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Gwenaële Rot & François Vatin. Ao longo do fluxo: o trabalho de vigilância e controle nas indústrias química e nuclear. Curitiba, CRV, 2022.

Rot, Gwenaële; Vatin, François. Ao longo do fluxo: o trabalho de vigilância e controle nas indústrias química e nuclear. Curitiba: CRV, 2022

Uma pesquisa em sociologia do trabalho que não faz apologia da tecnologia, tampouco a conjura. Uma pesquisa sobre trabalhadores e meios laborais tecnológicos que não se propõe como objetivo precípuo ir aos locais de trabalho procurar índices de degradação do trabalho, mas que não ignora os efeitos da proliferação de trabalhadores intermitentes. Porém, de outra parte, uma pesquisa em sociologia do trabalho que contribui para a compreensão daquilo que é o próprio do trabalho humano e das implicações dos automatismos no processo de trabalho. Eis o quadro complexo que aporta o livro que a seguir apresentamos aos leitores e leitoras.

Publicado recentemente no Brasil, Ao longo do fluxo é uma obra elaborada por dois destacados nomes no âmbito da sociologia do trabalho na França. Gwenaële Rot é historiadora da sociologia e socióloga do trabalho, professora de sociologia na Sciences Po-Paris. François Vatin é especialista em sociologia do trabalho e sociologia econômica, professor da Universidade de Paris X - Nanterre. Trata-se de uma pesquisa sobre a indústria química e nuclear, em especial focalizando as funções de vigilância e controle.

A base empírica da pesquisa diz respeito ao material elaborado durante as investigações de Gwenaële Rot no ano de 2007 em dois estabelecimentos petroquímicos e em 2009 numa central nuclear, bem como concerne às investigações realizadas por François Vatin desde o final dos anos 1970 sobre o trabalho na indústria de refinação de petróleo1 1 Uma primeira síntese desses estudos pode ser vista em La fluidité industrielle, de François Vatin (1987). . Esse material de pesquisa é trabalhado ao longo do livro, no qual se mesclam as questões propriamente trazidas pela investigação de campo e questões teóricas mais amplas induzidas pelas reflexões dos autores sobre as representações comuns em nossa sociedade a respeito do que é o trabalho e o trabalhar.

Ao longo do fluxo se propõe a estudar o cotidiano laboral nas indústrias de fluxo contínuo. Nessas indústrias caracterizadas por processos de trabalho nos quais os trabalhadores não tocam diretamente a matéria, os autores nelas destacam uma função cardinal: a função de vigilância-controle. O ponto de vista adotado é o dos próprios trabalhadores e, para isso, os autores se dedicaram a acompanhar a rotina, os momentos de ação e de inação, as situações de calmaria, assim como aquelas de mais tensão, de modo a levar em conta as formas específicas de engajamento daqueles trabalhadores.

Logo no início do livro os autores ressaltam que o trabalho realizado em uma indústria química ou usina nuclear é um exercício profissional delicado que guarda algo de misterioso no que diz respeito à transformação da matéria. Mencionam, por exemplo, que a produção de eletricidade preserva para o senso comum um aspecto de irrealidade, algo do tipo mágico, que vai resultar em ausência de compreensão e toda sorte de vulgarizações devido ao desconhecimento desse tipo de trabalho. Os autores fazem assim referência a alguns personagens - como Carlitos, em Tempos modernos (1936), apertando parafusos; e à figura de Homer Simpson, da série de animação Os Simpsons (1989 até os dias atuais), na qual interpreta um controlador de central nuclear.

Ambos os personagens podem ser lidos como denúncia do que há de absurdo no trabalho moderno e, de outra parte, repercutem a ideia corrente de inutilidade da presença do humano num ambiente altamente industrializado e tecnológico. Mas, dizem os autores, a comparação entre os dois personagens merece atenção, pois “enquanto Carlitos é muito ativo, Simpson não é mais ativo” (p. 7). Se é assim, como pensar o lugar do trabalho humano nesses meios laborais repletos de máquinas supostamente perfeitas? Como veremos mais adiante, os autores não se furtam a refletir sobre essa questão.

O livro é composto de seis seções, cujos títulos são inspirados na estrutura de andamento da música clássica. A seção inicial, intitulada “Abertura”, introduz o leitor no universo das indústrias de fluxo, tematizando a questão do medo de acidentes e a dinâmica muito própria de conformação das equipes, constituindo formas de interação e sociabilidade bastante diferentes entre as equipes de turno e as que trabalham por jornada ao longo do dia. À seção inicial, e nominando as seções subsequentes, seguem-se quatro movimentos.

