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Desafios da Psicologia Indígena no atendimento a estudantes universitários

Resumo

Objetivo

Este artigo tem como objetivo discutir a abordagem da psicologia indígena no cuidado de estudantes indígenas em contexto universitário.

Método

Utilizando o método qualitativo, este artigo apresenta um estudo de caso detalhando a trajetória de formação da Rede de Escuta e Desaprendizagens Étnico-Subjetivas, para analisar a aplicação dos pressupostos da psicologia indígena no suporte a estudantes indígenas e seus familiares na Universidade Estadual de Campinas.

Resultados

Evidenciou-se a necessidade de reconhecer diferentes epistemologias para uma conexão terapêutica respeitosa. Foram observados desafios na aplicação de práticas alinhadas com a psicologia indígena, destacando a coautoria nas sessões, a valorização das perspectivas dos pacientes e as desaprendizagens contínuas. O estudo dos elementos culturais das etnias envolvidas mostrou-se crucial para evitar a patologização das cosmovisões e subjetividades indígenas.

Conclusão

A psicologia indígena apresenta-se como um vetor de mudança nas disputas de narrativas culturais, destacando a lacuna na abordagem clínica e a necessidade urgente de estudos para desenvolver intervenções personalizadas para o atendimento das diferentes etnias indígenas.

Palavras-chave
Estudantes; Psicologia; Saúde mental em grupos étnicos; Serviços de saúde mental; Sistemas de apoio psicossocial

Abstract

Objective

This article aims to discuss the approach of indigenous psychology in the care of indigenous students in a university framework.

Method

Using a qualitative method, this article presents a case study detailing the formation trajectory of the Rede de Escuta e Desaprendizagens Étnico-Subjetivas (Network of Ethno-Subjective Listen-ing and Unlearning) to review the application of the principles of indigenous psychology in sup-porting indigenous students and their families at Universidade Estadual de Campinas (Unicamp, State University of Campinas), Brazil.

Results

The study highlighted the need to recognize different epistemologies for respectful therapeutic connections. Challenges were faced in the application of practices aligned with indigenous psychology, emphasizing co-authorship in sessions, valuing patients’ perspectives, and continuous unlearning. The study of the cultural elements of the ethnicities involved proved crucial to avoid the pathologization of indigenous worldviews and subjectivities.

Conclusion

Indigenous psychology presents itself as a tool for the changes in the cultural struggles, highlighting the gap in clinical approaches and the urgent need for further studies to develop personalized interven-tions for the care of the diverse indigenous ethnicities.

Keywords
Mental health in ethnic groups; Mental health services; Psychology; Psychosocial support systems; Students

As políticas de acesso direcionadas a estudantes indígenas nas universidades brasileiras foram implementadas somente no final da década de 1990, anteriormente a esse período, não havia iniciativas específicas de inclusão ou representatividade (Paladino, 2013Paladino, M. (2013). Um mapeamento das ações afirmativas voltadas aos povos indígenas no ensino superior. In M. A. Bergamaschi, E. Nabarro, & A. Benites (Orgs.), Estudantes indígenas no ensino superior: uma abordagem a partir da experiência na UFRGS (pp. 99-113). Editora UFRGS.). Apesar de o percentual de indígenas ainda ser baixo em relação ao número total de vagas, observa-se um incremento significativo na presença desses alunos nos últimos anos (Ayres, 2023Ayres, A. D., Brando, F. R., & Ayres, O. M. (2023). Presença indígena na universidade como retomada de território. Revista Brasileira de Educação, 28, e280060. https://doi.org/10.1590/S1413-24782023280060
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; Medaets et al., 2022Medaets, C., Arruti, J. M., & Longo, F. (2022). O crescimento da presença indígena no ensino superior. Retrieved from https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2022/O-crescimento-da-presen%C3%A7a-ind%C3%ADgena-no-ensino-superior
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).

Um marco considerável neste contexto foi a revisão da política de cotas étnico-raciais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em 2018, que instituiu um vestibular exclusivo para candidatos indígenas, garantindo a reserva de duas vagas em cada curso (Silva et al., 2023Silva, E. A., Medina, L. F., & Aires, P. J. (2023). A UNICAMP de Jenipapo e Urucum. In A. C. O. Marcucci, J. Vilhas, J. H. Custódio, L. Copelotti, M. F. Chapini, M. S. Lima, & W. P. Rosa (Orgs.), PorFiar: ações afirmativas e transformações da universidade (pp. 110-125). Huya.). Atualmente, a Unicamp conta com cerca de 500 estudantes indígenas, oriundos de aproximadamente 50 etnias diferentes, em um corpo discente total de 40 mil alunos. Notavelmente, a maioria desses estudantes indígenas provém da região Amazônica, situada a mais de 3 mil quilômetros de distância da universidade (Comissão Permanente para os Vestibulares, 2023aComissão Permanente para os Vestibulares. (2023a). Vestibular Unicamp 2023 - Lista de 1ª chamada. https://www.comvest.unicamp.br/wp-content/uploads/2023/02/2.VI2023-UNICAMP-CH1.pdf
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, 2023bComissão Permanente para os Vestibulares. (2023b). Vestibular Unicamp 2023 - Lista de 2ª chamada. https://www.comvest.unicamp.br/wp-content/uploads/2023/02/2.VI2023-UNICAMP-CH2.pdf
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).

Embora o acesso à universidade seja um passo importante, pesquisas destacam o desafio adicional relacionado à permanência e ao êxito acadêmico de estudantes indígenas. Isso ocorre em um contexto universitário repleto de divergências culturais, econômicas, pedagógicas, além do enfrentamento constante de estereótipos e racismo estrutural (Bailey, 2016Bailey, K. A. (2016). Racism within the Canadian university: Indigenous students’ experiences. Ethnic and Racial Studies, 39(7), 1261-1279. https://doi.org/10.1080/01419870.2015.1081961
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; Bergamaschi et al., 2018Bergamaschi, M., Doebber, M., & Brito, P. (2018). Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 99(251). https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.99i251.3337
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; Luna et al., 2021Luna, W. F., Teixeira, K. C., & Lima, G. K. (2021). Mapeamento e experiências de indígenas nas escolas médicas federais brasileiras: acesso e políticas de permanência. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 25, e200621. https://doi.org/10.1590/interface.200621
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; Paladino et al., 2016Paladino, M., Ossola, M. M., Castro Freitas, A. E., & Rosso, L. C. (2016). Pueblos indígenas y Educación Superior: Indagaciones y experiencias en Argentina y Brasil. Revista del Instituto de Investigaciones en Educación, 7(8), 6-20.; Ramos & Benites, 2018Ramos, A. D., & Benites, E. (2018). Os indígenas e a fronteira acadêmica. In V. H. V. Burgardt & A. G. Brito (Orgs.), (Pa)lavras de Índios. Povos indígenas, caminhos e diálogos de fronteiras (Vol. 1, pp. 45-62). CRV.).

