Open-access Mário de Andrade: diálogos epistolares com paranaenses e cearenses

RESUMO

O artigo pretende aprofundar reflexões críticas sobre a abrangência da epistolografia do polígrafo paulista Mário de Andrade (1893-1945), focalizando a correspondência que trocou com escritores e outras personalidades do campo cultural ligados ao Paraná e ao Ceará, no período de 1928 a 1944. O estudo dessas cartas visa ampliar o conhecimento das redes de sociabilidade intelectual no modernismo, iluminando aspectos de sua irradiação no território nacional.

PALAVRAS-CHAVE: Mário de Andrade; Modernismo; Epistolografia; Paranaenses; Cearenses

ABSTRACT

This article intends to foster in-depth critical reflections on the wide-ranging epistolography of São Paulo-born polymath Mário de Andrade (1893-1945), focusing on his correspondence with writers and others cultural personalities from Paraná and Ceará, in the period from 1928 to 1944. The study of these letters aims to expand the knowledge of intellectual sociability networks in Modernism, highlighting aspects of their irradiation throughout Brazil.

KEYWORDS: Mário de Andrade; Modernism; Epistolography; Paraná and Ceará intellectuals

Sociabilidade modernista

A volumosa correspondência de Mário de Andrade expõe o intricado mapa da cena intelectual brasileira das décadas de 1920 a 1940.1 O autor de Pauliceia desvairada, em 1939, no artigo memorialístico “Amadeu Amaral”, refletiu sobre a singularidade da epistolografia do modernismo. Considerava-a renovadora tanto em termos formais, em seu despojamento (“cartas de pijama”), quanto em relação à abrangência e à densidade dos debates que fomentou (“cartas com assunto, [...] discutindo problemas estéticos e sociais”). Para ele, diferentemente das posturas protocolares e mesureiras que teriam caracterizado uma certa tradição epistolográfica no campo letrado brasileiro do século XIX, “com o modernismo” as cartas “se tornaram uma forma espiritual de vida em nossa literatura” (Andrade, 1972a, p.183). Ou seja, o vigor e a amplitude da irradiação dos contatos postais teriam favorecido a modelagem de uma pulsante rede de sociabilidade, propiciando o delinear de ideários estéticos e político coletivos, que não elidiam tensionamentos e rupturas.

Sobretudo a partir de 1923, as cartas de Mário de Andrade carrearam consistentes projetos estéticos e intelectuais, espraiando-se nos diversos quadrantes do país e mesmo no exterior, se por lá andassem os companheiros da geração vanguardista. Nos anos 1920, elas colocavam em pauta o nacionalismo crítico em suas mais diversas dimensões (literárias, linguísticas, artísticas, ideológicas), chegando aos companheiros afinados com o modernismo nascidos (ou radicados) no Rio de Janeiro (Manuel Bandeira, Ronald de Carvalho, Renato Almeida, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes, neto, Alceu Amoroso Lima, entre outros); em Pernambuco (Joaquim Inojosa); Minas Gerais (especialmente o grupo de A Revista, de Belo Horizonte, e da revista Verde, de Cataguases); no Rio Grande do Norte (Luís da Câmara Cascudo, Antonio Bento de Araújo Lima, Jorge Fernandes); na Paraíba (Ademar Vidal); em Alagoas (Jorge de Lima); no Rio Grande do Sul (Augusto Meyer) etc. Nas décadas de 1930 e 1940, as missivas de Mário tingiram-se de fortes matizes políticos, trazendo à tona o debate sobre o intelectual em face da realidade brasileira e internacional, discutindo democratização da cultura, preservação do patrimônio, a dimensão social da arte, a vinculação entre popular e erudito, as formas de enfrentamentos de totalitarismos, a repercussão da Segunda Guerra Mundial etc. Mostram-se representativas dessa faceta as densas interlocuções epistolares com Paulo Duarte, político e idealizador do Departamento de Cultura da prefeitura de São Paulo; com Rodrigo Mello Franco de Andrade, diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), no Rio de Janeiro; com os moços cariocas reunidos em torno da Revista Acadêmica (Murilo Miranda, Moacir Werneck de Castro, Carlos Lacerda); com Henriqueta Lisboa e com a nova geração de escritores de Minas Gerais (Murilo Rubião, João Etienne Filho, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Hélio Pellegrino, Otávio Dias Leite, Wilson Castelo Branco); com o crítico literário português José Osório de Oliveira e tantos mais de igual importância, em diversas paragens.

Mário de Andrade também encontrou no Paraná e no Ceará, entre 1928 e 1944, endereços propícios para substanciosos diálogos. Escritores e artistas dessas regiões estabeleceram vínculos intelectuais e afetivos com o morador da rua Lopes Chaves paulistana. Jovens literatos vislumbraram no criador de Macunaíma uma escuta atenta, endereçando-lhe queixas e relatos de uma realidade comum no país na esfera da cultura, testemunhando a precária distribuição de livros e periódicos, a ausência de uma ideia de formação nacional sólida e a inoperância de uma política cultural abrangente, ou seja, situações próprias da desigualdade socioeconômica do país que interferiam diretamente na política e no campo literário, criando zonas hegemônicas e periféricas.

As mensagens de paranaenses e de cearenses dirigidas a Mário de Andrade, abordadas neste estudo, têm o condão de descrever um panorama do modernismo desde o Sul do país até a parte setentrional do Nordeste. Iluminam aspectos ainda não abordados, no que tange à definição do espectro das relações epistolares de um dos protagonistas da Semana de 22. A riqueza do diálogo do escritor com intelectuais de Curitiba, Fortaleza e Crato oferece um vivo retrato dos grupos literários destas localidades. O Paraná representou para Mário, nos anos 1920, a possibilidade de extensão da órbita do modernismo e, depois, a oportunidade para um mapeamento de manifestações artísticas. Nos anos 1940, em razão de intrigas e disputas para a obtenção de poder simbólico no Ceará, dois grupos de moços que ambicionavam reconhecimento no campo letrado elegeram o renomado Mário de Andrade como fiador. Ao mesmo tempo se lê, às vezes na mesma missiva, reflexões aprofundadas sobre estética, filosofia, consciência artística ou simplesmente aconselhamentos de ordem pessoal.

As cartas que Mário de Andrade endereçou a jovens escritores, artistas plásticos e músicos do país refletem a contraparte pragmática das conquistas vanguardistas, por ele vislumbradas em 1942, na conferência “O movimento modernista”. Pelas vozes dos correspondentes, os três princípios que Mário considerava norteadores do modernismo se articulam, como se ele levasse a conversação a um caminho consequente à reafirmação das linhas de forças abertas pela sua geração: “O que caracteriza esta realidade que o movimento modernista impôs, é, a meu ver, a fusão de três princípios fundamentais: O direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional” (Andrade, 1972b, p.242). O empuxo pedagógico das cartas de Mário direcionava os interlocutores para o aprofundamento autorreflexivo, impulsionando a aguda consciência crítica de si próprios e da realidade brasileira. No cerne de sua epistolografia perdura o germe da inquietude como traço definidor de processos criativos e do engajamento do intelectual nas questões do tempo. Mário instaura nas cartas o desassossego como uma normativa de vida intelectual, desqualificando acomodações do espírito.

