RESUMO
A pandemia da Covid-19 impulsionou a cooperação científica com diferentes níveis de governo, principalmente para a criação e incorporação de critérios rigorosos nos processos de elaboração de Políticas Públicas (PP). A USP demonstrou sua capacidade de recomendar políticas públicas baseadas em evidências científicas a partir da atuação de suas unidades, centros, núcleos e grupos de pesquisa. Essa capacidade efetiva pode ser articulada para dar forma à criação de um novo Centro multidisciplinar, dedicado a contribuir com os poderes públicos na elaboração, acompanhamento e avaliação de Políticas Públicas. A USP, mais uma vez, tem condições de se apresentar como referência nacional para a qualificação avançada depolicy makersa partir do diálogo com instituições de governo voltadas para formulação de políticas públicas.
PALAVRAS-CHAVE: Políticas públicas baseadas em evidências; Centro de políticas públicas; Cooperação universidade-poder público; USP na pandemia
ABSTRACT
The Covid-19 pandemic boosted scientific cooperation with various levels of government to develop strict criteria for the process of formulating public policies. USP has demonstrated its ability to recommend policies based on scientific evidence, driven by the diversified work of dozens of units, centers, and research groups. This effective capacity can be brought together and articulated to shape the creation of a new multidisciplinary Center that would collaborate with public authorities in preparing, monitoring and evaluating Public Policies. USP, once again, can establish itself as a national benchmark for the advanced qualification of Brazilian policy makers.
KEYWORDS: Evidence-based public policy; Public policy center; University-government cooperation; USP in the pandemic
“Os frutos doces da adversidade…”
(Shakespeare)
A difusão de conhecimento produzido pelas Universidades tem sido cada vez mais relevante para a vida social no atual momento histórico. O enfrentamento da Covid-19 impulsionou a cooperação científica com diferentes níveis de governo, especialmente para a criação e incorporação de critérios rigorosos nos processos de elaboração de Políticas Públicas (PP). O envolvimento de pesquisadores, planejadores públicos e profissionais qualificados durante a pandemia ampliou o potencial de cooperação existente, consolidou laços institucionais e abriu caminhos fundamentais para uma articulação mais estreita entre a universidade, governos e sociedade ao redor do mundo e no Brasil.
A terceira missão da Universidade de pesquisa
Em toda parte, a Universidade se mostrou imprescindível para a identificação da estrutura e funcionamento do SARs-Cov-2 e das formas de prevenção, tratamento e contenção da Covid-19. Desde o início, professores, pesquisadores e estudantes se empenharam para fornecer informações confiáveis e produzir dados necessários para compreender a complexidade do coronavírus. Redes de pesquisadores e grupos de voluntários e cooperativos se formaram rapidamente, muitos em nível internacional, estabeleceram um diálogo produtivo e desenvolveram trabalho a partir da interação entre os mais diferentes campos do conhecimento. A enorme disposição emulou a combinação de estruturas globais e regionais para compreender a complexidade do vírus e explorar os meios de combatê-lo.
Na pandemia, uma das mais dramáticas da história, o descaso pela vida, o egoísmo e a ignorância que despontaram pelo planeta não conseguiram conter a energia de milhares de pesquisadores que colocaram a ciência e a Universidade na vanguarda do enfrentamento da Covid-19. Um mar de testes, medicamentos e novas terapias floresceu em boletins, notas técnicas, websites, workshops, seminários, revistas e plataformas. e alimentaram um movimento inesperado de remodelagem de práticas científicas, com base na transdisciplinaridade e em um grau inédito de cooperação entre pesquisadores, grupos e instituições nacionais e globais. Segundo dados veiculados pela Nature, as pesquisas sobre a Covid-19 provocaram um aumento de 4% na produção científica global (Holly Else, 2020), ou seja, mais de 100 mil artigos científicos que foram publicados, em sua maior parte, em plataformas de preprints papers. Mesmo esse número expressivo representou apenas uma parcela de um total de mais de 300 mil publicações, de vários tipos, originadas em mais de 20 mil instituições de quase 200 países.2 Essa gigantesca produção expressa a soma de artigos que passaram por peer review, preprint papers, capítulos de livro, anais de congresso, livros e monografias, de acordo com a Dimensions Database.3
Na área da Saúde e da Medicina, o crescimento do número de artigos havia sido superior a 90% (até meados de 2020, ante 2019) e mais de 50% dos preprints papers foram veiculados em plataformas como a medRxiv, SSRN e a Research Square.4
A realidade é que a pandemia colocou a saúde pública no centro de uma crise global, aprofundada em muitos países pela forte reverberação econômica, política e social.