O Movimento 1 explora a necessária interface entre os operadores que estão no interior das instalações, conduzindo-as pelos monitores dos computadores, e os operadores externos que efetuam a ronda. O Movimento 2 discute a dinâmica do processo de trabalho em curso nessas fábricas altamente automatizadas, no qual se alternam momentos de calmaria e de tempestade, conforme a metáfora dos próprios autores, no que abordam um incidente experienciado por uma equipe de operadores da usina nuclear. O Movimento 3 tematiza um aspecto estruturante do processo de trabalho quando se trata de indústrias de fluxo, a divisão entre trabalho por turno e trabalho por dia, evidenciando as implicações de tal divisão para a sociabilidade, coesão e comunicação entre os operadores. O Movimento 4 explora a questão das normatizações - absolutamente necessárias em indústrias de alto risco - e suas ambiguidades, pois paradoxalmente uma inflação das normatizações pode gerar riscos, como diz um operador da indústria nuclear: “As pessoas são poluídas pelo número de documentos. Somos obrigados a pensar em como devemos agir, em vez de pensar na atividade em si” (p. 77).

A última seção do livro, intitulada “Coda”, apresenta uma reflexão sobre algumas pesquisas de referência a respeito do tema das indústrias de fluxo, retomando, entre outros, Pierre Naville2 2 Grande nome da sociologia, profundo conhecedor da obra de Marx, Pierre Naville (1904-1993) é considerado um dos fundadores da sociologia do trabalho na França. Ele será incumbido de realizar um amplo estudo sobre a automação em diversos setores produtivos ao final dos anos 1950. O relatório dessas pesquisas será divulgado em 1961, sendo a síntese dessas investigações publicada no ano de 1963 em um livro que marcou época. O referido livro foi reeditado há poucos anos: Vers l’automatisme social? Machines, informatique, autonomie et liberté, de Pierre Naville (Paris, Syllepse, 2016). , influência importante no pensamento de ambos os autores. Essa seção traz também um outro aspecto que merece nota: uma instigante problematização sobre a noção de trabalho e as transformações contemporâneas da sociedade industrial.

O que os autores pontuam na última seção tem implicação para o conjunto do que foi apresentado ao longo do livro. São questões teóricas e epistemológicas de vasto alcance, pois interrogam arraigados modos de conceber o trabalho e o trabalhar, herdados seja do senso comum ou das distintas tradições teóricas que se propõem a dizer sobre o trabalho.

Para compreender o trabalho, dizem os autores, é preciso evitar recair em dois registros de análise que portam muitos problemas. De um lado, comparece uma concepção energética do trabalho, esta “repousa sobre o postulado da existência de uma relação de proporcionalidade entre a quantidade de trabalho e a quantidade de produção” (p. 108). Essa concepção, dizem os autores, tende a pensar a produção como uma soma de trabalho, conforme um esquema aditivo comum à física, à economia política clássica e às concepções tayloristas de organização industrial3 3 Sobre a concepção energética do trabalho e suas limitações para compreender o trabalho contemporâneo, ver Vatin, 2019. . Por outro lado, comparece uma tradição analítica que associa o trabalho quase exclusivamente à opressão, assimilada à relação salarial. Essa tradição não leva na devida conta que “o trabalho assalariado não é a única forma possível do enquadramento social do trabalho. Mas, sobretudo, tomamos a forma pelo conteúdo, ignorando a propriedade característica do trabalho, sua vocação produtiva” (p. 108).

Se estivermos presos aos dois registros de análise que acabamos de descrever, o trabalho nas indústrias de fluxo altamente automatizadas se torna incompreensível. Nessas indústrias, “o sequenciamento da ação humana desapareceu. O sistema produtivo deve funcionar por si só. Tudo que é repetitivo foi integrado aos programas” (p. 28). A rotina do trabalho, observam os autores, é esperar que algo aconteça - dizendo de outro modo, acompanhar nos monitores para que nada aconteça. A rotina envolve também o preparo do trabalho dos outros (as operações de manutenção) e o cumprimento das obrigações processuais que conformam o quadro de segurança das instalações.

Mas seria um erro acreditar que o trabalho tenha se dissolvido. Isso se deve exatamente à dificuldade de conceber o trabalho para além do esquema aditivo comentado nos parágrafos acima. Na verdade, como bem notam os autores, é justamente nessas configurações produtivas destacadas pela pesquisa que se pode melhor entender o que significa trabalhar: “Como o homem não é mais de modo algum uma engrenagem mecânica do sistema produtivo, a questão da atividade ganha todo o seu significado” (p. 28). O que se espera dos homens e mulheres no trabalho é aquilo que as máquinas não podem dar. Somente em um fictício vácuo o processo produtivo ocorre sem oscilações ou intercorrências. Como diz um operador-ronda: “Em geral, confiamos em um aparelho até um certo ponto. […] controlamos o controlador. É uma questão mecânica, e a mecânica falha” (p. 36). Os autores explicam o que está em jogo na questão:

Quando se apela ao homem, é porque se espera dele, não uma simples “ação”, mas um “ato”, ou seja, uma ação refletida, motivada e intencional. A ação humana, que na sua materialidade pode parecer muito simples, nunca é redutível a uma sequência mecânica. Para reproduzir mecanicamente uma sequência, um autômato sempre será mais eficaz que um homem. Se mobilizamos um homem, é sempre porque o inesperado pode acontecer e interromper o processo (p. 27).

