Open-access Muita tinta, pouco resultado. A Ciência Política consegue responder quem ganha o quê, quando e como?

Lots of ink, few results. Can Political Science explain who gets what, when and how?

Resumo:

O ponto de partida deste artigo é o debate internacional sustentado por Sartori (2004), Laitin (2004), Colomer (2004), Rothstein (2015), Stoker, Peters e Pierre (2015), entre outros, sobre a relevância pública da Ciência Política. O argumento que orienta o trabalho é que a resposta encontra-se na articulação entre polity-politics-policies, entre regras, processos e resultados. Para avaliar o desenvolvimento da Ciência Política brasileira em relação a estas ideias, foram extraídos dados da Plataforma Sucupira, referentes a a) a produção científica de docentes e discentes; e b) o perfil e profissionalização dos titulados em Ciência Política da disciplina no Brasil. Os resultados mostraram concentração da agenda de pesquisa em torno da dimensão politics e um padrão endógeno de profissionalização dos egressos de instituições da área.

Palavras-chave: Ciência Política; profissionalização; polity; politics; policy

Abstract:

The starting point of this article is the international debate maintained by Sartori (2004), Laitin (2004), Colomer (2004), Rothstein (2015), Stoker, Peters and Pierre (2015), among others on the public relevance of Political Science. The argument that guides the study is that the answer lies in the articulation between polity, politics, and policies, and between rules, processes and their results. In order to evaluate the development of Brazilian Political Science in relation to these ideas, data were extracted from the Sucupira Platform, referring to a) the scientific production of professors and students, and b) the profile and professionalization of Brazilian Political Science graduates. The results showed a concentration of the research agenda around politics and an endogenous pattern of professionalization of graduates.

Keywords: Political Science; professionalization; polity; politics; policy

O perigo é que a Ciência Política está se movendo na direção de dizer cada vez mais sobre cada vez menos. Há setores da academia que, no esforço de serem científicos, acham que devemos ficar longe das políticas públicas.

Joseph Nye

Um espectro ronda a Ciência Política contemporânea: dúvidas quanto a seu impacto e relevância públicos. De modernos founding fathers da disciplina, como Sartori (2004) a autores como Laitin (2004), Colomer (2004), Nye (2009), Rothstein (2014, 2015), Stoker, Peters e Pierre (2015), mal-estar e respostas improvisadas alternam-se nos esforços em desvendar a relevância da Ciência Política. Variáveis externas como pressões orçamentárias sobre fundos de financiamento à pesquisa científica, crescimento da exposição da ciência ao crivo e expectativa sociais, e internas, derivadas da própria expansão na titulação de doutores na disciplina no Brasil, fazem com que, mais dia, menos dia, o espectro deste debate bata às costas nacionais.

Este artigo procura “botar sua colher” na discussão, explorando resposta sobre qual o potencial impacto público da Ciência Política, especialmente em contexto como o brasileiro. Para isto, a primeira seção oferece um inventário desta reflexão no plano internacional e eventuais reflexos entre politólogos brasileiros, bem como desenvolve uma perspectiva acerca da relevância e impacto públicos da disciplina. A segunda seção do artigo faz uma reconstituição sintética da construção da Ciência Política no Brasil, a importância do sistema nacional de pós-graduação neste processo e os sinais de esgotamento deste modelo. Na sequência, a terceira parte busca analisar parte da produção científica nacional através de artigos, teses e dissertações apresentados em Programas de Pós-Graduação em Ciência Política, bem como a inserção profissional de egressos titulados entre 1996 e 2014. Finalmente, a conclusão explora o que os achados permitem projetar acerca das perspectivas da disciplina no Brasil.

Ciência Política: falando mais sobre cada vez menos?

Há quase duas décadas, Giovanni Sartori, um dos pais fundadores da Ciência Política como disciplina acadêmica, publicou de forma simultânea em diferentes periódicos acadêmicos internacionais como PS: Political Science ad Politics e Política y Gobierno, um ácido texto indagando “para aonde vai a Ciência Política?” Revelando-se decepcionado com a evolução da disciplina e autocrítico quanto à sua contribuição para isto, Sartori chega a afirmar que a Ciência Política teria se transformado em um “gigante com pés de barro”, uma vez que não seria capaz de responder à pergunta conhecimento para quê? Repassando cinco décadas de desenvolvimento da disciplina, desde os pioneiros Rokkan, Eisenstadt, Linz, Dogan, além dele próprio, Sartori conclui exarando devastadora sentença:

A Ciência Política teria perdido ou descartado pretensão quanto à aplicação do conhecimento, resultando em não gerar conhecimento que possa ser utilizado. Ao não promover a sinergia teoria/aplicação, a Ciência Política contemporânea teria se transformado em uma useless science (SARTORI, 2004, p. 786).

O mesmo volume do periódico trouxe dois outros diagnósticos, menos céticos quanto aos problemas terminais da disciplina. Declarando-se mais otimista, Josep Colomer (2004) reconhece que - diferente do desenvolvimento de outras disciplinas como a Economia - o problema endêmico da disciplina residiu sempre em sua pequena preocupação quanto à aplicabilidade do conhecimento gerado, traduzida em expansão conservadora de subáreas como administração pública e políticas públicas no interior da comunidade epistêmica de politólogos. Sem discorrer sobre a aplicabilidade dos resultados de pesquisas, Laitin (2004) destaca - como evidências de uma ciência madura - a presença de três programas consolidados: a) teoria de justiça (Rawls), b) teorema do voto mediano (Black, Downs), c) bases comparativas da democracia (Rokkan, Lipset).