O primeiro dos princípios, “o direito permanente à pesquisa estética”, está consubstanciado em cartas dirigidas a Mário de Andrade, tanto quanto em suas respostas, e ganha maior evidência quando produções literárias, muitas vezes inseridas nos envelopes, são colocadas em relevo. Poemas, contos, ensaios, matérias jornalísticas, livros e revistas vêm anexados às cartas endereçadas ao escritor e são motivos para uma conversa sobre literatura e arte, geralmente tendo Mário como guia, espécie de professor a distância. A paciência e o cuidado do polígrafo ao comentar versos ou textos mais longos, como contos e romances, de autores inéditos ou no início de carreira, só se comparam à reverência com que a outra parte escutava e levava em consideração as sugestões, nutrindo embates críticos, o que se comprova cotejando os manuscritos expedidos pelos correios com o que posteriormente viria a ser publicado.

Notas, grifos, traços - a marginália - de Mário de Andrade, em manuscritos e em livros recebidos, desvelam formas embrionárias de suas percepções críticas e interpretativas. Esses apontamentos somam-se como matéria bibliográfica importante para um extensivo conhecimento de aspectos da criação literária do modernismo. A esgarçada documentação textual de grande voltagem reflexiva contribui tanto para o campo da crítica genética quanto para a restituição da história do pensamento estético brasileiro do século XX, nas suas tentativas de atualização. As cartas dos jovens cearenses, entre o final da década de 1930 até quase o ano da morte de Mário, em fevereiro de 1945, documentam o debate em voga no meio intelectual do Brasil, que postulava a profissionalização do escritor, promovendo a organização de Congressos e de Associações. Distinguiam-se na agenda do tempo o engajamento da gente de letras e as questões técnicas da literatura, ensejando a dialética entre a função social e formalização da obra de arte, em face de um mundo atônito que vivenciava o sangrento conflito bélico mundial, sementeira de autoritarismos políticos. Mário, exercendo a crítica (em bases enciclopédicas) das obras que lhe enviavam, atento ao contexto histórico, coloca em movimento, em casos concretos, os conceitos estéticos e políticos que desenvolveria em ensaios como “O artista e o artesão”, de O Baile das Quatro Artes, no prefácio dos Ensaios do Nosso Tempo, do pernambucano Otávio de Freitas Júnior, ambos de 1943, assim como na entrevista a Francisco de Assis Barbosa, “Acusa Mário de Andrade: ‘Todos são responsáveis’”, na revista carioca Diretrizes, em 1944.

Se o “direito permanente à pesquisa estética” sugere Mário de Andrade atento à diversidade da produção literária e artística que lhe chegava às mãos, os outros dois princípios “a atualização da inteligência artística brasileira e a estabilização de uma consciência criadora nacional” justificam o firme empenho do escritor em perscrutar o que estava sendo produzido nos diferentes rincões do país. A extensão nacional do legado modernista e sua própria inserção na história literária só poderiam ser medidas se a literatura produzida em São Paulo, Rio de Janeiro ou Minas Gerais reverberasse de forma contundente, indiciando uma ampla superação dos academicismos. As cartas seriam, de fato, um potente instrumento de observação da abrangência das linhas de força do movimento: “[...] nós, modernistas de São Paulo, tínhamos incontestavelmente uma repercussão nacional, éramos os bodes expiatórios dos passadistas, mas ao mesmo tempo o Senhor do Bonfim dos novos do país todo” (Andrade, 1972b, p.240). Em julho de 1940, Luiz Sampson de Siqueira Melo, aos 15 anos, membro da Associação Cratense Pró-Cultura do Crato, escrevia a Mário de Andrade, expressando a sua admiração:

[...] eu tinha um receio íntimo de me dirigir a vós, tão grande vulto [....]. Porque eu sabia do imortal Mário de Andrade, o grande, o herói, que suscitou no Brasil todo este formidável movimento, que é o modernismo e que graças à vossa força soergue e contamina (contágio santo!) a alma do nosso povo. [...]. E resolvi também dizer, expressar a minha admiração ao “Pontífice do Modernismo Nacional”.2

O modernismo expandia-se nacionalmente, impondo-se vitorioso. Mário de Andrade deveria certamente interessar-se pelas metamorfoses e adaptações do movimento em regiões mais afastadas do epicentro cosmopolita da vanguarda, marcadas por fortes tradições rurais e mais rigidamente patriarcais. As suas cartas a diferentes interlocutores representam um fator crucial para a propagação e a fixação do pensamento estético de vanguarda programaticamente alardeado a partir de 1922. Mário, com a sua correspondência, contribuiria para a difusão de obras literária modernistas, pois essas, como se sabe, circulavam mais limitadamente, muitas delas publicadas em tiragens reduzidas, às expensas de seus próprios autores. As poucas livrarias de Curitiba e de Fortaleza certamente mostravam-se alheias às produções literárias mais experimentais. O modernismo irradiava-se por meio de jornais e revistas, ou, ainda, era carreado, nos anos 1920, por aderentes como Joaquim Inojosa, em Pernambuco, por Luís da Câmara Cascudo, em Natal, ou ainda pelos próprios participantes do grupo vanguardista, como Guilherme de Almeida, que, em 1925, viaja para Recife, Fortaleza e Porto Alegre, com o propósito de proferir a conferência “Revelação do Brasil pela poesia modernista”. Desse modo, pedidos de livros eram frequentes a Mário de Andrade. E quem pedia geralmente não saía com as mãos abanando, apenas um ou outro ficando desassistido, isso mesmo porque ele ou já não tinha mais o livro solicitado, ou aguardava uma nova edição. Aquele mesmo Luiz Sampson, em janeiro de 1942, menciona a rapsódia que Mário lhe enviara pelo correio: “Inda não li Macunaíma. E só o pedi porque ouvi dizer que era a sua obra prima. Será calúnia?... Creio no que disse sobre o livro e sua função crítica, principalmente em relação ao brasileiro. Por amor ao brasileiro e ao Brasil”.3

De acordo com Mário de Andrade, o movimento modernista propiciou a “descentralização intelectual”. E “pondo em relevo e sistematizando uma ‘cultura nacional’, exigiu da Inteligência estar ao par do que se passava nas numerosas Cataguazes” (Andrade, 1972b, p.248). Assim como os livros saíam das estantes do sobrado paulistano, muitos outros, de diversos pontos do país, vinham preenchê-las. Nessa via de mão dupla, o escritor pôde tomar conhecimento da produção literária das muitas localidades brasileiras. Para esses autores, não se tratava apenas de retribuir a generosidade do famoso correspondente. Significava também uma oportunidade de levar a produção de editoras locais a cenários mais amplos e diversos tendo como abrigo a apreciação de Mário.

Paraná

Em setembro de 1925, Mário de Andrade, escrevendo ao poeta Manuel Bandeira, justificava a dificuldade na criação de um “poema longo” dedicado a São Paulo (uma “Louvação do meu estado Natal”), em razão das muitas atividades nas quais estava envolvido - aulas no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, o preparo semanal das lições de um curso de estética para alunos particulares, a escrita de um capítulo de sua História da Música e a redação de “um artigo pro Paraná” (Moraes, 2000, p.234). Na carta de “Ano-bom de 1926”, dirigida ao amigo Câmara Cascudo, Mário remete dois artigos de sua lavra; um publicado no jornal A Noite, do Rio de Janeiro, texto da série do “Mês Modernista”, e o outro, do qual oferece apenas uma cópia “a-máquina”, que havia sido estampado “num jornal do Paraná”. Assegurava a esses textos “alguma importância na evolução do [seu] modo de pensar” (Moraes, 2010, p.85)

Essas duas missivas testemunham o desígnio do escritor em fazer que o programa da vanguarda e o seu próprio ideário estético circulassem para além de São Paulo e Rio de Janeiro. Nessas duas capitais, periódicos modernistas ou não, ao longo da década de 1920, pouco a pouco, cotidianizavam a discussão sobre o experimentalismo literário e artístico, em consonância com a expressão artística europeia de vanguarda, bem como acerca dos novos caminhos de uma produção cultural que buscava espelhar a experiência da realidade brasileira.

