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Adeus ao fim da história: Uma análise crítica da crise da democracia

Farewell to the End of History: A Critical Analysis of the crisis of democracy

Resumo

Existe na atualidade certo consenso sobre a crise atravessada pela democracia liberal e suas instituições. O artigo, em um primeiro momento, passa em revista obras que se vertem sobre o tema no intento de demonstrar suas insuficiências, tanto em termos de diagnósticos quanto de soluções. Em um segundo momento há a proposta de um modo distinto de se encarar a crise da democracia, modo este ensejado por Marx: a forma crítico-categorial. De acordo com essa outra vertente, tratar-se-ia de fenômeno estrutural, imanente ao próprio capitalismo, não de evento conjuntural e atinente tão somente à esfera política. Finalizamos o artigo com o escrutínio dos trabalhos de Robert Kurz sobre o assunto, autor que dá prosseguimento às contribuições sublinhadas de Marx na tentativa de interpretação dos eventos dos séculos XX e XXI.

Palavras-chave:
Sociologia da Crise; Capitalismo; Marxismo; Crítica categorial; Crise da Democracia

Abstract

There is currently a certain consensus on the crisis that liberal democracy and its institutions are going through. The article, at first, reviews works that deal with the subject in an attempt to demonstrate its insufficiencies, both in terms of diagnoses and solutions. In a second moment, there is the proposal of a different way of facing the crisis of democracy, a way that Marx envisioned: the categorical-critical way. According to this other perspective, it would be a structural phenomenon, immanent to capitalism itself, not a conjunctural event and related only to the political sphere. We end the article with a scrutiny of Robert Kurz’s works on the subject, an author who continues Marx’s underlined contributions in an attempt to interpret the events of the 20th and 21st centuries.

Keywords:
Sociology of crisis; Capitalism; Marxism; Categorical criticism; Crisis of Democracy

Introdução: Para uma crítica crítica das críticas da crise da democracia

Se há um espectro que na atualidade ronda a Europa - e o resto do mundo globalizado, por conseguinte -, é o espectro da crise. Farta bibliografia lançada nos últimos cinco anos comprova o temor de um novo final dos tempos. E muitas dessas publicações se vertem sobre uma crise em específico: a do sistema racional-ocidental de governança denominado de democracia liberal. Os alertas sugerem a exaustão desta que foi hipostasiada como forma única e final de organização política, social e representativa após a queda da União Soviética (Kurz, 2009KURZ, Robert. (2009), O livro negro do capitalismo: Um canto de despedida da economia de mercado. Tradução de Boaventura Nunes e André Villar Gomez., p. 5), e que se encontra em operação contínua na maior parte do globo desde o término da Segunda Guerra Mundial1 1 . O cientista político norte-americano Francis Fukuyama chegou a dizer que teríamos atingido o fim da História, isto é, que a democracia liberal seria a forma acabada e última da vida humana em sociedade. Ver Fukuyama (1989). . Não por menos: o mito da modernização capitalista sem fim (Kurz, 1993), modernização esta dotada de progressos econômico, social, político e cultural, do qual a democracia é rebento e guia, ao mesmo tempo, deu à mostra seus limites, levando-nos a presenciar o recrudescimento inaudito do extremismo, da intolerância, da violência, da miséria, do preconceito, da desigualdade, do morticínio, da guerra, da acelerada destruição da natureza e do meio ambiente, em suma, da ruptura de quase todos os pactos e laços sociais que tornariam, em tese, a própria vida democrática - e a vida em si - possível2 2 . Existem infindos dados que apontam nessa direção, e provenientes de estudos financiados por instituições “insuspeitas” nesse sentido, como Banco Mundial, Crédit Suisse, FMI etc. Ver Marques (2019). . Ironia do destino, enseja-se aos outrora acusados de alarmistas ou apocalípticos serem recuperados neste instante, e justamente pela sensatez tardia de seus escritos.

Como Marx bem nos ensinou, no entanto, raios não costumam irromper em céu de brigadeiro, assim como crises, no mundo social, não soem vir à luz de uma hora a outra, sem qualquer razão que a anteceda. Nesse sentido, é inegável que o longamente gestado crash financeiro de 2008 - momento da bancarrota do capitalismo de cassino (Kurz, 2015KURZ, Robert. (2015), Poder mundial e dinheiro mundial: Crônicas do capitalismo em declínio. Rio de Janeiro, Consequência Editora.) - figure antes no rol de punção da crosta do que de fato inopinado. A generalização do desalento e do desespero foi das periferias mais recônditas, ou seja, dos lugares em que desde sempre tiveram residência fixa, ao coração do capitalismo, o que, de início, deu voz a atores até então adormecidos, à esquerda e à direita, a depender do contexto. Tais movimentos, provenientes da quebra da “normalidade institucional”, encheram os olhos de alguns. Quantos não foram os que viram o esgotamento do capitalismo em sua forma neoliberal dando boas-vindas a organizações jovens, horizontais e espontâneas, fomentadas ineditamente no meio digital e que viriam a dar novo sopro à combalida democracia da partidocracia, (Castells, 2018CASTELLS, Manuel. (2018), Ruptura: a crise da democracia mundial. Rio de Janeiro, Zahar., p. 73) - versão que no Brasil se expressa pelo engessamento do emedebismo (Nobre, 2022NOBRE, Marcos. (2022), Limites da democracia: De junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo, Todavia.). Brotados à margem das velhas estruturas, respostas atuais às crises atuais; assim foram encarados em um primeiro momento o Occupy Wall Street (Negri e Hardt, 2016NEGRI, Antonio & HARDT, Michael. (2016), Declaração: Isto não é um manifesto. São Paulo, n-1 Edições.), os rebentos da precarização do emprego mundial, o precariado (Standing, 2013STANDING, Guy. (2013), O precariado: a nova classe perigosa. São Paulo, Autêntica Editora.), a Primavera Árabe (Negri e Hardt, 2011; Wallerstein, 2011WALLERSTEIN, Immanuel. (2011), “Os ventos da mudança”. Tradução de Antonio Martins. Outras Palavras, 2 mar. Disponível em https://outraspalavras.net/sem-categoria/os-ventos-da-mudanca/, consultado em 19/03/2023.
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; Castells, 2013), os Indignados espanhóis (Castells, 2013) ou, no caso brasileiro, as chamadas Jornadas de Junho de 2013 (Bringel, 2013BRINGEL, Breno. (2013), “Miopias, sentidos e tendências do levante brasileiro de 2013”. Insight e Inteligência, 62: 42-53. Disponível em http://www.insightinteligencia.com.br/62/PDFs/pdf3.pdf, consultado em 19/03/2023.
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; Singer, 2013SINGER, André. (2013), “Brasil, junho de 2013: Classes e ideologias cruzadas”. Novos Estudos Cebrap, 97: 23-40. Disponível em https://www.scielo.br/j/nec/a/6WV7TBcKVrbZDdb7Y8mFVZp/?lang=pt, consultado em 19/03/2023.
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), entre outros.

No entanto, a flor de lótus brotada do lodo capitalista murchou, e a Besta do Apocalipse, montada por Trump, Bolsonaro, Orban, Duterte, Le Pen, Meloni, Modi, Morawiecki e companhia, chegou a galope. Desconcertados, acadêmicos lançavam-se à compreensão do que sucedia lançando mão do que tinham à disposição. Foi assim que tais figuras e suas maltas receberam as alcunhas de nova direita, autoritários, populistas, neofascistas, democratas iliberais etc. e, neste ponto, em meados de 2018, começam a pulular os livros, coletâneas e artigos mencionados sobre a possível crise terminal da democracia e a ameaça de sua desintegração3 3 . Brown sublinha a dificuldade apresentada pelos acadêmicos para apreender o fenômeno: “Nós temos dificuldade até mesmo com a nomenclatura: trata-se de autoritarismo, fascismo, populismo, democracia não liberal, liberalismo antidemocrático, plutocracia de extrema direita? Ou outra coisa?” (Brown, 2019, p. 10). . Tal enguiço das instituições democráticas foi doravante enquadrado por diversos estudiosos, compondo um continuum de correntes4 4 . As produções foram selecionadas no intento de representarem a variedade de filiações teóricas, sobretudo de livros, ou seja, de obras mais densas que tratem basicamente da crise da democracia liberal. Temos ciência de que com essa seleção não esgotamos nem o assunto nem a crítica àqueles que se ocuparam dele. . Encontram-se diagnósticos e soluções envoltos em capas que vão desde o típico liberalismo institucionalista anglo-saxão (Levitsky e Ziblatt, 2018LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. (2018), Como as democracias morrem. Rio de Janeiro, Zahar.; Mounk, 2019MOUNK, Yascha. (2019), O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo, Companhia das Letras.; Runciman, 2018RUNCIMAN, David. (2018), Como a democracia chega ao fim. São Paulo, Todavia.), em estudos sociológicos fincados na perspectiva institucionalista de viés social-democrata, tanto europeia quanto norte-americana (Castells, 2018CASTELLS, Manuel. (2018), Ruptura: a crise da democracia mundial. Rio de Janeiro, Zahar.; Przeworski, 2020PRZEWORSKI, Adam. (2020), Crises da democracia. Rio de Janeiro, Zahar Editora.), até algo próximo ao que (auto)definem como teoria crítica, marxismo, neomarxismo ou foucaultianismo (Brown, 2019BROWN, Wendy. (2019), Nas ruínas do neoliberalismo: A ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos, Editora Politeia.; Streeck, 2018STREECK, Wolfgang. (2018), Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo, Editora Boitempo.; Nobre, 2022NOBRE, Marcos. (2022), Limites da democracia: De junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo, Todavia.).

