Resumo
A heterogeneidade econômica entre Estados, os vários conflitos, desastres na saúde e ambientais, assim como novos processos de compartilhamento de informações, levam a um aumento do fluxo migratório. A sociedade brasileira foi historicamente constituída de importantes fluxos imigratórios, depois tornou-se uma fonte de emigração, recentemente transformando-se em receptora de haitianos e cidadãos latino-americanos. Portanto, indagamos: quais fatores - e até onde - influenciam a inserção de imigrantes na força de trabalho brasileira? A hipótese é que a nacionalidade, gênero, raça e educação dos imigrantes influenciam no salário e no tipo de ocupação. Dois métodos comparativos são aplicados - utilizando dados do Obmigra - para testá-la: (i) uma avaliação quantitativa baseada numa descrição estatística multivariada e em técnicas georreferenciadas; e (ii) uma análise quantitativa baseada em estatística inferencial. Observamos que a nacionalidade é o fator que mais importa para a inserção no mercado de trabalho.
Palavras-chave: migração; cidadania; trabalho; América Latina
Abstract
The economic heterogeneity between states, the various conflicts, health and environmental disasters, as well as new processes of information dissemination, lead to a significant increase in migratory flows. Brazilian society has been constituted by important immigration flows, then became a source of emigration, and in recently years it has been receiving Haitians and citizens of other Latin American countries. We ask: which factors - and to what extent - do influence the insertion of the immigrant into the Brazilian workforce? The hypothesis is that immigrants’ nationality, gender, race and education influence salary and type of occupation. Two comparative methodological approaches are applied - using data available in Obmigra - to test this hypothesis: (i) a quantitative evaluation based on multivariate descriptive statistics and geo-referenced techniques; and (ii) a quantitative analysis based on inferential statistics. We observe nationality is the strongest influencer in labor force.
Keywords: migration; citizenship; workforce; Latin America
Introdução
Segundo as Nações Unidas8, em 2015, o número de migrações em todo o mundo foi de 244 milhões de pessoas (cerca de 3,5% da população mundial total). Desse montante, há um equilíbrio entre homens e mulheres migrantes e a idade média é de 39 anos. Esses fluxos, ainda segundo as Nações Unidas, tem sido cada vez maiores e tem colocado novos desafios aos Estados Nacionais, às legislações domésticas e internacionais, sobretudo em busca de garantir os direitos inalienáveis dos seres humanos. Conceitos como Estado e cidadania têm sido reelaborados para que os direitos humanos tenham sua relevância assegurada frente à autonomia e soberania dos Estados e para que a cidadania seja estendida independente da nação ou do território a que o indivíduo pertença.
Esse artigo tem como objetivo avaliar a situação dos trabalhadores latino-americanos no Brasil a partir da perspectiva da cidadania pós-nacional. A premissa é que o trabalho informal e precário dificulta a dignidade humana e, portanto, qualquer forma de cidadania pós-nacional. Por isso, perguntamos: quais fatores - e em que medida - influenciam a inserção do imigrante na força de trabalho brasileira? A hipótese é que a nacionalidade, o gênero, a raça e a educação dos imigrantes influenciam o salário e o tipo de ocupação. Consequentemente, a cidadania pós-nacional depende dessas variáveis se quiser se tornar efetiva. Este trabalho propõe duas abordagens metodológicas comparativas - usando dados disponíveis no Obmigra (Observatório das Migações Internacionais), Rais (Relação Anual de Informações Sociais) e Sincre (Sistema Nacional de Cadastro e Registro de Estrangeiros) - para testar esta hipótese: (i) uma avaliação quantitativa baseada em estatística descritiva multivariada e técnicas georreferenciadas; e (ii) uma análise quantitativa baseada em estatística inferencial, utilizando-se de regressões. Ambas serão usadas para entender os fluxos de imigração e a situação dos estrangeiros na força de trabalho brasileira.
Esta pesquisa se justifica pela sua contribuição acadêmica, ao produzir conhecimento novo, e social, ao testar se as variáveis ora apresentadas impactam (ou não) no rendimento e status ocupacional dos migrantes e, consequentemente, na promoção da cidadania pós-nacional. O presente texto encontra-se assim dividido: (1) esta Introdução; (2) Revisão de literatura; (3) Método, análise dos dados e resultados; e (4) Considerações finais.
Revisão da literatura
O conceito de Estado Moderno remete ao período compreendido entre os séculos XIII e início do XIX. O elemento central de constituição e surgimento deste Estado encontra-se vinculado a uma “progressiva centralização do poder segundo uma instância sempre mais ampla, que termina por compreender o âmbito completo das relações políticas” (SCHIERA, 2004, p.426). Associado a isto, cumpre lembrar o princípio da territorialidade da obrigação política, ou seja, todos os indivíduos que residam naquele território estão submetidos ao domínio do Estado tanto do ponto de vista dos direitos quanto dos deveres.
Das diversas definições já formuladas, a que possivelmente melhor sintetiza a ideia de Estado Moderno é a de Max Weber, que, de acordo com Anthony Giddens, engloba três elementos principais: “(i) existência de um suporte administrativo regular e capacitado, (ii) sustentação do direito de monopólio legítimo do controle dos meios de violência e (iii) manutenção desse monopólio dentro de uma determinada área territorial” (GIDDENS, 2001, p.43).
Tal concepção de Estado Moderno teve alguns de seus princípios questionados a partir do século XIX. Sua metamorfose culmina no que entendemos como Estado Contemporâneo. Este se fundamenta nas ideias de Estado de Direito e Estado Social, por levar em consideração as múltiplas relações entre Estado e Sociedade Civil. Esta nova percepção de Estado pressupõe um sistema legal que garanta as liberdades fundamentais, a livre iniciativa econômica, os direitos trabalhistas e sociais, bem como a separação e a distribuição do poder.
A partir da segunda metade do século XX e, notadamente no início do XXI, outro desafio se coloca aos Estados Nacionais: o crescente processo de globalização econômica e social propiciada pela evolução tecnológica dos meios de produção, comunicação e transporte. Este processo viabiliza uma outra dinâmica das desigualdades internacionais e provoca o deslocamento maciço de contingentes populacionais cada vez maiores.