Mais tarde, Stoker, Peters e Pierre (2015) editam obra coletiva, sob o sugestivo título The Relevance of Political Science. Na introdução, seus organizadores localizam três linhas de vulnerabilidade da disciplina frente ao questionamento que dá nome à obra: a) a exigência de diferenciação frente a ofícios profissionais que compartilham “política” como mesmo objeto de reflexão (jornalismo, direito), combinadao à valorização de achados contraintuitivos como antídoto ao senso comum, resultando em geração de conhecimento predominantemente marginal; b) o legado da behavioral revolution sob a forma de valorização de conhecimento data driven, com disponibilidade de fontes e capacidade cognitiva de interpretação como mecanismos seletivos; e, finalmente, c) um crônico déficit comunicacional na conversão de achados científicos relevantes em linguagem ordinária.

Entretanto, o ceticismo de Sartori reaparece no interior da obra, notadamente através do capítulo de Bo Rothstein (2015). Retomando o ponto sobre a relevância perdida da Ciência Política, apresentado previamente (2014), Rothstein indica que a Ciência Política desenvolveu-se baseada no modelo profissional do advisor, seja para elites políticas ou para cidadãos, segundo distintas oportunidades ou preferências normativas. Nesta direção, conforme Rothstein,

notadamente a ciência política parece desinteressada em ter medidas de bem-estar humano como a principal variável dependente. Em vez disso, a parte principal da disciplina está interessada em explicar a política, em vez do que a máquina política (ou seja, o estado) pode fazer (ou em muitos casos está fazendo) pelas pessoas. Assim, a maior parte da ciência política tenta explicar coisas como “quem ganha as eleições?”, “quando e por que os países estão se democratizando?”, “por que os partidos mudam sua estratégia?” ou “como os estados negociam acordos internacionais?” (ROTHSTEIN, 2015, p. 93, tradução nossa.).

Reforçando o argumento, Rothstein vaticina que

se a relevância da pesquisa em ciência política for entendida em termos de como ela pode melhorar o bem-estar humano e/ou melhorar a legitimidade política, então os cientistas políticos têm, em grande medida, se concentrado na parte menos importante do sistema político, nomeadamente, a forma como se organiza o acesso ao poder - isto é, a democracia eleitoral e representativa e a democratização -, ignorando a parte mais importante da máquina do Estado, a forma como o poder é exercido, ou seja, a qualidade da forma como o Estado consegue governar a sociedade (ROTHSTEIN, 2015, p. 93-94, tradução nossa).

O resultado desta tendência é que “a qualidade da parte administrativa do estado, que agora sabemos ser de extrema importância para aumentar o bem-estar humano, tem sido severamente pouco estudada, pouco teorizada e pouco avaliada na ciência política” (ROTHSTEIN, 2015, p. 94, tradução nossa).

Constituiria interpretação certamente distorcida do diagnóstico de Rothstein concluir que suas palavras indicariam menor importância do estudo de instituições como partidos, eleições ou democracias representativas. Também pode ser injusto associar sua ênfase em human well being com o desiderato utilitarista do bem comum. O cerne da proposição parece residir na desconexão entre polity e politics, de um lado e policies, por outro, como padrão predominante da agenda de investigação científica do mainstream disciplinar. Nesta perspectiva, ordem constitucional e arranjos institucionais (polity), competição eleitoral e processos decisórios (politics) terminaram, predominantemente, adquirindo tratamento exclusivo, com ponto cego localizado nos efeitos e resultados das regras e processos políticos sobre a alocação de bens públicos.

É possível compreender esta ênfase, ao lembrar-se que os pilares da disciplina foram erguidos sobre a posição de cânones como Schumpeter (1942) em defesa de um conceito de democracia fundado em procedimentos, em detrimento de substância. Posteriormente, no movimento neoinstitucionalista para trazer o Estado de volta, ou demonstrar equilíbrios induzidos por estruturas institucionais (SHEPSLE, 1989), ou ainda na existência de diferentes padrões de democracias (LIJPHART, 1999). O ponto para Rothstein localiza-se na proposição de que democracias são condições necessárias, mas não suficientes para o bem estar, dependendo, para este resultado, de serem acompanhadas por capacidades estatais e qualidade de governo. O fenômeno da recessão democrática da última década (FUKUYAMA, 2015; LEVITSKY; ZIBLATT, 2018; MOUNK, 2018; NORRIS; INGLEHEART, 2018; RUNCIMAN, 2018) oferece elementos que parecem reforçar o argumento de Rothstein. Após o apogeu da terceira onda democrática, entre os anos 1990 e 2000, a combinação entre a crise econômica de 2008, mudanças demográficas e tecnológicas, e pressões migratórias estressaram a capacidade de agendas governamentais em prover respostas para problemas como clima, segurança, desemprego e desigualdade. Com isto, democracias desnudaram não possuir mecanismo autopoiético de geração de equilíbrios.