A despeito dessa pletora de possibilidades, existe uma tendência unificante: a pressuposição de que o regime democrático e suas instituições em crise - sejam elas quais forem - devam ser compreendidos em separado do sistema totalizante que dirige nossas vidas, quer dizer, do capitalismo. Fatores sociais e histórico-econômicos atinentes à modernização capitalista figuram nessas obras, no máximo, como variáveis causais justapostas e episódicas a serem contabilizadas no jogo político, conformando uma espécie de mosaico analítico que se movimenta em um circuito fechado. Esses fatores, considerados de antemão heterônomos à esfera política, podem, segundo tais estudos, apenas “interferir” na endogeneidade de seu funcionamento, jamais a integrando de modo imanente.

Desse modo, parte dos teóricos supra, que ainda operam com o conceito de capitalismo, se fia mormente na crítica ao que denominam de neoliberalismo5 5 . Uma definição que pode se ajustar à maioria das teorizações mobilizadas é a de Brown: “O neoliberalismo é mais comumente associado a um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros” (Brown, 2019, pp. 28-29). . Esse capitalismo politicamente “mau”, proveniente de fins dos anos 1970 supostamente por arbítrio dos governos Ronald Reagan e Margareth Thatcher (Dardot e Laval, 2016DARDOT, Pierre & LAVAL, Christian. (2016), A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Editora Boitempo.; Brown, 2019BROWN, Wendy. (2019), Nas ruínas do neoliberalismo: A ascensão da política antidemocrática no Ocidente. Santos, Editora Politeia.) - traição de rentistas contraposta ao “bom” capitalismo social-democrata do pós-Segunda Guerra, conforme defende abertamente Streeck (2018STREECK, Wolfgang. (2018), Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. São Paulo, Editora Boitempo., p. 17) -, teria dado à luz crises estruturais que estariam na base do que vivenciamos na democracia atual (Przeworski, 2020PRZEWORSKI, Adam. (2020), Crises da democracia. Rio de Janeiro, Zahar Editora., p. 14). São elencados como resultantes dessa dinâmica o engessamento do raio de ação da esquerda (Nobre, 2022NOBRE, Marcos. (2022), Limites da democracia: De junho de 2013 ao governo Bolsonaro. São Paulo, Todavia., p. 28; Brown, 2019; Streeck, 2018), a capitalização à extrema-direita do ressentimento de partes desclassificadas da população (Brown, 2019, p. 14; Hochschild, 2016HOCHSCHILD, Arlie. (2016), Strangers in their own land: Anger and mourning on the American right. Nova York, The New Press.), o aumento da desigualdade (Castells, 2018CASTELLS, Manuel. (2018), Ruptura: a crise da democracia mundial. Rio de Janeiro, Zahar., p. 13; Przeworski, 2020, p. 14) e a imposição de uma mentalidade geral individualista e predatória, que rapta a vida política de nossos dias (Brown, 2019; Dardot e Laval, 2016).

Já a outra parte dos estudiosos faz recair a ênfase analítica na questão da falta de legitimidade da representação política da atualidade e em seus correspondentes valores ideais corrompidos, subvertidos ou esquecidos. Mounk (2019MOUNK, Yascha. (2019), O povo contra a democracia: Por que nossa liberdade corre perigo e como salvá-la. São Paulo, Companhia das Letras.) e Levitsky e Ziblatt (2018LEVITSKY, Steven & ZIBLATT, Daniel. (2018), Como as democracias morrem. Rio de Janeiro, Zahar.), por exemplo, preconizam que, se a democracia fenece, significa que a sanha de líderes astutos, clientelistas, corruptos e mal-intencionados (Mounk, 2019, p. 8; Levitsky e Ziblatt, 2018, p. 17), a ausência de composições propositivas e pactos suprapartidários (Mounk, 2019, p. 9; Levitsky e Ziblatt, 2018, p. 246) ou um povo despreparado para conviver com regras objetivas e consuetudinárias foram fatores que a deixaram à míngua. Caberia encontrar um ponto de equilíbrio entre uma representatividade de demandas populares que não degenerasse em populismo, bem como uma filtragem institucional liberal que não se tornasse elitismo (Mounk, 2019, p. 27). Ao contrário dos estudos assinalados acima, que enquadram o capitalismo como ente estritamente político, mas que ao menos o levam em consideração, aqui se trata de conceito ausente das teorizações, como se entendido tal qual pano de fundo natural de nossas vidas.

As gradações sublinhadas entre tais estudos, no entanto, quando vistas mais de perto se esfarelam, na medida em que se referem tão somente à seleção, ao arranjo e à disposição de elementos episódicos e aleatórios que possam ser causais à identificada crise. Há um intercâmbio entre variáveis fortuitas que figuram como relevantes na explicação causal teórica, mas nada para além de combinações mais ou menos idealistas, mais ou menos materialistas e muitas vezes vistas como que “brotadas” feito cogumelos a “influenciar” o âmbito político-democrático. Aqui operaria o princípio analítico norteador que Horkheimer caracterizou como o caro à teoria tradicional nos idos da década de 1930:

[…] Este estabelecer a relação entre a mera percepção ou constatação do fato concreto e a ordem conceitual do nosso saber chama-se explicação teórica. Pressupondo-se as circunstâncias a, b, c, d, deve-se esperar a ocorrência q; desaparecendo p, espera-se a ocorrência r, advindo g, então espera-se a ocorrência s […]. É o modo de existência da teoria em sentido tradicional. […] Ainda que para o próprio cientista só os motivos imanentes sejam válidos como determinantes (Horkheimer, 1983HORKHEIMER, Max. (1983), “Teoria tradicional e teoria crítica”. In: BENJAMIN, Walter et al. Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, pp. 117-154. (Col. Os Pensadores)., pp. 120-122).

As vias analíticas disponíveis, por mais variegadas que aparentem ser, operam por meio da mesma separação a priori entre o que é visto como proveniente de âmbitos distintos da esfera política, aqueles provenientes da própria política, e suas conjunções resultantes. Requerem, por conseguinte, a explicação dessa esfera tão somente por meio da subsunção da economia, da história, da sociabilidade capitalista e de seus movimentos fetichizados ao reino da política emancipada. No entanto, esse movimento metodológico não configura novidade; tal maneira de as ciências sociais encararem o mundo era asseverada explicitamente já há mais de quarenta anos por Jürgen Habermas, em sua Teoria da Ação Comunicativa6 6 . O estatuto da obra de Habermas perante seus antecessores da Teoria Crítica, dentre eles o citado como antípoda Max Horkheimer, é problemático e envolve inúmeras discussões. Ao passo que existem aqueles que o consideram herdeiro do legado da Teoria Crítica, como Wiggershaus (2001) e Durand-Gasselin (2012), há outros que contestam essa herança, como Neumann (2008) e Rodier (2022). . A asserção que conferia a prerrogativa de dissociar para analisar - o “cartesianismo” subjacente a todas essas correntes teóricas - pressupõe a separação essencial entre capitalismo e democracia, ou seja, a separação analítica da esfera da economia e a da política, como se se tratasse de fenômenos de naturezas distintas e conflituosas, apenas.

Entre capitalismo e democracia há uma tensão indissolúvel; com eles competem pela prioridade, sobretudo, dois princípios opostos de integração social […]. Os dois imperativos se confrontam mormente na esfera pública política (Habermas, 1988HABERMAS, Jürgen. (1988), Theorie des kommunikativen Handelns, vol. II. Frankfurt am Main, Suhrkamp., p. 507)7 7 . Tradução dos autores. .