Será no conceito de Soberania, que encontraremos toda essa discussão consolidada. A Soberania surge como arbitrária, num primeiro momento, onde a lei é um capricho de quem governa. Em um segundo momento, passa a ser absoluta, “onde a lei é uma ordem técnica, racional com relação ao objetivo, ou é uma ordem intrinsecamente universal”. E, por fim, encontra-se limitada, onde “a lei é uma ordem justa” (BOBBIO, 1983, p.1183). O Estado como Soberano - limitado, na concepção contemporânea - possui características que merecem nota, muitas delas mantidas ainda do sistema feudal: (a) em suas relações externas o Estado Soberano é igual a outros Estados Soberanos, mas em suas relações internas ele é supremo; (b) seu poder se garante pela força, pelo monopólio da violência física, mas também pela racionalização jurídica do poder, ou seja, a lei; (c) é institucionalizado; e (d) por seu caráter de igualdade a outros Estados Soberanos, a soberania é autônoma ou independente.
Dessa maneira, chega-se ao conceito comumente aceito de Soberania: “o poder de mando de última instância, numa sociedade política e, consequentemente, a diferença entre esta e as demais associações humanas em cuja organização não se encontra este poder supremo, exclusivo e não derivado” (BOBBIO, 1983, p.1179). Ou seja, a Soberania está acima dos membros pertencentes ao Estado e não está abaixo daquela dos demais.
A autonomia como característica do Estado soberano pode ser também entendida como Independência Nacional. Montesquieu (2007), apresenta a diferença entre liberdade e independência. Segundo ele, liberdade é fazer tudo que a lei permite fazer; diferente de independência, que seria não se submeter a qualquer lei. Ainda que Montesquieu fale de indivíduos, podemos, por analogia, pensar os Estados como os indivíduos do sistema internacional. Nessa acepção, o Estado, frente aos demais, é independente, não livre. Por exemplo, no Brasil, esta encontra-se descrita no art. 4, inciso I da Constituição de 1988. Podemos dizer, dessa maneira, que a autonomia Estatal é uma das faces da soberania estatal frente aos demais Estados. Ela diz dos poderes de exercer o comando e o controle dos membros do Estado, sem se submeter aos interesses de qualquer outro Estado.
Adicionado ao debate sobre o Estado, cumpre apresentar, ainda que de forma embrionária, a discussão acerca dos conceitos de nação e nacionalismo. De Hans Kohn (1946)9 a autores como, John Breuilly (1985), Ernest Gellner (1983) e Benedict Anderson (2008)10, o entendimento sobre o nacionalismo varia entre a identidade de um coletivo (língua, religião, cultura etc.) a mecanismos políticos de consolidação de um território, não necessariamente homogêneo.
Para este trabalho, partimos da compreensão de Giddens (2001), segundo o qual nação refere-se “a uma coletividade existente dentro de um território claramente demarcado, sujeito a uma unidade administrativa, reflexivamente monitorada tanto pelo aparato de estado interno como por aqueles de outros estados” (2001, p. 141). Ainda em Giddens, por nacionalismo entende-se “um fenômeno que é basicamente psicológico - a adesão de indivíduos a um conjunto de símbolos e crenças enfatizado comunalmente entre membros de uma ordem política” (2001, p. 141).
No que se refere ao outro conceito aqui trabalhado, é majoritário o entendimento de que cidadania é a associação dos direitos - sejam eles políticos, sociais, civis, econômicos, ambientais ou difusos - com os deveres, tanto do cidadão ou do seu coletivo para com o Estado e vice-versa. Noutras palavras, tanto os direitos como os deveres são adquiridos pela participação, individual ou coletiva, bem como concedidos pela regulação do Estado. No entanto, é importante ter em mente que mais do que normatizar a cidadania, surge hoje a necessidade de colocá-la em prática, pois ela deve ser entendida como a expressão concreta do exercício da democracia. Do contrário, as palavras contidas nas regras caem num vazio, criando um processo de apatia em que a regulação não se concretiza em ato perdendo, portanto, seu valor.
Para pensar a cidadania, começamos com a canônica conceituação de Thomas Marshall. Para ele, cidadania é:
“um status concedido àqueles que são membros integrais de uma comunidade. Todos aqueles que possuem o status são iguais com respeito aos direitos e obrigações pertinentes ao Estado. Não há nenhum princípio universal que determine o que estes direitos e obrigações serão, mas as sociedades as quais a cidadania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e em relação à qual a aspiração pode ser dirigida” (MARSHALL, 1967, p.76).
Marshall estudou a cidadania na Inglaterra e, ao analisá-la, definiu uma lógica em que ela foi construída concomitantemente à conquista dos direitos pelos súditos. Esses direitos surgiram na seguinte ordem: primeiro os civis (direito de associação e reunião, liberdade pessoal, liberdade de palavra, pensamento e fé, o direito à propriedade e a concluir contratos válidos e o direito à justiça) no século XVIII; em segundo os políticos (direito de voto e o voto secreto, direito ao acesso a cargo público) no século XIX; e, por fim, o direito social (direito ao bem-estar econômico, à segurança, ao direito de participar inteiramente na herança social e a viver a vida de um ser civilizado, de acordo com os padrões prevalecentes na sociedade) no século XX.
Podemos caracterizar a cidadania, tal como vista por Marshall, como tendo um caráter universalista, já que amplia direitos a todos, não importando classe, status ou casta. Tendo também um caráter individualista, já que cada indivíduo tem direitos que dizem respeito somente a ele, por exemplo, o seu direito ao voto. Há de se dizer, ainda, que ela é territorializada, pois sua abrangência, enquanto status, delimita-se pelo território pertencente a um determinado povo e pertencente a um Estado-Nação.
Muitos críticos ao conceito de Marshall surgiram ao longo do último quartel do século XX 11. Suas críticas vão do evolucionismo e da linearidade marshalliana à simplificação dos direitos em três grupos homogêneos: civis, políticos e sociais. Alguns chamam esta caracterização da cidadania de passiva, pois coloca a ênfase apenas nos direitos, esquecendo-se dos deveres cívicos. Para a maioria desses críticos, o conceito de cidadania deve ir além.12 Na visão destes, tais direitos têm que ser associados e complementados com o exercício ativo de responsabilidades e virtudes - o que nos leva à vontade política e, consequentemente, à participação.