Imbuído de uma proposta nacionalista, Mário de Andrade, em 24 de maio de 1925, difunde no Jornal do Commercio do Recife, “Modernismo e ação”, artigo alardeando o “espírito” do grupo modernista “inteiramente voltado pro Brasil”. Define uma orientação: “deixaremos de ser afrancesados, aportuguesados, germanizados, não sei que mais, pra nos abrasileirarmos”, “na língua, no amor, na sociedade, na tradição, na arte” (Azevedo, 1996, p.227). Em 13 de setembro de 1925, o jornal O Dia, de Curitiba, em sua primeira página, na coluna “Paulistanas”, de Mário Graciotti, apresenta a seus leitores Mário, de quem transcreveria, nas edições dos dias 15 e 16, um texto programático. Previne-os acerca da singular “linguagem ‘andradesca’”, supondo que os puristas iriam considerar a colaboração como “cheia de erros de português”, mas que, na realidade, traduziria uma “nova expressão” do “espírito de brasilidade”. Mário, em sua argumentação, considera que “ser modernista significa ter uma realidade eficiente em relação à atualidade, regendo-se pelas grandes ideias universais”. Posiciona, ainda, no segundo dia da publicação, a questão do nacionalismo, ao assegurar: “não reivindicamos nada pro Brasil a não ser o direito de manifestar a sua contingência humana de povo plasmado pelos ideais que lhe vêm do caráter psicológico organizado pelas circunstâncias de mestiçagens raciais, de terra, de clima e de momento”. Enfatiza: “não somos nacionalistas. Contentamo-nos de ser brasileiros. E isso é realmente novíssimo num povo que sofre cronicamente da moléstia-de-Nabuco: nostalgia pela Europa e pelas tradições europeias. E quando reage cai imediatamente no regionalismo que torna a pátria exótica e a esfacela sem precisão”.

O autor havia lançado mão da mesma imagem, no final de 1924, ao escrever a Carlos Drummond de Andrade, que vivia em Belo Horizonte, especificando os vetores críticos de seu nacionalismo:

Você fala na “tragédia de Nabuco, que todos sofremos”. Engraçado! Eu há dias escrevia numa carta justamente isso, só que de maneira mais engraçada de quem não sofre com isso. Dizia mais ou menos: “o doutor Chagas descobriu que grassava no país uma doença que foi chamada moléstia de Chagas. Eu descobri outra doença mais grave, de que todos estamos infeccionados: a moléstia de Nabuco”. É preciso começar esse trabalho de abrasileiramento do Brasil, dizia eu noutra carta, a um rapaz de Pernambuco [Joaquim Inojosa]. E agora reflita bem no que eu cantei. no final do “Noturno [de Belo Horizonte]” e você compreenderá a grandeza desse nacionalismo universalista que eu prego. De que maneira nós podemos concorrer pra grandeza da humanidade? É sendo franceses ou alemães? Não, porque isso já está na civilização. O nosso contingente tem de ser brasileiro. O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova combinação de qualidades humanas. (Santiago; Frota, 2002, p.70)

Mário Graciotti, no mesmo grifo das “Paulistanas”, em 12 de novembro de 1926, anunciava a publicação do segundo livro de poemas de Mário de Andrade, obra que, segundo ele, teria causado muito “barulho”. “V. já leu o Losango [cáqui]?”, pergunta aos leitores. “Leia. Tem mais construção do que a Pauliceia. É uma procura, não resta dúvida. Digna de ser aceita. Como procura, é claro. Não como obra definitiva”. O crítico parafraseava o autor, que na “Advertência” de sua obra asseverava: “A existência admirável que levo consagrei-a toda a procurar. [....] Minhas obras todas na significação verdadeira delas eu as mostro nem mesmo como soluções possíveis e transitórias. São procuras. Consagram e perpetuam esta inquietação de procurar” (Andrade, 2013, p.133-4).

Em 1928, Mário, ao tirar do prelo Clã do jabuti, recorre ao jornalista (e médico) Jurandir Manfredini, “porta-voz oficial do movimento modernista paranaense” (Iorio, 2003, p.105), atuante na curitibana Gazeta do Povo, para ajudar na divulgação da obra. Remete a ele seis exemplares para que chegassem aos escritores locais; interessava-se, ainda, em encontrar um livreiro que comercializasse o volume na capital paranaense. É o que se depreende da mensagem que lhe endereçou o jornalista, em 15 de fevereiro de 1928, comunicando o recebimento dos livros: “Entreguei os de Sá Barreto e Leo [Colle]. Os três restantes distribuí assim: um para o Lacerda Pinto, outro para Milton Carneiro, outro para Odilon Negrão (Eu tinha vontade que você conhecesse o Lacerda. É uma das belas culturas deste Brasil novo, [...] um talento primoroso)”. Sobre o possível êxito das vendas, mostra-se cético, mas colaborativo:

Olhe: a respeito de livraria, falei em Ghignone (mando o cartão dele junto). Eu, amigo que sou, aviso você que este meio ainda é impermeável às coisas da renovação [...]. Em todo caso, vamos fazer barulho em torno do livro e isso chamará a atenção. Mande inicialmente uns quinze exemplares. O Ghignone pôs-se todo à disposição de você para a venda do Clã.4

A carta de Jurandir Manfredini valida a concretude dos vínculos de Mário de Andrade com homens de letras e das artes do Paraná. O modernista de São Paulo preservou em seu arquivo um conjunto de 77 mensagens (cartas, cartões de visita etc.) assinadas por escritores, músicos, artistas e por outras personalidades do estado da região Sul. Nesse conjunto, contam-se não apenas nomes dos que lá residiam entre os anos 1920 e 1940, como também daqueles que viviam em outros lugares, não perdendo, contudo, relações com a terra natal. No arrolamento, registram-se igualmente mensagens de amigos de Mário que passaram pelo Paraná, e de lá escreveram a ele, compartilhando informações.

Na listagem de correspondentes de Mário de Andrade ligados ao Paraná, verificam-se as presenças de escritores (Jurandir Manfredini, Luís Drummond Navarro, José Cândido de Andrade Murici), de críticos (Nestor Vítor, Wilson Martins), de musicólogos (Benedito Nicolau Santos, João Itiberê da Cunha), de artista (Inês Colle Munhoz), de livreiro (J. Ghignone), entre outros, mensagens circunscritas ao período de 1928 a 1943.

Aspectos da vida cultural em Curitiba ganham contornos nessas cartas. Música, etnografia, questões linguísticas entram em pauta. A literatura ganha destaque no conjunto. O “ex-acadêmico de Direito” Luís Drummond Navarro, como ele se apresenta, aos 29 anos, na missiva de janeiro de 1938, revelava-se engajado na redação de um romance regionalista local, possivelmente gorado, a que daria o nome de Caá. Suas missivas deixam entrever o espectro abrangente de suas leituras, trazendo para a conversa Kipling, Flaubert, H. G. Wells, Herman Hesse, Jules Romains, Thomas Mann, Oscar Wilde, Margaret Mitchell de E o vento levou, entre outros.