A literatura acadêmica brasileira é marcada pela escassez de estudos dedicados à investigação da saúde mental de estudantes indígenas no contexto do ensino superior. No entanto, pesquisas internacionais têm revelado indicadores alarmantes, como uma alta prevalência de depressão e ansiedade entre esses estudantes, superando as taxas observadas em outros grupos estudantis (Beshai et al., 2023Beshai, S., Desjarlais, S. M., & Green, B. (2023). Perspectives of indigenous university students in Canada on mindfulness-based interventions and their adaptation to reduce depression and anxiety symptoms. Mindfulness, 14(3), 538-553. https://doi.org/10.1007/s12671-023-02087-7
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; Chahar Mahali et al., 2020Chahar Mahali, S., Beshai, S., & Wolfe, W. L. (2020). The associations of dispositional mindfulness, selfcompassion, and reappraisal with symptoms of depression and anxiety among a sample of indigenous students in Canada. Journal of American College Health, 69(8), 872-880. https://doi.org/10.1080/07448481.2020.1711764
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; Hop Wo et al., 2020Hop Wo, N. K., Anderson, K. K., Wylie, L., & MacDougall, A. (2020). The prevalence of distress, depression, anxiety, and substance use issues among Indigenous post-secondary students in Canada. Transcultural Psychiatry, 57(2), 263-274. https://doi.org/10.1177/1363461519861824
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). Esses achados ressaltam a necessidade de implementar medidas adicionais de cuidado com estudantes indígenas universitários, incluindo o desenvolvimento de estratégias em saúde mental que promovam tanto a permanência quanto o sucesso acadêmico dessa população estudantil, como enfatizado por Perez et al. (2019)Perez, K. V., Brun, L. G., & Rodrigues, C. M. L. (2019). Saúde mental no contexto universitário: desafios e práticas. Trabalho (En)Cena, 4(2), 357-365. https://doi.org/10.20873/2526-1487V4N2P357
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, Silva (2020)Silva, T. F. C. (2020). Desafios da atuação do psicólogo na Assistência Estudantil em uma universidade federal. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 15(4), 1-17. e Penha et al. (2020)Penha, J. R. L., Oliveira, C. C., & Mendes, A. V. S. (2020). Saúde mental do estudante universitário: revisão integrativa. Journal Health NPEPS, 5(1), 369-395..

Na Unicamp, tanto estudantes indígenas quanto não-indígenas têm acesso ao Serviço de Assistência Psicológica e Psiquiátrica ao Estudante (SAPPE) (Oliveira et al., 2008Oliveira, M. L. C., Dantas, C. R., Azevedo, R. C. S., & Banzato, C. E. M. (2008). Demographics and complaints of university students who sought help at a campus mental health service between 1987 and 2004. Sao Paulo Medical Journal, 126(1), 58-62. https://doi.org/10.1590/S1516-31802008000100011
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), embora alguns dos estudantes indígenas optem por não utilizá-lo. Essa escolha se deve a uma série de motivos que envolvem questões pessoais, a estrutura do serviço e as variações no tempo de espera por vagas disponíveis, como será abordado em detalhes mais adiante.

Neste contexto, esse artigo visa explorar a trajetória e os desafios de um coletivo multidisciplinar criado para encaminhar e/ou responder às demandas em saúde mental dos estudantes indígenas da Unicamp e seus familiares que, por diversos motivos, não utilizam o SAPPE. Essas questões serão analisadas à luz dos princípios e práticas da Psicologia Indígena.

Psicologia Indígena no Brasil

A Psicologia Indígena alude à estruturação de um domínio epistemológico que transcende meramente o atendimento a indivíduos originários de comunidades indígenas e suas particularidades culturais e individuais. Esta vertente psicológica postula uma perspectiva e intervenção crítica em relação ao substrato colonial presente nos discursos psicológicos de matriz eurocêntrica ou estadunidense. Paralelamente, esforça-se na elaboração de saberes alternativos, alinhados ao entendimento e às tradições de variadas etnias indígenas (Guimarães, 2022Guimarães, D. S. (2022). A tarefa histórica da Psicologia Indígena diante dos 60 anos da regulamentação da Psicologia no Brasil. Psicologia: Ciência E Profissão, 42, e263587. https://doi.org/10.1590/1982-3703003263587
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).

É fundamental destacar que a expressão “Psicologia Indígena”, cujas raízes remontam a cerca de meio século atrás no continente asiático, conforme documentado por Hwang (2012)Hwang, K.-K. (2012). The epistemological goal of Indigenous Psychology. In K.-K. Hwang. Foundations of Chinese Psychology: Confucian Social Relations (Vol. 1, pp. 1-19). Springer. https://doi.org/10.1007/978-1-4614-1439-1_1
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, refere-se a um campo de conhecimento. Apesar da diversidade dos conhecimentos psicológicos próprios de cada povo não poder ser universalizada, ao empregar o termo no singular, visa-se acentuar a ideia de um termo guarda-chuva teórico.

Além disso, existe uma dimensão política do termo, já que, segundo Guimarães (2023, p. 388, tradução nossa), “a Psicologia Indígena é, então, aquela que constrói saberes para proteger a existência dos povos indígenas e dos mundos indígenas”. No contexto brasileiro, ressalta-se que grande parte das reflexões neste campo é originada de psicólogos indígenas, embora haja também uma contribuição de psicólogos não indígenas dedicados à atuação junto a essas comunidades. Tais ponderações são frequentemente disseminadas através de eventos discursivos, como transmissões ao vivo e conferências, embora haja uma menor representatividade em publicações escritas diretamente relacionadas ao termo “Psicologia Indígena”. Ainda sob este contexto, é comum a adoção de expressões como “saúde mental indígena”, “saúde psicossocial”, “etnopsicologia” e “Bem Viver” para descrever os saberes deste campo específico.

Nos últimos anos, tem-se observado um crescente engajamento dos órgãos reguladores e instituições de ensino em psicologia no Brasil com os movimentos indígenas. Esse envolvimento representa um avanço, ainda que lento, de inclusão e reconhecimento de grupos historicamente marginalizados. Em 2022, um evento significativo marcou a Psicologia Indígena brasileira quando o Conselho Federal de Psicologia lança um documento intitulado Referências Técnicas Para Atuação de Psicólogas(os) Junto aos Povos Indígenas (Conselho Federal de Psicologia, 2022Conselho Federal de Psicologia. (2022). Referências técnicas para atuação de psicólogas (os) junto aos povos indígenas. Conselho Federal de Psicologia.). Essa publicação não apenas incorpora o termo “Psicologia Indígena” em seu conteúdo, mas também serve como um recurso valioso de orientação e aprimoramento da prática profissional de psicólogos junto às comunidades indígenas. Adicionalmente, reafirma o compromisso ético-político da Psicologia com a promoção da diversidade e o respeito às diferentes culturas e realidades sociais. A essência desse conteúdo consiste em promover a construção de práticas com uma perspectiva horizontalizada e crítica, buscando possibilitar uma atuação mais sensível e alinhada com os valores e necessidades dos povos tradicionais.

No que se refere ao ambiente universitário, o documento afirma que existe uma preocupação central na mobilização indígena em relação ao ingresso e à permanência no ensino superior, uma vez que o acesso à educação formal tem se tornado um dos principais instrumentos na reivindicação de direitos. Em vista disso, o manual destaca a necessidade de a Psicologia operar em rede com outros atores e instituições, visando criar condições objetivas para garantir a presença indígena nas instituições de ensino. Ademais, as recomendações para a atuação da Psicologia no contexto universitário são:

  • Orientação profissional: auxiliar no projeto de vida dos jovens, levando em consideração que este pode estar ligado ao projeto coletivo de suas comunidades.

  • Mediação de intrainstitucionalidades: defender, junto ao movimento estudantil, o exercício das especificidades das culturas indígenas dentro da universidade, como a alimentação adequada às culturas.

  • Promoção do Bem Viver indígena: fomentar espaços para a manifestação do sagrado de cada cultura no cotidiano universitário.

