõe-se aumentar a frequência do colegiado gestor, que é um local com a participação da população e das lideranças do território para validação de fluxos da unidade. Como estratégia para abordar as dificuldades da equipe, seria oportuno proporcionar mais espaços para discussão de casos, educação continuada e educação permanente. Em relação ao prontuário eletrônico, deve-se solicitar nova capacitação com a empresa de prontuário eletrônico, visando ao atendimento fidedigno às questões de gênero, sexualidade, nome social, entre outros. No que diz respeito ao acolhimento da população LGBTQIA+ pelas equipes, destaca-se a necessidade de priorizar o acolhimento por equipe, e não só apenas por um enfermeiro como centro das demandas da unidade. Isso pode fazer com que o vínculo seja mais fácil de ser criado, visto que o paciente poderá verbalizar sua demanda diretamente para a própria equipe. Por último, torna-se necessário criar mais espaços no território, utilizando as redes de apoio para proporcionar espaços de promoção de saúde e prevenção de doença e educação em saúde também focalizados na população LGBTQIA+.
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Suporte financeiro: não houve
Referências
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
12 Ago 2024 -
Data do Fascículo
Dez 2023
Histórico
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Recebido
16 Nov 2023 -
Aceito
10 Dez 2023