Francis Collins (2020), diretor dos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH), uma das maiores instituições de pesquisa biomédica do mundo, apresentou sinteticamente a nova realidade: “A pandemia mudou a ciência e os cientistas para sempre”. Uma realidade que envolveu diretamente nossas universidades.
Milhões de pessoas tiveram suas vidas interrompidas. Outras foram afetadas das mais diferentes formas, em especial as mais vulneráveis, que a duras penas conseguiram alimentar suas famílias e enfrentar as dificuldades criadas pela redução do emprego e da atividade econômica.
Na verdade, apesar dos avanços, ainda é cedo para identificar e quantificar as sequelas que a Covid-19 gerou em todas as camadas da sociedade. No entanto, é preciso ressaltar que raras vezes na história a humanidade foi tão protegida pela ciência, que se firmou como referência e amparo eficaz para populações inteiras em todo o planeta. A veloz reação da comunidade científica, a compreensão de que a transdisciplinaridade seria a única forma de defesa social, o intercâmbio intensivo entre pesquisadores e a proliferação de novos modelos de ciência aberta integraram-se aos movimentos de solidariedade e cooperação que se espalharam pelo mundo todo e ajudaram a salvar vidas.
O esforço conjunto desenvolvido por pesquisadores e profissionais da saúde para aperfeiçoar e aprofundar o conhecimento sobre a adequação dos tratamentos contra a Covid-19, produziram resultados mesmo em meio à escassez de equipamentos de segurança, testes, antivirais e atendimento médico adequado para vastas parcelas da população. Foi essa interação, que se apoiou em vultuosos investimentos públicos e privados, que viabilizou o desenvolvimento de testes clínicos, a produção de medicamentos e de vacinas em tempo inimaginável há alguns anos.
Os processos inovadores que ajudaram a conter a pandemia, inclusive os não farmacológicos, resultaram da ação mútua e do compartilhamento de conhecimento entre as mais diferentes áreas da saúde, da biologia, das engenharias e das ciências humanas. A pesquisa científica interdisciplinar e multi-institucional atingiu um patamar superior de solidariedade, tanto na coleta de alimentos, na distribuição de equipamentos de proteção e na avaliação dos impactos sociais quanto na disseminação de informação confiável, especialmente nas comunidades vulneráveis, nem sempre atendidas pelo poder público.
As Universidades também foram afetadas por essa dramática realidade, a começar pela interrupção de suas atividades diárias. Mesmo assim, apesar da enorme carência de recursos, prevaleceu o sentimento de urgência e de responsabilidade perante a sociedade. O vasto conhecimento acumulado e gerado pela academia fluiu para a população, para o setor privado e governos, e alimentou veículos de comunicação. Os dados, informações e grande parte das recomendações geradas de modo criterioso pela ciência serviram de apoio para autoridades e policy makers na maior parte dos países, apesar das poucas - e socialmente desastrosas - exceções.
A pandemia inaugurou uma era global de experimentação social que tende a se tornar um marco para as próximas gerações. A ampliação das atribuições regulares da universidade que se deu em meio à emergência da situação foi um convite para uma reavaliação de suas atividades e de seu comportamento, intimamente ligados à sua relevância e posicionamento social. Há fortes expectativas quanto à capacidade e competência da Universidade para gerar rapidamente respostas para os grandes desafios do mundo atual, como as pandemias, o novo mundo digital, as mudanças do clima, as desigualdades sociais e a sustentabilidade. O potencial liberado contra o SARs-Cov2 deixou claro que as respostas positivas, as análises e soluções geradas pela comunidade científica podem se tornar ainda mais relevantes e, com isso, oxigenar o debate público. Para isso, a reflexão sobre sua reorganização e reordenamento de sua própria estrutura adquire maior importância.