O mesmo Habermas iria ainda mais longe, chancelando não só o movimento dissociativo antevisto, isto é, o da separação essencial entre, em última instância, as esferas política e econômica, mas ainda o isolamento de fatores visando ao escrutínio de uma única esfera. Em texto diverso, ao criticar a pretensão de erigir uma abordagem totalizante à modernidade e suas instituições, Habermas hipostasia teoricamente a dissociação, conferindo a dignidade da modernidade na diferenciação das esferas de valor resultante do processo de racionalização: “A dignidade própria da modernidade cultural consiste naquilo que Max Weber denominou a diferenciação específica das esferas de valor” (Habermas, 2002, p. 161). Sem a pretensão de entrarmos nas minúcias dos argumentos de Habermas, no entanto, o que foge ao objetivo deste artigo, cumpre ressaltar possíveis antecedentes dos tipos de análise em pauta, que compreendem a quase totalidade dos estudos disponíveis sobre a crise, conforme exposto8 8 . Outros autores de referência, provenientes de escolas completamente distintas da de Habermas, como Robert Dahl, por exemplo, defendem um ponto de vista teórico muito próximo ao antes apresentado, demonstrando a ubiquidade de tal pressuposto das análises formais nas ciências sociais que envolvam a relação problemática entre democracia e capitalismo. Ver Dahl (2001). .

Por outro lado, existe um veio nas ciências sociais que toma como ponto de partida a identidade basal entre o capitalismo e suas instituições, dentre as quais o Estado, a economia e a política em seus fundamentos. Tal tradição finca origem na crítica marxista à relação problemática instaurada no interstício entre a emancipação política do Estado e a sociedade civil burguesa, e se desenvolveu ao longo do século XX em meio a estudos que não deixaram de lado a atenção a diversos níveis de dissociação. Para além de apreensões conjunturais e parcializadas que os tentassem elucidar, uma razão ínsita deveria ser recuperada, movimentando a combinação da compreensão das partes em meio a um todo dialeticamente integrado. A relação da democracia e do capitalismo não envolveria, em suma, nem “dois princípios opostos de integração social”, como queria o reformista Habermas (2002HABERMAS, Jürgen. (2002), O discurso filosófico da modernidade. São Paulo, Martins Fontes.), nem “princípios antitéticos”, como imaginava a autora marxista Ellen Wood (2003WOOD, Ellen Meiksins. (2003), Democracia contra capitalismo: A renovação do materialismo histórico. São Paulo, Boitempo., p. 8); pelo contrário, no máximo, trata-se de duas faces da mesma moeda, literalmente.

Partindo do escrutínio da imposição histórica do sistema capitalista, de suas instituições, categorias e de seu modo peculiar de evolução, o alemão Robert Kurz (1943-2012), oriundo do grupo que editava a revista com o sintomático nome de Krisis9 9 . Para maiores informações sobre o grupo Krisis, seus componentes, contribuições e desdobramentos, como o grupo Exit!, ver Jappe (2006, p. 69-70) e o sitehttp://www.obeco-online.org/cisao_krisis.htm, consultado em 19/03/2023. , se ocupou desde a década de 1980 do processo denominado por ele de colapso da modernização (Kurz, 1993). Kurz defendia pressuposto contrário ao dos autores antes vistos: o de que não bastava se acercar dos elementos causais e episódicos às crises por meio de seus isolamentos e posterior correlação; antes, era mister compreender a própria gestação das crises - inclusive a do âmbito representativo - em meio à totalidade irracional do sistema produtor de mercadorias.

Propomos neste artigo, por conseguinte, apresentar uma possibilidade de compreensão e elucidação da crise atual distinta das elencadas. Para tanto, iniciamos com o exame de alguns escritos de Karl Marx, em que ele põe a lume as contradições entre sociedade civil burguesa e Estado já quando da instauração do capitalismo em países europeus e norte-americanos. O escamoteamento das fissuras basilares desta nova sociedade seria levado a cabo em meio à representação política universal formalista, baseada no Estado politicamente emancipado e em seus instrumentos legitimadores, como o direito. No entanto, um antagonismo insolúvel subjaz à convivência conflitante e, ao mesmo tempo, necessariamente complementar entre as razões política e econômica, motivo pelo qual uma crise estrutural e endêmica, incapaz de ser ultrapassada por meio de reformas e rearranjos atinentes ao próprio sistema capitalista, encontra-se no fundamento da forma de representação política.

Seguiremos, então, pontuando as contribuições de Robert Kurz, que se apoiam na constatação dessa mesma crise basal e insuperável presente em Marx10 10 . A relação da obra de Kurz com Marx e os marxismos foi tratada por Regatieri (2009). . Kurz se verte, por meio de seu ferramental crítico, sobre as aporias dos séculos XX e XXI, momentos em que a ascensão da extrema-direita, o esgotamento e a impotência da esquerda, a barbárie e o asselvajamento das relações sociais em meio à democracia representativa se fizeram presentes em conjunção com as derrocadas de modelos de processo de valoração do capital. Inspirado sobretudo na chancela “esotérica” de Marx (Exit!, 2007), isto é, nos achados do clássico que pouca ou quase nenhuma atenção tiveram ao longo do tempo por parte de movimentos sociais, do marxismo pretensamente oficial ou do acadêmico, o alemão ensaia uma interpretação da crise da democracia atual articulada com as dinâmicas de racionalização econômicas e políticas de longo prazo (Kurz, 2009). Marx e Kurz, nesse sentido, tocam profundamente nas feridas da atualidade.

Ao frisarem a indissociabilidade entre democracia, capitalismo e crise, demonstram que sem uma crítica que tome as próprias categorias provenientes do mundo burguês, naturalizadas ao longo do tempo, não há possibilidade de qualquer emancipação, sequer de uma compreensão científica ajustada ao que ocorre. Tencionamos com isso a apresentação de novos horizontes interpretativos calcados nessa tradição clássica das ciências sociais tão malbaratada - tanto por pretensos adeptos do denominado marxismo quanto por contumazes detratores -, mas que, aparentemente e à revelia de determinados prognósticos, ainda tem muito a dizer em e sobre nossos dias.

Marx, o homem e o cidadão

Além de célebre e celebrada, a obra de Karl Marx suscitou controvérsias variadas ao longo do tempo11 11 . Desde querelas disparatadas, como a de se alguns de seus rebentos eram ou não panfleto antissemita (Birnbaum, 2004), outros de justificativa para totalitarismos (Bensaïd, 2010), até questões mais pertinentes, como a de se existiria uma teoria do Estado em sua obra (Bobbio, 1983). Mesmo intérpretes mais simpáticos acentuaram que faltavam elementos em determinado instante, como, por exemplo, o sujeito da história, isto é, o elo com o materialismo científico, carência que tornaria certos textos sem síntese coerente e ainda dotados de tinturas hegelianas, filosofantes ou liberais-democráticas (Löwy, 2002, p. 25; Bensaïd, 2010, p. 27). . Situação normal para um “clássico”, cujo princípio tende a ser a permanência e a pertinência de certas questões levantadas - que transcendem suas próprias épocas e são capazes de dizer algo novo sobre distintas temporalidades12 12 . Ver Alexander (1999). . Marx, no entanto, diferentemente de outros reputados fundadores das ciências sociais, como Max Weber ou Émile Durkheim - estes geralmente restritos às discussões internas aos muros científicos da academia -, viu seus escritos serem largamente apropriados por profissionais da política, líderes sindicais, movimentos sociais etc., tendo sido, talvez, um dos mais exitosos teóricos do século XIX no que tange à ressonância de suas ideias.

Tal fato, se por um lado, ensejou a ubiquidade de algumas de suas contribuições, como, por exemplo, a luta de classes, o papel do proletariado na realização da história e a revolução como horizonte final, por outro, criou um circuito quase religioso de devotos-intérpretes-seguidores mais ou menos legítimos, mais ou menos autorizados a dissertarem sobre a “verdade” de sua herança. E esse movimento de vulgarização, politização, religiosificação e, em certos casos, estatização de sua obra deixou de lado ou obnubilou certas virtudes que ou restaram restritas aos mesmos muros que cercaram Durkheim e Weber, ou foram desenvolvidas por livres-pensadores, marginais ou extra-acadêmicos, como Robert Kurz. O que realmente interessava aos marxistas ortodoxos em geral, na maior parte do tempo - e ao próprio Marx enquanto agente político datado e pautado em suas descobertas, frise-se -, era a articulação de uma positividade ontologizante (Kouvélakis, 2000), encarnada no proletariado, na luta de classes, na revolução ou em outras temáticas caras ao que Kurz denomina de “marxismo exotérico”, o que ensejava a luta dentro da política e por meio da política13 13 . Kurz denomina ironicamente de marxismo exotérico a parte da obra de Marx que foi apropriada pelos movimentos sociais de esquerda, pelo leninismo, pela social-democracia e por todos os seus desdobramentos. Ver Exit!, 2007. .