  • Intermediação de processos psicopedagógicos com o corpo docente: enfocando a importância da coordenação dos cursos considerar os cuidados étnico-culturais relacionados ao corpo e à saúde.

  • Integração com a saúde indígena tradicional: buscando soluções em saúde mental adequadas às culturas como a possibilidade de integração de um pajé ou profissional equivalente da cultura do aluno no tratamento.

  • Apoio ao movimento estudantil indígena: os psicólogos devem engajar-se no apoio ao movimento estudantil indígena, familiarizando-se com suas pautas e desafios.

Apesar de oferecer orientações limitadas sobre a prática clínica em ambientes universitários com estudantes indígenas, este documento realça a importância de integrar diretrizes sociopolíticas e práticas culturais indígenas para melhorar a saúde mental. Tal enfoque é corroborado por estudos que defendem a “cultura como tratamento” (Gone, 2013Gone, J. P. (2013). Redressing first nations historical trauma: Theorizing mechanisms for indigenous culture as mental health treatment. Transcultural Psychiatry, 50(5), 683-706. https://doi.org/10.1177/1363461513487669
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; Green, 2010Green, B. L. (2010). Culture is treatment: Considering pedagogy in the care of Aboriginal people. Journal of Psychosocial Nursing and Mental Health Services, 48(7), 27-34. https://doi.org/10.3928/02793695-20100504-04
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; Pomerville et al., 2016Pomerville, A., Burrage, R. L., & Gone, J. P. (2016). Empirical findings from psychotherapy research with Indigenous populations: A systematic review. Journal of Consulting and Clinical Psychology, 84(12), 1023-1038. https://doi.org/10.1037/ccp0000150
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; Whalen et al., 2022Whalen, D. H., Lewis, M. E., Gillson, S., McBeath, B., Alexander, B., & Nyhan, K. (2022). Health effects of Indigenous language use and revitalization: A realist review. International Journal for Equity in Health, 21(1), e169. https://doi.org/10.1186/s12939-022-01782-6
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), onde a reconexão com as tradições culturais, em qualquer fase da vida do paciente, traz benefícios terapêuticos significativos, resultando em melhores indicadores de saúde mental. Além disso, pesquisas recentes, como as de Beshai et al. (2023)Beshai, S., Desjarlais, S. M., & Green, B. (2023). Perspectives of indigenous university students in Canada on mindfulness-based interventions and their adaptation to reduce depression and anxiety symptoms. Mindfulness, 14(3), 538-553. https://doi.org/10.1007/s12671-023-02087-7
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, também destacam a importância de adaptar os tratamentos às particularidades culturais indígenas, mantendo assim, a integridade cultural dos pacientes.

Assim sendo, é imperativo enfatizar a necessidade de uma metodologia empática, estando atento às complexas dinâmicas culturais e políticas que influenciam os estudantes indígenas, tanto no contexto universitário quanto em seus territórios de origem. Consequentemente, um suporte clínico adaptado culturalmente pode ser proporcionado. Neste contexto, o coletivo de saúde mental discutido neste artigo caracteriza-se pelo comprometimento com os princípios da Psicologia Indígena, fundamentado em uma prática de saúde mental que seja congruente e ajustada às necessidades específicas dos estudantes.

Perspectivas Indígenas sobre a Psicologia

Os povos indígenas têm uma história marcada pela dominação cultural dos não-indígenas, que desqualifica e subalterniza seus conhecimentos. Tal colonialismo cultural perdura não somente como vestígio histórico, mas como estrutural. Este aspecto se encontra presente na constituição de políticas públicas e dos serviços de assistência à saúde. Na maioria das universidades públicas do Brasil, apesar de se garantir o direito dos estudantes indígenas a cuidados em saúde mental, estes baseiam-se nas epistemologias dos povos colonizadores, não atendendo as especificidades dos estudantes indígenas.

Segundo Laplantine (2000)Laplantine, F. (2000). Aprender Antropologia. Editora Brasiliense., práticas relacionadas à saúde, crenças e maneiras de interagir com o mundo são características fundamentais de todas as culturas humanas, uma vez que aspectos socioculturais influenciam diretamente os cuidados com a saúde. A Psicologia, inserida neste contexto, frequentemente perpetua a matriz europeia e estadunidense de sua origem, mantendo em diversas ocasiões seu caráter colonialista, etnocêntrico e discriminatório (Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as), 2022Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as). (2022). Pintando a Psicologia de jenipapo e urucum: narrativas de indígenas psicólogos(as) no Brasil (Vol. 5). Casa Leiria.; Conselho Regional de Psicologia, 2016Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. (2016). Povos indígenas e Psicologia. A procura do bem viver. São Paulo; Figueiredo, 2009Figueiredo, L. C. M. (2009). Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos (5th ed.). Vozes.; Pavón-Cuéllar, 2022Pavón-Cuéllar, D. (2022). Além da Psicologia Indígena: concepções mesoamericanas da subjetividade. Perspectiva.), chegando a ser chamada por diversos autores de Psicologia WEIRD, ou seja, Western (ocidental), Educated (escolarizada), Industrialized (industrializada), Rich (rica) e Democratic (democrática) (Hwang, 2023Hwang, K.-K. (2023). An epistemological strategy for initiating scientific revolution against WEIRD Psychology. Integrative Psychological and Behavioral Science, 57(2), 361-380. https://doi.org/10.1007/s12124-022-09681-9
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; Henrich et al., 2010Henrich, J., Heine, S. J., & Norenzayan, A. (2010). The weirdest people in the world? Behavioral and Brain Sciences, 33(2-3), 61-83. https://doi.org/10.1017/S0140525X0999152X
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; Muthukrishna et al., 2020Muthukrishna, M., Bell, A. V., Henrich, J., Curtin, C. M., Gedranovich, A., McInerney, J., & Thue, B. (2020). Beyond Western, Educated, Industrial, Rich, and Democratic (WEIRD) Psychology: Measuring and mapping scales of cultural and psychological distance. Psychological Science, 31(6), 678-701. https://doi.org/10.1177/0956797620916782
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; Wong & Cowden, 2022Wong, P. T. P., & Cowden, R. G. (2022). Accelerating the science and practice of psychology beyond WEIRD biases: Enriching the landscape through Asian psychology. Frontiers in Psychology, 13, e1054519. https://doi.org/10.3389/fpsyg.2022.1054519
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).

Neste panorama, Krenak (2000, p. 47)Krenak, A. (2000). O eterno retorno do encontro. In B. Ricardo & F. Ricardo (Eds.), Povos Indígenas no Brasil 1996–2000. Instituto Socioambiental., proeminente ativista e literato indígena, reflete sobre a persistente natureza colonizadora nas relações entre os povos indígenas e os ocidentais:

O tempo desse encontro entre nossas culturas é um tempo que acontece e se repete todos os dias. Não houve um encontro entre as culturas dos Povos Ocidentais e as culturas do continente americano em um tempo demarcado que poderíamos chamar de 1500 ou 1800. Vivemos esse contato desde sempre.

