Open-access Poder interprofissional em cuidados intensivos: reflexão filosófica a partir de perspectivas foucaultianas e críticas

Poder interprofesional en cuidados intensivos: reflexión filosófica a partir de perspectivas foucaultianas y críticas

Resumo

Objetivo  Discutir as relações de poder entre profissionais de saúde em ambientes de cuidado intensivo e sua interferência no processo de construção do conhecimento.

Métodos  Neste artigo filosófico, exploramos a influência das relações de poder na construção do conhecimento, a partir das perspectivas foucaultiana e crítica de Gramsci e Freire em relação às práticas de enfermagem e cuidados de saúde.

Resultados  Há quatro fontes de poder organizacional (tomada de decisão, critério, controle de recursos e controle de conhecimento/rede) que atuam em diferentes níveis das organizações de saúde. As unidades de terapia intensiva são um importante segmento do ambiente de saúde, e a complexidade no cotidiano dos profissionais desse setor pode dificultar as relações de poder no processo de construção do conhecimento. Por exemplo, quando profissionais externos à equipe da UTI, que detêm conhecimentos específicos, precisam ser contatados para auxiliar em casos, como durante o processo de doação e transplante de órgãos. Nesta situação, é necessário desconstruir o poder competitivo para construir o poder colaborativo.

Conclusão  Usando as perspectivas de Freire e Gramsci, argumentamos que a falta de conhecimento contribui para o poder competitivo, que pode ser superado se os indivíduos envolvidos participarem no processo de aprendizagem em direção ao poder colaborativo. Portanto, as estratégias ou ações para lidar com os desequilíbrios de poder interprofissional podem contribuir para a transformação e mudança mútua.

Obtenção de tecidos e órgãos; Educação em saúde; Relações interprofissionais; Unidades de terapia intensiva

Resumen

Objetivo  Discutir las relaciones de poder entre profesionales de salud en ambientes de cuidado intensivo y su interferencia en el proceso de construcción del conocimiento.

Métodos  En este artículo filosófico, exploramos la influencia de las relaciones de poder en la construcción del conocimiento a partir de las perspectivas foucaultianas y la crítica de Gramsci y de Freire en relación con las prácticas de enfermería y los cuidados de salud.

Resultados  Hay cuatro fuentes de poder organizativo (toma de decisión, criterio, control de recursos y control de conocimiento/red) que actúan en distintos niveles de las organizaciones de salud. Las unidades de cuidados intensivos son un importante sector del ambiente de la salud, y la complejidad en la labor cotidiana de los profesionales de ese sector puede dificultar las relaciones de poder en el proceso de construcción del conocimiento. Por ejemplo, cuando profesionales externos al equipo de la UCI, que tienen conocimientos específicos, tienen que ser contactados para auxiliar en algunos casos, como durante el proceso de donación y trasplante de órganos. En esta situación se hace necesario deconstruir el poder competitivo para construir el poder colaborativo.

Conclusión  Usando las perspectivas de Freire y de Gramsci, argumentamos que la falta de conocimiento contribuye para el poder competitivo, que se puede superar si los individuos involucrados participan en el proceso de aprendizaje en dirección al poder colaborativo. Por lo tanto, las estrategias o las acciones para hacer frente a los desequilibrios de poder interprofesional pueden contribuir con la transformación y el cambio mutuo.

Obtención de tejidos y órganos; Educación em salud; Relaciones interprofesionales; Unidades de cuidados intensivos

Abstract

Objective  To discuss the power relations among health care professionals in acute care settings and its interference in the process of knowledge building.

Methods  In this philosophical paper, we explored the influence of power relations on knowledge building using a Foucauldian and critical perspective of Gramsci and Freire related to nursing and health care practices.

Results  There are four sources of organizational power (decision-making, discretion, control of resources, and control of knowledge/network) that act at different levels of healthcare organizations. Intensive care units are an important segment of healthcare setting, and the complexity involved in the daily activities of professionals in this sector can lead to difficult power relations in the process of knowledge building. For instance, when professionals external to the ICU team that hold specific knowledge need to be contacted to help in cases, such as during organ donation and transplantation process. In this situation it is necessary to deconstruct the competitive power in order to build the collaborative power.

Conclusion  Using Freire’s and Gramsci’s perspectives we argued that lack of knowledge contributes to competitive power which can be overcome if involved individuals engage in the learning process towards a collaborative power approach. Therefore, strategies or action to address interprofessional power imbalances can contribute mutual transformation and change.