Em contrapartida, a crítica categórica, radical e negativa sobre a sociedade capitalista que Marx esboçou em diversos de seus textos só foi posta em relevo de modo sistemático em meados do século XX pela denominada Escola de Frankfurt, tendo, a partir de então, percorrido alguns caminhos (Jay, 2008JAY, Martin. (2008), A imaginação dialética. São Paulo, Contraponto.; Wiggerhaus, 2001; e Durand-Gasselain, 2012). Furtando-se à possibilidade de engajamento político imediato, na maior parte das vezes, desenvolveu-se em meio a ambientes e critérios bem distintos das correntes “exotéricas” mencionadas, investidas dotadas de tintura predominantemente científico-filosófica14 14 . Para uma análise do estatuto da política democrática em Adorno e Horkheimer (1985), ver Puzone (2021). . No entanto, talvez seja essa corrente “fria” politicamente e “esotérica” teoricamente a que mais se conecta com o mundo atual. Ela se situa em referência a um problema bem específico, conforme salienta Bensaïd (2010BENSAÏD, Daniel. (2010), Apresentação e Posfácio. In: MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo, Editora Boitempo., p. 22): “[…] a cisão no centro da sociedade moderna”. A cisão diz respeito, sobretudo, aos resultados políticos, econômicos e sociais provenientes da emancipação política do Estado. Cabe ressaltar que seus antecedentes se enraízam no chamado Antigo Regime, onde não havia a separação entre sociedade civil e Estado, significando que ocorria na totalidade do corpo social uma determinação política em forma de estamentos de nascença e, por conseguinte, também na distribuição dos bens. Essa determinação era garantida pelo poder real que, por sua vez, encontrava legitimidade em meio à religião, não ao voto representativo ou à soberania popular, conforme esclarece Marx:

Qual era o caráter da sociedade antiga? Uma palavra basta para caracterizá-la: a feudalidade. A sociedade burguesa antiga possuía um caráter político imediato, isto é, os elementos da vida burguesa, como, p. ex., a posse ou a família ou o modo de trabalho, foram elevados à condição de elementos da vida estatal nas formas da suserania, do estamento e da corporação. Nessas formas, eles determinavam a relação de cada indivíduo com a totalidade do Estado, ou seja, sua relação política, ou seja, sua relação de separação e exclusão dos demais componentes da sociedade (Marx, 2010MARX, Karl. (2010), Sobre a questão judaica. São Paulo, Editora Boitempo., p. 51).

Com o advento do mundo burguês há, portanto, um processo de separação dessas duas entidades, isto é, a do Estado político e a da sociedade civil burguesa. Compondo o movimento da modernidade que o sociólogo Max Weber chamaria de processo de racionalização (Weber, 2006WEBER, Max. (2006), Sociologia das religiões e consideração intermediária. Lisboa, Relógio D’Água Editora., pp. 328-337), o Estado se despe por fim de sua veste religiosa, racionalizando-se em termos de seus próprios fundamentos, isto é, adotando uma linguagem e um modus operandi puramente políticos, atinentes à “estatalidade”, ao passo que a sociedade civil não mais se encontra determinada por razões imediatamente políticas, como soía ocorrer com os antigos estamentos:

A emancipação política representa concomitantemente a dissolução da sociedade antiga, sobre a qual está baseado o sistema estatal alienado do povo, o poder do soberano. A revolução política é a revolução da sociedade burguesa.

[…] A revolução política superou o caráter político da sociedade burguesa. Ela decompôs a sociedade burguesa em seus componentes mais simples, ou seja, nos indivíduos, por um lado, e, por outro, nos elementos materiais e espirituais que compõem o teor vital, a situação burguesa desses indivíduos (Marx, 2010MARX, Karl. (2010), Sobre a questão judaica. São Paulo, Editora Boitempo., pp. 51-52).

Ora, é exatamente quando se firmam as simultâneas e contraditoriamente entrelaçadas autopoieses do Estado e da sociedade civil, isto é, do Estado emancipado politicamente e a da sociedade civil emancipada do Estado que, de acordo com Marx, se constitui uma crise insolúvel, estrutural e que precede todas as demais que vivenciamos na modernidade. Essa crise fundamental vincula-se a um movimento dissociativo antagônico, sem resolução, movimento este que Marx percebe existir por meio da declaração legislativa de fundação desse mundo novo, cujo teor e espírito são seguidos pelas constituições de quase todos os países até hoje: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791, acordada no fervor da Revolução Francesa. Como um ato falho freudiano coletivo, o “homem” e o “cidadão” figuram enquanto representações quiméricas separadas, que revelam a clivagem do mundo que assoma. Direitos do homem, como Marx bem sublinha, nada mais passam do que os direitos do humano burguês, que se circunscrevem à igualdade, liberdade, segurança e propriedade privada (Marx, 2010, p. 48). Tais atributos próprios à sociedade burguesa seriam elevados à categoria de “naturais” e garantidos à força de polícia, em última instância, por meio desse mesmo Estado político emancipado:

A constituição do Estado político e a dissolução da sociedade burguesa nos indivíduos interdependentes - cuja relação é baseada no direito, assim como a relação do homem que vivia no estamento e na guilda era baseada no privilégio - se efetivam em um só e mesmo ato. O homem, na qualidade de membro da sociedade burguesa, o homem apolítico, necessariamente se apresenta então como o homem natural. Os droits de l’homme se apresentam como droits naturels, pois a atividade consciente se concentra no ato político. O homem egoísta é o resultado passivo, que simplesmente está dado, da sociedade dissolvida, objeto da certeza imediata, portanto, objeto natural (Marx, 2010MARX, Karl. (2010), Sobre a questão judaica. São Paulo, Editora Boitempo., p. 53).

Marx aqui inicia a dissecação da interpenetração problemática que ocorre entre o Estado e a sociedade civil burguesa. Um processo de dupla transfiguração sucede às costas da consciência dos partícipes: por um lado, há a transformação tácita dos interesses burgueses, logo, atinentes à vida econômica, em razões políticas, e, por outro, há a transformação tácita dos interesses políticos estatais em razões econômicas burguesas. O reino de tudo o que faça parte da sociedade civil emancipada, isto é, o econômico, o reino do homem, da diferença, da sobrevivência, passa a ser encarado fenomenicamente pelo Estado como mera questão de escolha individual, racional etc., perdendo seu caráter político imediato, consoante ocorria no tempo da feudalidade pré-burguesa. No entanto, essa pretensa despolitização da sociedade burguesa e de seus elementos constituintes, conforme Marx bem situa, não passa de uma protodespolitização, no bojo de uma emancipação muito específica, a político-burguesa, bem como a politização do Estado emancipado se apresenta de modo muito peculiar: do modo econômico burguês. Vejamos.

O Estado emancipado se constituirá, como já averiguamos, enquanto entidade opositora ao Antigo Regime, e isso significa que consignará os seguintes atributos ideais políticos: 1) universalidade - o outro Estado se voltava à garantia das desigualdades de nascimento -, 2) princípio da justiça - o outro Estado assegurava a diferenciação do direito perante os estamentos -, 3) assegurador da liberdade - o outro Estado regulamentava imediatamente as possibilidades de existência social de sua população -, e 4) permeabilidade à vontade popular - o outro Estado era legitimado por meio de forças divinas, logo, impermeáveis à vontade popular. Marx demonstra que, embora a representação de tais atributos burgueses tenha uma razão de ser, existe uma continuidade material com a sociedade anterior escamoteada, a desmentir esses próprios atributos. A vinculação que se dá entre Estado e sociedade civil passa, sobretudo, pelo papel desempenhado pelo novo Estado, o da manutenção “limpa, natural e justa” dos interesses mesquinhos da sociedade civil emancipada, cuja finalidade é, justamente, ser burguesa, isto é, acumular capital, propriedade privada, separar os indivíduos, policiar, diferenciar classes:

[…] A comunidade política é rebaixada pelos emancipadores à condição de mero meio para a conservação desses assim chamados direitos humanos e que, portanto, o citoyen é declarado como serviçal do homme egoísta. […] a vida política se declara como um simples meio, cujo fim é a vida da sociedade burguesa (Marx, 2010MARX, Karl. (2010), Sobre a questão judaica. São Paulo, Editora Boitempo., pp. 50-51).

