Open-access Impacto da COVID-19 no controle e reorganização da atenção à tuberculose

Impacto de la COVID-19 en el control y reorganización de la atención a la tuberculosis

Resumo

Objetivo  Identificar as evidências científicas sobre o impacto da pandemia de COVID-19 na atenção e no controle da tuberculose.

Métodos  Revisão de escopo realizada em junho de 2020 nas seguintes bases de dados: Cochrane Library, Embase, LILACS, MEDLINE, PubMed, Web of Science, Cinahl e Scopus; e literatura cinzenta-Opengrey. Os descritores utilizados na busca foram: coronavirus, COVID-19, SARS-CoV-2 e tuberculosis. O processo de seleção foi feito por dois revisores independentes por meio da plataforma Rayyan, com a inclusão de 30 estudos.

Resultados  A pandemia da COVID-19 teve impacto no controle da tuberculose e os principais desafios decorrentes relacionam-se à influência do distanciamento social no diagnóstico, seguimento e adesão ao tratamento, incluindo a reorganização dos serviços de tuberculose, principalmente como resultado do necessário deslocamento de equipes de saúde que atuavam na área para a atenção à COVID-19, registrando-se também limitação de acesso a insumos e a serviços de saúde, o que de igual modo ocorreu em relação a outros agravos de saúde, evidenciando-se vulnerabilidade programática. Destacam-se, ainda, os efeitos da pandemia na dimensão social, o que contribuiu para o aumento da vulnerabilidade social.

Conclusão  Muitos são os desafios impostos pela pandemia na COVID-19, particularmente no que diz respeito à manutenção das ações de controle da tuberculose. Espera-se que esta revisão contribua para embasar novos estudos e para a implementação de políticas públicas orientadas ao enfrentamento de ambas as enfermidades.

Tuberculose; Coronavírus; COVID-19; Infecções por coronavírus; Saúde pública

Resumen

Objetivo  Identificar las evidencias científicas sobre el impacto de la pandemia de COVID-19 en la atención y el control de la TB.

Métodos  Revisión de alcance realizada en junio de 2020 en las siguientes bases de datos: Cochrane Library, Embase, LILACS, MEDLINE, PubMed, Web of Science, Cinahl y Scopus, y literatura gris-Opengrey. Los descriptores utilizados en la búsqueda fueron: coronavirus, COVID-19, SARS-CoV-2 y tuberculosis. El proceso de selección fue realizado por dos revisores independientes a través de la plataforma Ryyan, con la inclusión de 30 estudios.

Resultados  La pandemia de COVID-19 tuvo impacto en el control de la tuberculosis y los principales desafíos derivados están relacionados con la influencia del distanciamiento social en el diagnóstico, seguimiento y adherencia al tratamiento, lo que incluye la reorganización de los servicios de TB, principalmente como resultado del necesario traslado de los equipos de salud que actuaban en el área hacia la atención a la COVID-19. También se registraron limitaciones de acceso a insumos y servicios de salud, lo que ocurrió de igual modo con relación a otros problemas de salud y dejó en evidencia la vulnerabilidad programática. Además, se observan efectos de la pandemia en la dimensión social, lo que contribuye al aumento de la vulnerabilidad social.

Conclusión  Muchos son los desafíos impuestos por la pandemia de COVID-19, particularmente en lo que se refiere a mantener las acciones de control de la tuberculosis. Se espera que esta revisión contribuya para fundamentar nuevos estudios y para la implementación de políticas públicas orientadas al afrontamiento de ambas enfermedades.

Tuberculose; Coronavirus; COVID-19; infeciones por coronavirus; Salud publica

Abstract

Objective  To identify scientific evidence on the impact of the COVID-19 pandemic on tuberculosis care and control.

Methods  Scoping review conducted in June 2020 in the following databases: Cochrane Library, Embase, LILACS, MEDLINE, PubMed, Web of Science, Cinahl and Scopus; and Opengrey - grey literature. The descriptors used in the search were: coronavirus, COVID-19, SARS-CoV-2 and tuberculosis. The selection process was performed by two independent reviewers using the Rayyan platform with the inclusion of 30 studies.