Tissue and organ procurement; Health education; Interprofessional relations; Intensive care units

Introdução

Os ambientes de saúde estão progressivamente se tornando ambientes interprofissionais, conforme os profissionais de saúde necessitam trabalhar com colegas de diferentes áreas de conhecimento para prover cuidados de qualidade aos pacientes e famílias.(1) Como resultado, a complexidade e interdependência das relações interprofissionais são um desafio para os enfermeiros e outros membros da equipe de saúde.(2-4) As relações interprofissionais podem ser entendidas como as interações desenvolvidas entre os profissionais em seu ambiente de saúde de atuação, podem impactar diretamente, de forma positiva ou negativa, no processo de tomada de decisão em ambientes clínicos, e o poder e status dos indivíduos são parte do trabalho na equipe interprofissional.(5-8) As interações interprofissionais devem se basear em discussões francas que permitam contribuições de toda a equipe. Nos ambientes de cuidado intensivo, as relações de poder podem ser particularmente desafiadoras para equipes interprofissionais, pois os contextos são dinâmicos, exigentes, complexos e estressantes.(9) Dada a complexidade da operação de equipes interprofissionais nos ambientes de cuidado intensivo, é importante compreender as ligações entre relações de poder e construção de conhecimento para garantir um atendimento de qualidade.

Embora a experiência de poder entre pacientes e profissionais de saúde tenha sido abordada anteriormente em estudos sobre relações de poder,(10-12) nas interações interprofissionais, o poder não tem sido abordado amplamente. Apesar do paciente ser elemento central em todo o processo, para fins da discussão, nos concentramos somente na perspectiva dos profissionais de saúde. Neste artigo filosófico, nos empenhamos em apresentar as relações de poder entre os profissionais de saúde em ambientes de cuidado intensivo e a interferência no processo de desenvolvimento do conhecimento, a partir de uma perspectiva foucaultiana. Adotamos a posição do enfermeiro Coordenador de Doação de Órgãos e Tecidos (CDOT) dentro do ambiente de terapia intensiva como exemplo para discutir as relações de poder e sistemas hierárquicos. Em seguida, usando o ponto de vista de outras perspectivas críticas, como o trabalho de Antônio Gramsci e Paulo Freire, examinamos como o desenvolvimento da consciência crítica pode criar uma prática de enfermagem transformadora e, em última análise, abordar as diferenças de poder dentro do contexto complexo da prestação de cuidados de saúde. Nosso interesse é epistemológico e pragmático ao perguntarmos: o que é poder? Como o poder é visto e usado em ambientes de cuidados de saúde intensivos? Como os conceitos de poder e conhecimento são aplicados às relações interprofissionais nos cuidados de saúde intensivos? E, finalmente, como é o equilíbrio entre poder e conhecimento na equipe de saúde em unidades de terapia intensiva (UTI) e com outros profissionais de saúde externos à UTI (por exemplo, CDOT). Essas questões se originam em uma preocupação pragmática de que noções tradicionais de prática interprofissional em cuidados intensivos podem não trazer uma resolução para os tipos de fatores profundamente enraizados subjacentes à prática de enfermagem em cuidados intensivos, como sistemas hierárquicos e relações de poder. Por exemplo, certas interpretações e discussões sobre o trabalho interprofissional tendem a desviar a atenção da existência de diferencial de poder acentuado por restrições organizacionais (por exemplo, políticas e procedimentos, orçamentos e privilégios da equipe) e pelo fato de que cada provedor de saúde tem vários níveis de agência ou poder e autoridade individual.(13)

A seguir, iniciamos as discussões do tópico pela descrição do conceito de poder e a relação de poder e sistemas hierárquicos nas relações interprofissionais em ambientes de saúde. Após descrever o problema com base no trabalho de Foucault, focamos no trabalho de Antônio Gramsci e Paulo Freire para identificar soluções para os problemas apresentados, demonstrando a importância da consciência crítica para que os profissionais de saúde possam mudar do poder competitivo para o poder colaborativo.