A Ciência Política no Brasil

A presença acadêmica da Ciência Política no Brasil constitui fenômeno tardio. Estudo de Bulcourf, Marquez e Cardozo (2014) revela a defasagem temporal na recepção da Ciência Política argentina e mexicana, de um lado, e a brasileira, de outro. Em 1951, a Universidad Nacional Autónoma de Mexico funda graduação em “Ciencias Políticas y Administración”, seguida pela Universidad Iberoamericana em 1964. A Argentina forma seu primeiro curso de graduação em Ciência Política já em 1952, na Universidad Nacional de Cuyo, seguida por cursos na Universidad del Salvador (1956) e Universidad Católica de Cordoba, em 1960 (BULCOURF; MARQUEZ; CARDOZO, 2014). Em 2003, para um total de 43 cursos de graduação em Ciência Política na Argentina, no Brasil havia apenas 5 (ALMEIDA, 2005). Neste mesmo momento, podiam ser contabilizados 64 cursos de Ciências Sociais e 43 de Relações Internacionais no Brasil. Ainda de acordo com Almeida (2005), em 39% dos bacharelados em Ciências Sociais não havia uma única disciplina de Ciência Política; 44% apresentavam até 8 disciplinas e em apenas 17% destes foi encontrada oferta superior a 8 disciplinas (ALMEIDA, 2005).

Até o início dos anos 1980, Ciência Política, Sociologia e Antropologia apresentavam patamar semelhante no que diz respeito à oferta de doutorados em suas respectivas áreas. Ao lado dos 2 Programas com doutorado em Ciência Política, na USP e IUPERJ, havia 2 doutorados em Sociologia (USP e IUPERJ) e 2 em Antropologia (USP e UFRJ). Contudo, 16 anos mais tarde, quando recém é criado o terceiro doutorado de Ciência Política (UFRGS), a Antropologia já contava com 6 e a Sociologia chegava a 14 doutorados. Em 2004, a Ciência Política dobra sua oferta, para 6 doutorados, enquanto a Antropologia já chegava a 9 e a Sociologia alcançava 24.

Defasagem temporal igualmente separa a criação de associações científicas de sociólogos e antropólogos, e de outro, a dos cientistas políticos. A Sociedade Brasileira de Sociologia foi erguida em 1948, e a Associação Brasileira de Antropologia data de 1955. Em 1966 é registrada uma primeira iniciativa de formação de uma Associação Brasileira de Ciência Política, patrocinada pelo Instituto de Direito Público e Ciência Política e presidida por Themístocles Cavalcanti (ABCP, 1966). Em 1986, a ABCP é recriada e passa, efetivamente a possuir dinâmica acadêmica e associativa. Análise sobre as gerações formadoras da disciplina no país extrapola o escopo deste trabalho e pode ser encontrada, entre outros, em Avritzer, Milani e Braga (2016) e Biroli et al. (2020).

O ponto aqui é que dos anos 1960 até o final da década 2010 pode-se observar um predomínio da sociologia nas instituições universitárias, na formação de doutores, no volume de produção acadêmica e na agenda pública. Restou à reduzida comunidade epistêmica dos cientistas políticos brasileiros o esforço de construção marginal de identidades disciplinares.

Revisitando a agenda da geração fundadora da Ciência Política brasileira, destaca-se preocupação em dissociar-se de teorias sociológicas, identificando variáveis políticas capazes de explicar a configuração da ordem política brasileira: a) a construção do Estado nacional no Brasil em perspectiva histórico-comparativa; b) mudanças institucionais, o colapso das instituições da Constituição de 1946 e o regime autoritário; e c) padrões e tendências eleitorais, seja no multipartidarismo como no bipartidarismo (MARENCO, 2016)

Em contraste com interpretações sociológicas então dominantes, a primeira geração de cientistas políticos acadêmicos introduz categorias políticas, como “pluralismo polarizado” e “paralisia decisória” (SANTOS, 1979). Na mesma direção, podem ser inventariadas contribuições como as de Soares (1973), Souza (1976), Lima Jr. (1983) ou o conjunto de pesquisas eleitorais reunidas em Lamounier e Cardoso (1975) e em Reis (1978), combinando pesquisa empírica, coleta e análise de dados eleitorais, com a busca pela identificação de padrões e tendências no comportamento do eleitorado nos principais estados brasileiros.

Mais tarde, ferramentas conceituais e analíticas derivadas da teoria da escolha racional, game theory e neoinstitucionalismo reforçaram a constituição de uma identidade disciplinar e profícua agenda de pesquisa em momento de afirmação da Ciência Política nacional. Instituições importam representou estandarte disciplinar a orientar agendas de pesquisa institucionais sobre relações Executivo/Legislativo, federalismo, voto e partidos, reformas eleitorais, modelos de democracia (AVRITZER; MILANI; BRAGA, 2016; LEITE; FERES, 2021).

Se a pós-graduação constituiu o vetor do desenvolvimento da Ciência Política no Brasil, reconstituir seus ciclos de expansão permite identificar relações entre oferta e demanda temáticas dentro da disciplina. Conforme informação apresentada no Quadro 1, nas décadas pioneiras da disciplina, predominam cursos de ciência política hard core. Posteriormente, observa-se início de diversificação disciplinar, sobretudo com impulso de programas de Relações Internacionais. Finalmente, a última década apresenta um declínio na participação relativa de cursos de Ciência Política estrita, com expressivo ingresso de programas de Políticas Públicas.

Quadro 1.
Participação de subáreas em Programas de Pós-graduação em Ciência Política/Capes, segundo intervalo temporal

Parece provável que a expansão de Políticas Públicas na última década tenha sido impulsionada pelo crescimento de cursos de graduação no campo neste período (COELHO et al., 2020). Por outro lado, estudo cientométrico de referências bibliográficas de planos de ensino nestes cursos revelou a existência de dois clusteres: um, de administração pública; outro, de ciência política (CLEMENTE et al., 2022).