A Universidade conseguiu mostrar que é capaz de cumprir sua missão, ampliar seus objetivos e consolidar laços efetivos com a sociedade. Quanto mais seguirem nesse caminho, maior será sua autoridade e mais forte sua legitimidade. O mundo pós-Covid, com as inevitáveis restrições financeiras e contrações fiscais que restringirão a ação dos governos, terá como uma de suas marcas uma aguda competição por recursos públicos. O desafio consistirá na superação dessas restrições, particularmente acentuadas em países em desenvolvimento como o Brasil, dado o fardo das desigualdades entre seus cidadãos, que possuem acesso limitado à educação e à informação de qualidade.
Uma das principais lições que as Universidades podem tirar dos tempos difíceis da pandemia é a necessidade de aguçar ainda mais sua sensibilidade para captar as inquietudes e aflições sociais e colocar seus recursos, humanos e materiais, para ajudar a equacioná-los. Há muito as Universidades deixaram de ser torres de marfim e se distanciaram de posições elitistas. A comoção social ensejada pela pandemia apontou os caminhos da intensificação da pesquisa e do mais que necessário esforço para mitigar ameaças globais, a exemplo dos riscos biológicos e do aquecimento global.
O diálogo aberto com a população colocou as Universidades em um nível mais alto de responsabilidade social. As Universidades consolidaram a compreensão de que, para além da pesquisa e da educação, uma relação de proximidade com a sociedade é vital para sua sobrevivência com legitimidade na arena pública. O diálogo com as expectativas do público tornou-se mais que nunca essencial, pois grande parte do que é desenvolvido no universo acadêmico sequer é de conhecimento da sociedade. Não foi por acaso que a transformação de laços frágeis em vínculos fortes com as sociedades tornou-se uma das principais preocupações das lideranças e reitores das universidades mais renomadas do mundo. Essas instituições ampliaram sua relevância por conta de uma atuação muito além de seu entorno imediato, com alcance nacional e internacional. Apenas para ilustrar, a Universidade de São Paulo (USP), consolidou-se como referência para o Brasil e para a América Latina.
A preocupação com a interface com a sociedade, também identificada como a Terceira Missão das Universidades, não é recente e, em muitos casos, data das primeiras décadas do século XX. Também reconhecida como um campo para as “atividades de extensão”, envolve a maior parte das atividades culturais, as práticas de saúde, cursos de formação continuada, cursos abertos à sociedade, atividades de consultoria e apoio comunitário e performances artísticas, para citar apenas alguns exemplos. Ainda que as atividades de extensão não abarquem a totalidade do que atualmente se compreende como Terceira Missão, incluem uma série de iniciativas sociais e convencionais que fortalecem o reconhecimento das universidades junto à sociedade. Sem dúvida, no pós-Covid-19, a Terceira Missão exigirá maior atenção e se tornará mais robusta ainda.
Aprendizagem e pandemia
A pandemia tencionou as relações sociais e aumentou a ansiedade em todo o mundo. A calamidade na saúde não apenas colocou o Brasil na posição do segundo país com maior número de mortes até o momento, mas também explicitou as enormes desigualdades sociais que drenam as energias do país e impõem a milhões de pessoas um atendimento médico limitado, uma educação de baixa qualidade e um mercado de trabalho sem dinamismo e poucas oportunidades de emprego. Ao mesmo tempo, uma significativa fatia da sociedade brasileira começou a perceber a importância da ciência e da produção de conhecimento para a superação da grave adversidade que enfrentamos. Nessas condições a universidade conseguiu se firmar como fonte confiável de informação.
Os trabalhos de Giles Bibeau, antropólogo da saúde da Universidade de Montreal, enfatizaram que apesar de sua natureza “biológica, a epidemia é essencialmente social”. A cidade de São Paulo é exemplo dessa realidade. No início de 2021, a taxa de mortalidade nas áreas mais vulneráveis chegava a quatro vezes do valor obtido nos bairros mais afluentes, na mesma cidade (Ribeiro, 2021). Números ainda mais constrangedores foram encontrados para a população de pele preta, uma triste condição que se expressa de modo perverso no mercado de trabalho.