Outros autores entendem a cidadania como uma categoria e não como um conceito, posto que é impossível criar um significado único para algo que se transforma e se caracteriza no tempo e no espaço de acordo com características locais específicas. Além disso, a cidadania é, para além de um status concedido, uma identidade compartilhada, ou seja, é a expressão do pertencimento de um indivíduo a uma comunidade política13, sendo comum a vários grupos de uma mesma sociedade. Nesse sentido, a cidadania possui uma função integradora em que os excluídos passam a se tornar incluídos. Pode-se dizer, portanto, conforme a definição oferecida por Kymlicka (1998) 14, que a cidadania deve ser entendida como pertença, implicando em regulação pelo Estado dos direitos e deveres do cidadão, bem como participação, implicando em autonomia na sua inserção nos processos de constituição e implementação das políticas que afetam sua vida cotidiana. Ao mesmo tempo, a cidadania articula identidades socioculturais de grupos, ou seja, suas diferenças (exemplos são as reivindicações por reconhecimento dos negros, mulheres, crianças, homosexuais). Assim, também deve-se levar em conta que a cidadania, por um lado, tem como princípio básico a homogeneidade social e, por outro, ela implica em respeito às diferenças. O conceito de cidadania, nesse sentido, aglutina em si contradições.
Para que se avance no entendimento da cidadania, é pertinente lembrar das nuances do sentido dado à democracia. Isso porque, dependendo do viés dado, a cidadania terá um sentido maior ou menor no que se refere à compreensão da participação.
Assim sendo, a democracia pode ser entendida sob duas óticas: minimalista ou maximalista. A democracia minimalista, ou procedimentalista, ou democracia metodológica ou, ainda, democracia formal tem seu entendimento bem fundamentado nas obras de Schumpeter (1961), Dahl (1989) e Sartori (1987). Segundo eles, ainda que haja algumas distinções entre os sentidos dados à democracia, de uma maneira geral, podemos dizer que a democracia seria entendida como um método. Já a democracia maximalista está bem fundamentada em autores como Pateman (1970,1985) e Macpherson (1966, 1973, 1977), Mansbridge (1980) e Barber (2004 apud Pyrcz, 1985). Ao contrário da minimalista, a maximalista identifica uma maior valoração, ou melhor, maximização dada à atuação da sociedade civil: sobretudo, a sua participação política nos assuntos da vida pública. Neste viés, encontram-se as discussões de democracia deliberativa, democracia participativa e democracia pluralista.
Cidadania e democracia também são conceitos que são transmutados em consequência da dinâmica de globalização. Held (1995) propõe a ideia de cosmopolitan model of democracy, a qual, de uma maneira ou de outra, vislumbra uma cidadania contingenciada pelo direito internacional: “the cosmopolitan model of democracy would seek the entrenchment of cosmopolitan democratic law in order to provide shape and limits to political decision-making” (HELD, 1995, p.272).
Da mesma maneira, cidadania e direitos humanos têm em si fortes vinculações históricas. Quando se fala em direitos humanos, fala-se da construção histórica dos direitos civis, sociais, políticos, difusos, etc., tal como na cidadania. Mas fala-se, também, de um entendimento universal de dignidade humana. Segundo Monsalve e Roman (2009), os direitos dumanos surgiram da necessidade de construção valorativa da dignidade humana como paradigma e referencial ético orientador da ordem internacional. Também, como consequência dos direitos humanos tem, cada vez mais, surgido a necessidade de rever a noção de soberania absoluta dos Estados, bem como a de cidadania a partir da preocupação em assegurar a todos os indivíduos os direitos humanos na esfera internacional.
Assim, pode-se definir cidadania como sendo um conjunto de direitos e deveres nas esferas jurídica, política, econômica e cultural que “definem uma pessoa como um membro competente da sociedade e que, por consequência, modela o fluxo de recursos para pessoas e grupos sociais” (VANINI, 2015, p.5). O conceito de cidadania engloba as discussões sobre desigualdade social, participação social, direitos humanos e democracia, uma vez que a posse da cidadania é que define quem são os sujeitos portadores de direitos e deveres.
Nesse contexto, uma das principais contradições que vêm sendo levantadas atualmente é a emergência de uma cidadania pós-nacional, fortemente vinculada à discussão dos direitos humanos. Segundo Rossana Reis (2004), há uma modificação nas relações entre nacionalidade/cidadania e soberania/imigração.
“Esse processo possuiria duas características: de um lado, os Estados estariam vendo sua soberania enfraquecida frente ao indivíduo, de outro, os laços que ligam os direitos de cidadania à nacionalidade estariam se tornando mais fracos. Isso significa, entre outras coisas, que o Estado não seria mais capaz de definir, em função de seus próprios interesses, quem pode ou não entrar e se estabelecer em seu território, e, ainda, que cada vez mais os direitos são atribuídos em nome da dignidade inerente da pessoa humana, e não da sua nacionalidade, de modo que a própria distinção entre nacional e não nacional estaria perdendo sua importância.” (REIS, 2004, p.157)
Com o fortalecimento do debate acerca dos direitos humanos, a tendência dos Estados foi de perda da sua autonomia na definição de quem tem garantidos, ou não, os seus direitos, numa perspectiva temporal e espacial. Isso configurou uma espécie de transferência de direitos do cidadão para o indivíduo, podendo, no limite, configurar uma situação em que o Estado perde o controle de suas fronteiras, viabilizando uma cidadania para além do pertencimento a uma nação, ou seja, cidadania pós-nacional.15
A contemporaneidade é caracterizada, entre outras coisas, pelo crescente processo de globalização das relações econômicas, políticas, sociais e culturais para além das fronteiras dos Estados Nacionais. Existe um conjunto de questões (ambientais, direitos humanos, questões de gênero, raça etc.) que indicam a necessidade de uma articulação política internacional com vistas à constituição de uma cidadania pós-nacional.