Complementando essa perspectiva, enfatiza-se a indispensabilidade de estratégias que valorizem o conhecimento histórico e a sensibilidade cultural no âmbito da saúde das populações indígenas. Essa prerrogativa engloba a percepção do impacto de traumas passados, bem como a necessidade de iniciativas que reforcem a identidade cultural e reconheçam a profundidade dos conhecimentos tradicionais destas comunidades (Gone et al., 2019Gone, J. P., Hartmann, W. E., Pomerville, A., Wendt, D. C., Klem, S. H., & Burrage, R. L. (2019). The impact of historical trauma on health outcomes for indigenous populations in the USA and Canada: A systematic review. The American Psychologist, 74(1), 20-35. https://doi.org/10.1037/amp0000338
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). Tais ponderações são imperativas, visto que o legado de colonização, expropriação territorial e desrespeito a direitos fundamentais continua a reverberar adversamente no bem-estar físico e psíquico desses grupos, com reflexos que permeiam gerações subsequentes.

Apesar das perspectivas não-eurocêntricas estarem presentes no questionamento a universalidade das ciências desse campo, esse debate sempre foi marginalizado. Contudo, nos últimos anos, o cenário internacional evidencia uma maior produção de conhecimento que confronta a Psicologia de matriz europeia e estadunidense. Sob a alcunha de “Psicologia Indígena,” diversas abordagens têm emergido por todo mundo, propondo modelos alternativos e questionando a aplicabilidade dessa Psicologia em contextos diversos (Groot et al., 2012Groot, S., Rua, M., Awatere-Masters, B., Dudgeon, P., & Garvey, D. (2012). Ignored no longer: Emerging Indigenous researchers on Indigenous psychologies. Australian Community Psychologist, 24(1), 5-11.; Jahoda, 2016Jahoda, G. (2016). On the rise and decline of ‘indigenous psychology’. Culture & Psychology, 22(2), 169-181. https://doi.org/10.1177/1354067X16634052
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). No Brasil, as discussões nesse campo estão emergindo mais recentemente e podem ajudar a pensar não somente uma Psicologia construída por e para povos indígenas, mas uma Psicologia que comporte a diversidade dos aspectos subjetivos do povo brasileiro (Ribeiro, 1995/2015Ribeiro, D. (2015). O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. Global Editora e Distribuidora Ltda. (Trabalho original publicado em 1995)).

O desafio de descolonizar a Psicologia implica em uma reconfiguração que vai além de simplesmente rejeitar paradigmas eurocêntricos e estadunidenses. Mais do que isso, requer a construção de novos paradigmas que valorizem saberes indígenas, centrados na sacralidade da natureza, no cultivo da espiritualidade e na manutenção de uma relação harmoniosa com os ecossistemas (Ciofalo et al., 2022Ciofalo, N., Dudgeon, P., & Nikora, L. W. (2022). Indigenous community psychologies, decolonization, and radical imagination within ecologies of knowledges. American Journal of Community Psychology, 69(3-4), 283-293. https://doi.org/10.1002/ajcp.12583
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).

Esta transformação profunda é imperativa, especialmente considerando-se que a regulamentação legal relativa à saúde mental dos povos indígenas no Brasil, pode se mostrar ineficaz se os fundamentos do “saber” ainda estiverem atrelados a uma perspectiva colonizada. Na esteira dessa argumentação, Castro-Gómez (2007)Castro-Gómez, S. (2007). La hybris del punto cero y el diálogo de saberes. In R. Castro-Gomez & S. Gosfroguel (Eds.), El Giro Decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp. 78-98). Universidad Javeriana-Instituto Pensar; Universidad Central-IESCO; Siglo del Hombre. pontua que a educação universitária, muitas vezes perpetua estes paradigmas coloniais, priorizando conhecimentos não pela sua contribuição intrínseca à humanidade, mas pela capacidade de consolidar e exercer poder.

Essa subalternização do conhecimento, conforme salientado por Freire (2002)Freire, P. (2002). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa (25th ed.). Paz e Terra., não encontra justificativa em premissas genéticas, sociológicas, históricas ou filosóficas. Em vez disso, ela é um reflexo de práticas de ensino e aprendizagem inadequadas. Na busca contínua pela evolução do conhecimento, é fundamental reconhecer e integrar a sabedoria daqueles que são alvo desse ensino.

Dentro dessa perspectiva, para realmente fomentar processos de cura e resiliência em populações indígenas, torna-se indispensável uma participação ativa e engajada das comunidades na definição das diretrizes relacionadas à sua saúde. Isto implica em políticas e programas construídos com a colaboração direta desses povos, refletindo genuinamente suas perspectivas e demandas. Adicionalmente, é imperativo que as estratégias de saúde, seja mental ou física, sejam concebidas de forma culturalmente congruente, garantindo, assim, um atendimento acessível, respeitoso e verdadeiramente empoderador para estas comunidades.

Estudantes Indígenas na Universidade Estadual de Campinas e o Projeto Ayurí

O Projeto Ayurí, desenvolvido no Laboratório de Práticas Alternativas, Complementares e Integrativas em Saúde, da Faculdade de Ciências Médicas, da Unicamp, teve como objetivo investigar os sentidos atribuídos ao trinômio saúde-doença-cuidado, assim como os sentidos atribuídos a saúde mental pelos estudantes indígenas da Unicamp, a partir da metodologia-pedagogia de co-labor (Barreto, 2021Barreto, J. R. R. (2021). Educação intercultural e o intercâmbio de conhecimento indígena. In D. L. O. Montardo & R. C. Farias (Orgs.), Saberes e ciência plural: diálogos e interculturalidade em Antropologia (pp. 245-254). Editora da UFSC. https://doi.org/10.5007/978-65-5805-030-8
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; Salazar & Walsh, 2015Salazar, J. G., & Walsh, C. (2015). Memoria colectiva, escritura y Estado. Prácticas pedagógicas de existencia afroecuatoriana. Cuadernos de Literatura, 19(38), 79-98. https://doi.org/10.11144/Javeriana.cl19-38.mcee
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; Walsh, 2017Walsh, C. (2017). Grito, grietas y siembras de vida. Entretejeres de lo pedagógico y lo colonial. In C. Walsh (Ed.), Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir (pp. 17-45). Ediciones Abya-Yala.). Participaram do Projeto estudantes de diferentes etnias que habitam o espaço de diáspora da universidade (Barros, 2023Barros, N. F. (2023). Existir e não pertencer - notas autoetnográficas de um cientista social no campo da saúde. Pontes Editores/Rede Unida.).

O Projeto contou com autorização do Comitê de Ética em Pesquisa concedida com o protocolo CAAE 26416019.2.0000.5404, que também se refere a deliberação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. A palavra Ayurí, escolhida pelos participantes indígenas do Projeto, tem origem na língua Nheengatú e expressa o significado de “fazer em coletivo”. De fato, esse é o princípio central da metodologia-pedagogia do co-labor, desenvolvida no projeto através da realização de rodas de conversa gerais e temáticas, produção de vídeos para disseminação de informações e realização de encontros semanais regulares, entre outras estratégias. Todas estas estratégias estão assentadas nos princípios da interculturalidade, interepistemicidade e decolonialidade, visando estabelecer produções com os estudantes indígenas, e não, sobre eles.

Nas rodas de conversa, emergiram relatos de estudantes indígenas sobre experiências de assédio e abuso sexual, ideações suicidas, desafios acadêmicos como procrastinação e sentimentos de incapacidade, além de dificuldades em lidar com a ansiedade e isolamento. Estas e outras falas reincidentes revelam aspectos críticos da experiência dos estudantes indígenas em relação à saúde mental. Está sendo preparado um artigo específico para aprofundar a análise dessas observações feitas durante o projeto, por isso, detalhes adicionais não serão expandidos nesta descrição.