O que poderia explicar a desaceleração da Ciência Política no país? Passadas cinco décadas de sua fundação, a presença em (apenas) 12 unidades da federação parece descartar hipótese de saturação. Tendo completado seu 16 PPG em 10 estados da Federação em 2021, a área de PP levou apenas 15 anos para alcançar marca que os Programas de CP precisaram de 47 anos para cumprir. Mais instigante seria talvez considerar que o material investigativo que impulsionou a formação da CP nacional (politics, partidos, eleições, relações intergovernamentais), embora relevante, parece dar sinais de esgotamento em relação à demanda de pesquisa e conhecimento três décadas após a Constituição Federal de 1988, ou aos desafios de instituições poliárquicas nacionais e internacionais na última década.

Materiais e procedimentos

Na sequência este trabalho pretende examinar a) a produção científica de docentes e discentes; e b) o perfil e profissionalização dos titulados em Ciência Política da disciplina no Brasil, buscando localizar pistas que permitam compreender as características deste desenvolvimento institucional e acadêmico.

Diversos trabalhos têm empreendido esforço em promover a revisão de publicações acadêmicas, buscando analisar e classificar o perfil da produção da Ciência Política brasileira. Nicolau e Oliveira (2017) analisaram as publicações de cientistas políticos em seis periódicos (Dados, RBCS, Lua Nova, Novos Estudos Cebrap, Opinião Pública e BPSR). Para distinguir os cientistas políticos autores das publicações, empregaram a autodeclaração, vinculação a departamentos de ciência política ou diploma de graduação, mestrado ou doutorado na disciplina. Leite e Feres (2021) examinaram áreas temáticas, metodologia científica e abordagens disciplinares a partir do exame de 23 periódicos classificados nos estratos A1, A2 e B1 do Qualis/Capes da área de Ciência Política e Relações Internacionais. Buscando isolar periódicos de Ciência Política para aferir desigualdades de gênero na área, Candido, Campos e Feres (2021) utilizaram o critério de “área-mãe” adotado pela Capes a partir de 2019. Técnica bibliométrica sofisticada foi utilizada por Codato, Madeira e Bittencourt (2020) para analisar citações em 23 journals de ciências sociais na Base Scopus. Caminho distinto foi adotado por Sainz, Silva e Codato (2022), examinando títulos, resumos e palavras chave de 1849 teses de doutorado defendidas em 11 PPGs de Ciência Política entre 2013-2020.

O tratamento usual revisou trabalhos publicados em periódicos acadêmicos brasileiros registrados no Qualis/Capes ou outras bases de indexação. Três problemas interpõe-se a este procedimento: a) periódicos classificados em estratos superiores apresentam áreas de sombreamento entre diferentes áreas disciplinares, como Ciência Política, Sociologia, Antropologia, Economia, Administração Pública e outras, dificultando a delimitação de publicações específicas de CP; b) a solução mais frequentemente adotada, da identificação do (primeiro) autor do artigo, igualmente não está isenta de problemas: conforme o Relatório de Avaliação da Área de Ciência Política e Relações Internacionais-2017/Capes, cerca de 49% dos docentes em Programas de Ciência Política obtiveram suas respectivas formações doutorais fora dos cursos de Ciência Política, fenômeno mais frequente em gerações mais antigas. Desta forma, este procedimento recorrente pode subavaliar e distorcer as informações buscadas sobre o perfil da produção científica na área. Finalmente, e não menos importante, c) a revisão sistemática de publicações em periódicos nacionais não é suficiente para cotejar trabalhos publicados em journals internacionais, das quais pelo impacto e rigor na seleção, espera-se justamente alta qualidade acadêmica.

O protocolo alternativo aqui adotado consistiu em buscar as informações sobre publicações científicas através da Plataforma Sucupira, base de dados onde são feitos os registros da produção acadêmica de docentes e alunos de todos os Programas de Pós-Graduação nacionais, em todas as 49 áreas de avaliação atualmente existentes. Optou-se por considerar o período relativo à Avaliação Quadrienal 2017 (entre 2013-2016), em detrimento do período avaliativo seguinte. Problemas decorrentes de ausência de transparência nos critérios de classificação de periódicos, não publicização da Plataforma Qualis, dificuldades para processamento e obtenção de dados, judicialização da avaliação, não recomendam considerar-se informações irregulares disponíveis para o período 2017-2021 como efetivamente confiáveis. Em paralelo, informações sobre a inserção profissional dos egressos titulados no período 1996/2014 foram obtidas com base nos dados da pesquisa “Mestres e Doutores do Brasil”, realizada pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI. Estas informações são públicas, tendo gerado pelo menos três publicações nas quais estas informações podem ser acessadas. Informações mais detalhadas sobre os procedimentos e tratamento destes dados podem ser obtidos em CGEE (2016, p. 9-19)

A Plataforma Sucupira registra 41.095 itens produzidos pela Ciência Política brasileira entre 2013 e 2016, divididos entre obras técnicas (56,4%), bibliográficas (43,5%) e artísticas (0,1%). Das 17.877 obras bibliográficas, 5.014 correspondem a publicações em periódicos. A Capes classifica todos os periódicos segundo critérios de impacto e relevância para cada área de avaliação, variando de A1 até B5. Na Avaliação Quadrienal 2017, a área de Ciência Política somente considerou para fins de pontuação publicações docentes em periódicos A1, A2 e B1, incluídos nestes estratos por integrarem bases como SCImago e Scielo, possuírem indicadores de impacto e procedimentos de peer review aferidos. Neste trabalho, foi adotado o mesmo procedimento, limitando a consideração a 1.488 artigos, veiculados em periódicos classificados como A1 (9,7%), A2 (10,1%) e B1 (9,9%). É importante lembrar que este critério permitiu incluir todas as publicações nestes estratos, de docentes e alunos de Programas de Ciência Política, em periódicos nacionais e internacionais.