Essa articulação política em direção à construção de uma cidadania pós-nacional significa, necessariamente, dois aspectos: uma perda de parte da soberania das comunidades políticas nacionais e; a construção de uma cultura política de solidariedade internacional. De acordo com Avritzer (2002), seria possível pensar em duas categorias de cidadania pós-nacional16:
“A primeira delas é uma cidadania legal transnacional, capaz de dar direitos civis perante os tribunais às pessoas que estão provisoriamente ou permanentemente sem cidadania. A segunda categoria seria de uma cidadania social transnacional, capaz de assegurar no plano internacional direitos sociais e especialmente condições mínimas de trabalho para que as mercadorias possam circular internacionalmente” (AVRITZER, 2002, p.51).
Para esse autor, cada uma dessas modalidades de cidadania pós-nacional seria capaz de minimizar os efeitos deletérios do intenso processo de expansão do mercado financeiro e das restrições impostas pelos Estados Nacionais. No caso dos direitos legais, eles representariam uma abertura para a movimentação das pessoas num mundo em que apenas as mercadorias circulam livremente. De certa forma, seria como “estender o processo de internacionalização das mercadorias para as pessoas” (Avritzer, 2002, p.51). Já os direitos sociais globais consistiriam numa regulamentação das condições de trabalho em termos internacionais, uma luta concreta contra a super-exploração.
No entendimento de Isabel Carvalhais (2006), cidadania pós-nacional significa que todos os indivíduos teriam direito a “ser partes ativas nos processos de decisão que potencialmente os afetam” (CARVALHAIS, 2006, p.17). Todavia, como bem salienta Yasemin Soysal (1998), a necessidade de se pensar um conjunto de direitos que extrapolam os Estados Nacionais (como no caso da incorporação de imigrantes nos direitos de cidadania, por exemplo) não significa que estes perderam sua utilidade e devem ser extintos. Os desafios que a globalização impõe aos Estados não significam um enfraquecimento total da sua soberania, principalmente no que tange à circulação de pessoas. Mesmo em um modelo pós-nacional, caberia aos Estados Nacionais garantir os direitos individuais17. O Estado continuaria como elemento central de regulação social.
Em um contexto de cidadania pós-nacional, os Estados Nacionais permaneceriam o polo organizador da vida em sociedade, mas com uma legitimação estabelecida em âmbito internacional. Em outras palavras, uma crescente preponderância das normas internacionais para a garantia de direitos fundamentais dos indivíduos. Para Soysal, o acesso aos direitos fundamentais não estaria mais necessariamente atrelado ao Estado-nação, mas sua efetivação continuaria a cargo deles. “Cada vez mais, as demandas por direitos e a legitimação para alcançá-los não estão relacionadas necessariamente ao Estado nação” (VANINI, 2015, p.10).
Em um modelo pós-nacional, o pertencimento à espécie humana substituiria o pertencimento a um Estado Nacional como garantidor dos direitos da cidadania e os direitos humanos universais seriam superiores aos direitos nacionais. Desse modo, os Estados teriam obrigações com as populações estrangeiras a partir de códigos, convenções e leis internacionais de direitos humanos. Logo, para Soysal (1998), o indivíduo transcende o cidadão.
Importante destacar que, em certo sentido, um modelo de cidadania pós-nacional carrega em si um paradoxo, na medida em que, simultaneamente, advoga a existência de direitos universais independente da nacionalidade, mas mantém a centralidade dos Estados nacionais e sua soberania. Isto significa não superar o binômio direitos e nacionalidade que caracteriza a cidadania moderna. Pensar num conjunto de direitos em nível global, desatrelado do pertencimento a um território, de acordo com Soysal (1998), favoreceria um passo importante em direção ao multiculturalismo, a cidadania pós-nacional, enquanto fundamento da integração social global. Na mesma linha, Turner (1993) defende que essa nova concepção de cidadania signifique um reconhecimento das diferenças e abra espaço para construção de uma sociabilidade global baseada nos direitos humanos, funcionando como uma espécie de quarta categoria de direitos (direitos civis, políticos, sociais e humanos), em outras palavras, uma ética universal.
Por fim, o desafio que se coloca é pensar um tipo de cidadania que ultrapasse o jogo de inclusão/exclusão que caracteriza a cidadania vinculada ao pertencimento a um Estado Nacional. Isso sem desconsiderar a identidade original com uma determinada comunidade política, mas estabelecendo uma mediação entre o sentimento de pertencimento local integrado a uma comunidade global compartilhando valores éticos, morais e um senso de justiça universal (SILVA, 2008).
Essa nova forma de visualizar a cidadania, nos remete ao último conceito sugerido: migração. Esta, por sua vez, se disseminou de forma significativa nos últimos 50 anos. O fenômeno migratório é bastante antigo na história da humanidade. Perseguições políticas, ideológicas, religiosas ou étnicas, epidemias, catástrofes naturais, guerras, crises econômicas e fome, dentre outros, sempre foram causas para esse fenômeno. Entretanto, os séculos XX e XXI parecem ter intensificado tal processo, tornando mais frequente e disseminado o fluxo dos refugiados (BRZOZOWSKI, 2012). Também, nesse mesmo período, a forma de tratamento do fenômeno das migrações foi alterada e evidenciada, dentro de uma perspectiva de inspiração grotiana, ou seja, primazia do direito internacional, pelas tentativas de criar tratados ou convenções internacionais relativos às relações entre os países e os direitos humanos.
Quando tratamos do tema das migrações internacionais, três aspectos devem ser levados em consideração: (i) dilema entre, por um lado, autonomia e soberania dos Estados nacionais e, de outro lado, o direito dos indivíduos de buscar uma vida melhor; (ii) as tentativas em criar uma legislação internacional comum, levando em conta os direitos humanos versus os interesses específicos dos Estados Nacionais; e (iii) o sentido dado a cidadania em cada Estado Nacional frente às novas discussões que remetem à ideia de uma cidadania pós-nacional (REIS, 2004).