Diante dos relatos obtidos nas rodas de conversa, a recomendação inicial para os estudantes indígenas foi buscar apoio no SAPPE da Unicamp. Contudo, percebeu-se uma desconfiança por parte desses estudantes em relação ao SAPPE, um fenômeno semelhante ao relatado entre os povos indígenas do Canadá (Inuítes, Primeiras Nações e Métis) que frequentemente evitavam procurar atendimento de saúde baseados na expectativa de serem tratados de maneira diferente por suas identidades indígenas e status socioeconômico (Tang & Browne, 2008Tang, S. Y., & Browne, A. J. (2008). Race matters: Racialization and egalitarian discourses involving Aboriginal people in the Canadian health care context. Ethnicity & Health, 13(2), 109-127. https://doi.org/10.1080/13557850701830307
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). A associação do SAPPE à estrutura universitária parece ter contribuído para tal visão, uma vez que estudantes expressaram preocupações sobre a confidencialidade das informações compartilhadas com psicólogos e psiquiatras do serviço, e possíveis implicações em seus históricos acadêmicos. Outros fatores que podem ter contribuído para a limitada adesão ao serviço incluem extensos períodos de espera, embora essa questão tenha melhorado significativamente no último ano, e a percepção dos estudantes de que os profissionais não compreendiam suficientemente suas realidades. Devido à confidencialidade dos dados do serviço, nossa análise é limitada apenas ao nosso grupo de estudo, não podendo, portanto, ser considerada representativa de todos os estudantes indígenas da Unicamp.

A identificação de demandas subjetivas agudas não atendidas pelo SAPPE motivou a equipe do Projeto Ayurí a buscar alternativas de solução. Profissionais qualificados foram selecionados para oferecer atendimento voluntário, adaptado às necessidades individuais de cada estudante indígena. Os atendimentos vêm sendo realizados de forma online e presencial, incluindo sessões em áreas comuns da moradia estudantil da Unicamp, no espaço Tribos de Gaia, e em caminhadas nas proximidades da moradia estudantil, local onde reside a maioria dos estudantes indígenas do campus de Campinas.

Rede de Escuta e Desaprendizagem Etno-Subjetiva

Até meados do ano de 2022, as demandas de saúde mental feitas por estudantes indígenas eram tratadas de forma pontual, sem articulação entre os profissionais voluntários disponíveis para o cuidado. Porém, nesse período, começaram a surgir algumas oportunidades de colaboração, em que diversas pessoas se ofereceram para apoiar a criação de mecanismos para atender a esses estudantes.

Entre os que ofereceram apoio, destacam-se indivíduos vinculados à coletividade da Rede de Atenção à Pessoa Indígena do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, ao coletivo Estação Psicanálise de Campinas, ao Fórum do Campo Lacaniano de Campinas, ao Laboratório de Etnopsicologia da Universidade de São Paulo (campus Ribeirão Preto), à Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as) e à Comissão Assessora para a Inclusão Acadêmica e Participação dos Povos Indígenas da Unicamp. Diante dessa crescente necessidade de organização e coordenação de esforços, criou-se uma rede de apoio a saúde mental indígena na Unicamp, organizada por meio de um grupo no WhatsApp em outubro de 2022. Esta iniciativa possui um caráter voluntário e busca uma abordagem colaborativa e integrada para proporcionar suporte psicológico adequado, levando em conta as particularidades culturais e subjetivas dos estudantes indígenas.

Até fevereiro de 2023, o grupo ainda não havia realizado nenhuma reunião formal. No entanto, nesta data, um estudante indígena do campus de Limeira se suicidou, culminando em novos movimentos no âmbito institucional e mobilização das pessoas relacionadas as causas dos estudantes indígenas. O Diretório Central dos Estudantes Indígenas, uma entidade de representação dos estudantes indígenas da Unicamp elaborou uma carta solicitando ajuda emergencial a saúde mental dos acadêmicos. Simultaneamente, a associação ATY GUASU do povo Guarani Kaiowá do Mato Grosso do Sul, povo presente em um dos territórios onde a Unicamp promove a aplicação de provas para seleção de jovens, fez uma carta à reitoria da universidade, assinada pelo cacique N. Mendes, N. V. Cárceres e V. Veron (Aty Guasu, 2023Aty Guasu. (2023). Carta à reitoria da Universidade Estadual de Campinas. Assinada por N. Mendes, N. V. Cárceres, e V. Veron [Documento interno não publicado].), solicitando que:

A universidade venha a ter olhares diferenciados aos nossos filhos e filhas que hoje estão buscando sua formação nessa universidade. Temos preocupação em relação ao estado psicológico de todos e todas as discentes porque são indígenas com especificidades próprias, modos de vida diferente, que deixaram suas aldeias e que estão transitando por um mundo a que não estão acostumados, longe de suas famílias, se encontram isolados de sua espiritualidade que é o que fortalece nosso corpo. Entendemos que não é fácil trilhar o mundo acadêmico onde o encontro de dois mundos ainda necessita de muito diálogo, principalmente o diálogo dos nossos conhecimentos espirituais e a ciência. Por isso, viemos solicitar assistência psicológica ou qualquer outra assistência que nossos filhos e filhas vierem a necessitar porque eles são a continuação de nossa existência.

Diante dos apelos e da situação de urgência em saúde mental agudizada, unido ao conhecimento de que o movimento de suicídio pode acontecer de cadeia (El Kadri et al., 2021El Kadri, M. R., Silva, S. E. S., Pereira, A. S., & Lima, R. T. S. (2021). Bem viver: saúde mental indígena. Rede Unida.), a rede iniciou um movimento mais sólido de encontros e propostas. É importante salientar que, de acordo com os dados do Ministério da Saúde (2017)Ministério da Saúde (Brasil). (2017). Perfil epidemiológico das tentativas e óbitos por suicídio no Brasil e a rede de atenção à saúde. Boletim Epidemiológico Secretaria de Vigilância em Saúde, 48(30)., a taxa de suicídio entre os indígenas é significativamente maior, com 15,2 óbitos por 100 mil habitantes, em comparação com a média de 5,3 por 100 mil habitantes não indígenas.

Ademais, é fundamental reconhecer que o suicídio de um aluno indígena carrega implicações e contextos específicos que o diferenciam significativamente de casos em alunos não-indígenas. Conforme destacado no livro organizado por Campo Araúz e Aparício (2017)Campo Aráuz, L., & Aparicio, M. (Orgs.) (2017). Etnografías del suicidio em América del Sur. Abya-Yala., esse fenômeno pode estar associado a uma complexa teia de fatores culturais. Entre eles, destacam-se os conflitos intergeracionais e conjugais, crises de identidade masculina moldadas por elementos mítico-simbólicos, e práticas culturais que interligam as esferas dos vivos e dos mortos. Além disso, é fundamental considerar que, em alguns casos, o suicídio pode ser um ato de denúncia ou protesto contra os históricos atos genocidas enfrentados pelos povos indígenas. Esta perspectiva enfatiza a necessidade de uma abordagem sensível e contextualizada ao lidar com tais situações em contextos indígenas.

Após esse trágico episódio, o grupo iniciou as reuniões online, sendo a primeira no dia 2 de março de 2023. Nesse encontro, dez pessoas participaram, com o objetivo de abordar a natureza emergencial das ações a serem tomadas. Além disso, houve a apresentação dos membros do grupo e discussão sobre suas disponibilidades para realização de atendimentos individuais e em grupo. A segunda reunião, em 16 de março, manteve o formato online, mas as reuniões subsequentes, em 1º de abril e 15 de abril, foram realizadas presencialmente a fim de trazer a dimensão do corpo e da presença física as discussões de tópicos que transcendem o psiquismo.