A pandemia explicitou as fortes disparidades sociais existentes no Brasil, em que 20% da população sobrevivem sem nenhum tipo de auxílio público e são invisíveis para o sistema de previdência social, contingentes que frequentam os estudos como os sem moradia, sem emprego formal, sem educação ou atendimento médico. Além disso, a batalha contra a disseminação do vírus encontrou uma série de dificuldades, especialmente por conta da inação do governo federal, que deve responder por uma sequência de danos sociais, médicos e psicológicos que não param de crescer e que afetam justamente as populações mais vulneráveis.
Dentro das Universidades, a pandemia precipitou mudanças nas atividades cotidianas que, em situações de normalidade, teriam levado muito mais tempo para serem assimiladas por suas respectivas comunidades. Apesar de todos os malefícios, a Covid-19 serviu como uma espécie de catalisador para inovações em praticamente todas as áreas da docência e pesquisa. Mesmo nas atividades pedagógicas, a USP, como uma Universidade de pesquisa que sempre estimulou a relação de proximidade entre estudantes e docentes e a propiciar o ensino em um ambiente de pesquisa viu florescerem ferramentas mais avançadas, em grande parte digitais, que mostraram eficácia pedagógica e evitaram que os processos de ensino e aprendizagem fossem descontinuados.
Levando-se em conta essas experiências, é possível estimular a reflexão sobre a continuidade do desenvolvimento e da implementação de novos métodos e ferramentas ainda mais avançadas para as novas gerações de estudantes. A Universidade só tem a ganhar com um debate equilibrado e sem preconceitos. Ainda mais quando se sabe que as aulas em ambientes virtuais permitem um acompanhamento mais próximo dos alunos que enfrentam mais dificuldades para acompanhar regularmente os cursos, ou aqueles que foram levados a faltar, ou mesmo os que foram reprovados. Utilizadas com critérios - e há muitas experiências de qualidade nesse sentido -, essas ferramentas permitem que professores e alunos se preparem para as aulas, retomem seus conteúdos, façam suas escolhas e consigam potencializar a interação de conhecimento. Tornou-se evidente que a USP não poderá simplesmente retornar ao passado, como se as experiências ao longo da pandemia pudessem ser ignoradas. Essa realidade marca inclusive aqueles que fazem objeções ao ensino a distância, mas conseguem reconhecer benefícios que os novos métodos podem trazer. Da mesma forma que os docentes da USP foram levados a alterar o formato de suas aulas, os gestores da instituição tiveram de fornecer uma nova gama de suporte tecnológico e de infraestrutura, que deverá marcar o futuro da Universidade.
Além do ensino, a internacionalização da Universidade mostrou sua enorme importância para a educação de futuros profissionais, que exigem mais capacitação para definir suas vidas em um mundo globalizado e altamente competitivo. Para uma instituição como a USP, a internacionalização é uma dimensão imprescindível para garantia de sua qualidade, dado que as parcerias internacionais são fonte confiáveis para uma avaliação isenta e comparativa com o que é produzido na fronteira do conhecimento. Mesmo em meio às restrições de mobilidade, a USP não secundarizou a cooperação internacional, que se tornou peça-chave para as atividades acadêmicas.
Docentes, pesquisadores e estudantes compreenderam que o enfrentamento do coronavírus atualizou a necessidade de um rápido compartilhamento de resultados entre diferentes grupos de pesquisa, que serviram para fomentar novas pesquisas.
A USP viu nascer um novo ambiente de pesquisa em que o espírito competitivo aproximou e deu forma a um trabalho intensamente colaborativo. O metabolismo da pesquisa certamente sofrerá ajustes profundos com mudanças em muitos procedimentos tradicionais nas universidades. A competitividade, estimulada por fatores internos e externos, sofreu alterações com a demanda pública por resultados rápidos e eficazes. Para dar conta de uma agenda científica comum tornou-se imperativo que a colaboração tenha sido realçada como o modelo de trabalho hegemônico.