Results  The COVID-19 pandemic had an impact on tuberculosis control and the main challenges arising from it are related to the influence of social distancing on diagnosis, follow-up and adherence to treatment, including the reorganization of tuberculosis services, mainly as a result of the necessary mobilization of health teams working in the area for the care of COVID-19. Limited access to inputs and health services was also registered, which occurred similarly in relation to other health problems, thereby showing programmatic vulnerability. The effects of the pandemic in the social dimension that contributed to increase the social vulnerability also stand out.

Conclusion  Many challenges have been posed by the COVID-19 pandemic, particularly with regard to maintaining tuberculosis control actions. We expect this review will contribute to support new studies and implement public policies aimed at confronting both diseases.

Tuberculosis; Coronavirus; COVID-19; Coronavirus infections; Public health

Introdução

A COVID-19, infecção causada pelo vírus SARs-CoV-2, foi declarada pandemia em março de 2020 pela Organização Mundial de Saúde (OMS).(1)Esse evento, de proporções catastróficas, tem afetado milhões de famílias, com importantes repercussões sociais, em especial em relação ao agravamento da desigualdade social, acentuando problemas globais de saúde pública, dentre eles, o controle da tuberculose (TB), que é a principal causa de morte por uma única doença infecciosa em todo o mundo.(2)

As pessoas com TB ou que tiveram a doença são consideradas vulneráveis à COVID-19, pois podem desenvolver formas mais graves da doença em decorrência do comprometimento pulmonar prévio. O diagnóstico precoce da TB e da COVID-19 pode evitar evolução clínica desfavorável.(3) Dada a rápida progressão da pandemia e a necessária adoção de medidas para a sua contenção, com reflexos para as práticas de saúde, para as ações de vigilância epidemiológica, sanitária, e na gestão dos serviços de saúde, ainda não há informações oficiais robustas que subsidiem o conhecimento da situação epidemiológica da coinfecção por COVID-19 e TB.

Por ser uma doença determinada socialmente e de baixa visibilidade social, o controle da TB enfrenta desafios incisivos frente à pandemia da COVID-19, podendo comprometer o alcance das metas da Estratégia Global para o Fim da TB, de reduzir em 95% a mortalidade por essa enfermidade e em 90% sua incidência, no período de 2015 a 2035.(4) No caso específico do Brasil, também acarretará dificuldades para o cumprimento das recomendações do Plano Nacional pelo Fim da Tuberculose, que estabelece objetivos e atividades específicas pautados nas metas de redução do coeficiente de incidência para menos de dez casos/100.000 habitantes e do coeficiente de mortalidade por TB para menos de um óbito/100.000 habitantes até 2035.(5)

A pandemia exacerba as desigualdades em saúde. Em países em desenvolvimento, como no Brasil, a desigualdade social representa terreno fértil para a disseminação da COVID-19, dificultando o cumprimento das recomendações sanitárias, restringindo o acesso aos insumos básicos para higiene e equipamentos de proteção individual, e a assistência ofertada pelos serviços da rede de atenção à saúde.(6)

Em se tratando da TB, que está associada às precárias condições de vida, saúde e trabalho,(7) na emergência da COVID-19 se prevê a intensificação dos desafios a serem enfrentados.(8) Os programas de controle da TB podem ser afetados pela necessidade de reorganização dos serviços e profissionais de saúde em função da assistência à COVID-19, além da eventual indisponibilidade de insumos e medicamentos para seu manejo e controle. Ademais, o distanciamento social pode interferir na realização do tratamento diretamente observado (TDO) e no seguimento periódico das pessoas com TB.(2)

A OMS manifestou preocupação com a possibilidade de comprometimento do progresso alcançado em relação à prevenção e ao tratamento da TB, ressaltando a importância dos programas nacionais da doença garantirem a continuidade das ações destinadas ao controle da enfermidade durante a pandemia, por meio de abordagens inovadoras centradas nas pessoas1. Por sua vez, o Ministério da Saúde brasileiro recomendou aos Programas Estaduais e Municipais de Controle da TB, o uso de tecnologias disponíveis para o seguimento do tratamento da TB, além da dispensação mensal de medicamentos, da priorização do atendimento às pessoas com sintomatologia, assim como a solicitação de exames para TB aos suspeitos de COVID-19, dentre outras ações.(9)

Reconhecendo que a realidade imposta pela pandemia da COVID-19 afeta sobremaneira o controle da TB no Brasil e no mundo e por se tratar de temática que ainda carece de conhecimento, o presente estudo teve como objetivo: identificar as evidências científicas sobre o impacto da pandemia de COVID-19 na atenção e no controle da TB.