A universalidade, a justiça, a liberdade e a participação estatais, os atributos “essenciais” políticos da estatalidade, não passariam, destarte, à primeira vista, de uma fachada eficiente e necessária ao funcionamento material do mundo burguês, do resultado da transfiguração sócio-histórica que vimos acima. Fachada esta, no entanto, que encontra justificativa e plausibilidade na própria condição material de vida da sociedade civil burguesa, espécie de operação de hipostasia categórica, processo analisado por Marx em meio à conceituação do fetichismo da mercadoria (Marx, 1983MARX, Karl. (1983), O Capital: Crítica da economia política. Livro 1: O processo de produção do capital. São Paulo, Editora Nova Cultural., p. 71)15 15 . Cabe citar também o desenvolvimento realizado por Lukács (2018) em torno da categoria de reificação, inspirado na teoria marxista do fetiche da mercadoria. . Ora, o princípio ideal de universalidade se origina da própria dinâmica do universal-material burguês, qual seja, o mercado, um ente cujos indivíduos componentes, as mercadorias, não importando qualidade ou procedência, “dançam” entre si (Marx, 1983, p. 70), constituindo a totalidade concreta e universal da sociedade civil burguesa. Em segundo lugar, sublinhe-se que as trocas entre as mercadorias são regidas por um princípio de equivalência, de equidade, de busca de cotejo pelo mesmo valor (Marx, 1983, p. 59), forjando, assim, as categorias da justiça laica, de que o Estado se faz representante único e guardião por meio do direito, de seus agentes e de sua aplicação. Em terceiro, o movimento eternizado de troca das mercadorias pressupõe a liberdade de produção, de contratação, de comércio e de amealho do lucro, liberdade garantida e mantida pelo próprio ofício da legalidade estatal. E em último lugar, a participação nas transações das mercadorias enseja a aparência de participação no mundo sensível, de permeabilidade nas decisões possíveis a serem tomadas - entre a escolha de um sabão ou outro, no mundo da sociedade civil, ou de um partido político ou outro, no mundo político da estatalidade.

Vimos, portanto, que as categorias com as quais o Estado emancipado opera enquanto “puramente” político são homólogas às da materialidade econômica da sociedade civil burguesa, ao passo que a sociedade civil burguesa, ao atuar de modo “puramente” econômico, logo, “apolítico”, tem a necessidade premente de fazer uso da estatalidade, isto é, das categorias políticas visando sua automanutenção. Para além dessa concordância tácita, desse quiproquó complementar entre as esferas do Estado e da sociedade civil, existe, no entanto, um movimento centrífugo de lado a lado, em que o Estado por vezes pretende suprimir a sociedade civil, e a sociedade civil, por seu turno, pretende suprimir o Estado. Tais movimentos dizem respeito justamente ao processo de emancipação de cada uma dessas esferas complementares e antagônicas: suas autopoieses entrelaçadas e contraditórias, idênticas em essência e diferentes em forma, entram em conflito quando de suas tentativas de realização plena, ocasionando crises como as relatadas por Marx no instante da instauração do Estado emancipado burguês via revolução:

Nos momentos em que está particularmente autoconfiante, a vida política procura esmagar seu pressuposto, a sociedade burguesa e seus elementos, e constituir-se como a vida real e sem contradição do gênero humano. No entanto, ela só consegue fazer isso caindo em contradição violenta com suas próprias pré-condições de vida, ou seja, declarando a revolução como permanente, e, em consequência disso, o drama político termina tão necessariamente com a restauração da religião, da propriedade privada, de todos os elementos da sociedade burguesa, quanto a guerra termina com a paz (Marx, 2010MARX, Karl. (2010), Sobre a questão judaica. São Paulo, Editora Boitempo., p. 42).

Marx neste excerto descreve o que viria a ser o movimento de ascensão de todos os tipos de autoritarismos, populismos e outras formas de governo que afirmam os princípios estatais, da esquerda à direita: trata-se de o Estado emancipado querer fazer valerem suas prerrogativas políticas contra sua contrapartida material, a própria sociedade civil burguesa. O oposto, contudo, também é verdadeiro: em determinados momentos, a sociedade civil burguesa tenciona suprimir seu ente “espiritual” político-organizativo, o Estado, e aí se encontram todos os tipos de afirmação de experiência e tentativas de laissez-faire econômico - inclusive, com todas as mediações históricas possíveis levadas em consideração, o neoliberalismo atual.

Chegamos, assim, a uma explicação geral em Marx das crises políticas periódicas que acometem o capitalismo em sua fundação: os ciclos de valorização e desvalorização do capital impelem a apenas, e tão somente, duas “saídas” político-econômicas, ou duas soluções possíveis - em meio a infindas combinações conjunturais, claro, que dependem, por sua vez, da organização interna dos países, da fatia correspondente a cada um no bolo do capitalismo mundial, do nível de desenvolvimento alcançado em termos de Estado-nação, de suas culturas próprias, da distribuição de classes, partidos e estamentos internos etc. - dentro do arcabouço sócio-histórico-político constituído: a supressão de princípios estatais pela economia, ou dos princípios da economia pelos do Estado.

Longe de reduzir a política à economia, trata-se, sim, de reconhecer a impossibilidade de se ultrapassar o antagonismo fundamental e imanente em que repousa o mundo burguês por meio dos próprios instrumentos ínsitos ao mundo burguês, onde crises representam nada mais do que a normalidade de uma situação de contradição velada, de uma clivagem insuperável. Logo, trata-se também de reconhecer a incapacidade de os princípios do Estado - ou os da economia, tomados como entes naturais, universais e dissociados - darem conta dessa situação. Pois como Marx diria,

[…] o Estado não pode eliminar a contradição entre a função e a boa vontade da administração, de um lado, e os seus meios e possibilidades, de outro, sem eliminar a si mesmo, uma vez que repousa sobre essa contradição. Ele repousa sobre a contradição entre vida privada e pública, sobre a contradição entre os interesses gerais e os interesses particulares. […] Se o Estado moderno quisesse acabar com a impotência da sua administração, teria que acabar com a atual vida privada. Se ele quisesse eliminar a vida privada, deveria eliminar a si mesmo, uma vez que ele só existe como antítese dela (Marx, 2011MARX, Karl. (2011), “Glosas críticas marginais ao artigo ‘O rei da Prússia e a reforma social’. De um prussiano”. Germinal: Marxismo e Educação em Debate, 3, 1: 145-155., pp. 148-149).

Esta impotência estatal de que falava Marx é reconhecida, de um modo ou de outro, embora por palavras e meios diferentes, por todos os autores da contemporaneidade que trataram da crise da democracia. “Partidocracia”, “emedebismo”, “imobilismo”, “cooptação da esquerda”, “traição à social-democracia”, “impaciência popular com as instituições liberais” são os modos fenomênicos a partir dos quais essa letargia estrutural é apreendida teoricamente. O outro lado da moeda, os arroubos que tencionam afirmar princípios dinâmicos contra a inércia cara ao todo do sistema são vislumbrados como autoritarismo, populismo, iliberalismo, extremismo etc. - e, de fato, não deixam de representar um grito de desespero que expressa a tentativa de escape da camisa de força desse jogo Estado-economia democrático-burguês, cujas mangas esquerda e direita encontram-se atadas em um nó cego. E desse modo, a organização em torno de partidos e instituições liberais democráticas manterá o antagonismo atuante, em um circuito fechado e velado, a salvo de críticas e da possibilidade de sua superação real.

Kurz e o colapso da democracia de mercado

A cisão entre “homem” e “cidadão”, isto é, entre as esferas política e econômica e as contradições daí advindas permanecem em Robert Kurz como ribalta ao desenrolar da tragédia política burguesa em suas crises cíclicas. No entanto, Kurz estende, atualiza e aprofunda a crítica categorial de Marx em relação ao quiproquó assinalado. Em sua teoria crítica do valor, ele articulará o fenômeno do fetiche da mercadoria16 16 . Para a articulação entre a teoria crítica do valor e o fetiche da mercadoria, ver também Jappe (2016). com a cisão fundamental da modernidade; isto é, o fetiche passa a ser encarado como mediador entre as produções material e cultural-simbólica, inclusive com os efeitos incidentes sobre a esfera político-estatal:

[…] A política e suas formas de existência institucionais, Estado, democracia e nação, formam apenas o outro polo do sistema de fetiche moderno, que é constituído pela forma jurídica dos sujeitos burgueses. As categorias económicas e político-jurídicas são as duas faces da mesma medalha. O moderno sujeito de todas as classes é um esquizo-sujeito, dividido entre homo economicus e homo politicus, entre bourgeois e citoyen (Exit!, 2007, texto eletrônico).