É claro que as desigualdades também estão presentes no universo da ciência, pois os recursos disponíveis não são uniformes ao redor do mundo e no interior do Brasil. Não faltam exemplos de autoridades que consideram a ciência como fonte de problemas políticos, que apenas cria dificuldades para o equilíbrio entre a saúde pública e economia. Apesar de se tratar de uma falsa dicotomia, autoridades invocam os limites que os especialistas apontam para as políticas públicas, como o distanciamento físico, por exemplo, para diminuir o grau de financiamento. Há também exemplos de legisladores e mesmo algumas agências de pesquisa, que trabalham a partir de uma perspectiva estreita e tendem a apoiar apenas pesquisas aplicadas que, segundo eles, apresentariam resultados imediatos para a melhoria da vida cotidiana.
É simplória e artificial a distinção entre a ciência aplicada para inovação e a pesquisa básica, dado que interagem e se alimentam mutuamente. A pandemia forneceu exemplos significativos sobre como a pesquisa básica e a aplicada podem se correlacionar, tanto nas atividades nos laboratórios acadêmicos quanto nas empresas. O desenvolvimento das vacinas em tempo recorde apresenta-se como o grande exemplo. Sozinhas, as ciências aplicadas não geram vacinas, assim como, por si só, a compreensão da estrutura sutil do vírus não consegue exterminá-lo. O enfrentamento da Covid-19 aproximou os polos que frequentemente são separados apenas por uma compreensão rasa do processo científico.
A atuação da USP
Mais do que a excelência das atividades acadêmicas, a pesquisa científica alcançou resultados que mitigaram alguns efeitos devastadores da Covid-19. A pandemia iluminou o novo papel desempenhado pelas Universidades que repercutiu e alterou alguns dos mecanismos mais tradicionais de elaboração de políticas públicas inovadoras.
Em meados de março de 2020, a USP tomou a difícil decisão de não interromper totalmente suas atividades. O principal foi mantido, em grande parte por meios digitais, de acordo com as medidas de segurança recomendadas pelas autoridades sanitárias. Mais de 90% das atividades pedagógicas foram realizadas de forma remota ao longo de 2020 e assim se mantiveram durante 2021. Felizmente, uma parte dos docentes e estudantes estava preparada para utilizar ferramentas de ensino remoto, mas em poucas semanas os docentes foram treinados ou se familiarizaram com as técnicas disponíveis e os estudantes que necessitavam de assistência receberam auxílio especial. Apesar do caráter emergencial dessa experiência e do grau exploratório que assumiu, estudantes e docentes puderam conviver com novos dispositivos e perceber os benefícios que podem trazer para a o ensino e a aprendizagem. É oportuno enfatizar que a USP incentivou e incentiva a proximidade entre estudantes e professores nos ambientes de pesquisa. No entanto, também é importante registrar que se tornou claro para a comunidade acadêmica que há muito espaço para melhorar as atividades presenciais em sala de aula e otimizar a precisão do acompanhamento e avaliação do aprendizado.
Mudanças significativas também marcaram as atividades de pesquisa. Em curto tempo, que durou aproximadamente duas semanas, cerca de 250 grupos de professores e alunos iniciaram ou reorientaram projetos de pesquisa relacionados à Covid-19. Esses grupos de pesquisa, marcadamente multidisciplinares, se expressaram em todas as áreas do conhecimento e ofereceram resultados significativos para a sociedade muito além das áreas relacionadas à saúde. Houve mudanças na atitude de pesquisadores, que perceberam a dimensão do impacto que podem provocar na sociedade e compreenderam a importância do trabalho cooperativo, que foi levado a conjugar distintas trajetórias acadêmicas e a combinar e testar metodologias para atender as necessidades da população. Essa nova atitude mudou até mesmo a dinâmica dos laboratórios, que fizeram a universidade um centro de experimentação.