Métodos

Trata-se de uma Revisão de Escopo, pois é o método mais adequado para detectar características especificas ou conceitos em estudos primários e mapeá-los, tendo como proposito a identificação das evidencias disponíveis sobre um tópico e das lacunas de conhecimento.(10) O levantamento nas bases de dados foi realizado em junho de 2020. Esta revisão foi registrada na base Open Science Framework. A OMS salienta a importância das revisões em momentos desafiadores, como em outras pandemias11, para a busca de alternativas para a tomada de decisões em saúde, e responder de modo apropriado a uma questão clínica ou relacionada à política em saúde.

A questão de pesquisa foi elaborada por meio da estratégia PCC, sendo que os elementos do mnemônico P (população), C (conceito) e C (contexto) foram: TB e COVID-19, pandemia da COVID-19 e impacto no controle e na atenção à TB, respectivamente. Sendo assim, o presente estudo foi norteado pela seguinte questão: Quais são as evidências científicas que dizem respeito ao impacto da pandemia de COVID-19 no controle e na reorganização da atenção à TB?

Para o estudo, foram considerados como impacto, os efeitos epidemiológicos e clínicos positivos e negativos da pandemia da COVID-19 na atenção à TB.

A busca eletrônica foi conduzida pelos descritores: (“coronavirus”[MeSH Terms] OR “coronavirus”[All Fields])) OR COVID-19[All Fields] OR SARS-CoV-2[All Fields] and tuberculosis. Foram consideradas as seguintes bases de dados gerais: Cochrane Library (via Wiley); Embase (via Elsevier); LILACS; Medical Literature Analysis and Retrieval System Online (MEDLINE), PubMed, Web of Science, Cinahl e Scopus. Também foi realizada busca eletrônica na base de literatura cinzenta: Opengrey (https://opengrey.eu) e busca manual.

O quadro 1 apresenta as estratégias de busca nas diferentes bases de dados.

Quadro 1
Distribuição das estratégias de busca segundo base de dados

O processo de seleção dos estudos foi realizado por dois revisores independentes e divergências foram resolvidas por consenso. A seleção dos estudos foi realizada em duas etapas. Na primeira foram avaliados os títulos e resumos das referências identificadas na estratégia de busca e foram pré-selecionados os estudos potencialmente elegíveis. Na segunda etapa, foi realizada a avaliação na íntegra dos estudos pré-selecionados, para confirmar sua elegibilidade. O processo de seleção foi realizado por meio da plataforma Rayyan (https://rayyan.qcri.org).(12)

Resultados

Foram identificados, inicialmente, 684 estudos, dos quais, após remoção das duplicações e exclusão, segundo os critérios de inclusão estabelecidos, foram considerados 30 estudos (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma Preferred Reporting Items for PRISMA Extension for Scoping Reviews (PRISMA-SCR) sobre a seleção dos estudos

Em relação ao tipo de publicação, dos 30 estudos analisados, oito consistiam em correspondência, quatro eram revisões, três eram cartas, dois estudos de caso, editorial e perspectiva, respectivamente, e um tratava de recomendação, notícia, recurso, breve comunicação e relatório, comentário, opinião, nota técnica e modelo de análise, respectivamente. Sobre o local do estudo, em 19 publicações não foi explicitado, três ocorreram na África do Sul e duas publicações envolveram oito países cada. As demais publicações tiveram como cenário o Vietnã, China, Portugal, Canadá, El Salvador e Nigéria.

Os estudos foram categorizados no quadro 2, considerando: Referência, Tipo de publicação, Local do estudo e Resultados.

Quadro 2
Sumário das características dos estudos incluídos

A leitura e análise dos artigos resultou nas seguintes categorias de análise e seus elementos constitutivos (Quadro 3).