No entanto, para além de apenas hipostasiar tais antagonismos categoriais em termos abstratos e atemporais, Kurz incrementa a compreensão da teoria do valor de Marx atendo-se às metamorfoses concretas do capital em meio à sua evolução de longo prazo. Se Marx, no século XIX, logrou captar as linhas gerais de desenvolvimento do capitalismo na incipiência da realização totalitária do universo das mercadorias, Kurz renova o argumento à passagem dos séculos XX e XXI, quando a moderna sociedade capitalista passa a se encontrar no limiar de sua implosão - contraditoriamente, no mesmo instante em que atinge sua plena imposição, com a queda da União Soviética (Kurz, 1993). Kurz vaticina que vivenciamos mais do que mera crise passageira já ao menos desde a década de 1970, quando o colapso das instituições originadas no capitalismo, dentre estas, claro, o sistema denominado por Kurz (2020, p. 30) de democracia de mercado, desvelou-se a toda marcha. E a explicação para tal passa pelo esgotamento da sociedade baseada no valor, quer dizer, da transformação do trabalho vivo abstrato em trabalho morto encarnado em mercadorias, crise que leva de roldão a vida social a uma situação-limite insuperável. Com a terceira revolução industrial, a da microeletrônica integrada aos processos de manufatura, pela primeira vez na história do capitalismo o trabalho enquanto base de produção de valor se tornou supérfluo, conduzindo o sistema como um todo a um mergulho em abismo sem volta:

Todas as crises até hoje foram crises de imposição da relação de capital, que ainda tinha à sua frente um espaço de desenvolvimento histórico. Precisamente por isso, os movimentos sociais podiam ocupar positivamente cada surto de acumulação que se seguia, e não eram forçados a uma crítica categorial das formas sociais. Com a terceira revolução industrial da microelectrónica, contudo, o capital esbarra no seu limite interno absoluto predito por Marx. O “trabalho abstracto”, como substância do capital, é tornado supérfluo pelo próprio processo capitalista, numa medida tal que se esvaem os mecanismos de compensação até aqui vigentes. […] A crise categorial exige agora pela primeira vez uma crítica categorial (Exit!, 2007, texto eletrônico).

O que se coloca em jogo em razão dessa crise terminal e sem solução à vista, que faz eclodirem eventos que arriscam a própria continuidade das vidas biológica - como as crises ecológica e energética - e social - como o esboroar da organização institucional de comando em termos de Estado-nações e a caducidade do trabalho enquanto criador de valor (Krisis, 1999) -, é a inviabilização material da sociedade burguesa em todos os aspectos, práticas, instituições e categorias imanentes, não apenas no tocante aos processos decisórios democráticos. Mas em se tratando especificamente de democracia nesse contexto, Kurz menciona que:

A estatalidade em geral, de que a democracia é a forma suprema e mais pura, constitui, portanto, a outra face de uma paradoxal insociabilidade dos indivíduos reais, que são comandados pelo automovimento cego do dinheiro. Estando todos eles submetidos ao processo de valorização capitalista, só podem proceder entre si, na sua práxis social, como pessoas jurídicas. Mas as pessoas jurídicas não são senão “representantes das mercadorias”, e, uma vez que os seres humanos têm de se relacionar entre si deste modo, como meros representantes das categorias económicas tornadas independentes deles, os seres humanos não podem formar uma comunidade real. Pois os indivíduos, na sua vida quotidiana real, são de facto membros de uma comunidade enquanto cidadãos, mas na sua reprodução material são exactamente o oposto a uma comunidade, embora os meios de produção há muito tempo tenham assumido um carácter social. Longe de considerar a juridificação, a estatalidade e a democracia como solução da miséria socioeconómica, o outro Marx, escondido, vê aí apenas o reverso dessa mesma miséria. E é precisamente neste ponto que ele se tornou hoje extremamente actual (Kurz, 2006KURZ, Robert. (2006), Ler Marx! Os textos mais importantes de Karl Marx para o século XXI, editados e comentados por Robert Kurz. Tradução de Boaventura Antunes., pp. 78-79).

A crítica categórica de Marx antes referida, portanto, é a que enseja a Kurz a compreensão dos eventos de crise. As soluções que tanto o Estado quanto a sociedade civil possam fornecer nesse instante, seja com a radicalização do liberalismo econômico e o consequente advento do neoliberalismo - frise-se que muito mais como efeito da crise estrutural assinalada, não como causa, tal qual defendido por quase todos os autores citados -, seja com alguma espécie de condução de desenvolvimento político-estatal, seja com uma suposta maior participação popular - “democratizar a democracia” (Wood, 2003WOOD, Ellen Meiksins. (2003), Democracia contra capitalismo: A renovação do materialismo histórico. São Paulo, Boitempo.; Santos, 2002SANTOS, Boaventura de Sousa. (2002), Democratizar a democracia: Os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.)17 17 . Ver a crítica de Kurz (2009, p. 426) a essas soluções. , “esferas públicas oposicionais” (Negt, 2007NEGT, Oskar. (2007), L’espace public oppositionnel. Paris, Payot et Rivages.) -, ou ainda com a preservação do elitismo via instituições liberais, não passam de paliativos truncados, de formas idênticas, porém reversas, de soluções dentro dos limites da autonomização antagônica complementar de cada um dos lados da cisão:

Enquanto o liberalismo sempre criticou apenas a administração externa e burocrática da sociedade pelo Estado, para em compensação favorecer o mercado e a sua pretensa liberdade, a crítica radical do Estado feita por Marx vê no mercado apenas o reverso da mesma medalha: o autoritarismo do Estado é o equivalente complementar do autoritarismo do mercado, o totalitarismo político é apenas uma manifestação do totalitarismo económico. Em ambos os lados desta relação os indivíduos continuam sem ser livres, porque numa das armadilhas estão entregues à burocracia, na outra, aos poderes da concorrência anónima (Kurz, 2006KURZ, Robert. (2006), Ler Marx! Os textos mais importantes de Karl Marx para o século XXI, editados e comentados por Robert Kurz. Tradução de Boaventura Antunes., p. 79).

Decerto que, com Kurz, a deslegitimação dos processos decisórios democráticos, longe de fato fortuito, contextual ou exclusivamente político, deve ser compreendida, destarte, no bojo do mesmo enguiço de outros fenômenos vinculados ao esgotamento geral do capitalismo. Óbvio que existem mediações entre as diversas crises entrevistas e o fenômeno político; no entanto, em sua compreensão, os eventos constituintes da crise encontram-se intrinsecamente entrelaçados à totalidade capitalista. O desemprego estrutural, por exemplo, incitaria o asselvajamento das relações sociais, suscitado este pela competição em torno da sobrevivência em um mundo em que o trabalho é obrigatório, porém cada vez mais escasso.

Extremismos diversos aqui encontram terreno fértil, bem como todos os tipos de preconceitos nacionais, regionais, a misoginia, o racismo, a homofobia, ante doenças mentais etc. Além do mais, os desenvolvimentos desiguais combinados de países centrais e periféricos engendram efeitos deletérios variados, como a imigração forçada, as guerras de rapina por petróleo, tráfico de drogas, a violência universalmente disseminada etc., finalizando na derrocada do sistema de Estado-nações, empobrecidos e incapazes de controlar os fluxos de capital em um mundo financeirizado globalmente (Kurz, 1997KURZ, Robert. (1997), Os últimos combates. Petrópolis, Editora Vozes., pp. 91-118).

Estes e outros infindos problemas constituem questões insolúveis para a estatalidade hipostasiada em seu suprassumo prático, quer dizer, a vida democrática. O mundo em que reinam as mercadorias não reinam os humanos, diria o Marx do fetiche da mercadoria; em outras palavras, o sentido último da sociedade civil burguesa realizada, quer dizer, o impulso compulsivo, impessoal e irracional ao lucro pelo lucro não gera qualquer tipo de solidariedade estatal abstrata comunitária, pelo contrário: o que temos como resultado é a democracia, na prática, como uma esfera de pseudodecisão em pleno esboroamento, restringindo-se a uma espécie de gerenciamento do terror e da miséria permanentemente em crise:

No fim do século XX já ninguém acredita realmente na política, nem mesmo os próprios políticos. Mas o mercado, mais uma vez chamado para fazer face ao decaimento da força funcional da esfera estatal e política, é incapaz de criar qualquer comunidade humana, mesmo abstracta, com a sua concorrência anónima; por isso mesmo foi necessário o isolamento daquela esfera estatal abstracta. Assim, o contexto formal em si cindido, social e não-social, irreal-ideal e sujo-quotidiano começa a asselvajar-se, juntamente com os indivíduos nele incluídos. A realidade da concorrência dissolve a idealidade abstracta da cidadania democrática (Kurz, 2006KURZ, Robert. (2006), Ler Marx! Os textos mais importantes de Karl Marx para o século XXI, editados e comentados por Robert Kurz. Tradução de Boaventura Antunes., p. 79).