A correspondência trocada entre Mário de Andrade e o jovem crítico literário Wilson Martins, em 1943, testemunha aspectos do sistema literário em Curitiba. Nessas cartas desenham-se as vicissitudes do intelectual que vivia longe do bulício das grandes cidades da época, esforçando-se para acompanhar a atualização no campo editorial. Em 4 de fevereiro, Wilson estampa nas páginas de O Dia um estudo sobre a lírica do autor modernista, resenhando as suas Poe- sias, de 1941. Exprime a sua consideração pelo escritor: “Hesitei muito antes de escrever o artigo de hoje. Mário de Andrade representa para mim alguma coisa de profundo e de superior, e eu diante dele me sinto prosternado numa imbecilidade [...]”. Considerava essa produção lírica “uma sinfonia moderna”, qualificando aquele que a engendrara de “símbolo e o resumo de todo o nosso modernismo”, de “representante mais perfeito da nova literatura no Brasil, dos tempos que hão de vir, trazendo no bojo a prenhez gloriosa de nossa própria compreensão”.

Mário de Andrade, em sua tardia resposta, em 9 de abril, mostra-se “afetuosamente grato” ao resenhista, narrando, inicialmente, a dificuldade em estabelecer o contato:

Um dia chegando em casa, encontrei aqui uma página de jornal de Curitiba que tinham deixado pra mim, quem deixou não me sabiam dizer. Era o seu artigo sobre as minhas Poesias que não me comoveu muito pelo carinho compreensivo e a beleza generosa do seu entusiasmo. Mas não pude lhe agradecer logo pois não sabia de que maneira me comunicar com você. Imaginei até que você morasse, estivesse morando em São Paulo, andei mesmo perguntando quem conhecia Wilson Martins entre os rapazes universitários que conheço. Porque você deve ser moço na certa. Seu artigo é generoso por demais pra não refletir o paraíso da mocidade.

E você me fez um grande bem, Wilson Martins. Ando bastante doente desde janeiro, e não só as forças andam me abandonando, como as vontades também. Se não tenho o direito de acreditar em tudo quanto você me diz de agradável, no momento, desamparado de mim como estou, prefiro mandar à fava os deveres e me aquecer no calor das suas palavras.

Nessa mesma carta, Mário se dispõe a encaminhar ao jovem os Aspectos da Literatura Brasileira, recém-publicado pela Americ-Edit do Rio de Janeiro. E caso ele já o tivesse adquirido, oferece-lhe alguns outros de seus títulos: “mande dizer, que de alguns livros meus antigos ainda guardo alguns exemplares e quem sabe se coincide alguma curiosidade sua com o que possuo”.5

Em 15 de abril de 1943, agradecendo a oferta, Wilson elenca os títulos que já possuía, para que Mário de Andrade lhe presenteasse com os demais que pudesse, obras que ele dizia não conseguir obter senão por intermédio do próprio autor. Queixa-se, na carta: “Não sei se sabe, mas Curitiba é uma cidade que não pode se orgulhar do que possui em matéria de cultura, de maneira que luto aqui com uma falta extraordinária de livros”. Atendendo ao remetente que lhe pedira notícias pessoais (“quem é você, o que aspira”), compõe o seu perfil autobiográfico:

Respondo agora ao questionário: nasci em São Paulo (10 - outubro - 1920); moro em Curitiba desde 1930; sou quartanista de Direito; oficial-de-gabinete do Interventor; e mantenho na medida de minhas forças o rodapé crítico que sai às quintas no O Dia daqui. (A crônica sobre as suas poesias [...] quem levou o recorte a São Paulo foi o Carlos Scliar [...]). Àquela sua pergunta: “a que aspira”, deu-me uma ideia materialista - ganhar pelo que escrevo, pois aqui em Curitiba não se paga colaboração e, mais do que isso, proíbe-se ao crítico deixar o endereço no fim dos artigos, para que as editoras remetam os livros para a redação e o querido diretor os leve para casa... Uma coisa incrível.6

Em 28 de abril, Mário de Andrade, mostra-se interessado pela formação do crítico, abordando as adversidades enfrentadas pelo intelectual no Brasil:

Achei graça naquela história do Dia com crítica a leite de pato e ainda os livros surripiados pelo diretor do jornal. Deve vir disso e da irritação consequente, você me dizer que aspira “ganhar pelo que escreve”. Besteira grossa neste país desorganizado, a não ser que você se venda por todos os lados e sob todos os aspectos da venda desmoralizante. A meu ver: até entrar pra Academia Bras. de Letras é um se vender que desmoraliza sempre. Aliás, está claro, não é verdade o que você diz. Você está como todo moço que principia escrevendo e todo artista legítimo [...], você está louco mas é pra se vender no melhor sentido ideal, não-rendoso financeiramente, ser gostado, ser aplaudido, ser amado. Até isto, não tem dúvida, é perigoso, principalmente pelas consequências, escravidão a uma solução aplaudida que a gente converte em receita e maneirismo pra continuar sendo aplaudido, sucesso financeiro etc., mas pelo menos é a única “venda” do artista que é totalmente justificável. E pode ser “moral” até o fim. Vá me mandando escritos de você pra eu observar melhor a evolução e os caracteres do seu espírito.7

Saindo do prelo Os filhos da Candinha, volume de suas Obras completas, no selo da Editora Martins de São Paulo, em 1943, Mário de Andrade envia um exemplar para o endereço de Wilson Martins. No agradecimento, ele diz não ter “outras novidades”, “a não ser que quase me lincharam porque escrevi que no Paraná não há literatura. O argumento mais forte que acharam contra mim é que sou adventício”.8 Em sua resposta, em 15 de dezembro, Mário encoraja-o a dedicar-se ao ofício de crítico: “Tinha lido o seu artigo na Rev. do Brasil sobre a literatura paranaense e logo imaginei o chinfrim que havia de causar aí. A crítica tem mesmo disso e tem pior, mas eu estou convencido que você deveria se dedicar a ela”.9

Ceará

As primeiras publicações modernistas do Ceará apareceram ainda na década de 1920, mais precisamente em 1927, com o livro O canto novo da raça, escrito a quatro mãos por Jáder de Carvalho, Sidney Neto, Franklin Nascimento e Mozart Firmeza. O livro vem dedicado a Ronald de Carvalho e, como o título sugere, alinhavava poemas de corte mais ufanista/ nacionalista típicos de uma vertente do primeiro modernismo. Dois anos antes, em 1925, Fortaleza havia recebido a visita de Guilherme de Almeida que, no dia da bandeira (19 de novembro), pronunciou no Clube dos Diários a palestra “Saudação à Bandeira”. O Ceará Ilustrado, em 15 de novembro, informava: “Guilherme de Almeida já se encontra entre nós, tendo chegado pelo vapor Pará, vindo de Recife, onde se demorou alguns dias. O notável poeta e jornalista foi acolhido, com sua gentilíssima consorte, no lar do nosso prezado companheiro dr. Gilberto Câmara”. O diretor do periódico, Demócrito Rocha, ajudou a repercutir as novas ideias advindas do Sul, especialmente depois que fundou, em 1928, o jornal O Povo, passando a imprimir a seção “Modernos e Passadistas”. E foi justamente nesse jornal que saíram encartados dois números de uma pequena folha intitulada Maracajá, autoproclamada “Folha Modernista do Ceará”. Nela, a Antropofagia oswaldiana aportou em terras alencarianas interpretada como regionalismo radical, que contava com um núcleo formado pelos autores de O canto novo da raça e por outras figuras, como Rachel de Queiroz, Paulo Sarasate, Antônio Garrido (pseudônimo de Demócrito Rocha), Filgueiras Lima e Mário Sobreira de Andrade, ou melhor, o Mário de Andrade (do Norte ou “daqui”) como às vezes assinava.