Em relação ao primeiro aspecto, apesar dos avanços do Direito Internacional em reconhecer os direitos dos indivíduos18, os Estados têm autonomia decisória para determinar quem entra e reside em seu território. Ninguém pode, ao menos legalmente, entrar e/ou permanecer em um país estrangeiro sem a devida documentação e autorização do Estado. Sabe-se que, por um lado, em muitas circunstâncias, os países mantêm uma linha tênue entre o legal e o ilegal, permitindo, por questões de interesses diversos, a permanência irregular de imigrantes em seu território. O fato que ilustra isso é, por exemplo, o caso dos mexicanos nos Estados Unidos. Se o rigor da lei fosse aplicado, provavelmente haveria uma falta de trabalhadores em serviços de menor remuneração. Por outro lado, percebe-se um recrudescimento da criminalização das leis nacionais dos países receptores de imigrantes ilegais, como é o caso também dos EUA.
No que se refere ao segundo aspecto, os direitos humanos - ao serem amplamente discutidos e demandados no âmbito internacional - evidenciam o indivíduo em detrimento aos interesses do Estado ao qual ele pertence e do Estado que o recebe (espontaneamente, ou não). Este novo movimento tem reduzido o caráter territorialista da ideia de cidadania e submetido a autonomia dos Estados a valores considerados como superiores a seus interesses, como por exemplo, os direitos instituídos como inalienáveis. Nesse sentido, os indivíduos passam a ser portadores de direitos independentemente a qual Estado pertençam. O Estado passa a ver seu monopólio sobre a mobilidade e seu controle sobre a identidade do indivíduo postos em cheque. Assim, as tentativas de garantir aos imigrantes tratamento e direitos trabalhistas iguais aos membros do Estado receptor, independente de sexo, religião, raça ou nacionalidade, previstas na Convenção de Imigração para o Trabalho (1949) e na Convenção dos Trabalhadores Imigrantes (1975), demonstram a relevância dada aos direitos individuais em detrimento dos interesses dos Estados.
Por fim, o terceiro aspecto acaba por retomar a discussão já mencionada anteriormente na qual o indivíduo, agora detentor de direitos inalienáveis, superiores a quaisquer interesses, torna-se um cidadão do mundo, pós-nacional. Isso significa que ele passa a possuir o direito a ter direitos.
De acordo com Elaine Vilela (2008), essa diferenciação se dá porque o mercado de trabalho transcende os aspectos meramente de oferta e procura, na qual o capital humano determinaria de forma objetiva a alocação e manutenção dos indivíduos no sistema produtivo. Para ela, as relações sociais e culturais da sociedade hospedeira também interferem nesse processo. Fatores como gênero, raça e origem do imigrante também seriam fatores determinantes de alocação dos indivíduos nas diversas ocupações do mercado de trabalho. Em outras palavras, os indivíduos seriam alocados “não apenas pelo seu capital humano, mas, também, por suas relações sociais e seu significado social” (VILELA, 2008, p.35).
O Brasil se constituiu historicamente por fluxos imigratórios, virou um foco de emigração mas, atualmente, vem recebendo um significativo número de haitianos e cidadãos de outros Estados da América do Sul. O Gráfico 1 abaixo, produzido pela FGV/DAPP (2015), explicita a proeminência da migração latino-americana em comparação às demais regiões ao longo dos últimos anos.
Método, análise dos dados e resultados
De acordo com os dados do Sincre OBmigra entre os anos de 2010 e 2014, o Brasil regularizou 211.688 imigrantes oriundos de países latino-americanos e caribenhos, com destaque para os bolivianos que no ano de 2011 representaram cerca de 41% do total de imigrantes latino-americanos e caribenhos para o Brasil. Vale ressaltar que, no total do período (2010-2014), 26% eram bolivianos. Na sequência, observa-se um significativo número de argentinos, haitianos e colombianos. Em relação aos argentinos, eles demonstram uma pequena queda, porém mantiveram-se como o segundo grupo mais numeroso. Chama a atenção o caso dos haitianos, que tem um crescimento expressivo a partir de 2011, chegando a dobrar nos dois últimos anos analisados e a aumentar mais de dezoito vezes no período 2010-2014. Por fim, é de se notar o aumento da imigração colombiana, chegando a mais que dobrar nos anos de 2012 e 2013 (Tabela 1).
A partir de dados georreferenciados é possível perceber o crescimento da imigração em todo o território nacional, por Estado, no período estudado. Isto foi possível através da identificação em patamares visuais em que a gradação da intensidade de cor (do preto ao branco, passando por tonalidades de cinza) apresenta-se através de faixas (em números absolutos) demonstradas nas legendas fixas. Estas permitem comparar um mapa com outro de uma mesma coleção e entre as demais coleções.
Em relação à coleção de mapas 1, pode-se afirmar que cresce a imigração latino americana no Brasil (é visível o aumento da gradação da cor nos mapas, ou seja, os mapas vão escurecendo com o passar dos anos). Também, é possível afirmar que há uma grande concentração no Estado de São Paulo (SP), em todo o período analisado. No entanto, apesar de tal concentração, é perceptível que há uma maior dispersão no número de estados receptores [particularmente Minas Gerais (MG), Mato Grosso do Sul (MS), Mato Grosso (MT), Rondônia (RO) e Amazonas (AM)], com o passar do tempo. Em outras palavras, mais estados vem fixando imigrantes latino americanos, ainda que quantitativamente em número inferior a SP. Por fim, ressalta-se que os estados de Rio de Janeiro (RJ), Rio Grande do Sul (RS), Santa Catarina (SC) e Paraná (PR) aparecem como destinos preferenciais para a imigração latino-americana durante todo o período analisado, destacando o aumento nos últimos anos dos estados SC e PR. (Coleção de Mapas 1)
A coleção de mapas sobre a República do Haiti mostra um comportamento bastante diferenciado em relação aos demais. Não há regularização de imigrantes em 2010; aparece em 2011 nos Estados do AM e RO; em 2012, expande para a região sul além dos estados de SP e MG; em 2013 alcança o centro-oeste e RJ, evidenciando-se na região sul e SP; e, em 2014, o fenômeno torna-se ainda mais evidente em SP, PR e SC, em menor gradação para MG e MT, mantendo-se constante nos demais estados (Coleção de Mapas 2).