Como ilustração, pode-se observar no Gráfico 1 abaixo a distribuição proporcional destes trabalhos segundo a filiação institucional de autores:

Gráfico 1.
Participação Programas Área Ciência Política e Relações Internacionais/Capes na publicação artigos A1, A2 e B1, Quadrienal 2017

Resultados

O passo seguinte consistiu em realizar uma análise de conteúdo dos artigos publicados, empregando, para isto, o software NVivo e os protocolos de análise estabelecidos na literatura (RICHARDS, 2002; JACKSON, 2003; JOHNSTON, 2006; HUTCHISON; JOHNSTON; BRECKON, 2009; BAZELEY; JACKSON, 2013). Inicialmente foram identificadas as 50 palavras mais frequentes nos títulos, resumos e palavras-chave dos 1.488 artigos examinados. Na primeira rodada deste procedimento, verificou-se a necessidade de se excluir palavras com menos de 5 letras, bem como termos anódinos segundo os propósitos desta investigação, seja de sentido geográfico (Brasil, Brazil, brasileiro, brasileiros, América, latina, federal, nacional) ou genéricos (ciência, agenda, estudos, crítica, debate, sobre, análise, resenha, entre, study).

Disto resultou a nuvem de palavras apresentada a seguir.

Figura 1.
Nuvem de palavras, artigos publicados em periódicos A1, A2 e B1, Ciência Política e Relações Internacionais/Capes, Quadrienal, 2017.

A proposição que guia este trabalho consiste em que tendência dominante na Ciência Política contemporânea (nacional e internacional) traduz-se em concentração da agenda disciplinar nas dimensões polity e politics, e na escassa saliência de pautas de investigação sobre as conexões entre regras e processos políticos, de um lado, e a alocação de bens e recursos públicos, de outro.

Para dimensionar a presença deste comportamento entre os cientistas políticos brasileiros, as 50 palavras mais frequentes foram associadas às três dimensões constitutivas do campo disciplinar. Paralelo, percebeu-se a presença de palavras com difícil encaixe nesta tipologia, especialmente relacionadas a trabalhos orientados para política externa. Assim, foi criada uma quarta categoria, para reunir estes termos. As palavras mais frequentes dentro de cada categoria podem ser verificadas abaixo:

Quadro 2.
Dimensões temáticas e palavras mais frequentes

O quadro abaixo apresenta um levantamento da proporção das 50 palavras mais frequentes nos títulos, resumos e palavras-chave de artigos publicados em periódicos A1, A2 e B1, entre 2013 e 2016. A informação foi discriminada considerando a participação de cada categoria e sua distribuição segundo a subárea de cada Programa de Pós-Graduação onde a produção foi registrada.

Quadro 3.
Artigos publicados, distribuição segundo dimensões temáticas e subáreas, Quadrienal 2017, em %

O achado mais significativo aqui parece ser a reduzida variação por dimensão temática, mesmo quando se considera a filiação institucional do pesquisador conforme as quatro subáreas que compõe a Área de Ciência Política e Relações Internacionais da Capes. Com discretas oscilações, regras e processos políticos respondem por mais da metade das palavras mais frequentes, políticas públicas correspondem a aproximadamente 1/5 e política externa, cerca de 30%, com uma participação mais modesta (24,9%) entre Programas de Políticas Públicas.

Como pode ser explicada a homogeneidade temática transversal, mesmo quando se considera diferentes vocações acadêmicas presentes em instituições das 4 subáreas do campo disciplinar? Uma pista pode ser oferecida ao observar-se a idade média dos Programas de Pós-Graduação da Área CP & RI, segundo cada subárea, na Quadrienal 2017: 17,2 anos (Ciência Política), 7,2 anos (Relações Internacionais), 3,7 anos (Defesa) e 1,6 anos (Políticas Públicas). Este dado é consistente com a informação apresentada anteriormente no Quadro 1, sobre os ciclos de expansão institucional da Ciência Política brasileira. Assim, pode-se considerar que a maior longevidade temporal de PPGs de Ciência Política tenha sido responsável pela formação acadêmica de docentes e pesquisadores que, mais tarde, formaram os cursos de Relações Internacionais e os caçulas programas de Políticas Públicas e Defesa.

Embora útil, esta operação ainda deixa duas dúvidas em relação aos achados: em que medida a contagem de palavras permite aferir a inclinação predominante em cada publicação e, ainda, um ponto cego, localizado no foco em analisar as conexões entre polity/politics e policies.