Mário de Andrade de São Paulo, nesse início do modernismo no Ceará, não se relacionou com o grupo, nem participou de nenhuma das atividades que promoveram. Seu nome comparecia ao lado do homônimo para possivelmente enaltecer, por meio de comparações bairristas e provincianas, o Mário do Norte.

A completa falta de conexão de Mário de Andrade com o Ceará na segunda metade da década de 1920 é comprovada quando ele desembarcou na capital cearense em 5 de agosto de 1927, retornando da viagem que o levara à Amazônia, até Iquitos no Peru, acompanhando a mecenas paulista Olívia Guedes Penteado. No diário do “turista aprendiz”, ele deixa sua impressão sobre o local:

Automóvel de cá pra lá no ar de limpeza. Mercado, onde compro esteira de carnaúba e goiabada deliciosa. Igrejas sem interesse e o bonito parque da Liberdade. Almoço na Rotisserie com vatapá com leite de coco, maravilha! [...] Estrada de Maranguape, [...] Balneário, praia de Iracema. Cometo a sem-vergonhice incrível de colher conchinhas da praia de Iracema, me sinto vil como a virgindade. (Andrade, 2015, p.98)

O fato é que ninguém o esperava quando desembarcou no Porto de Fortaleza, bem diferente de Guilherme de Almeida, recebido calorosamente dois anos antes pela elite local.

A relação de Mário de Andrade com os escritores cearenses, contudo, mudaria da água para o vinho no final dos anos 1930, como atesta a sua correspondência. As cartas postadas no Ceará, um conjunto de 68 mensagens, chegam à Rua Lopes Chaves, 546, em São Paulo, a partir de 1937, três entre as primeiras, assinadas pelo médico, escritor e folclorista Florival Seraine, nascido no Pará e formado na Bahia. Atendia ao convite de Mário de Andrade, então diretor do Departamento de Cultura do município de São Paulo, enviando a tese “Contribuição ao estudo da pronúncia cearense”, para ser discutida no Primeiro Congresso da Língua Nacional Cantada, ocorrido em São Paulo em julho de 1937.

A partir de 1939, Mário adensa os contatos epistolares com personalidades do Ceará, ao dialogar com jovens escritores de Fortaleza e do Crato. Aluízio Medeiros, Eduardo Campos, Quixadá Felício ambicionavam também aproximar-se daquele que, para Antônio Girão Barroso, era o “sujeito mais interessante que o Brasil tinha dado, nestes últimos 439 anos”.10 Esse lote de cartas coloca na ordem do dia a literatura, especialmente em sua dimensão social. As missivas situam-se, em grande parte, no período do Estado Novo. Nesse período, o Ceará, como todo o Nordeste, foi impactado pela Segunda Guerra Mundial, inclusive servindo de base militar de apoio para os norte-americanos. O início dos anos 1940 representou um convívio mais rotineiro da capital cearense com os signos da modernidade, pois a cidade passou a contar com uma frota maior de automóveis, com a presença de asfalto nas ruas, com semáforos, vitrines e arranha-céus; nesse passo, uma nova geração de intelectuais tomava a frente das ações culturais e pela primeira vez na história das associações culturais de Fortaleza, os escritores se aproximaram dos pintores e escultores de igual para igual, surgindo deste encontro a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap) e o Clube de Arte Moderna (Clã). O momento era de maior profissionalização, os debates cada vez mais especializados e novos desafios se colocavam na formação dos jovens intelectuais do período que, além de um curso superior, procuravam organizar congressos, participar de exposições nacionais, discutir e produzir cinema e rádio, ocupar cátedras no Ensino Superior, estabelecer páginas de crítica nos jornais de grande circulação, editar revistas e fundar selos editoriais. Este era um movimento nacional que se observou em várias regiões do país, tendo como ponto representativo o I Congresso de Escritores em 1945, promovido pela Associação Brasileira de Escritores, em franca oposição ao autoritarismo da ditadura Vargas.

Nesse contexto, os cearenses também procuraram se organizar e estabelecer contatos com os principais nomes literários do país, seja por cartas, viagens, seja organizando congressos. Antônio Girão Barroso conta que em 1942 foi ao Rio de Janeiro participar do V Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) e por lá encontrou Manuel Bandeira e Oswald de Andrade. O esforço de Antônio Girão Barroso de se deslocar da província e entrar em contato direto com autores que viviam na antiga capital significava não só uma questão de sociabilidade literária, mas o compromisso de apurar o senso estético e de legitimar sua própria produção. Antônio Girão foi o primeiro do grupo de jovens escritores cearenses a escrever a Mário de Andrade, em junho de 1939, endereçando a carta para rua Santo Amaro, n.5, ap.46, Catete, no Rio de Janeiro, para onde o destinatário se mudara, em 1938. Conta no primeiro parágrafo da mensagem: “Há tempos mandei pª. o seu endereço paulista esta brochurinha de primeiros poemas”. Sem ter obtido resposta, decidira-se a reenviar o seu livro de estreia, desejando receber do crítico literário do Diário de Notícias uma impressão de leitura. Antônio Girão Barroso sabia que Mário dificilmente deixava uma carta sem resposta: “segundo me tem contado, v. é um camaradão cordial, bonzão, e não deixaria de dar uma notícia”. Repousam, atualmente, no acervo da biblioteca de Mário de Andrade, no IEB-USP, os dois exemplares de Alguns poemas, com dedicatórias de 1938 e 1939. Na carta, o poeta de 25 anos manifestava o desejo de subscrever a aquisição de Girassol da madrugada, livro apenas anunciado por Mário de Andrade em entrevista a Joel Silveira, em 1939.11 A ansiedade do cearense em garantir um exemplar se justificava numa cidade onde os livros da geração modernista demoravam a chegar: “É um milagre a gente ler as suas coisas por aqui, salvo o que sai nos jornais e revistas, isso mesmo agora; de primeiro, nem isso”.12 No ano seguinte, deseja conhecer as raízes modernistas da obra de Mário:

[...] um dos objetivos desta é lhe fazer um pedido: Você me arranjar, se possível, um exemplar mesmo velho ou estragado do seu Pauliceia desvairada, livro que eu sempre desejei conhecer e estudar. Se de todo, como acho provável, Você não puder fazer isso para um seu velho admirador, ao menos me mande datilografado o prefácio do mesmo e alguns (uns poucos) dos seus poemas mais típicos. É possível?13

Antônio Girão Barroso abriu o terreno para que outros colegas seus escrevessem a Mário de Andrade. Não tardaram para Aluízio Medeiros e Eduardo Campos, dois expoentes do grupo Clã, solicitar a Mário uma leitura dos seus escritos. O debate em torno da produção poética e ficcional dos jovens ganha destaque no somatório dessas missivas, Mário de Andrade se aplicando em favorecer um debate crítico em torno dos livros que recebia pelos correios: Alguns poemas (1938), de Girão Barroso; Trágico amanhecer (1941) e Mundo evanescente (1944), de Aluízio Medeiros; Águas mortas (1943), de Eduardo Campos.