Quadro 3
Categorias de análise e seus elementos constitutivos

Discussão

Os estudos incluídos nesta revisão mostraram a amplitude do problema da TB e o impacto na pandemia. A maior parte dos temas dos artigos apontam o impacto da COVID-19 no controle da TB, principalmente no que se refere aos problemas e dificuldades que a pandemia acarretará, a exemplo das necessárias medidas de distanciamento social, e suas repercussões, como acesso à detecção precoce, seguimento e adesão ao tratamento da TB. Nessa linha, ainda se destaca a deterioração das condições de vida e de trabalho, com aumento importante na vulnerabilidade social. Quanto aos efeitos da COVID-19 nos sistemas de saúde aponta-se, principalmente, a necessária reorganização dos serviços para atender as demandas da pandemia, com implicações na assistência aos pacientes com TB. Uma outra categoria importante de análise, refere-se às implicações da vacinação BCG, principalmente em relação às indagações sobre o seu efeito protetor na evolução da COVID-19.

Esta revisão buscou sintetizar o estado da arte sobre a TB e a COVID-19, com base nas categorias apresentadas. A categoria Impacto da pandemia da COVID-19 no controle da TB congrega a maior parte das referências identificadas na literatura, evidenciando-se preocupação dos pesquisadores, em especial, porque a pandemia pode comprometer conquistas alcançadas no controle da TB ao longo de décadas, constituindo obstáculo para o alcance das metas estabelecidas pela Estratégia Fim da TB.

A COVID-19 ultrapassou a TB no ranking de doenças infecciosas que mais matam no mundo. É indubitável que a pandemia aprofunda as desigualdades sociais, estendendo-se para além da crise na saúde. Essa crise ameaça afetar de forma desproporcional as populações de países menos desenvolvidos, da África, Sudeste Asiático e América Central e do Sul. Em consequência, dada a consagrada determinação social da TB, aponta-se a probabilidade do aumento dos casos nos países que compõem esse grupo e que apresentem alta densidade populacional.(20-38)

Quanto à categoria Efeitos da COVID-19 na organização dos serviços de saúde, é possível observar semelhanças entre a TB e a COVID-19. As semelhanças relacionam-se: à importância do diagnóstico precoce e da conscientização para o controle de doenças infecciosas, ao estigma social que ambas as enfermidades carreiam, à falta de conhecimento a respeito da suscetibilidade de alguns grupos à infecção e à importância de uma plataforma para o compartilhamento dos dados. Por outro lado, assinala-se a discrepância de investimentos para o controle da COVID-19, assim como a agilidade na reorganização de sistemas de saúde, por parte de alguns países, substantivamente no âmbito da atenção hospitalar, principalmente disponibilizando-se leitos e equipamentos de terapia intensiva.(15)Destaca-se aqui a necessária velocidade na adaptação dos sistemas de saúde frente à emergência pandêmica. Principalmente no Brasil sublinha-se que a pandemia da COVID-19 determinou a injeção de recursos financeiros, sobretudo no âmbito hospitalar e de alta complexidade, e principalmente nas unidades de saúde de caráter privado, deixando de lado a necessária atenção à vigilância de casos no território, no âmbito público da Atenção Primária em Saúde.

A pandemia trouxe desafios adicionais para diversos setores, para além da vigilância epidemiológica, na esfera nacional e internacional, mas também incidindo nas relações internacionais e no necessário reconhecimento da necessidade de políticas públicas voltadas à redução das desigualdades de acesso aos sistemas de saúde, e da urgente redução da injustiça social. Aliada à fundamental reversão desse quadro destaca-se a importância de algumas estratégias para a contenção da pandemia, tais como: disponibilidade de testes em larga escala, logística de saúde e áreas afins para o isolamento territorial e monitoramento dos casos positivos e contatos, investimentos para a proteção de profissionais de saúde, provisão de equipamentos e insumos médicos apropriados e de reconhecida eficácia, assim como as necessárias políticas, por parte do Estado, para a manutenção da proteção social da população, e de estratégias para a retomada programada e segura, com a manutenção de ações e serviços prioritários, especialmente dos programas essenciais para a saúde como o Programa de Controle da TB.(40,41)