Outra maneira de olhar para os dados é cruzando as variáveis Gênero versus Salário (Tabela 2), Escolaridade versus Salário (Tabela 3), Cor/Raça versus Salário (Tabela 4). Ao fazê-lo tem-se as seguintes observações:
-
De maneira geral, os homens têm melhores salários. Curioso notar que, ainda que o padrão permaneça, no Haiti, a faixa de mais de 20 salários minimos (SM) possui mais mulheres;
-
47% das mulheres argentinas recebem até 2 salários mínimos, ao passo que os homens se distribuem em extremos (31% em até 2 SM e 23% em mais de 20 SM);
-
majoritariamente, bolivianos e haitianos recebem até 2 SM, mantendo o padrão já mencionado em que as mulheres recebem menos;
-
Em relação à escolaridade, na Bolívia e, principalmente, no Haiti, a escolarização parece não ter impacto relevante na remuneração, posto que os salários dos haitianos são muito baixos em todas as faixas escolares e, entre os bolivianos, apenas para os doutores, percebe-se melhor remuneração;
-
Os imigrantes argentinos aparentam ter um maior retorno da relação escolaridade versus renda;
-
Com relação à Cor/Raça, a população negra se concentra nas faixas de menor rendimento, com destaque para o Haiti;
-
A população branca argentina possui uma distribuição mais homogênea entre as faixas de renda, com uma leve tendência para as melhores rendas.
Para averiguar a consistência de tais assertivas, foram utilizados dois exemplos de regressão linear multivariada. Este modelo estatístico consiste em uma equação que estima o valor esperado de uma variável tida como dependente quando as demais variáveis, independentes, variam.
Matematicamente temos a equação:
Onde Y é a variável dependente que se deseja estimar, em nosso caso, renda e ocupação; x é a variável independente, cuja mudança gera um efeito em Y, explicando sua variação; β é a estimação do efeito de x gerado em Y; α é o valor estimado de Y caso todas as variáveis do modelo apresentem uma variação 0; e é a estimação do erro do modelo, gerado pela ausência de variáveis importantes e demais incosistências associadas.
No primeiro momento, para estimar a renda e a ocupação desses imigrantes no Brasil de 2010 a 2014, utilizamos as variáveis dependentes sexo, raça, escolaridade e nacionalidade. Renda é uma variável contínua, enquanto ocupação é uma variável ordinal cunhada pela agregação de tipos de ocupação constadas no sistema de classificação da RAIS. Sexo é uma variável dicotômica; raça, escolaridade e nacionalidade são, também, variáveis ordinais, sendo esta última arranjada de acordo com o PIB. No segundo momento, essas mesmas variáveis dependentes são relacionadas, por país, com sexo, raça e escolaridade, no mesmo intervalo de tempo. Devido ao inconsistente número de casos das bases, foi estabelecido um critério de seleção aleatória de 6% do total de cada uma para compôr a amostra.
As Tabelas 5 e 7 se referem aos Estados latino-americanos e caribenhos agregados; e as Tabelas 6 e 8, para cada país individualmente, sendo possível observar a influência das variáveis independentes para cada nacionalidade específica analisada. No que tange às tabelas 6 e 8, é importante ressaltar que, por possuírem um N pequeno, os resultados apresentados por elas são mais frágeis que os resultados agregados, expressos nas tabelas 5 e 7. A significância dos coeficientes a seguir é demonstrada por meio de asteriscos:
-
<0,1 *
-
<0,05 **
-
<0,01 ***
A tabela acima mostra que todas as regressões são bastante significativas, ou seja, todas com um p-valor (sig.) <0,1. É importante observar que alguns coeficientes não são significativos, principalmente a raça, que não apresenta resultados expressivos em nenhum dos anos. A possível explicação para este resultado se deve ao fato de que a categorização da variável incluiu os indígenas entre os pretos e pardos. A nacionalidade é extremamente significativa em todos os anos e positivamente relacionada com a renda (quanto maior o PIB do país de origem, maior a renda). Apenas dois dos resultados analisados são negativos, mas todos não significativos.
Quase todas as regressões acima são significativas, possuindo um p-valor abaixo de 0,1, com exceção dos casos paraguaio, boliviano e argentino em 2010, haitiano e equatoriano em 2011 e todos os casos colombianos registrados entre 2011 e 2014. As variáveis com coeficientes mais significativos são, escolaridade, sexo e raça, nesta ordem.
Podemos observar nesta tabela acima que tanto sexo, como raça, só possuem significância em alguns dos anos analisados. A nacionalidade é extremamente significativa e positiva em todos os anos. Igualmente o é a escolaridade, mas com menor impacto. De um total de três coeficientes negativos, dois são significativos, o que aqui representa uma quebra da expectativa da hipótese, informando que se o sexo for feminino, maior o nível ocupacional. Este resultado não esperado pode ter ocorrido por uma recolhida não tão acuradamente representativa da amostra, visto que os 6% aleatoriamente selecionados podem não representar a realidade.
Com exceção dos casos Haitiano em 2013, Equatoriano em 2011 e Colombiano em 2012 e 2013, todas as regressões são significativas (p-valor<0,1). As variáveis mais significantes são escolaridade, sexo e raça, nesta ordem. Todos os casos negativos e significativos apresentados são relacionados à variável sexo, demonstrando que mulheres possuem maiores cargos de ocupação; esse dado é observado para o Paraguai em 2010, 2011 e 2014, Chile e Argentina, em 2010, e Haiti, em 2014. Novamente, cumpre informar que este resultado não esperado pode ter ocorrido por uma recolhida não tão acuradamente representativa da amostra.
Em suma, como apontado pela revisão de literatura efetuada na seção dois acima, três aspectos devem ser centralmente esclarecidos pelos dados relacionados a trabalho. Quanto ao primeiro e segundo aspectos, ou seja: (i) o dilema entre soberania Estatal e direitos individuais por uma melhor qualidade de vida; e (ii) a criação de legislação internacional comum para amenizar a incongruência entre direitos humanos e interesses do Estado; percebe-se, no Brasil, uma predominância da entidade estatal.