Ao contrário do voluntarismo, das panaceias conspiratórias, do personalismo, do partidarismo e do classismo reinantes em quase todos os diagnósticos de crise mundo afora, Kurz situa tal configuração de dissolução da cidadania democrática no rol de uma dominação sistêmica sem sujeito (Kurz, 2010, pp. 213-297). A longa história de imposição do capital e de seus próprios critérios sociais aparentemente objetivos e impessoais18 18 . Roswitha Scholz, também partícipe dos grupos Krisis/Exit!, demonstra que, por trás da pretensa neutralidade das categorias emanadas do capital, existem atributos estruturais sem os quais o capital não teria se realizado de forma totalitária, como os de masculinidade, branquitude e ocidentalidade. Sobre a democracia, ela diz que “[…] sempre foi uma constituição androcêntrica” (Scholz, 2020, p. 18). Para a importante discussão sobre o desenvolvimento da teoria do valor-cisão, que não pode ser desenvolvida aqui, ver também Scholz (1992) e (2019). teria conduzido a sociedade à naturalização de determinadas categorias basilares, que demarcariam uma zona cinzenta, espécie de doxa por meio da qual convivem tanto a direita quanto a esquerda políticas, ou mesmo as alternâncias cada vez mais frequentes entre o Estado de Direito e seus “estados de exceção” intrínsecos:

Essas formas fundamentais do “valor”, da mercadoria, do dinheiro, do salário, do preço, do lucro e da rentabilidade, que constituíram o moderno sistema de mercado produtor de mercadorias, assim como as suas instituições democráticas complementares, surgiram por meio da atividade social humana e se processam por meio de agentes humanos, mas, no decorrer de um longo processo, se tornaram autonomizadas, como “segunda natureza” de um sistema sem sujeito (Kurz, 2020KURZ, Robert. (2020), A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro, Consequência., pp. 26-27).

Por consequência, desde os piores irracionalismos, como o próprio nazismo, (Kurz, 2020KURZ, Robert. (2020), A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro, Consequência., p. 34) até o mais equilibrado “bom senso” centrista se vinculam profundamente aos próprios desdobramentos do capitalismo, não consistindo em corpos estranhos que surgem como espécie de enfermidade exterior à “normalidade” democrático-burguesa. Sem deixar de levar em conta o que viriam a ser os avanços do advento da democracia burguesa, Kurz sublinha o outro lado da moeda: a emancipação em relação aos antigos estamentos personalistas carreia consigo a sujeição à dominação impessoal das mercadorias, forma de enquadramento total a limitar as possibilidades reais de liberdade:

O mundo democrático, assim, é um mundo de “coerções surdas” (Marx), que se faz perceptível em muitas formas fenomênicas. O grande resultado histórico emancipatório da democracia foi o fato de que todos podem se tornar um indivíduo [Selbst] sem barreiras estamentais; mas gradualmente tornou-se evidente que tornar-se indivíduo [Selbstwerdung] tinha um preço terrível. Em lugar da sujeição pessoal a um “senhor” definido por nascimento, entrou a sujeição à dominação impessoal e muito mais total do dinheiro. Todos têm o direito de ser aquilo que a sociedade da mercadoria total fez deles. Todos podem defender os “seus interesses”, mesmo “como” sem-tetos; mas é essa categoria mesma do “interesse” baseado na forma-mercadoria que os prende estruturalmente à sua miséria. A democracia é a liberdade de morrer, pelo menos para uma parcela crescente da humanidade (Kurz, 2020KURZ, Robert. (2020), A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro, Consequência., p. 32).

Essa “livre escolha da morte” articulada ao mundo das mercadorias, isto é, ao cerne da reprodução da própria sociedade civil, representa um dos sintomas reveladores do núcleo repressivo da democracia de mercado, existente às costas da autorrepresentação da “democracia como solução histórica, universal e eterna” (Kurz, 2020KURZ, Robert. (2020), A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro, Consequência., p. 22) para todos os problemas:

Não é difícil de decifrar a assim chamada economia de mercado como o núcleo repressivo da dominação democrática, pois a submissão incondicional de todos os momentos da vida à lógica e às coerções do mercado (seja ele “livre” ou “planejado”) é a característica central de todas as democracias modernas (Kurz, 2020KURZ, Robert. (2020), A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro, Consequência., p. 25).

Mais uma vez, trata-se da sociedade civil impondo seus atributos contra sua cara-metade antagônica, o Estado, tornado mera representação caduca que nada mais ou muito pouco tem a fazer, independentemente de partidos ou regimes, sejam os capitalistas ou os pretensamente socialistas, senão administrar crises advindas da lógica sistêmica do capital. Crises estas que, para Kurz, estão muito distantes de serem mitigadas por meio de categorias provenientes do mesmo circuito em que se encerram tanto a democracia quanto o capitalismo. Não há espaço para uma verdadeira autocrítica dos democratas capitalistas ou socialistas, uma vez que suas convicções se pautam em realizações de um repertório evolucionista-iluminista, desvinculadas de uma crítica efetiva do atual estado de coisas:

A democracia deveria ser, supostamente, o oposto do capitalismo. Essa ilusão “politicista” busca sempre isolar como emancipatória a promessa iluminista abstrata da autonomia, responsabilidade, “autoadministração operária” (Trostsky), “razão discursiva” (Habermas), “democracia de base” etc., e mobilizar a mesma lógica contra o outro lado, o lado repressivo carente de conceito (Kurz, 2020KURZ, Robert. (2020), A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro, Consequência., p. 25).

A liberdade decisória - apanágio da autorresponsabilização proveniente do ideário iluminista kantiano e cultivada como o cerne da democracia - é desvendada por Kurz como coerção ditatorial e, desse modo, a identidade entre sociedade civil e Estado, por fim, vem à tona de um modo mais claro e chocante do que o próprio Marx podia ter vislumbrado em sua época, acenando para a não superação do impasse crítico:

Liberdade significa ter de subjugar todos os recursos e desejos impiedosamente sempre à mesma forma-dinheiro sem sujeito. Esse é o “fetiche” moderno do qual falava Marx, e isso constitui o caráter de dominação da democracia. O corolário é que jamais ocorre ao pensamento democrático, em todas as suas variantes, a ideia de mobilizar e organizar os recursos e a riqueza social de outra maneira que não na forma da mercadoria e do dinheiro, e que com isso a sua suposta liberalidade e humanidade coloca para si mesma, como limite intransponível, as próprias leis sistêmicas da forma-mercadoria moderna. […] A democracia não é o oposto do capitalismo, e sim a maneira pela qual o “povo” organizado de modo capitalista se “autodenomina” segundo critérios capitalistas, com fúria cega e destrutiva (Kurz, 2020KURZ, Robert. (2020), A democracia devora seus filhos. Rio de Janeiro, Consequência., pp. 28-29).

Fúria cega e destrutiva que não faltam para compor o cenário das crises que não “rondam” a democracia, como querem os democratas, mas que constituem tacitamente a própria democracia, forma de organização social essencialmente capitalista. A racionalidade masculino-branca-ocidental e suas instituições de base e categorias - como a democracia -, chamadas para dar conta de seus próprios movimentos autodestrutivos, não surtem mais efeitos senão aprofundar a devastação (Kurz, 2010KURZ, Robert. (2010), Razão sangrenta. São Paulo, Editora Hedra., p. 37); sinal de que a necessidade de uma teoria crítica negativa atualizada, sem condescendência para com o existente e merecedora desse nome é mais do que urgente, e Kurz figura em relação a essa teoria crítica a ser constantemente reconstruída como digno representante.

Considerações finais

Muito se tem falado nos últimos tempos sobre “negacionismo”. A esquerda democrática, cientistas sociais, jornalistas bem-informados e outras figuras iluministas de proa imputam ao irracionalismo da extrema-direita religiosa, sobretudo, a disseminação de crendices que têm por base a negação das conquistas racionais-científicas. Assim, tanto descobertas como a vacina, a de que a Terra é um globo que gira em torno do Sol ou a teoria da evolução de Darwin são postas em xeque por uma escumalha ignorante, que transferiria tal modo de visão de mundo também para a esfera da política, preferindo acreditar em fantasias que contrariam o saber racional e as informações “corretas”, logo, escolhendo charlatões, populistas e extremistas para os governar.

Ora, o que tais arautos do iluminismo não percebem é que eles também, de uma forma ou de outra, se aferram a um tipo determinado de negacionismo. Ao preferirem ignorar, em alguns casos, a própria existência do capitalismo e seus efeitos deletérios por sobre toda a vida social; ao escolherem crer nas “virtudes distributivas” do mercado e do capitalismo “domado”, enxergando o “neoliberalismo” como único problema; ao se aferrarem ao evolucionismo subjacente à modernização democrático-capitalista, que afirma que todos, um dia, “chegarão lá”; ao propugnarem uma volta ao tempo “glorioso” das benesses da social-democracia em plena falência estrutural dos Estados-nação e do fim do trabalho; ao fecharem os olhos para os vínculos intrínsecos entre a destruição do meio ambiente, a impossibilidade de vida na Terra e o automatismo do mundo do capital, que se embasa no aumento exponencial da produtividade cega; ao fiarem piamente em que ainda haverá uma revolução do “proletariado” ou qualquer outro juízo final laico; ao confiarem nas instituições democrático-burguesas como capazes de dar conta das crises que se agigantam; ao negarem os vínculos indissociáveis entre a destrutividade da racionalidade branco-ocidental-masculina, o capitalismo e suas categorias históricas - dentre as quais a democracia e seus aparatos; em todos esses casos e outros não listados existe, da mesma forma, uma espécie de negacionismo. Mais sofisticado do que o primário irracionalismo frisado acima, é verdade, mas não deixa de ser talvez ainda mais perverso, pois propugnado muitas vezes pelos herdeiros da Razão, quer dizer, por aqueles de quem se esperariam as “soluções” racionais e a reflexividade radical capazes de dar sobrevida a este mundo.