Com a transição para as reuniões presenciais, notou-se um maior envolvimento dos estudantes indígenas, no entanto com uma diminuição na participação dos profissionais de saúde. Apesar da abertura das agendas dos profissionais e da crescente aproximação de pacientes do coletivo, percebeu-se a necessidade de estabelecer uma conexão mais afetiva com os estudantes indígenas, visando otimizar a relação entre estes e os profissionais engajados. Nesse sentido, diversas ações foram idealizadas, tais como almoços, saraus, rodas de conversas e cartilhas de apresentação do grupo. Contudo, tais iniciativas enfrentaram dificuldades na prática, uma vez que demandaram tempo e recursos dos voluntários, o que resultou na postergação das ações.

Apesar de o grupo estar em processo de estruturação por meio das reuniões, o ciclo de encaminhamentos de atendimentos de alunos indígenas já estava em funcionamento. Anteriormente, as demandas ocorriam de forma pontual, com alunos ou professores ligados a eles, que conheciam psicólogos e os indicavam para os atendimentos necessários. No entanto, à medida que o grupo se desenvolvia e se organizava, essa abordagem foi substituída por um modelo mais colaborativo. Quando surgia alguma demanda de atendimento psicológico, os alunos indígenas do grupo ou professores envolvidos com eles a compartilhavam no grupo. Em resposta a esses chamados, um dos psicólogos do grupo se prontificava a realizar o acolhimento e dava continuidade ao atendimento do paciente. Esse novo processo tornou a busca por ajuda mais acessível e eficiente para todos os envolvidos.

No contexto do grupo em estruturação por meio das reuniões, também ocorria o compartilhamento de informações relevantes relacionadas à Psicologia Indígena e aos cursos voltados para a saúde indígena, visando aprimorar a atuação dos psicólogos. Além disso, dados referentes aos alunos indígenas e eventos relacionados às suas demandas eram divulgados, com o objetivo de fomentar o conhecimento e a sensibilidade acerca das questões que afetam essa comunidade.

Após tentativas frustradas de criar formas de aproximação do coletivo com os estudantes a partir de organizações de eventos, o coletivo optou por alinhar suas iniciativas não com a criação de novas estratégias de conexão, mas sim com a participação em eventos já consolidados que contavam com a presença ativa dos estudantes indígenas.

A integração da rede de saúde mental com estudantes indígenas através de eventos como acampamentos e manifestações políticas, além de atividades sociais e esportivas, é fundamental. Este engajamento nas causas políticas indígenas, conforme indicado por Achatz e Guimarães (2018)Achatz, R. W., & Guimarães, D. S. (2018). An Invitation to Travel in an Interethnic Arena: Listening Carefully to Amerindian Leaders’ Speeches. Integrative Psychological and Behavioral Science, 52(4), 595-613. https://doi.org/10.1007/s12124-018-9431-0
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e o Conselho Federal de Psicologia (2022)Conselho Federal de Psicologia. (2022). Referências técnicas para atuação de psicólogas (os) junto aos povos indígenas. Conselho Federal de Psicologia., é essencial para desenvolver um trabalho de saúde mental menos colonizador, uma abordagem também apoiada pela Articulação Brasileira dos(as) Indígenas Psicólogos(as). Tal proximidade com os estudantes também reforça valores de coletividade, contrapondo-se ao individualismo das práticas ocidentais (Pavón-Cuéllar, 2022Pavón-Cuéllar, D. (2022). Além da Psicologia Indígena: concepções mesoamericanas da subjetividade. Perspectiva.), e fortalece a confiança dos estudantes indígenas nos profissionais, além do efetivo apoio às causas em questão.

Ademais, o grupo de profissionais dedicados ao atendimento de estudantes indígenas organiza sessões quinzenais de supervisão horizontal, uma prática reconhecida por Ávila et al. (2023)Ávila, L. A., Flake, T. A., Buzaid, A. V., Toledo, R. P., Lam, C., Leal, R. C. R. G., & Junqueira, R. (2023). Intervisão como instrumento de pesquisa e produção de conhecimento em saúde. Vínculo - Revista do Nesme, 20(1), 56-65. https://doi.org/10.32467/issn.1982-1492v20n1a7
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como eficaz na promoção de conhecimento entre pares. Caracterizada pela horizontalidade e reflexão conjunta, esta abordagem proporciona suporte e orientação técnica valiosa. Alinhada aos princípios da Psicologia Indígena, a supervisão horizontal é fundamental para o desenvolvimento de técnicas adaptadas às necessidades específicas desses estudantes. A inclusão de profissionais com experiência em contextos indígenas traz insights cruciais ao grupo, facilitando o aprimoramento teórico e clínico, e consequentemente, elevando a qualidade dos atendimentos.

O grupo, que recebeu o nome de Rede de Escuta e Desaprendizagens Étnico-Subjetivas, atualmente é composto por 40 membros, e as atividades realizadas por eles estão detalhadas na Tabela 1. Dentre os membros, 10 profissionais de saúde mental, incluindo nove psicólogos e uma psiquiatra, estão ativamente engajados no atendimento clínico a estudantes indígenas da universidade e seus familiares. Até o presente, 23 alunos indígenas foram atendidos por esses profissionais. Desses, 5 interromperam o tratamento após uma ou duas sessões, 4 mantiveram o tratamento por mais de dois meses antes de interrompê-lo, e o tratamento de uma aluna foi interrompido devido a problemas pessoais de um profissional. Uma paciente recebeu atendimento emergencial de três sessões. Atualmente, 12 pacientes estão em atendimento ativo com os profissionais do grupo, incluindo 2 familiares indígenas de estudantes.

Tabela 1
Atividades dos membros do coletivo

Além disso, um grupo terapêutico voltado para indígenas residentes na cidade de Campinas tem sido realizado presencialmente no espaço Tribos de Gaia, localizado próximo à moradia estudantil da Unicamp. Este grupo realiza encontros quinzenais, contando com o acompanhamento de 2 psicólogos da rede. O grupo permanece aberto a novos membros e permite a entrada e saída livre de pacientes, facilitando o acesso e a flexibilidade no atendimento às necessidades dos participantes.

Desafios da Rede a Luz da Psicologia Indígena

Como mencionado anteriormente, as formulações no âmbito da Psicologia Indígena abrangem considerações profundas e nuances singulares. É crucial reconhecer que as práticas de cuidado em saúde não possuem universalidade, sendo necessário compreendê-las e aplicá-las levando em conta os contextos históricos, sociais e culturais específicos, enquanto se mantém um olhar atento para evitar práticas colonizadoras (Langdon, 2007Langdon, E. J. (2007). Diversidade Cultural e os Desafios da Política Brasileira de Saúde do Índio. Saúde e Sociedade, 16(2), 7-12.; Walsh, 2007Walsh, C. (2007). Interculturalidad y colonialidad Del poder. Un pensamiento y posicionamiento ‘otro’ desde la diferencia colonial. In S. Castro-Gómez & R. Grosfoguel (Eds.), Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global (pp. 47-62). Universidad Javeriana.). A discussão subsequente focará na análise de como a rede de apoio psicológico tem buscado se balizar por estas exigências únicas.