Da capital cearense, Eduardo Campos, em 15 de janeiro de 1943, perfaz um retrato do grupo, que também acolhia pintores, desejosos de poder contar com a orientação do polígrafo:

De outra oportunidade, mandarei qualquer coisa minha pra você. [...]. Meus companheiros vão trabalhando como podem. Girão, Aluízio, Barata, todos prometendo. Arthur Eduardo Benevides é mais uma risonha esperança. Vai publicar Canções do sacrifício. Ao lado dos poetas há um movimento bem audacioso de pintores modernos. Fran Martins acabou de escrever Nós somos jovens.

Em março de 1944, manifesta a coesão e a potencialidade dessa nova geração:

Nossa turma está mais [e] mais unida. Temos alguns amigos desconhecidos pra você. Por isso, darei uma rápida informação: os pintores têm trabalhado bastante pela arte. Pelo alevantamento do nosso nível cultural. Realizam conferências e exposições. São eles: Mário Barata, moço de 28 anos, formado em Direito, uma espécie de Ogã da turma. Antonio Bandeira (ilustrador e aquarelista), 23 anos. Aldemir Martins, pintor bem jovem. O benjamin da turma. [...]. Angélica Souza, pintora bem forte e corajosa. Também nova. Entre vinte e vinte e três anos. Ao lado deles, Jean Pierre Chabloz que tem feito ótima camaradagem conosco. Na poesia, temos uma bela surpresa: Artur Eduardo Benevides. Tem um livro pra publicar: Presença inquieta. É também um cronista malicioso e teatrólogo. O resto você deve conhecer: Girão, Fran Martins, Aluízio Medeiros e seu amigo, Eduardo, o chamado “atlético contador de histórias”.

Ao mesmo tempo que tomava conhecimento da cena literária e artística de Fortaleza, Mário de Andrade trocava cartas com escritores e leitores da cidade do Crato, 500 quilômetros distante da capital, situada na região do Cariri. A cidade constituía-se na capital regional do Sul do Ceará e trazia um passado marcado por revoluções e insurgências lideradas pela família de Bárbara de Alencar, avó do escritor José de Alencar, a saber, a Revolução de 1817 e a Confederação do Equador de 1824. Seja pela proximidade com Pernambuco, seja pela instalação do Seminário Diocesano São José ainda no século XIX, Crato foi se estabelecendo no estado como a “cidade da cultura”, tão profícua no surgimento de agremiações e institutos de cultura (Cortez, 2000). Como se lê na carta enviada em 1940 por Luís Maia, Mário de Andrade foi escolhido patrono de uma dessas associações, a “Associação Cratense Pró-cultura”; também, noutra carta, essa de 1943, do mesmo remetente, foi cogitada a criação de “uma sociedade literária sob o título ‘Fundação Mário de Andrade’”,14 iniciativa desestimulada pelo homenageado.

Mário de Andrade estava, pois, ligado ao mesmo tempo a dois grupos do Ceará, um no interior e outro na capital, e não demorou muito para se ver disputado por eles. Em 1942, a turma de Fortaleza resolveu organizar o Congresso de Poesia do Ceará e, em resposta, surgiu, no Crato, o Congresso Sem Poesia, refletindo sobre a oportunidade do lirismo em tempos de guerra.

O Primeiro Congresso de Poesia do Ceará, inspirado no Primeiro Congresso de Poesia do Recife, de 1941, conseguiu reunir os novos pintores e escritores de Fortaleza, além de contar com o apoio e a presença da “velha guarda” do modernismo cearense, da Academia de Letras do Ceará, da Academia Cearense de Letras, do Instituto do Ceará e da Associação Cearense de Imprensa. Logo nos preparativos, os organizadores perceberam que a coisa não seria fácil e trataram de buscar apoio dentro e fora do Ceará. Dentre esses apoios, Mário de Andrade foi requisitado por carta, por intermédio de Aluízio Medeiros e Eduardo Campos, que passaram a lhe informar os pormenores do Congresso. Ocorre que, de fato, o apoio público de Mário de Andrade foi conquistado pelos intelectuais do Crato: o médico Felício Quixadá, formado na Faculdade de Medicina da Bahia, conseguiu um telegrama de adesão de Mário para o “Congresso Sem Poesia” e isso representou uma vitória para o grupo da cidade do Cariri cearense: “O seu telegrama de adesão foi o nosso maior triunfo. Viva, Mário de Andrade! Você é admirável! // O Congresso Sem Poesia está inteiramente vitorioso. Além da sua palavra, estamos aguardando outras vozes semelhantes do Brasil sul”.15

Do outro lado, Mário de Andrade compreendia aquela disputa de forma diversa, vendo positivamente a coexistência dos dois congressos. Em 1943, no prefácio aos Ensaios do nosso tempo, de Otávio de Freitas Júnior, Mário, considerando-o um “exemplo bem típico de insatisfação e inconformidade”, compara os intelectuais de seu tempo e os da geração mais moça, mostrando que no lugar do flagrante individualismo anterior passava a vigorar “uma enérgica ascensão em busca da coletividade humana”. No texto, alude, algo veladamente, à atuação de dois grupos de escritores cearenses que vinha acompanhando de longe, os quais, assim como os moços de outras regiões do país, em uma época de autoritarismo político, “estão querendo exclamar a verdade, a verdade violenta, a verdade que vai chegar, mas não podem”: “Aqui é um grupo de audácia vertiginosa que escapole para um Congresso sem Poesia. Mas bem próximo um Congresso de Poesia regouga, também generoso, à procura de outras frinchas por onde faça escapar uns laivos da verdade. Laivos insuficientes” (Andrade, 1972c, p.258; 260-1).

As cartas dirigidas a Mário de Andrade, pelos dois grupos, historiam a rica movimentação no campo letrado cearense. Do Primeiro Congresso de Poesia nasceriam o Grupo Clã e a Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap), tendo sido ainda o encontro modelo para o I Congresso Cearense de Escritores (1946) e o II Congresso de Poesia do Ceará (1948). O Manifesto do Primeiro Congresso de Poesia, estampado na imprensa local, foi lido pelo jovem de 19 anos, Eduardo Campos, posicionado (desafiadoramente) de costas para o público do Teatro José de Alencar, no início de agosto de 1942. Mário recebeu o Manifesto pela via postal e, sempre atento à história do modernismo e de suas reverberações, preservou-o em seu arquivo, entre os manuscritos de sua enciclopédia pessoal, o “Fichário Analítico” (Anexo).