Para dar conta desta ambição não foi possível desviar-se do exaustivo exercício de leitura de títulos, resumos e palavras-chave dos 1.488 artigos selecionados. Saindo das palavras tomadas e contadas isoladamente, para os textos, o resultado apresentou moderadas alterações:

Figura 2.
Artigos publicados, distribuição segundo dimensões temáticas, Quadrienal 2017

A leitura dos textos apresentou discrepâncias em relação ao quadro obtido com a mensuração da frequência de palavras. Termos relacionados à dimensão da polity mostraram patamar semelhante ao encontrado através do procedimento anterior. Contudo, as demais dimensões apresentaram alterações em suas respectivas participações: muitos vocábulos mais genéricos, como “cooperação”, “estados”, “regional”, “segurança”, anteriormente classificados como política externa, revelaram que no contexto próprio de cada trabalho possuem significado distinto. Isto explica uma redução de sua participação, contribuindo para aumento de artigos classificados como politics. Da mesma forma, verificou-se que trabalhos antes encaixados como policies também precisaram ser melhor classificados como politics. O resultado obtido após procedimento mais rigoroso, foi um incremento na participação de trabalhos relacionados à política, como eleições, partidos, relações intergovernamentais, legislativo, participação política. Em paralelo, foi possível identificar com melhor precisão a dimensão marginal de políticas públicas na agenda dos cientistas políticos brasileiros. Assim, regras e processos, somados, alcançaram 62,7% das publicações, sugerindo que o desenho das instituições e como estas operam concentram quase dois terços da agenda de investigação política nacional, enquanto as perguntas sobre o que resulta disto estão presentes em proporção reduzida de investigações com resultados publicados.

Em paralelo, o exame dos artigos publicados em periódicos A1, A2 e B1 permitiu a sensibilidade, que a métrica de palavras não oferece, de isolar-se a existência de trabalhos que procuram relacionar regras e/ou processos e policies. O argumento adotado neste trabalho - convergindo com a profissão de fé institucionalista - é de que instituições importam. Contudo, até mesmo para evidenciar esta proposição, é preciso revelar como importam, afetando decisões que resultam em manutenção ou alteração na distribuição de recursos escassos e nos seu impacto em bem-estar social. Examinando cada artigo, foi possível localizar a presença residual de 4% de trabalhos nos quais autor(es) preocuparam-se em conectar instituições e seus resultados, ou polity/politics/policies.

Quem contrata cientistas políticos?

Além da produção científica, dados sobre a formação de recursos humanos e o perfil dos egressos das instituições acadêmicas de Ciência Política podem oferecer elementos para uma reconstituição da agenda da disciplina. Duas informações são úteis para este objetivo: o perfil temático de Teses e Dissertações e a inserção profissional dos egressos de cursos de doutorado em Ciência Política.

Durante o exercício da Quadrienal 2017, foram apresentadas 477 Teses doutorais, 923 Dissertações de Mestrado Acadêmico e 228, de Mestrados Profissionais. Neste ponto, o trabalho procurou rastrear estes trabalhos de conclusão de egressos, replicando procedimento similar ao empregado anteriormente, identificando frequências das palavras mais empregadas, respectivas às quatro categorias apresentadas. O resultado apresentou as seguintes informações:

Quadro 4.
Teses e Dissertações, distribuição percentual segundo dimensões temáticas e subáreas, Quadrienal 2017

Trabalhos de conclusão enquadrados como polity revelaram uma participação similar à distribuição verificada para artigos de docentes em periódicos de estrato superior, independente da subárea de vinculação; pode-se verificar aumento de trabalhos na dimensão politics entre discentes egressos, sobretudo em programas de Ciência Política, Defesa e, em menor medida, Políticas Públicas; trabalhos que envolvem análise de políticas públicas acompanham patamar de 20%, à exceção daqueles defendidos nos próprios programas de Políticas Públicas, quando atingem 30% nas Teses e Dissertações apresentadas; finalmente, trabalhos de conclusão sobre política externa parecem pouco atrativos entre alunos de CP, DEF e PP, sobretudo quando comparado à distribuição de artigos dos respectivos docentes.

Uma interpretação válida para estes achados pode indicar efeito de dependência de trajetória, sinalizando para um movimento intergeracional de concentração temática na dimensão politics - especialmente em instituições acadêmicas de Ciência Política e Defesa - manutenção da ênfase no maquinário institucional com moderada expansão de policies em PPGs de Políticas Públicas, e em política externa nos cursos de Relações Internacionais. Em outras palavras, as tendências intergeracionais não mostram uma diversificação e uma maior especialização temática conforme a vocação de cada instituição acadêmica, mas um reforço mesmo do core “regras e processos” como a espinha dorsal da disciplina.

A Ciência Política brasileira desenvolveu-se com base em Programas de Pós-Graduação e foi pautada pelos mecanismos de indução estabelecidos pelo sistema de avaliação periódica implementado pela Capes desde 1976. A valorização da formação de recursos humanos qualificados pelo sistema nacional de pós-graduação é destacada como uma das metas do Plano Nacional de Pós-Graduação 2010-2020. Mais importante, este PNPG marca uma inflexão, introduzindo considerações de impacto e inserção social da pós-graduação como propósito a ser alcançado no período:

O desenvolvimento econômico e social do país deverá conduzir à formação, cada vez mais numerosa, de pós-graduados voltados para atividades extra acadêmicas. Isso envolve a incorporação, no processo de avaliação, de parâmetros que não sejam exclusivamente os das áreas básicas e acadêmicas (CAPES, 2011, p. 131).

A mudança no perfil dos egressos, com o reforço de sua profissionalização na administração pública, setor privado ou sociedade civil também é remarcada como uma das principais metas do PNPG:

formação e aperfeiçoamento dos quadros de pessoal dos governos federal, estaduais e municipais, assim como de quadros técnicos especializados para os diferentes segmentos do setor privado e da sociedade civil organizada (CAPES, 2011, p. 301).