Uma interpretação foucaultiana das relações de poder e sistemas hierárquicos em ambientes de saúde

Em uma de suas palestras, Foucault apresentou a noção do triângulo poder, direito e verdade. Foucault discutiu que em seu trabalho prévio (antes de 1971), tentou relacionar os mecanismos de poder e as regras dos direitos que delimitam formalmente o poder e os efeitos da verdade produzidos e transmitidos por esse poder, que também reproduz o poder. Ele chamou essa relação dinâmica de triângulo poder, direito, verdade.(14) Foucault argumentava que em qualquer sociedade, há relações de poder que constituem o corpo social, que por sua vez não poderiam existir sem a “produção, acúmulo, circulação e funcionamento de um discurso”.(14) O exercício de poder não é possível sem determinados discursos econômicos da verdade que operam através e na base dessa operação”.(14) Portanto, não podemos exercer o poder a não ser pela verdade, confiando na produção da verdade por meio do poder. Ele apresenta exemplos da verdade relacionada a perspectivas legais e éticas de direitos, não apenas relacionada às leis propriamente ditas, mas a todos os sistemas de instituições e regulamentos responsáveis por sua aplicação.(14)

Foucault(14) afirmava que o poder está em toda parte e pode vir de qualquer lugar, mas não é uma agência ou algo que possa ser dado, trocado ou recuperado. Ele acreditava que o poder é exercido e existe somente na ação.(14) Portanto, o poder é uma relação de força,(14) é relativo e equilibrado nas relações.(15) O poder pode ter diferentes significados que dependem do ambiente onde ele existe,(15, 16) cada um com suas próprias conotações positivas e negativas associadas ao termo. Em uma visão positiva, pode ser o potencial de mudança, a capacidade de conseguir o que se deseja ou a capacidade de atingir um objetivo comum.(17) No entanto, pode ser visto como algo usado para oprimir, alienar e depreciar. Essas descrições relacionadas ao equilíbrio do poder trazem a noção de que a hierarquia é intrínseca às relações humanas. Apesar do senso de organização das sociedades sempre ter se baseado nas relações de poder, Foucault afirma que os indivíduos não são os pontos de aplicação do poder, mas sim os veículos do poder.(14) Como o poder não é estático, ele circula, então ninguém pode possuí-lo, pois é empregado e exercido em uma organização em rede.(14) Assim, os indivíduos são apenas elementos articuladores de poder, pois simplesmente mudam da posição de exercício ou submissão ao poder ao longo do tempo.(14)

Existe um sistema hierárquico estabelecido dentro da macroestrutura e microestruturas de um hospital. A macroestrutura refere-se à organização como um todo; ou seja, a estrutura administrativa composta pelo presidente, diretor executivo (CEO), gerentes, coordenadores, supervisores e assim por diante. Essa estrutura pode ser representada por um organograma que ilustra graficamente as posições ocupadas por cada pessoa. A representação gráfica de uma organização é estática, mas a rede de pessoas que preenche esses cargos é dinâmica.(18) Pessoas em diferentes níveis do sistema hierárquico estão em constante inter-relação.(18) Nesse tipo de estrutura, há uma clara relação de poder que faz parte do cargo ocupado pela pessoa. Quanto mais alta sua posição no organograma, mais poder ela terá.(16) Esse poder deriva da reputação,(16) em que as pessoas obedecem às instruções de um agente por respeito, medo, dever com posição de alguém, ou pagamento. Nessa macroestrutura, a hierarquia cria uma estrutura para o poder individual, onde uma pessoa ordena e os outros devem obedecer.

As microestruturas dos ambientes de saúde são compostas pelos diferentes serviços necessários para o cuidado direto ou indireto dos pacientes e pelas relações interprofissionais da equipe nos desfechos do cuidado. Os hospitais normalmente incluem muitos departamentos relacionados a cuidados indiretos e suporte (por exemplo, contabilidade e administração), cuidados indiretos (nutrição, farmácia e imagem) e cuidados diretos (por exemplo, cuidados intensivos, emergência, medicina). Cada um desses indivíduos ocupa uma posição na hierarquia hospitalar e, independentemente de estarem em cuidados diretos ou indiretos, todos exercem poder em suas relações cotidianamente. Nessas instituições, o poder não está relacionado somente à posição do profissional de saúde na estrutura de saúde, mas também às necessidades individuais dos pacientes em cada ambiente. A colaboração interprofissional em ambientes de saúde acontece quando diferentes provedores de saúde se esforçam coletivamente para um trabalho conjunto em direção à melhor qualidade de atendimento.(19) Essa colaboração interprofissional depende de muitos fatores pessoais que moldam as atitudes, comportamentos e práticas sociais dos indivíduos.(20) Portanto, o sucesso das relações interprofissionais dependerá também das relações interpessoais; a confiança, empatia e a identificação mútua são fundamentais para construir colaboração entre os indivíduos.(18) É importante lembrar que a pessoa ofertando cuidado em um ambiente de saúde também é um ser humano. Assim, o poder nas relações interprofissionais está na habilidade das pessoas se identificarem umas com as outras em termos de crenças, valores, legitimação de normas e ideologias.(20)