De acordo com os dados, a renda dos imigrantes é sensível ao sexo, à escolaridade e à nacionalidade. Já a ocupação é bastante suscetível à escolaridade e à nacionalidade, mas com muito menos efeito do que o observado na renda. Isto significa dizer que se o imigrante for homem, tiver doutorado completo e for argentino, sua capacidade de se enquadrar com sucesso no mercado de trabalho é grande em quase todos os anos investigados. Esta constatação sobre a nacionalidade não deve ser tomada como trivial, principalmente em vista da não significância da raça.
Em relação ao terceiro aspecto, (iii) a cidadania condicionada a uma concepção que ultrapassa o Estado, a leitura é que a cidadania pós-nacional é mero conceito, não havendo evidências empíricas relevantes que apontem a sua prática. O fato da nacionalidade ser uma variável relevante para explicar os resultados tanto no modelo para renda, quanto no modelo para ocupação revela uma tendência de rechaço à cidadania pós-nacional ao longo do tempo, dificultando a consideração de uma ausência do caráter territorialista da cidadania e, portanto, podendo acolher restrições que afetam os direitos individuais.
Considerações Finais
A partir da Constituição Brasileira de 1988, o Brasil apresenta-se, ao menos teoricamente, como um país garantidor de direitos básicos inalienáveis tanto para os brasileiros, quanto para os estrangeiros. Tudo isso sem abalar as bases da autonomia estatal, mantendo o poder nas mãos do cidadão diretamente ou por seus representantes. Não obstante o caráter progressista da Constituição Federal de 1988, parece haver um descompasso entre ela e a forma como os imigrantes são tratados, pelo menos no mercado de trabalho.
A cidadania pós-nacional, entendida como uma cidadania para além do pertencimento a uma nação, parece não ser realidade nos dados analisados nesta pesquisa. Os mapas georreferenciados deixam claro como a intensidade da migração percebida com o passar do tempo, e que tende a continuar crescendo, não gera aparatos e preparações do mercado, nem mesmo nos estados de maior fluxo migratório.
As informações georreferenciadas e as regressões aqui apresentadas lançam suspeitas sobre uma possível e normal adaptação dos imigrantes relacionada ao tempo de instalação no país de destino e, simultaneamente, revelam motivações que ultrapassam essa justificativa. O mercado de trabalho não demonstra estar receptivo aos estrangeiros de determinada origem e possuindo determinadas características.
Com base na análise descritiva e preliminar dos dados obtidos a partir do Obmigra (Sincre e Rais) constata-se que a argentinos parecem estar melhor colocados entre os imigrantes latino-americanos no mercado de trabalho brasileiro. Na contramão, temos o Haiti na pior colocação; além da aparição oficial recente - ou seja, observada desde 2011 - distribuída pelo Brasil, o que configura um tempo de acomodação reduzido em relação aos demais imigrantes, outras características, como a própria nacionalidade em si, contribuem, e muito, para a falta de expressividade que essa população possui nos setores de trabalho.
Os dados sugerem que as diferenças de rendimento são sensíveis à variável nacionalidade. A origem do imigrante também parece influir no status ocupacional, fazendo com que a cidadania pós-nacional ainda esteja longe do horizonte brasileiro, corroborando, parcialmente, a hipótese deste artigo.
Referências Bibliográficas
- ANDERSON, Benedict. (2008). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo São Paulo: Companhia das Letras.
- AVRITZER, Leonardo. (2002). Em busca de um padrão de cidadania mundial. Lua Nova, n. 55-56, p. 29-55.
- BOBBIO, Norberto . (1983). Dicionário de Política Brasiliense, São Paulo .
- BREUILLY, John. (1985). Nationalism and the State Chicago: University of Chicago Press.
- BRZOZOWSKI, Jan. (2012). Migração internacional e desenvolvimento econômico. Estudos Avançados, N. 26, p.75.
- CARVALHAIS, Isabel E. (2006). Condição pós-nacional da cidadania política pensa a integração de residentes não nacionais em Portugal. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 50, p. 109-130.
- DAHL, Robert. (1989). Um prefácio a teoria democrática São Paulo: Jorge Zahar.
- FGV/DAPP. (2015). Análise e Avaliação do Desenvolvimento Institucional da Política de Imigração no Brasil para o Século XXI. Caderno de Referência, FGV Rio de Janeiro.
- GELLNER, Ernest. (1983). Nations and Nationalism Oxford: Basil Blackwell Publisher Limited.
- GIDDENS, Anthony. (2001). O Estado-nação e a violência São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
- HAAS, Ernst. (2004). The Uniting of Europe Notre Dame: Notre Dame University Press.
- HELD, David . (1995). Democracy and the Global Order - From the Modern State to Cosmopolitam Goverannce Stanford, Stanford University Press.
- _______, (1995). Democracy and the New International Order. In: ARCHIBUGI, Daniele e HELD, David (org). Cosmopolitam Democracy - an agenda for a new world order Combridge, Polity Press.
- KOHN, Hans. (1946). The idea of Nationalism: a study in Its Origins and Background New York: The Macmillan Company.
- KYMLICKA, Will . (1998). Citizenship. In: CRAIG, Edward. (org). Routledge Encyclopedia of Philosophy London: Routledge.
- MACPHERSON, Crawford B. (1966). Introduction to Hobbes Leviathan. Harmondsworth: Penguin.
- ________________. (1973). Democratic Theory: essays in retrieval Oxford: Clarendon Press.
- ________________. (1977). The life and times of liberal democracy Oxford: Oxford University Press.
- MANSBRIDGE, Jane J. (1980). Beyond Adversary Democracy should be read by everyone concerned with democratic theory and practice Chicago: University of Chicago Press .
- MATOS, Ralfo & LOBO, Carlos. (2012). Migração como indicador de democracia, sobrevivência econômica e necessidades básicas especiais. Rev. Inter. Mob. Hum, Brasília, Ano XX, n. 38, p. 213-232, jan./jun.
- MARSHALL, Thomas H. (1967). Cidadania, classe social e status Rio de Janeiro: Zahar.
- MILLER, David. (1999). Principles of social justice Cambridge: Harvard Univ. Press.