Nesta perspectiva, a relevância disciplinar deveria passar a ser mensurada - entre outros - pelo impacto e inserção social dos egressos dos cursos de pós-graduação, a partir de indicadores de sua profissionalização. É importante destacar que esta valorização da inserção profissional de egressos não corresponde a uma “jaboticaba nacional”, podendo ser observada em instituições que ocupam as mais elevadas posições em rankings acadêmicos internacionais na área de Ciência Política - como Harvard e Sciences Po - e na ênfase que conferem à profissionalização de seus titulados, na administração pública, direção de empresas ou organizações sociais.

Os dados utilizados aqui para aferir a profissionalização de egressos são similares ao procedimento adotado anteriormente por Marenco (2019), e correspondem ao universo dos titulados em cursos de doutorado em Ciência Política no Brasil, durante o período 1996/2014 e foram obtidos com base na pesquisa “Mestres e Doutores do Brasil”, realizada pelo Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação - MCTI. A pesquisa do CGEE baseou-se no cruzamento de duas bases de dados: a) as informações recolhidas anualmente pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), fundação do Ministério da Educação (MEC) e empregadas na avaliação periódica da pós-graduação brasileira, especificamente aqui sobre a titulação de doutores em cada Programa de Pós-Graduação; e b) os dados contidos na Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego, fornecidos por empregadores públicos e privados com registros individuais sobre empregados, consistindo em cadastro utilizado para a concessão de benefícios sociais pelo Governo Federal. O CGEE comparou as duas bases de dados a partir do Cadastro de Pessoas Físicas no Ministério da Fazenda (CPF) dos doutores egressos, relacionando titulados/empregados, identificando, assim, emprego, idade, remuneração e área de origem educacional e destino profissional. É importante salientar que os percentuais referem-se a taxas de emprego formal. Ou seja, quando o cadastro de um titulado não encontra correspondência em um registro de ocupação formal, ele aparecerá como não empregado.

As informações do CGEE cotejadas com o Cadastro Nacional de Atividade Econômica (CNAE) permitem identificar a área de inserção profissional de 464 doutores, titulados em Programas de Pós-Graduação da Área no período 1996-2014. Este período parece abrangente o suficiente para permitir um retrato da formação dos egressos na disciplina. Infelizmente, diante da dificuldade de obtenção de dados pela CAPES, no período posterior a 2018, o desafio de observar tendências posteriores fica para pesquisas futuras. Quadro 5 oferece o resultado obtido:

Quadro 5.
Profissionalização de doutores em Ciência Política no Brasil, 1996-2014

Pouco acima de 3 em cada 4 doutores em Ciência Política estavam, em 2016, empregados na área de Educação. Considerando que inexiste disciplina de Ciência Política - ou mesmo correlata como a antiga “Organização Social e Política Brasileira” - no Ensino Médio e Fundamental, pode-se supor que maioria expressiva destes estivessem no Ensino Superior.

Para tentar distinguir com maior precisão os doutores empregados em atividades de “educação”, foram pesquisadas as nominatas relativas ao corpo docente dos 43 Programas de Pós-Graduação em funcionamento na Área de Ciência Política e Relações Internacionais, durante a Avaliação Quadrienal 2017 e disponibilizadas na Plataforma Sucupira. Identificando a Instituição responsável pela formação doutoral de cada um dos 480 docentes, pode-se chegar ao número de 240 docentes credenciados em Programas de Pós-Graduação em Ciência Política formados em cursos de doutorado de Programas nacionais de Pós-Graduação em Ciência Política, e outros 24, titulados em doutorados de Relações Internacionais (MARENCO, 2019). Este dado permite distinguir, de modo mais claro, a inserção profissional de doutores exercendo atividade profissional: para um total de 464 doutores empregados, conforme o CGEE, se a proporção correspondente a 77,8% estava na educação, 56,9% eram vinculados a Programas de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais credenciados pela Capes. Empregados na administração pública correspondiam a 16,4% dos doutores, enquanto outras atividades com potencial para absorver cientistas políticos apresentaram participação residual: informação e comunicação (1,3%), atividades científicas e técnicas (0,6%), organizações internacionais (zero). O que pode ser sintetizado: professores de Programas de Pós-Graduação em Ciência Política formando novos professores para Programas de Pós-Graduação em Ciência Política. Endogenia?

Conclusão

O inventário realizado acima, sobre o core da Ciência Política brasileira, através de amostragem de artigos, teses, dissertações e o destino profissional de doutores egressos, revelou uma “zona de conforto” disciplinar, sob uma bitola que consiste na reconstituição do jogo político desconectado de seus resultados. Transmitida de modo intergeracional e reforçada pela endogenia na profissionalização dos egressos dos cursos nacionais de Ciência Política, seu efeito consiste na redução do potencial de impacto público da disciplina.

Mas, até que ponto a atuação no debate público, através de entrevistas ou artigos na imprensa não indicaria a relevância da disciplina? A importância desta atuação pode ser observada na popularização de um conceito como “presidencialismo de coalizão” junto ao mundo político e jornalístico. É preciso notar, contudo, que esta atividade reforça a “zona de conforto”, que confere uma percepção naïve de relevância pública, sem instrumentos de medição efetiva de seu impacto, além da sazonalidade em sua demanda.