Nas organizações, a fonte de poder pode ser categorizada em quatro tipos: (1) poder de decisão, (2) critério, (3) controle de recursos e (4) controle de conhecimento e redes.(12) Todas essas categorias podem ser vistas em diferentes níveis de organização, e no cenário da saúde, as quatro fontes de poder organizacional podem ser combinadas de várias formas em cada nível, apesar de algumas categorias se destacarem de outras em cada nível. Por exemplo, a tomada de decisão está presente em ambos os níveis, macro e micro, e a disponibilidade de informações sobre as opções e possíveis consequências é importante para que o tomador de decisão escolha com sabedoria.

Os ambientes de saúde são estruturas complexas com diferentes dimensões de cuidado. O setor de cuidados intensivos é uma parte importante dos cuidados de saúde, especialmente para pacientes cuja vida depende de “intervenções sensíveis ao tempo e, frequentemente, rápidas”.(21) O termo cuidado intensivo é amplo e inclui diferentes setores do cuidado de saúde, como atendimento pré-hospitalar, pronto-socorro e unidades de terapia intensiva.(21) Todos esses setores possuem uma equipe composta por enfermeiros, médicos, fisioterapeutas, nutricionistas, entre outros. Todos na equipe são responsáveis por prestar assistência baseados em sua experiência com tratamentos holísticos dos pacientes. Na microestrutura, o ambiente ideal consiste em um ambiente de saúde colaborativo e respeitoso, no qual as opiniões e intervenções sejam discutidas pacificamente até alcançar um consenso dentro da equipe sobre a melhor opção de tratamento, com posterior apresentação ao paciente ou seu substituto tomador de decisão para a palavra final. No entanto, a realidade pode não corresponder a essa situação ideal, e conflitos podem surgir da discordância sobre escolhas de tratamento e visões de mundo pessoais entre a equipe de saúde.(22) Essas discordâncias podem resultar de relações interprofissionais e graus de poder intrínseca e inconscientemente estabelecidos dentro da equipe.

Historicamente, a medicina manteve uma posição de autoridade relativa sobre as demais profissões no que se refere à divisão do trabalho nos domínios clínico, estrutural e organizacional.(23) Essa dominância se deu pela autonomia que profissionais médicos mantinham de avaliações de outras áreas profissionais.(24) A intrínseca ligação da autonomia profissional ao poder pode levar a aspectos monopolísticos que frequentemente resultam em conflitos entre as profissões da saúde.(25) Apesar da dominância e o tratamento monopolístico dos pacientes pelos médicos ainda existirem na medicina tradicional ocidental, o domínio organizacional está mudando. Como resultado, indivíduos dentro de um grupo profissional detêm diferentes graus de poder e a dominação médica está sendo substituída por um ambiente mais participativo.

Hoje em dia, existe uma distinção no tipo de poder exercido pelos profissionais: poder competitivo e poder colaborativo.(26) Por um lado, poder competitivo se refere a uma pessoa de determinada profissão dominando outras com profissões diferentes, ou ainda dentro da mesma profissão, entre pessoas que ocupam diferentes posições hierárquicas (por exemplo, sênior vs. júnior).(26) Por outro lado, o poder colaborativo refere-se à participação interprofissional sem julgamento e tomada de decisão para o cuidado do paciente.(26)

As unidades de terapia intensiva são um bom exemplo desse ambiente participativo relacionado ao poder colaborativo, local onde a colaboração da equipe interprofissional está ligada a melhores resultados para o paciente, maior segurança e qualidade do atendimento.(9) Portanto, esse ambiente de rede costuma funcionar em equilíbrio e é alimentado por informações de cada profissional envolvido no tratamento do paciente. Por exemplo, os enfermeiros contribuem com as informações de cuidados diretos sobre parâmetros de sinais vitais, evolução comportamental e mudanças físicas; os fisioterapeutas contribuem com informações respiratórias e de mobilidade; assistentes sociais com informações sobre família e apoio social durante o tratamento do paciente no hospital e após a alta; e médicos, com informações sobre os achados clínicos, diagnósticos e tratamentos a serem implantados. No final, todas as partes da informação, a partir do conhecimento de cada profissão, são equilibradas e a equipe decide em conjunto sobre o plano de cuidados de cada paciente, que tem a palavra final em seu tratamento.