Marx e Kurz, a contrapelo, demonstram que a tarefa é muito mais penosa e complexa do que parece: uma crítica categórica negativa tende a não confortar o ego dos que projetam seu narcisismo sobre o mundo social, algo muito caro ao Ocidente desde o projeto iluminista. A manipulação de políticas, de movimentos e partidos nos moldes existentes se mostra inócua e ultrapassada, e parece ser justamente sobre isso que os “racionais” tendem a desejar a agradável insciência, cada qual em seus negacionismos peculiares. Cabe escolhermos, a partir daí, parafraseando Marx, se desejamos viver confortavelmente o nosso “terror sem fim” - caso continuemos a encarar as crises da forma atual, sejam as referentes à democracia ou não -, com a ressalva de que o “fim com terror” se aproxima de modo cada vez mais célere, e nada depois dele aparenta aguardar por nós.

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  • 1
    . O cientista político norte-americano Francis Fukuyama chegou a dizer que teríamos atingido o fim da História, isto é, que a democracia liberal seria a forma acabada e última da vida humana em sociedade. Ver Fukuyama (1989).
  • 2
    . Existem infindos dados que apontam nessa direção, e provenientes de estudos financiados por instituições “insuspeitas” nesse sentido, como Banco Mundial, Crédit Suisse, FMI etc. Ver Marques (2019MARQUES, Luiz. (2019), Capitalismo e colapso ambiental. Campinas, Editora da Unicamp.).
  • 3
    . Brown sublinha a dificuldade apresentada pelos acadêmicos para apreender o fenômeno: “Nós temos dificuldade até mesmo com a nomenclatura: trata-se de autoritarismo, fascismo, populismo, democracia não liberal, liberalismo antidemocrático, plutocracia de extrema direita? Ou outra coisa?” (Brown, 2019, p. 10).
  • 4
    . As produções foram selecionadas no intento de representarem a variedade de filiações teóricas, sobretudo de livros, ou seja, de obras mais densas que tratem basicamente da crise da democracia liberal. Temos ciência de que com essa seleção não esgotamos nem o assunto nem a crítica àqueles que se ocuparam dele.
  • 5
    . Uma definição que pode se ajustar à maioria das teorizações mobilizadas é a de Brown: “O neoliberalismo é mais comumente associado a um conjunto de políticas que privatizam a propriedade e os serviços públicos, reduzem radicalmente o Estado social, amordaçam o trabalho, desregulam o capital e produzem um clima de impostos e tarifas amigáveis para investidores estrangeiros” (Brown, 2019, pp. 28-29).
  • 6
    . O estatuto da obra de Habermas perante seus antecessores da Teoria Crítica, dentre eles o citado como antípoda Max Horkheimer, é problemático e envolve inúmeras discussões. Ao passo que existem aqueles que o consideram herdeiro do legado da Teoria Crítica, como Wiggershaus (2001WIGGERSHAUS, Rolf. (2001), A Escola de Frankfurt. Rio de Janeiro, Editora Bertrand.) e Durand-Gasselin (2012), há outros que contestam essa herança, como Neumann (2008NEUMANN, Alexander. (2008), “Le courant chaud de l’Ecole de Francfort”. Variations, 12: 1-14. Disponível em https://journals.openedition.org/variations/238, consultado em 19/03/2023.
    https://journals.openedition.org/variati...
    ) e Rodier (2022RODIER, Clément. (2022), “Habermas Contre l’École de Francfort”. Actuel Marx, 1: 131-146.).
  • 7
    . Tradução dos autores.
  • 8
    . Outros autores de referência, provenientes de escolas completamente distintas da de Habermas, como Robert Dahl, por exemplo, defendem um ponto de vista teórico muito próximo ao antes apresentado, demonstrando a ubiquidade de tal pressuposto das análises formais nas ciências sociais que envolvam a relação problemática entre democracia e capitalismo. Ver Dahl (2001).
  • 9
    . Para maiores informações sobre o grupo Krisis, seus componentes, contribuições e desdobramentos, como o grupo Exit!, ver Jappe (2006JAPPE, Anselm. (2006), As aventuras da mercadoria: Para uma nova crítica do valor. São Paulo, Antígona., p. 69-70) e o sitehttp://www.obeco-online.org/cisao_krisis.htm, consultado em 19/03/2023.
  • 10
    . A relação da obra de Kurz com Marx e os marxismos foi tratada por Regatieri (2009REGATIERI, Ricardo Pagliuso. (2009), Negatividade e ruptura: Configurações da crítica de Robert Kurz. São Paulo, dissertação de mestrado em Sociologia, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.).
  • 11
    . Desde querelas disparatadas, como a de se alguns de seus rebentos eram ou não panfleto antissemita (Birnbaum, 2004BIRNBAUM, Pierre. (2004), Géographie de l’espoir. Paris, Gallimard.), outros de justificativa para totalitarismos (Bensaïd, 2010BENSAÏD, Daniel. (2010), Apresentação e Posfácio. In: MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo, Editora Boitempo.), até questões mais pertinentes, como a de se existiria uma teoria do Estado em sua obra (Bobbio, 1983BOBBIO, Norberto. (1983), Qual socialismo? Rio de Janeiro, Paz e Terra.). Mesmo intérpretes mais simpáticos acentuaram que faltavam elementos em determinado instante, como, por exemplo, o sujeito da história, isto é, o elo com o materialismo científico, carência que tornaria certos textos sem síntese coerente e ainda dotados de tinturas hegelianas, filosofantes ou liberais-democráticas (Löwy, 2002LÖWY, Michael. (2002), A teoria da revolução no Jovem Marx. Petrópolis, Vozes., p. 25; Bensaïd, 2010, p. 27).
  • 12
    . Ver Alexander (1999ALEXANDER, Jeffrey C. (1999), “A importância dos clássicos”. In: GIDDENS, Anthony & TURNER, Jonathan. Teoria social hoje. São Paulo, Editora Unesp.).
  • 13
    . Kurz denomina ironicamente de marxismo exotérico a parte da obra de Marx que foi apropriada pelos movimentos sociais de esquerda, pelo leninismo, pela social-democracia e por todos os seus desdobramentos. Ver Exit!, 2007.
  • 14
    . Para uma análise do estatuto da política democrática em Adorno e Horkheimer (1985ADORNO, Theodor & HORKHEIMER, Max. (1985), Dialética do Esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.), ver Puzone (2021PUZONE, Vladimir. (2021), “Por uma teoria crítica do autoritarismo: Democracia formal e relações de dominação burguesas”. Constelaciones: Revista de Teoría Crítica, 13: 286-311.).
  • 15
    . Cabe citar também o desenvolvimento realizado por Lukács (2018LUKÁCS, Gyorgy. (2018), História e consciência de classe: Estudos sobre a dialética marxista. São Paulo, Martins Fontes.) em torno da categoria de reificação, inspirado na teoria marxista do fetiche da mercadoria.
  • 16
    . Para a articulação entre a teoria crítica do valor e o fetiche da mercadoria, ver também Jappe (2016JAPPE, Anselm. (2016), El fetichismo de la mercancía (y su secreto). La Rioja, Pepitas de Calabaza.).
  • 17
    . Ver a crítica de Kurz (2009KURZ, Robert. (2009), O livro negro do capitalismo: Um canto de despedida da economia de mercado. Tradução de Boaventura Nunes e André Villar Gomez., p. 426) a essas soluções.
  • 18
    . Roswitha Scholz, também partícipe dos grupos Krisis/Exit!, demonstra que, por trás da pretensa neutralidade das categorias emanadas do capital, existem atributos estruturais sem os quais o capital não teria se realizado de forma totalitária, como os de masculinidade, branquitude e ocidentalidade. Sobre a democracia, ela diz que “[…] sempre foi uma constituição androcêntrica” (Scholz, 2020, p. 18). Para a importante discussão sobre o desenvolvimento da teoria do valor-cisão, que não pode ser desenvolvida aqui, ver também Scholz (1992) e (2019).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    21 Jun 2023
  • Aceito
    06 Jul 2023
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br