As cartas provenientes do Paraná e do Ceará, ou ligadas a personalidades dessas regiões, na Série Correspondência Passiva de Mário de Andrade, no IEB-USP, assim como as respostas do escritor paulistano divulgadas em livros ou ainda inéditas, conservadas em arquivos, constituem-se numa expressiva documentação ainda inexplorada em profundidade nos estudos literários. Facultam a ampliação do conhecimento das redes de sociabilidade intelectual no modernismo brasileiro, testemunham os vínculos de Mário de Andrade com intelectuais paranaenses (especialmente nas décadas de 1920 e 1930) e cearenses (sobretudo de 1939 a 1944), discernindo a natureza de seu ideário estético/político e as engrenagens de seu projeto epistolar, registram a movimentação literária local (especialmente Curitiba, Fortaleza e Crato) e suas repercussões, mostram a trajetória na formação de jovens escritores distantes dos centros tradicionalmente legitimadores de renome (Rio de Janeiro e São Paulo), suas leituras, evidenciando suas biografias no campo das letras na primeira metade do século XX.16

Referências

  • ANDRADE, M. Amadeu Amaral. In: ___. O empalhador de passarinho. 3.ed. São Paulo: Martins/INL-MEC, 1972a.
  • _______. O movimento modernista. In: ___. Aspectos da literatura brasileira. 4.ed. São Paulo: Martins/INL-MEC, 1972b.
  • _______. Segundo momento Pernambucano. In: ___. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo. 4.ed. Martins/INL-MEC, 1972c.
  • _______. Entrevistas e depoimentos: Mário de Andrade. Edição organizada por Telê Ancona Lopez. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983.
  • _______. Poesias completas. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013. v.1.
  • _______. O Turista Aprendiz. Edição de texto apurado, anotada e acrescida de documentos por Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo; Leandro Raniero Fernandes, colaborador. Rio de Janeiro: Iphan, 2015.
  • ANTELO, R. (Org. e notas) Cartas de Mário de Andrade a Murilo Miranda - 1934/1945. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
  • AZEVEDO, N. P. Modernismo e regionalismo: os anos 20 em Pernambuco. 2.ed. João Pessoa: Editora UFPB/ Editora UFPE, 1996.
  • BARROSO, A. G. Um certo contato com a Lua. Org. Oswald Barroso. Fortaleza: Armazém da Cultura, 2014.
  • CORTEZ, A. O. O. A construção da “cidade da cultura”: Crato (1889-1960). Rio de Janeiro, 2000. Dissertação (Mestrado em História Social) - Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: <https://cariridasantigas.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Otonite.pdf>.
    » https://cariridasantigas.com.br/wp-content/uploads/2018/09/Disserta%C3%A7%C3%A3o-Otonite.pdf
  • IORIO, R. H. S. Intrigas & novelas: literatos e literatura em Curitiba na década de 1920. Curitiba, 2003. Tese (Doutorado em História) - Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.
  • MORAES, M. A. (Org., Intr. e notas) Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp; IEB, 2000.
  • _______. Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2007.
  • _______. (Pesquisa doc./icon., estab. de texto, notas e posfácio) Câmara Cascudo e Mário de Andrade, cartas, 1924-1944. São Paulo: Global, 2010.
  • SANTIAGO, S. (Prefácio e notas); FROTA, L. C. (Organização e pesquisa iconográfica). Carlos & Mário: correspondência completa entre Carlos Drummond de Andrade (inédita) e Mário de Andrade. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi, 2002.

Notas

  • 1
    A correspondência ativa de Mário de Andrade perfaz uma notável bibliografia. De 1958, quando o poeta Manuel Bandeira pioneiramente divulgou em livro as cartas que recebeu do amigo paulistano, até a presente data, somam-se, entre edições e reedições ampliadas, mais de quarenta volumes, preparados por diversos estudiosos (cf. Moraes, 2007). A correspondência passiva de Mário de Andrade, preservada no Fundo arquivístico do polígrafo, no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo, congrega 6.986 itens. A Série Correspondência Mário de Andrade foi organizada pelas equipes sob a coordenação da Profa. Dra. Telê Ancona Lopez, no IEB-USP, em projetos subvencionados pela Fapesp e Vitae, de 1989 a 2003.
  • 2
    Carta de Luiz Sampson de Siqueira Melo a Mário de Andrade, 5 jul. 1940. Série Correspondência. Fundo Mário de Andrade, Instituto de Estudos Brasileiros, USP.
  • 3
    Carta de Luiz Sampson de Siqueira Melo a Mário de Andrade, 9 jan. 1942. Série Correspondência. Fundo Mário de Andrade, Instituto de Estudos Brasileiros, USP.
  • 4
    Carta de Jurandir Manfredini a Mário de Andrade, 15 fev. 1928. Série Correspondência, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP.
  • 5
    Carta de Mário de Andrade a Wilson Martins, 9 abr. 1943, O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, São Paulo, 25 maio 1968.
  • 6
    Carta de Wilson Martins a Mário de Andrade, 15 abr. 1943. Série Correspondência, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP.
  • 7
    Carta de Mário de Andrade a Wilson Martins, 28 abr. 1943, O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, São Paulo, 25 maio 1968.
  • 8
    Carta de Wilson Martins a Mário de Andrade [ant. 5 dez. 1943]. Série Correspondência, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP.
  • 9
    Carta de Mário de Andrade a Wilson Martins, 5 dez. 1943, O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, São Paulo, 25 maio 1968.
  • 10
    Carta de Antonio Girão Barroso a Mário de Andrade, 2 jun. 1939, Série Correspondência, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP.
  • 11
    Na reportagem em Vamos Ler! (Rio de Janeiro, 4 maio 1939), Joel Silveira pergunta a Mário de Andrade se ele possuía “algum livro novo no prelo”. Responde o entrevistado: “Tenho um livro de poemas: Girassol da Madrugada, que sairá em edição limitada, ilustrado por Santa Rosa” (Andrade, 1983, p.59). Mário, em 13 de agosto de 1941, escrevendo a Murilo Miranda, manifesta a intenção de desistir do projeto editorial nas mãos do amigo: “Como é com o Girassol da Madrugada? O Santa [Rosa] fez as gravuras? Eu não pude esperar mais, Murilo. Se fizer importância o Clube do Livro só publicar inéditos retire o meu. Ficará pra outra vez ou darei outra coisa” (Antelo, 1981, p.88).
  • 12
    Carta de Antônio Girão Barroso a Mário de Andrade, 2 jun. [1939]. Série Correspondência, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP.
  • 13
    Carta de Antônio Girão Barroso a Mário de Andrade, 24 jul. 1940. Série Correspondência, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP.
  • 14
    Cartas de Luís Maia a Mário de Andrade, 20 fev.1940 e 10 jan. 1943. Série Correspondência, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP.
  • 15
    Carta de Quixadá Felício a Mário de Andrade, 12 ago. 1942. Série Correspondência, Fundo Mário de Andrade, IEB-USP.
  • 16
    Artigo resultante das pesquisas realizadas por Marcos Antonio de Moraes, Paraná, Ceará: diálogos epistolares de Mário de Andrade (Bolsa de Produtividade em Pesquisa, CNPq), e por Rodrigo de Albuquerque Marques, A participação de Mário de Andrade no Ceará: Modernismo, viagens e leituras (pós-doutoramento no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, sob a supervisão da Profa. Dra. Iumna Maria Simon).

Anexo

Manifesto do Primeiro Congresso de Poesia do Ceará

Definição:

Reunindo-se para a organização do 1º Congresso de Poesia do Ceará, os intelectuais signatários deste Manifesto estabelecem amplo debate em torno dos mais altos problemas da Arte, nas suas relações com o indivíduo e com o mundo.

Promove-se, assim, um inquérito que, consultando a nossa inteligência e a nossa cultura, define os rumos do pensamento do Ceará e do Brasil em face da civilização e das circunstâncias.

A Poesia não será, ela apenas, estudada como força que “age de maneira divina e inapreendida”, muito menos como linguagem dividida em unidades rítmicas.

A Poesia, no conceito do Congresso, é a única e eterna invasora. E apenas por isto o Congresso, sendo de Poesia, é um estudo das tendências gerais de todos os artistas - escritores, poetas, teatrólogos, escultores, cinematólogos, músicos, pintores, que nele tomarem parte.