A dominância do paradigma psicológico euro-americano, propagado através de mecanismos coloniais, limita a compreensão da subjetividade de origens culturais diversas, negligenciando a rica complexidade, profundidade e amplitude dos saberes indígenas. Essa limitação demanda uma reorientação radical da prática psicológica para respeitar e incorporar conhecimentos e práticas indígenas, processos que implicam significativas “desaprendizagens”. Martins (2021)Martins, C. P. (2021). Desaprender 8 horas por dia: Psicologia e saúde indígena. Fractal: Revista de Psicologia, 33(3), 192-198. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v33i3/5846
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destaca essa urgência ao descrever sua experiência de trabalho com o povo Guarani e Kaiowá, afirmando que o trabalho do psicólogo com povos indígenas é “desaprender oito horas por dia” (Martins, 2021Martins, C. P. (2021). Desaprender 8 horas por dia: Psicologia e saúde indígena. Fractal: Revista de Psicologia, 33(3), 192-198. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v33i3/5846
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, p. 196). Essa abordagem desafia os profissionais a enfrentar e superar barreiras, sustentando a tensão da falta de compreensão e da ignorância. Isso implica não somente na consideração das circunstâncias individuais da pessoa em foco, mas também na valorização das realidades e perspectivas que se revelam significativas para o interlocutor. Confluindo com os achados de Achatz e Guimarrães (2018)Achatz, R. W., & Guimarães, D. S. (2018). An Invitation to Travel in an Interethnic Arena: Listening Carefully to Amerindian Leaders’ Speeches. Integrative Psychological and Behavioral Science, 52(4), 595-613. https://doi.org/10.1007/s12124-018-9431-0
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que mostram a potência advinda da possibilidade de criar novos entendimentos por meio dessa tensão.

Assim, o “não saber” não se apresenta apenas como uma lacuna, mas também como um estímulo, uma abertura para um reconhecimento do desconhecido nos processos terapêuticos. Esse desconhecido aparece como a base para a construção do conhecimento da rede de saúde mental.

Durante as supervisões horizontais, são explorados elementos culturais das etnias atendidas, com o objetivo de buscar conhecimentos que contribuam para a sinergia de saberes durante as consultas clínicas. Uma das psicólogas do grupo frequentemente expressa a ideia do encontro com o desconhecido através da frase: “Não sei o que é, mas não é isso”. Ela, fundamentada na teoria psicanalítica, constrói um conhecimento subjetivo a partir da linguagem dos pacientes. No entanto, quando não se compartilha a mesma cultura do paciente, muitos elementos da comunicação podem se perder, deixando lacunas entre o que é dito e o que os profissionais conseguem compreender. A falta de familiaridade com os símbolos culturais de cada estudante e suas famílias requer um esforço adicional para estabelecer uma conexão terapêutica.

Esses alunos possuem uma subjetividade rica e complexa, aprendida dentro de suas comunidades e famílias. Conforme aponta Pavón-Cuéllar (2022)Pavón-Cuéllar, D. (2022). Além da Psicologia Indígena: concepções mesoamericanas da subjetividade. Perspectiva., esses saberes chegam com os estudantes universitários, muitas vezes como intuitivos e fragmentados, podendo ser implícitos ou até mesmo vagos, mas refletem uma compreensão de mundo que transcende a estrutura formal do conhecimento subjetivo.

No cenário acadêmico da Unicamp, destaca-se a presença de estudantes do povo Baré, etnia que possui o maior número de alunos na instituição, conforme dados da Comissão Permanente para os Vestibulares (2023aComissão Permanente para os Vestibulares. (2023a). Vestibular Unicamp 2023 - Lista de 1ª chamada. https://www.comvest.unicamp.br/wp-content/uploads/2023/02/2.VI2023-UNICAMP-CH1.pdf
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, 2023b)Comissão Permanente para os Vestibulares. (2023b). Vestibular Unicamp 2023 - Lista de 2ª chamada. https://www.comvest.unicamp.br/wp-content/uploads/2023/02/2.VI2023-UNICAMP-CH2.pdf
https://www.comvest.unicamp.br/wp-conten...
. Nas supervisões clínicas, incluímos estudos sobre a cultura desse povo, pelo número de pacientes dessa etnia que passaram pela rede e pelas questões identitárias dessa comunidade. O povo Baré é caracterizado por uma profunda miscigenação, além de histórica atuação como comerciantes na região do Rio Negro (Instituto Socioambiental, 2024Instituto Socioambiental. (2024). Etnias do Rio Xié - Baré. Instituto Socioambiental. https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Baré
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). A maioria dos estudantes dessa etnia veio do contexto urbano da cidade de São Gabriel da Cachoeira. Na universidade, enfrenta-se o desafio de reconhecer a identidade indígena de alguns alunos cujas características físicas foram mais influenciadas pela miscigenação, apresentando traços “brancos” e divergindo dos estereótipos indígenas tradicionais. Além disso, sabendo que a construção de identidade é um processo dialético que se molda em resposta a realidade sociocultural envolvente, unindo o autoconhecimento e o reconhecimento social (Hall, 2003Hall, S. (2003). Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Editora UFMG.), observa-se que esses alunos muitas vezes se encontram vítimas de um racismo estrutural que, em suas regiões, eram mais voltados aos indígenas de contexto rural ou de recente contato, como os Yanomami ou Hupda.

Outro exemplo significativo discutido nas supervisões horizontais envolve a complexidade cultural do povo Ticuna, segunda etnia com maior número de alunos na Unicamp (Comissão Permanente para os Vestibulares 2023aComissão Permanente para os Vestibulares. (2023a). Vestibular Unicamp 2023 - Lista de 1ª chamada. https://www.comvest.unicamp.br/wp-content/uploads/2023/02/2.VI2023-UNICAMP-CH1.pdf
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, 2023bComissão Permanente para os Vestibulares. (2023b). Vestibular Unicamp 2023 - Lista de 2ª chamada. https://www.comvest.unicamp.br/wp-content/uploads/2023/02/2.VI2023-UNICAMP-CH2.pdf
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). A sociedade Ticuna é organizada por meio de um sistema clânico, no qual a transmissão de clãs de pai para filho desempenha um papel fundamental na formação da identidade individual. Nesse contexto sociocultural específico, existem os tradicionais com clãs “com penas” (clãs de pássaros) e “sem penas” (animais e plantas), mas, alguns alunos, pertencem a clãs não tradicionais, como os clãs de Boi e de Galinha, que são de filhos de mães indígenas com pais não indígenas, alterando suas posições dentro da dinâmica cultural. A falta de compreensão desse sistema de clãs Ticuna pode resultar em uma análise psicológica superficial, sem captar as nuances essenciais para iniciar uma compreensão da subjetividade do paciente. Além disso, o Ritual da Menina Moça, uma cerimônia de passagem que marca a transição da infância para a idade adulta, desempenha um papel fundamental na preparação das jovens para assumirem seus futuros papéis e responsabilidades na comunidade. Considerar se a aluna participou desse ritual é relevante para compreender sua subjetividade e contexto cultural (Matarezio Filho, 2020Matarezio Filho, E. T. (2020). Do ponto de vista das moças: a circulação de afetos na Festa da Moça Nova dos Ticuna. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 15(1), e20190065. https://doi.org/10.1590/2178-2547-BGOELDI-2019-0065
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).