No entanto, o equilíbrio pode ser perdido em algumas situações. Por exemplo, a especialização profissional em saúde está levando a uma crescente necessidade de cuidados interprofissionais complexos, portanto, profissionais como enfermeiros do CDOT podem ajudar a equipe da UTI em casos difíceis. Os CDOTs são especialistas em doação de órgãos e tecidos para transplante. Embora estes profissionais não façam parte da equipe de terapia intensiva, eles trabalham conjuntamente para melhorar as taxas de doação de órgãos. Apesar da relação entre a equipe de terapia intensiva e os CDOT parecer estável, o equilíbrio da equipe pode ser ameaçado, e a equipe da UTI pode evitar o contato com os CDOT quando necessário devido às relações de poder interprofissionais. Entre as várias funções desempenhadas pelo CDOT, está a educação dos profissionais de saúde para a identificação precoce de potenciais doadores a fim de aumentar as chances de doação de órgãos no hospital. Quando os pacientes com lesão cerebral podem estar evoluindo para morte encefálica, a equipe da UTI pode continuar realizando intervenções de terapia intensiva para melhorar o estado de saúde do paciente, em vez de prosseguir com a avaliação de potencial morte encefálica, seguida do encaminhamento do paciente para organizações de doação de órgãos, com avaliação do potencial doador pelos CDOTs. Foucault afirma que o poder está presente sempre que alguém deseja impor comportamentos ao outro.(27) Portanto, nesta situação, o fluxo de poder será modificado por um profissional externo, que traz novas informações para a equipe da UTI sobre as intervenções necessárias ao paciente. Na pior das hipóteses, o poder colaborativo é substituído pelo poder competitivo se as sugestões e o conhecimento do CDOT não forem bem recebidos pela equipe da UTI, que pode resistir a mudar o plano de cuidados.

Foucault relacionou a noção de poder com uma visão negativa e oposta à verdade, como algo repressor, dominante e controlador. Posteriormente, ele demonstrou que o poder estava relacionado com a verdade de forma simbiótica, onde quanto mais alto o nível de verdade, maior o poder.(28) Com a evolução de seus escritos e pensamentos, a noção negativa de poder foi substituída por uma positiva: a do poder visto como força produtiva.(28) Ele argumentou que o poder produz efeitos no nível do desejo, assim como no nível do conhecimento.(14) Para Foucault, quando o poder é exercido por meio de mecanismos de formação e acúmulo de conhecimento (métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de investigação e pesquisa), ele desenvolve, organiza e circula um conhecimento capaz de controlar o outro,(14) com o conhecimento e o poder criando e reforçando um ao outro.

No exemplo do CDOT, o conhecimento sobre o processo de doação de órgãos é a materialização do poder neste cenário. A resistência em aceitar as sugestões do CDOT no tratamento é o resultado da tensão criada pelos diferenciais de poder entre os indivíduos. Essas tensões impedem que as pessoas adquiram conhecimento, e criam sistemas hierárquicos que não existiam anteriormente. Como consequência, essa hierarquia de conhecimento oprime a equipe e cria um ciclo de rejeição do ‘detentor’ do conhecimento, o enfermeiro CDOT.

Como pode ser a construção do conhecimento neste cenário de opressão? Como os CDOTs podem superar essa opressão de conhecimento e construir o conhecimento dentro da equipe? Que mecanismos podem ser usados para restaurar o equilíbrio do fluxo de poder entre a equipe? Essas são questões importantes a serem discutidas, uma vez que os resultados dessas relações de poder interferem diretamente nos resultados da assistência à saúde.