- MONTESQUIEU. (2007). O Espírito das Leis Martin Claret, São Paulo.
- MONSALVE, Bohorquez & ROMAN, Aguirre. (2009). As tensões da Dignidade Humana: conceituação e aplicação no direito internacional dos direitos humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos v. 6, n. 11, p. 41-63.
- PATEMAN, Carole. (1970). Participation and Democratic Theory Cambridge University Press.
- ________________. (1985). The problem of political obligation: a critique of liberal Theory Cambridge University Press.
-
PYRCZ, G. (1985). “Strong Democracy: Participatory Politics for a New Age”. Resenha de: Benjamin R. Barber. Berkeley: University of California Press, 1984. Canadian Journal of Political Science, v. 18, n. 1, p. 206-208. doi:10.1017/S0008423900029553
» https://doi.org/10.1017/S0008423900029553 - REIS, Rossana R. (2004). Soberania, Direitos Humanos e Migrações Internacionais. RBCS, vol. 19, n. 55.
- SARTORI, Giovanni. (1987). A Teoria da Democracia Revisitada. Vol I - O Debate Contemporâneo São Paulo: Ática.
- SCHIERA, Pierangelo. (2004). Estado Moderno. In: BOBBIO, Norberto, et al. Dicionário de política Brasília: Editora da UNB /São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, pp. 425-431.
- SILVA, Gutemberg de Vilhena. (2008). A fronteira política. Revista Acta Geográfica, Boa Vista, RR, ano II, n. 4.
- SCHUMPETER Joseph A. (1961). Capitalismo, Socialismo e Democracia Trad. Sergio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar Editores .
- SOYSAL, Yasemin . (1998). Toward a post-national model of membership. In: SHAFIR, Gershon (org). The citizenship debates, Minneapolis, University of Minnesota.
- TURNER, Bryan S. (1993). Citizenship and social theory London: Edited by Sage.
- VANINI, Joice. (2015). Cidadania para além do Estado nacional: uma resposta aos desafios contemporâneos? II Encontro Internacional Participação, Democracia e Políticas Publicas Unicamp, Campinas.
- VILELA, Elaine M. (2008). Imigração internacional e estratificação no mercado de trabalho brasileiro Tese de Doutorado. Departamento de Sociologia e Política. Belo Horizonte: UFMG.
- WALZER, Michael. (1977). Das obrigações políticas: ensaios sobre desobediência, guerra e cidadania Rio de Janeiro: Zahar .
Fontes eletrônicas
-
Convenção de Imigração para o Trabalho (1949). Disponível em: Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvOITTrabMig.html
Acesso em 25.jul.2017.
» http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvOITTrabMig.html -
Convenção dos Trabalhadores Migrantes. (1975). Disponível em: Disponível em: http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvRelMigCondAbu.html
Acesso em 27.jul.2017.
» http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/comite-brasileiro-de-direitos-humanos-e-politica-externa/ConvRelMigCondAbu.html -
Declaração Universal dos Direitos Humanos. (1948). Disponível em: Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html
Acesso em 27.jul.2017.
» http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Declara%C3%A7%C3%A3o-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.html -
United Nations. (2015). International Migrants Stock Dataset in 2015 Disponível em: Disponível em: http://www.un.org/en/development/desa/population/migration/publications/migrationreport/docs/migration-regions-infographics.pdf
Acesso em 03.maio.2017.
» http://www.un.org/en/development/desa/population/migration/publications/migrationreport/docs/migration-regions-infographics.pdf
-
6
Pesquisa financiada pela Coordenação de Pessoal de Nível Superior - CAPES (Edital Universal 01/2016 - Faixa C - Processo 405501/2016-1).
-
7
Os autores agradecem os comentários dos pareceristas ad hoc da RBCP, os quais agregaram maior clareza, rigor e consistência ao presente texto.
- 8
-
9
Com sua distinção entre nacionalismo cívico e nacionalismo étnico.
-
10
Que tratam da desconstrução das ideologias nacionalistas.
- 11
-
12
Como Miller (1999) e Held (1995), por exemplo.
-
13
Haas atesta: “Political community, therefore, is a condition in which specific groups and individuals show more loyalty to their central political institutions than to any other political authority, in a specific period of time and in a definable geographic space” (HAAS, 2004, p. 05).
-
14
Segundo Kymlicka, “um ideal normativo substancial de pertença e participação numa comunidade política. Ser um cidadão, neste sentido, é ser reconhecido como um membro integral e igual da sociedade, com o direito de participar no processo político. Como tal, trata-se de um ideal distintamente democrático” (KYMLICKA, 1998, p.1).
-
15
A melhor contextualização histórica para esse fato encontra-se na ratificação, por parte de muitos Estados, incluindo o Brasil, do Estatuto de Roma (2002). Neste, define-se que os tratados internacionais de Direitos Humanos têm estatura constitucional.
-
16
Importante lembrar que o autor trabalha com a concepção de cidadania mundial. As concepções de cidadania mundial, pós nacional e global possuem especificidades que as distinguem umas das outras, todavia, extrapola o objetivo deste artigo detalhar as diferenças entre elas. Mas de uma maneira geral, todas reconhecem a internacionalização do entendimento de cidadania.
-
17
Esta temática retoma uma discussão filosófica sobre a dignidade humana como natural ou consensual. Para mais, ver Monsalve e Roman (2009).
-
18
Diversos documentos, sob a forma de convenções, tratados e recomendações, já foram aprovados em Fóruns internacionais como a Organização das Nações Unidas ou a Organização Internacional do Trabalho. De acordo com Matos e Lobo (2012) os principais documentos são os seguintes: Convenção de Prevenção e Punição dos Crimes de Genocídio (1948); Convenção da Imigração para o Trabalho (1949); Convenção de Genebra sobre o Status de Refugiado (1951); Convenção Relativa aos Apátridas (1954); Convenção de Prevenção de Formação de Apátridas (1961); Convenção dos Trabalhadores Imigrantes (1975); Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias (1990); Declaração de Cuenca; entre outras.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
10 Fev 2020 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2019
Histórico
-
Recebido
14 Jan 2019 -
Aceito
11 Nov 2019