O certâmen refletindo grandes forças do espírito e do coração, e especificamente, um trabalho do Sonho em proveito da Arte. Nem essa qualidade, porém lhe proíbe as derivações superiormente utilitárias.

Afirmamos o Sonho como o grande criador e modelador; exprobramos todas as consciências que o repelem; condenamos o bárbaro egoísmo das almas materializadas.

Declaramos que todas as nobres conquistas e civilizações foram um grande Sonho corporificado.

O 1º Congresso de Poesia do Ceará presume uma sistematização e uma coor- denação de ideias.

É o pensamento em atitude reflexiva, mas construtora.

A ARTE NO BRASIL E NO MUNDO:

Asseguramos que a Arte é universal e eterna.

Mas afirmamos também a sua feição heterogênea e particular, as suas imperiosidades regionais, os caracteres específicos da sua origem.

Em toda a Arte reside uma função especial, cada manifestação da sua essência entende com um universo à parte, ela não realiza ou destrói indiferentemente. Por isso a Arte é a transformadora suprema.

Afirmamos a necessidade de uma grande poesia nacional e própria exaltadora da nossa condição cívica, étnica, amorosa, idealística e evolucional.

Condenamos a lírica formal, a ação restritiva dos métodos poéticos, as indagações linguísticas em desproveito do Pensamento, o verso municipal, a Verdade obscurecida, o refinamento e a explosão das inspirações depressoras de qualquer procedência e origem.

Assim na Pintura e na Escultura, em todas as manifestações do Pensamento e da Arte.

Prescrevemos um sentido nacional, sem prejuízo das interdependências universais, para todas as realizações da cultura e da inteligência brasileiras; proscrevemos as fórmulas antiquadas, a mentira histórica, a aceitação servil de modelos estranhos às emoções da alma nacional - todos os elementos defeituantes e desagregadores da obra de arte no Brasil.

Declaramos que a Beleza terá sempre para o artista uma razão ambiencial ou introspectiva. E que esta ainda será uma consequência do meio que o circunda - e em que ama e vive.

Exprobramos o teatro sem finalidade esclarecida, amoral ou imoral, qualquer que seja a forma por que se apresente; condenamos a música imitada, as maneiras esculturais de importação, a pintura exótica, a literatura influenciada, e - particularmente em cada uma das artes, - a preocupação erudita ou mesmo cultural entravando a ânsia criadora e a capacidade de realização do Artista.

Declaramos, com relação ao Ceará e ao Nordeste, concluída a última fase da chamada LITERATURA REGIONAL inspirada no [f]enômeno das secas excetua- dos os casos em que novos aspectos, de sentido mais humano que local, se apresentem nitidamente, ou os casos em que, ressaltando o flagelo, se procure libertar o homem do martírio pela formação de nova mentalidade de resistência.

ARTE E LIBERDADE:

Reafirmamos o amor de todos os artistas de todos os tempos pelos grandes ideais de liberdade. Somos pelo debate, pela discussão, pela pronúncia livre de cada um em torno dos problemas da Arte e da Vida.

Condenamos as formas opressivas de administração, as imposições da força organizada, os crimes contra os direitos do Pensamento e da Ação idealística.

Reputamos ilegal e ilegítima a atitude dos governos chamados fortes na guerra que movem contra o mundo e a Civilização. Anatematizamos todas as formas de dirigir, incompatíveis com a dignidade do homem.

Afirmamos a nossa ojeriza pelas conquistas da guerra; mas justificamos a guerra quando ela se orienta contra a tirania embuçada sob qualquer máscara.

Declaramos indigna e brutal a opressão orientada contra os homens de Pensamento, contra a Arte e os Artistas, contra a obra da Cultura e da Ciência. Evocamos, no transe atual, e os bendizemos, os nomes de Thomas Mann, Einstein, Otto Maria Carpeaux, Georges Bernanos, Frederico García Lorca, Patrice de La Tour du Pin, morto num campo de concentração, e todos os que tombaram vítimas dos regimes fascistas, e relembramos, comovidamente, a renúncia e o protesto de Bergson.

Somos pela Arte livre de interferências estranhas, contra a influência do Poder nas concepções criadoras, pela livre condução dos Artistas e pela Verdade total nos seus empreendimentos intelectuais.

Exprobramos, na hora atual, as atitudes e[s]táticas, a indiferença do homem de pensamento diante da realidade universal e o incitamos à luta pelo direito de sentir e criar.

MANIFESTO:

Assim o temos pensado, ao promovermos o 1º Congresso de Poesia do Ceará, Assim falamos ao Brasil, dizendo da nossa fé na Arte maravilhosa e restauradora; assim falamos aos ar[tis]tas de todo o continente [...] afirmar-lhes o nosso [...] causa das grandes e pu[...] ções, da Liberdade e [...] zação.

Fortaleza 1º de agosto [...]

(aa) - Mário d[e Andrade]

Braga Montenegro, A[ntonio Gi]rão Barroso, Aluísio [Medeiros,] João Clímaco Bezerra, Américo Barreira, Fran Martins, Mario Barata, Filgueiras Lima, Otacílio Colares, Artur Eduardo Benevides, Eduardo Campos, Francisco Novais, José Perales Aires, Miguel Sales, Álvaro Lins Cavalcante, José Pires, Mirton Cabral, Cordeiro de Andrade, Murilo Mota, Lourenço Mota, Orlando Mota, Antonio Bandeira, José Milton Dias, Stelio Lopes de Mendonça, Mileno Silva Thé, Joaquim Alves, Abelmar Ribeiro da Cunha, José Júlio Cavalcante, Alcir Araújo, Raimundo Ivan de Oliveira, Guaraci Cabral de Lavor, Aldemir Martins, Gaudencio Carvalho, Parsifal Barroso, Mozart Soriano Aderaldo, J. Denizard de Macedo, Hildebrando Espínola, Pierre Luz, João Otavio Siqueira, João Jacques, Hodson Menezes, Yaco Fernandes, Olavo Miranda, Moacir Aguiar e Sinésio Cabral.

“Texto do Manifesto do 1º Congresso de Poesia do Ceará/ Os que assinaram o importante documento, lido ontem no ‘José de Alencar’”. Recorte de jornal (seis colunas) na Série Manuscritos Mário de Andrade: Fichário Analítico, Fundo Mário de Andrade, Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP). Título do jornal não preservado no recorte. Local e data indicados no verso: “Ceará, Domingo, 2 de agosto [...]”. Na abertura da matéria, se lê: “É o seguinte o manifesto do 1º Congresso de Poesia do Ceará, lido no Teatro José de Alencar durante a sessão de ontem:” Na legenda da fotografia que encima a publicação, lê-se: “Instalação do Congresso de Poesia: - Eis a mesa que presidiu a solenidade de instalação do Congresso de Poesia, vendo-se, da direita para a esquerda, os srs. Lourenço Mota, Américo Barreira, Interventor Menezes Pimentel, Mário de Andrade, João Clímaco, Eduardo Benevides, Antônio Girão Barroso e Filgueiras Lima (falando) - (Foto e gravura UNITARIO)”. Na transcrição do Manifesto, optou-se pela atualização da ortografia, de acordo com a norma vigente. Os trechos entre colchetes indicam correções conjecturais; as indicações “[...]” testemunham partes da matéria suprimidas em razão de rasgamento no suporte.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Fev 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    10 Nov 2021
  • Aceito
    11 Dez 2021
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