Outro cenário discutido nas supervisões horizontais é a realidade de guerra nos territórios dos alunos Guarani e Kaiowá, no Mato Grosso do Sul. Essas áreas estão frequentemente sob ameaça do agronegócio, que ataca tanto as casas de rezo quanto a auto-organização comunitária para retomada dos territórios expropriados pelo Estado e/ou fazendeiros. Conhecer o contexto de luta das famílias desses alunos amplia a compreensão além do âmbito individual e acadêmico, levando em consideração os desafios subjetivos enfrentados no contexto terapêutico, além de destacar a importância do território como componente central na manutenção da saúde mental dos povos indígenas (Faria & Martins, 2023Faria, L. L., & Martins, C. P. (2023). “Terra é vida, despejo é morte”: Saúde e luta Kaiowá e Guarani. Psicologia: Ciência E Profissão, 43, e245337. https://doi.org/10.1590/1982-3703003245337
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).

Para os profissionais que atuam com manuais de diagnóstico, testes psicológicos, entrevistas mais ou menos estruturadas e outras ferramentas semelhantes, os abismos de aplicação metodológica são ainda maiores. Estabelecer uma Classificação Internacional de Doenças em Psicologia para indígenas não tem se mostrado viável na experiência da rede, pois pode levar à patologização de algo tão complexo e transcendental quanto as cosmologias dos povos indígenas.

Mesmo quando os alunos e seus familiares chegam com diagnósticos clínicos preexistentes, como depressão ou transtorno borderline, como se verificou, os profissionais precisam ir além dessas categorias para realmente entenderem quem se apresenta. Uma vez que, como ressalta Pavón-Cuéllar (2022)Pavón-Cuéllar, D. (2022). Além da Psicologia Indígena: concepções mesoamericanas da subjetividade. Perspectiva., a perspectiva da Psicologia euro-americana pode propiciar interpretações equivocadas, como, por exemplo, a identificação inadequada de sintomas de esquizofrenia em indivíduos com relações diversas entre os reinos espiritual, animal, vegetal e até mineral. Da mesma forma, comportamentos que refletem humildade e desapego em contextos indígenas podem ser erroneamente interpretados como sintomas de depressão. Assim, as formas de subjetivação indígenas correm o risco de serem mal compreendidas, patologizadas e até criminalizadas quando avaliadas por meio de categorias psicológicas convencionais.

Portanto, a descolonização da Psicologia e sua convergência com a Psicologia Indígena demandam a inclusão respeitosa dos indígenas como sujeitos e professores de conhecimento especializado, em uma relação de igualdade epistêmica e política. Nesse contexto, enxergamos a intervenção terapêutica como uma empreitada coautoral, onde tanto o profissional psicólogo quanto o paciente se posicionam como colaboradores ativos no delineamento do processo terapêutico. Destaca-se o exercício de estabelecer construções afetivas entre os interlocutores, tendo reconhecido que a fundamentação emocional emerge como substrato essencial na instauração de interações colaborativas e na produção de um conhecimento profundamente alinhado às necessidades comunitárias (Guimarães, 2020Guimarães, D. S. (2020). Dialogical multiplication: Principles for an indigenous Psychology. Springer. https://doi.org/10.1007/978-3-030-26702-5
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). Os emergentes trajetos interepistêmicos, balizados pela prática colaborativa, elevam a intrincada teia de relações, aproximações e dissonâncias presentes nos processos terapêuticos ao epicentro da discussão. A incorporação e reflexão sobre tais nuances na prática clínica potencializam a interlocução entre terapeutas e pacientes, subvertendo paradigmas hegemônicos e reconhecendo os pacientes como protagonistas em seu próprio processo de recuperação.

Diante do exposto, observamos que a rede de saúde mental que vem se formando nos últimos anos opera em sintonia com as diretrizes estabelecidas no documento do Conselho Federal de Psicologia. Auxiliando na promoção da permanência dos alunos indígenas na universidade, ao mesmo tempo em que estimula a reflexão sobre suas aspirações e projetos de vida. Desta forma, os psicólogos atuantes têm se pautado no espectro plural dos povos indígenas em suas intervenções, considerando as distintas trajetórias, vivências e heterogeneidade do corpo discente, incluindo as experiências universitárias e as projeções de vida plurais e propiciando compartilhamentos múltiplos.

Adicionalmente, em consonância com o proposto no referido manual e a imbricação com as questões acadêmicas, postula-se a viabilidade de elaborar, em colaboração com os discentes, estratégias que viabilizem uma universidade que honre e incorpore as especificidades culturais indígenas. Uma instituição acadêmica onde os estudantes indígenas possam espelhar a assertiva de Munduruku (2012, p. 43): “Posso ser quem você é, sem deixar de ser quem eu sou”. Tal perspectiva corrobora a concepção de identidade híbrida proposta por Hall (2003)Hall, S. (2003). Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Editora UFMG., onde o sujeito diaspórico configura sua identidade através do embate e diversidade, e não em sua ausência.

Considera-se que a rede de apoio a saúde mental indígena tem sido benéfica aos estudantes indígenas e seus familiares, uma vez os encaminhamentos para atendimentos continuam ocorrendo e diversos tratamentos iniciados por meio dessa dinâmica têm se mantido ao longo do tempo.

Conclusão

A Psicologia Indígena emerge como um poderoso vetor de mudança no cenário das disputas de narrativas culturais dominantes. Dentro desse quadro, as universidades assumem uma responsabilidade primordial ao estabelecer diálogos e promover interações entre variadas culturas e sistemas de conhecimento. O estudo realizado com o coletivo de voluntários constituído na Unicamp não apenas enriquece o debate no domínio da Psicologia Indígena, mas também evidencia a potência de uma perspectiva que prioriza a interepistemicidade e o trabalho colaborativo. Este estudo, portanto, pode servir como um referencial para o desenvolvimento de estratégias de apoio, promovendo uma compreensão mais abrangente dos fenômenos psicológicos em questão.

É fundamental ressaltar que a intervenção do coletivo junto aos estudantes indígenas, embora ainda recente, já oferece insights valiosos. Dessa forma, considera-se essencial a continuidade da observação e análise ao longo do tempo para avaliar com maior profundidade a eficácia das práticas desse coletivo orientado pela Psicologia Indígena. Este acompanhamento prolongado permitirá uma compreensão mais abrangente dos impactos e resultados dessas intervenções.

Esta pesquisa sedimenta sua relevância no âmbito da Psicologia ao propiciar uma reflexão crítica acerca da ciência psicológica enquanto instrumento analítico e interventivo de caráter universal. Ademais, sublinha a dinâmica e adaptabilidade dos saberes indígenas, que, contrariando noções preconcebidas, não estão fossilizados, mas sim são fruto da construção e autodefinição de povos inseridos em uma história global.

Por fim, a lacuna existente na abordagem clínica da Psicologia Indígena sinaliza uma necessidade premente de futuros estudos, sobretudo considerando a demanda manifesta de indivíduos de diversas etnias por intervenções psicológicas personalizadas.

  • Como citar esse artigo: Assis, E. S., Gonçalves, L. P., Rodrigues, F. H., Vilharva, K. N., & Barros, N. F. (2024). Desafios da Psicologia Indígena no atendimento a estudantes universitários. Estudos de Psicologia (Campinas), 41, e230095. https://doi.org/10.1590/1982-0275202441e230095pt
  • Apoio

    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Processo nº 2020/16667-8).

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Editado por

Editor

Danilo Silva Guimarães

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Ago 2023
  • Aceito
    31 Jan 2024
  • Publicado
    15 Maio 2024
Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de Campinas Editora Splendet, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campus I, Rua Prof. Dr. Euryclides de Jesus Zerbini, 1516, Pq. Rural Fazenda Santa Cândida, Telefone: (55 19) 3343-7223. - Campinas - SP - Brazil
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