A pandemia também causa impacto na organização dos serviços de saúde, com destaque na redução de recursos humanos e materiais destinados ao controle da TB,(20) além da necessária reorganização dos serviços antes destinados à TB para o atendimento de casos de COVID-19,(23)escassez de materiais de proteção, falta de treinamento dos profissionais de saúde em relação ao diagnóstico diferencial de TB e COVID-19, assim como em relação às precauções de segurança, uso adequado de equipamentos de proteção individual e com referência aos critérios de isolamento.(21,30)

No âmbito dos serviços ambulatoriais, o manejo de recursos humanos para atuar na linha de frente contra a COVID-19 repercute na operacionalização do TDO e nas ações de busca ativa de sintomáticos respiratórios, estas últimas também comprometidas pelo necessário distanciamento social, atreladas às barreiras de acesso aos serviços de saúde. Todos esses aspectos podem refletir de forma negativa no diagnóstico precoce dos casos de TB, nos indicadores da doença e no aumento de cepas resistentes aos medicamentos,(29,42) assim como nos processos de adesão ao tratamento e no monitoramento dos casos e de seus comunicantes.(2)Um outro aspecto relevante, e que tem impacto no diagnóstico precoce da TB, é o estigma, materializado pela presença da tosse, situação em que o usuário pode hesitar em procurar o serviço de saúde.(2)

O distanciamento social é recomendado como medida fundamental para a contenção do avanço da COVID-19.(14,22,30) No entanto, a restrição de comparecimentos ao serviço de saúde pode comprometer a adesão ao tratamento da TB e levar a desfechos desfavoráveis. Somado às limitações econômicas, provocadas pela pandemia, estas influenciam negativamente no acesso aos serviços essenciais, também devido aos custos médicos e à falta de transporte para chegar às unidades de saúde.(39)

Com vistas à superação desses impactos, as publicações sugerem a diminuição de idas desnecessárias aos serviços de saúde, o monitoramento via contato telefônico ou por meio de plataformas digitais, além da priorização do atendimento quando presencial.(21,23) Também sugerem o fornecimento de estoques adequados de medicamentos para a conclusão do tratamento da TB de forma auto-administrada1, a rápida restauração dos serviços de TB e a intensificação da busca ativa de casos, incluindo a investigação de contatos por meio de tecnologias digitais.(42)

Um estudo que buscou analisar duas realidades distintas, no Reino Unido e na África, demonstrou o impacto negativo da pandemia da COVID-19 em relação às ações de TB, visto que foi necessário priorizar ações voltadas para a primeira e não para a prevenção da TB. Além disto, destacou que a diminuição da circulação das pessoas com TB nos serviços de saúde pode comprometer o vínculo estabelecido e, consequentemente, a adesão ao tratamento. Problematizar aspectos da interação entre ambas as enfermidades possibilita o fundamental aprendizado entre comunidades, profissionais de saúde e formuladores de políticas, assinalando-se o necessário reconhecimento da relação entre muitas doenças infecciosas e as iniquidades sociais2. Por outro lado, além do reconhecimento dessa associação, requer-se o reconhecimento das necessárias mudanças estruturais nas sociedades, de forma a conduzir os grupos sociais à igualdade no acesso aos bens que proporcionam a dignidade para a condução da vida.

No que diz respeito à categoria Efeito da vacina BCG na COVID, ressalta-se a importância de os profissionais de saúde estarem atentos para a ocorrência de ambas as enfermidades concomitantemente. À medida que a pandemia avança, mais pessoas com TB terão sido expostas ao Sars-CoV-2 e um resultado positivo para este não exclui a possibilidade de TB, principalmente em ambientes com alta carga.(3)