Em seu conjunto, a pesquisa apresentada por Gwenaële Rot e François Vatin é de muitos modos relevante. Trata-se de uma pesquisa que questiona pela base os discursos contemporâneos sobre a desmaterialização do mundo. Pelo contrário, os autores evidenciam, por trás da opacidade do trabalho nessas fábricas tubo, como os operadores engajam seus cinco sentidos em sua atividade de trabalho, evidenciando “o modo pelo qual o trabalho engaja os homens em sua corporeidade, das quais as funções neurais fazem parte” (p. 110).

A perspectiva de análise empreendida também merece nota. Ela busca ultrapassar certos limites presentes nas pesquisas no campo da ergonomia, como também certos limites comuns aos estudos sociológicos - se os primeiros conseguem produzir uma análise minuciosa do trabalho nas situações concretas, por vezes negligenciam o quadro da instituição salarial no qual a atividade humana tem curso; quanto aos estudos sociológicos, estes frequentemente se esquecem da tecnicidade inerente ao trabalho humano, como se o trabalho pudesse ser resumido a uma relação de poder ou redutível às coerções da relação salarial (p. 109).

É oportuno sublinhar que a pesquisa apresentada pelos autores se inscreve no prolongamento dos estudos de Pierre Naville sobre a automação no final dos anos 1950, estudos esses nos quais ele identifica uma “quimização geral da indústria” (Naville, 2016NAVILLE, Pierre. (2016), Vers l’automatisme social? Machines, informatique, autonomie et liberté. Paris, Éditions Syllpese., p. 100), no sentido de que a produção em diversos setores sinalizava tendência à fluidez industrial - e essas constatações, vale registrar, datam de 1958.

Um dos principais aspectos destacados por Naville em sua obra foi a questão das implicações do automatismo para o trabalho humano e para o futuro da sociedade. Ele observa que com o automatismo ocorre uma sorte de desacoplamento entre o tempo do homem e o tempo da máquina. O trabalho se apresenta mais e mais mediatizado: “os trabalhadores tocam menos e menos a matéria”, diz Naville (Idem, p. 316). No caso da indústria do petróleo, ele constata que “os operários trabalham sobre o conjunto dos aparelhos, que eles supervisionam, observam, controlam e reparam, e não sobre a própria matéria-prima, o óleo e o petróleo que eles nunca veem” (Idem, p. 84). Essas constatações de Pierre Naville parecem ter lugar cardinal na pesquisa de Gwenaële Rot e François Vatin.

Por último, em tempos em que muitos parecem deslumbrados pelos incrementos organizacionais e tecnológicos no mundo do trabalho - de que a chamada indústria 4.0 é um exemplo -, faz bem retomar os estudos de base sobre o tema. É que, diante da dinâmica do processo produtivo, uma perspectiva presentista não tem o que dizer sobre a realidade com a qual se defronta. Para ela tudo é novidade. O pesquisador se arrisca, assim, a “descobrir” questões já há muito colocadas ou assumir quadros de análise que, no fio do tempo naquele campo disciplinar, evidenciaram-se como inconsistentes. Esse parece também ser um dos méritos da pesquisa descrita no livro que apresentamos: uma forte ancoragem nos fundamentos da sociologia do trabalho e nas pesquisas sobre as indústrias de fluxo. É a típica situação em que o pesquisador dá um passo atrás e consegue ver mais longe. Enfim, trata-se de uma obra recomendada para todos e todas que se interessam pelo estudo do trabalho e suas transformações contemporâneas.

Referências Bibliográficas

  • NAVILLE, Pierre. (2016), Vers l’automatisme social? Machines, informatique, autonomie et liberté. Paris, Éditions Syllpese.
  • VATIN, François. (1987), La fluidité industrielle. Paris, Meridiens-Klincksieck.
  • VATIN, François. (2019), O trabalho e suas medidas: economia, física e sociedade. Campinas, Mercado de Letras.

Notas

  • 1
    Uma primeira síntese desses estudos pode ser vista em La fluidité industrielle, de François Vatin (1987VATIN, François. (1987), La fluidité industrielle. Paris, Meridiens-Klincksieck.).
  • 2
    Grande nome da sociologia, profundo conhecedor da obra de Marx, Pierre Naville (1904-1993) é considerado um dos fundadores da sociologia do trabalho na França. Ele será incumbido de realizar um amplo estudo sobre a automação em diversos setores produtivos ao final dos anos 1950. O relatório dessas pesquisas será divulgado em 1961, sendo a síntese dessas investigações publicada no ano de 1963 em um livro que marcou época. O referido livro foi reeditado há poucos anos: Vers l’automatisme social? Machines, informatique, autonomie et liberté, de Pierre Naville (Paris, Syllepse, 2016).
  • 3
    Sobre a concepção energética do trabalho e suas limitações para compreender o trabalho contemporâneo, ver Vatin, 2019VATIN, François. (2019), O trabalho e suas medidas: economia, física e sociedade. Campinas, Mercado de Letras..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2024
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2024

Histórico

  • Recebido
    06 Fev 2024
  • Aceito
    20 Maio 2024
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