Processos de institucionalização disciplinar envolvem transmissão intergeracional, com a expansão de instituições universitárias, formação de novos pesquisadores e sua profissionalização. O treinamento de pesquisadores é o que garante a manutenção e ampliação de departamentos e programas de ciência política. Mas a profissionalização de egressos como cientistas políticos condiciona a fertilidade de agendas de investigação e a demanda por vagas, que justifica departamentos e programas. A Ciência Política brasileira está praticamente ausente do ensino de graduação e estagnou sua presença na pós-graduação durante a última década. A formação canônica polity/politics restringe a absorção profissional a postos em instituições universitárias. Mas há um ponto de saturação para este modelo.

Oxigenação disciplinar é produto de heterogeneidade no perfil profissional com correspondente diversificação em agendas de pesquisa. Coordenadas para decifrar este repto podem ser encontradas na decantação de conhecimento relevante, descrita por Giest, Howlett e Mukherjee (2015): contextos de expansão das instituições estatais e incremento em demandas por bens públicos e serviços governamentais foram acompanhados por ampliação de agências e programas governamentais e demanda por profissionais que dotados de diferentes ofícios e formações escolares ocupam posições na hierarquia da administração pública. Assim, constitui-se um campo de políticas públicas, formado por pesquisadores acadêmicos que formulam modelos explicativos para a variação em políticas governamentais, policy makers responsáveis por formular, planejar, analisar, gerir e avaliar as políticas governamentais; até grupos profissionais e lobbies políticos que contribuem para vocalizar interesses em disputa.

Na aurora da moderna Ciência Política como disciplina acadêmica, Harold Laswell (1936) definiu seu desafio como sendo explicar who gets what, when, how?. Para isto, parece incontornável exigência conectar as regras que definem decisões coletivizadas, soberanas e sancionáveis (SARTORI, 1994) com seus resultados, sob a forma de alocação de bens e recursos públicos. Instituições importam, regras (polity) definem quem pode tomar decisões e sob quais procedimentos, ou os contornos do jogo político (politics). Já policies são aquilo que governos decidem fazer ou não fazer (DYE, 1972, p. 2).

A constituição da Ciência Política como disciplina acadêmica a partir da metade do século XX exigiu um árduo esforço de decantação em relação à herança genética legada pela retórica e escolástica (SKINNER, 1978), Filosofia e Direito (SARTORI, 1984), e Sociologia, Psicologia e Economia (BARRY, 1970). Sob este prisma, parece compreensível o investimento em autonomia disciplinar, através da ênfase em agendas de pesquisa focadas em politics, em nome do distanciamento face à Filosofia e ao Direito (polity), à Economia, à Sociologia, à Administração Pública e a áreas aplicadas (policy).

Seria injusto afirmar que toda a Ciência Política teria se convertido em uma useless science, como afirmou Sartori ou que a conexão regras/processos/resultados não tenha estado presente em trabalhos canônicos. Puzzles como o paradoxo de Condorcet ou o teorema da impossibilidade buscaram compreender a agregação de preferências sociais e a intransitividade nas decisões públicas; William Riker, ex-presidente da American Political Science Association (APSA) traduziu este framework para a investigação de instituições públicas, associando competição partidária, ciclos de maiorias governamentais e instabilidade na agenda de políticas públicas (RIKER, 1958). Mancur Olson (1965) identificou externalidades presentes na geração de bens coletivos, atribuindo a grupos pequenos maior eficiência na captura de recursos públicos. O teorema do voto mediano foi desenvolvido por Black (1948) e, posteriormente, por Downs (1957), demonstrando associação entre preferências eleitorais medianas, voto e probabilidade de políticas redistributivas. O ex-presidente da APSA, E.E. Schattschneider (1960) introduziu o conceito de escopo e bias do conflito, inspirando a inferência do também ex-presidente da APSA, Theodore Lowi (2009) de que policies condicionam politics, implicando que a definição de políticas públicas molda conflitos - de soma zero ou variáveis - definindo tipologias de arenas e políticas. Douglass North (1990), igualmente vencedor do Nobel de Economia, mostrou como instituições políticas podem reduzir custos de transação social e induzir cooperação social, resultados que foram replicados em escala comparativa por Acemoglu e Robinson (2012); com a cientista política, ex-presidente da APSA - e igualmente vencedora do Nobel de Economia - Elinor Ostrom (1990), compreendemos como instituições podem fornecer respostas não-hobbesianas ao problema da cooperação social, contenção de comportamentos free-rider e produção de bens públicos. Mudanças na agenda de políticas públicas foram demostradas por Tsebelis (2002) como função do número, distância e coesão dos veto-players políticos e institucionais. Estabilidade ou mudança na agenda de políticas públicas foram explicadas por Mahoney e Thelen (2009) pela disposição de veto-points institucionais e graus de discricionariedade dos agentes políticos. Em paralelo, Evans (1995), Evans e Rauch (1999), Tilly (2007), Kohli (2010), 2012 (2011) e Holmberg e Rothstein (2012) enfatizaram a importância de capacidades estatais - potencial de enforcement, disponibilidade de recursos fiscais e burocracias profissionais - para a implementação de políticas públicas. Em direção convergente, Rothstein, Samanni e Teorell (2012) mostraram como qualidade de governo (QoG) afeta o apoio pró-welfare state.

Sair da zona de conforto disciplinar passa por conectar o que já sabemos (regras e processos) com o que ainda está em zona cinza (como instituições explicam quem ganha o quê, quando e como), além de provocar mutação evolutiva na formação das novas gerações de cientistas políticos: da endogenia universitária para a inserção profissional social e pública.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    07 Nov 2022
  • Aceito
    14 Abr 2023
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