Na presente revisão foram identificadas algumas referências que tratam da utilização da vacina Bacillus Calmette-Guérin (BCG) no enfrentamento da COVID-19, verificando-se consenso sobre a ausência de evidências do efeito protetor da vacina BCG contra infecções causadas pelo SARS-CoV-2, e ainda se aguardam os resultados de pesquisas em andamento.(27-33-37)De qualquer forma, estudos clínicos preliminares apontam que a vacina BCG pode induzir uma resposta imune adaptativa no organismo e desencadear proteção contra algumas infecções virais, incluindo a COVID-19. Entretanto, uma revisão sistemática sobre a temática questiona a qualidade dos estudos desenvolvidos, principalmente em relação à falta de clareza sobre os fatores de confusão (informação demográfica dos países avaliados, parcela de pessoas residentes em ambientes urbanos, entre outros), e pelo fato de simplesmente terem sido avaliadas diferenças entre incidência e mortalidade da COVID-19 em relação às taxas de vacinação.(27)

Ao refletir sobre o cenário epidemiológico da COVID-19 e as experiências no controle da pandemia, são considerados seus potenciais reflexos. Ainda que a rápida evolução tecnológica tenha possibilitado o desenvolvimento de vacinas que possibilitem pelo menos a redução da evolução dos casos para graves e letais, a inexistência de uma vacina específica para evitar a doença, ainda exige ações de distanciamento social, a fim de reduzir a velocidade da curva epidêmica, bem como políticas públicas voltadas para a proteção do trabalhador e investimento no setor saúde.(40)

Na esfera da TB, a OMS reforça que a identificação e o tratamento de pessoas com a doença são pilares fundamentais para a sua prevenção e controle e que estes devem ser mantidos durante a pandemia de COVID-19. Assinala, assim, que os esforços e as ações de controle e eliminação da TB, tais como prevenção e controle de infecções, rastreamento de contatos, cuidados domésticos e comunitários, e sistemas de vigilância e monitoramento, que vem sendo adotados ao longo dos anos, podem ajudar na resposta à COVID-19.(3)

Os programas de controle da TB, assim como o princípio fundante do Sistema Único de Saúde, que é a universalidade sofrem com a diminuição de recursos, em decorrência da aprovação da Emenda Constitucional95/2016, que congela os gastos da União com despesas primárias por 20 anos, e quebra o núcleo essencial do direito que é a garantia de recursos orçamentários para a sua sustentabilidade. Nesse sentido, repercute também na priorização de ações para mitigar a COVID-19, na necessária cobertura vacinal e na detecção precoce de casos e nas medidas que podem conter a sua dispersão, assim como na negligência da esfera federal em relação às necessárias medidas de proteção social, com decorrências no cotidiano dos grupos sociais fragilizados pela inserção social.

O histórico de conquistas na implementação de políticas para o controle da TB está ameaçado pela pandemia da COVID-19. Soma-se a isso, ainda, a relação entre a TB e a desigualdade social, sendo esta, também, um dos efeitos da expansão do novo coronavírus, o que ressalta a necessidade de investimentos e mudanças estruturais por parte dos governos nacionais, locais e internacionais. Destaca-se, também, a importância da sustentabilidade ética e política dos programas de controle da TB, no sentido de manter vigentes as ações de manejo e vigilância da doença.

Conclusão

Os estudos analisados permitem concluir que, no período analisado, a literatura científica apresentou, principalmente três categorias de temas relacionados ao impacto da pandemia de COVID-19 na atenção à TB: influência da doença no seguimento e na adesão ao tratamento da TB, verificando-se aspectos que dificultaram tais necessidades, inclusive descontinuidade, principalmente em decorrência do necessário distanciamento social no início da pandemia. A COVID-19 intensificou a vulnerabilidade social, com repercussões na incidência da TB, principalmente considerando-se que esta última é consagradamente reconhecida como socialmente determinada. O segundo conjunto temático refere-se à necessária organização dos serviços de saúde, atendendo as demandas da COVID-19, com resultados negativos no controle da TB, em termos de organização dos processos de trabalho e logística de atendimento. O terceiro conjunto refere-se aos efeitos da vacina BCG sobre a infecção pela Sars-CoV-2, verificando-se resultados ainda inconclusivos a respeito. Enfatiza-se preocupação em relação ao impacto da pandemia da COVID-19 na sustentabilidade programática de doenças transmissíveis de caráter crônico, como a TB, que ainda representa um problema mundial de saúde pública e requer atenção prolongada e continuada pelos serviços de saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Nov 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    3 Ago 2020
  • Aceito
    31 Maio 2021
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