O controle do conhecimento e das redes são importantes fontes de poder nas estruturas interprofissionais, portanto, o poder vai depender da posição do indivíduo nas redes de comunicação.(15) Por exemplo, os CDOT possuem o conhecimento necessário para melhorar a doação de órgãos na unidade de terapia intensiva, mas caso não consigam estabelecer uma relação empática com a equipe de terapia intensiva e sensibilizá-los para a importância dos procedimentos corretos para melhorar a doação de órgãos, não conseguirão atingir seus objetivos. Para Foucault, o poder é a relação de forças e essas relações “adquirem força normativa na proporção de sua capacidade de persuadir, incitar, influenciar, dirigir, reprimir ou controlar a conduta do outro”.(29) Nessa situação, o CDOT deve usar o poder do conhecimento em sua “posse” para influenciar positivamente a equipe de terapia intensiva (poder colaborativo). No entanto, os resultados do conhecimento dependerão da forma como esse poder é empregado em cenários de cuidados intensivos.

Superando a “Opressão do Conhecimento”: Elevando a Consciência Crítica

Como substituir o poder competitivo pode pelo poder colaborativo? Na busca pela resposta desta questão, utilizamos o trabalho de Antônio Gramsci e Paulo Freire a fim de demonstrar a importância da consciência crítica na criação de soluções para os problemas identificados por meio das relações de poder descritas na visão foucaultiana. Apesar das ideias de Foucault terem sido utilizadas para apresentar o problema, suas concepções não podem ser aplicadas para apresentar possíveis soluções. No entanto, ideias de outros estudiosos e filósofos podem levantar soluções possíveis.

No processo de desenvolvimento do conhecimento, é importante ter a consciência de que os humanos são seres independentes e capazes de objetificar e recriar o mundo com seu trabalho.(30-32) Paulo Freire, educador brasileiro, afirma que a educação tradicional, que não dá voz aos oprimidos, ajuda a perpetuar as injustiças sociais. Ele a nomeou como educação bancária, baseada na mera transmissão de conteúdos e informações sem discussões ou participação dos alunos. Usando nosso exemplo, se o CDOT apenas dá instruções para a equipe de terapia intensiva sem considerar suas opiniões e pensamentos, o CDOT se torna um instrumento de opressão. A obra de Freire explica a sociedade a partir do embate entre opressores e oprimidos.(32) Nesse cenário, o conhecimento do CDOT está agindo de forma opressora com a equipe de terapia intensiva. Ao construir o conhecimento com a equipe de terapia intensiva, o CDOT deve estar ciente de sua responsabilidade como educador; e a equipe de terapia intensiva (os oprimidos) não deve ser o opressor do opressor (conhecimento do CDOT), mas o restaurador das relações humanizadas. Em outras palavras, a equipe de terapia intensiva não deve ignorar o conhecimento do CDOT. O processo de construção do conhecimento deve ocorrer através da ideia de uma pedagogia libertária, que liberte o oprimido do processo de alienação do opressor.(32) Freire argumenta que ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens (sic) se libertam em comunhão.(32) Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo. Os seres humanos educam-se uns aos outros mediados pelas experiências do mundo. Freire prega uma relação horizontal entre as pessoas, que possibilite a troca de conhecimentos e experiências.

Além disso, o compromisso do educador com os educandos é outro ponto de suma importância no exemplo supracitado do CDOT, para a construção bem sucedida do conhecimento, sem o qual não haverá aprendizagem efetiva. Este compromisso depende da colaboração interprofissional e é facilitado com o claro estabelecimento das tarefas e objetivos profissionais, o delineamento efetivo dos papéis profissionais e a presença de feedback interprofissional.(33-35) É essencial que a equipe de saúde participe do processo de construção do conhecimento e esteja ciente de seu papel como sujeito ativo dessa construção. Gramsci, filósofo italiano, apresenta uma preocupação em amenizar as relações hierárquicas entre os educadores e os que aprendem, defendendo uma relação dialética entre eles.(30,31) Para Gramsci, uma boa relação para a construção do conhecimento deve ser ativa e recíproca, nos termos “todo professor é sempre aluno e todo aluno é um professor”,(31) proporcionando um processo contínuo de autocrítica. Gramsci discutiu a importância da relação entre ‘saber’, ‘compreender’ e ‘sentir’. Para Gramsci, os alunos ‘sentem’, mas nem sempre ‘sabem’ ou ‘compreendem’, enquanto o educador ‘sabe’, mas nem sempre ‘compreende’ ou ‘sente’.(31) Portanto, a relação dialógica entre educador e alunos deve ser fomentada para o desenvolvimento de uma coesão orgânica que permita a construção do ‘sentimento’ em ‘compreensão’ e por último, em ‘conhecimento’.(31)

Gramsci explica a importância do educador envolver as pessoas no processo de aprendizagem.(31) As equipes de saúde em cenários de cuidado intensivo são extremamente ocupadas e sobrecarregadas pelas responsabilidades inerentes à gravidade das lesões de seus pacientes. Portanto, uma educação bancária não faz sentido para essa população e interferiria na dinâmica da unidade de terapia intensiva e nos resultados da assistência à saúde. A educação transformadora defendida por Gramsci e Freire é vantajosa, já que pode ocorrer em uma variedade de locais e respeitar a individualidade de cada sujeito com suas crenças, valores e ideologias.(30-32)

Além disso, para transpor barreiras nas relações de poder em saúde, é importante considerar a utilização do ciclo da cultura proposto por Freire. O ciclo da cultura parte do pressuposto de que todos possuem o mesmo conhecimento e buscam adquirir mais conhecimentos como grupo, embora a vivência da opressão possa afetar negativamente esse conceito.(36) A libertação do oprimido inclui a conscientização e a problematização, mas para um indivíduo se conscientizar sobre a realidade, é necessário primeiro problematizar a sua própria realidade.(37) A problematização é uma estratégia político-pedagógica que apoia a análise crítica e a intervenção na realidade por meio do diálogo.(37) Para Freire, o diálogo inclui reflexão e ação, é parte importante da história da humanidade e permite a reflexão sobre o que sabemos e o que não sabemos de forma coletiva, dando espaço para apreciações críticas e oportunidades de transformação.(38)

Freire e Gramsci enfatizam o uso do diálogo e a relação dialógica entre o formador e os formandos, o formador não impõe o conhecimento ao formando; no lugar, o formador, por si próprio, é uma fonte de conhecimento que instiga o pensamento crítico, o sentimento e a compreensão do formando, que podem ser posteriormente transformados em conhecimento por meio de uma coesão orgânica.(31,38) Como no poder, o diálogo pode ser usado de forma opressora, em nosso exemplo, isso aconteceria se o enfermeiro do CDOT insinuasse para a equipe da UTI que seu conhecimento/prática está errado. É importante usar o diálogo como um exercício de liberdade, permitindo a reflexão e ação dentro do ciclo da cultura.(38) Portanto, de acordo com a teoria crítica de Gramsci e os conceitos da pedagogia crítica de Freire, ao aumentar a consciência crítica, é possível alcançar mudança e transformação social, com o objetivo final de provisão de cuidado correto aos pacientes.

Conclusão

O processo de construção do conhecimento na equipe da UTI, incluindo outros profissionais como o CDOT, é complexo. Neste artigo, discutimos como conceitos importantes de poder e conhecimento podem interferir direta ou indiretamente na construção do conhecimento comum. O conceito de poder foi desdobrado e demonstrou ser um conceito dinâmico, que pode ser correlacionado com diferentes sistemas hierárquicos existentes em diferentes níveis. As relações de poder interprofissionais em ambientes de saúde mostraram um equilíbrio entre os papéis desempenhados por cada profissão e a construção do conhecimento entre elas. Uma vez rompido o equilíbrio, as relações ficam ameaçadas, o que interfere no resultado da construção do conhecimento. O conhecimento representa a fonte, e os resultados do poder, pelos efeitos da teoria de Foucault na equipe de saúde, variam dependendo de como ele é empregado. Para os profissionais de saúde, o conhecimento pode ser interpretado como ameaça ou auxílio, dependendo de seu grau de participação na construção deste conhecimento. Pelas lentes de Freire e Gramsci, argumentamos que o conhecimento como ameaça ou opressão pode ser superado quando usado em relação ao papel de um indivíduo no sistema/cuidado, e que o conhecimento deve ser compartilhado e confiável. Portanto, desequilíbrios de poder interprofissional podem se tornar ação por meio de transformação e mudança mútua.

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Editado por

  • Editor Associado (Avaliação pelos pares): Alexandre Pazetto Balsanelli (https://orcid.org/0000-0003-3757-1061) Escola Paulista de Enfermagem, Universidade Federal de São Paulo, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    2 Set 2020
  • Aceito
    19 Jul 2021
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