As mutações do SARs-Cov2 reveladas e acompanhadas por meio do sequenciamento genético foram vitais para a compreensão das atividades virais e para sua reprodução em laboratório. A ação do vírus no corpo humano foi mais bem compreendida a partir de autópsias e da patologia avançada, o que auxiliou equipes médicas a selecionarem medicamentos mais eficazes para seus pacientes. O mesmo processo se repetiu com os resultados positivos dos estudos sobre imunidade passiva - sorologia. Diferentes grupos de pesquisa iniciaram o desenvolvimento de vacinas, incluindo a vacina em forma de spray nasal. Equipes diversas produziram e desenvolveram métodos de diagnóstico, como os testes rápidos feitos a partir da saliva ou a partir de radiografias de pulmão.
A pesquisa intensiva se desdobrou para além das ciências biológicas e da saúde. Grupos se formaram nas engenharias para desenvolver diferentes tipos de equipamentos, como ventiladores de baixo custo, máscaras, protetores faciais, aparelhos de descontaminação por radiação UV, almofadas anatômicas, dispositivos de telemedicina e pequenos robôs para uso hospitalar, para citar apenas alguns exemplos. Modelos estatísticos e matemáticos sobre o desenvolvimento da pandemia foram cruciais para a elaboração de políticas públicas, bem como para a análise de grandes bancos de dados sobre a movimentação das pessoas a pé ou via transporte público. O mesmo ocorreu com os estudos sobre mercado de trabalho, o emprego e desemprego, que alertaram as autoridades para as dificuldades de sobrevivência e que foram fundamentais para o auxílio que parte significativa da população recebeu em caráter emergencial. A terceira missão das universidades também foi fortalecida na USP que abriu seus cursos de línguas e promoveu atividades culturais que contaram com uma audiência remota muito maior do que o habitual.
A USP também se destacou nos cuidados com a qualidade da informação. Diante da enorme quantidade de notícias falsas ou distorcidas veiculadas - muitas conhecidas por fake news - a Universidade tornou-se referência e fonte confiável para grande parte da população, da mídia e de autoridades públicas. O número de acessos aos websites foi multiplicado por cinco - em grande parte para o acompanhamento de notícias - e os convites a docentes para entrevistas e palestras cresceu exponencialmente.
A contribuição das Universidades para políticas públicas
Todos sabem que, historicamente, o papel das Universidades não foi simples nem se consolidou de forma harmoniosa. Os últimos 50 anos foram marcados por instabilidades e incertezas no reconhecimento e na alocação de recursos para as atividades acadêmicas. A constante pressão externa, assim como a interna, de estudantes e professores - impeliu a Universidade a buscar respostas mais convincentes para demandas relativas a seus critérios de admissão, formação continuada e metodologia de ensino e pesquisa. Além da complexidade dessas demandas, a universidade também se deparou com a instabilidade tecnológica provocada pela da atual transformação digital. Foram pressões dessa natureza que impulsionaram a universidade a buscar respostas e a promover mudanças.
Os novos desafios a serem enfrentados não são simples. Universidades são instituições de alta complexidade que se apoiam em estruturas tradicionais, ainda que o seu foco de atenção esteja orientado para a produção de conhecimento para o futuro por meio da educação, da inovação e da extensão. Em contato com a sociedade, essas atividades também estão sujeitas a preconceitos e segregação, e seu corpo vivo, seus alunos, professores e funcionários, são afetadas pela pobreza e pelas desigualdades sociais.
A reação à Covid-19 sugeriu uma restruturação institucional das universidades que, para se tornarem realidade, precisam ampliar o debate sobre seu reposicionamento estratégico nas sociedades. Sabe-se que muitas das repercussões da pandemia ainda estão por vir, mas consolidou-se o entendimento que é necessário liberar processos de renovação e inovação. Entre os tópicos fundamentais para reflexão e pesquisa destacam-se, por exemplo, a proatividade das instituições de ensino superior, a capacidade de pesquisar aliada à resolução de problemas, a avaliação de resultados e a habilidade de se firmar como referência de informação saudável. Esses itens são fundamentais para que a universidade possa contribuir para a elaboração de políticas públicas que não ignore os fatos e se oriente por evidências.
Em uma perspectiva macro e abrangente, a pandemia contribuiu para o aumento de incertezas globais, não apenas da perspectiva de novas crises sanitárias e biológicas, mas também no que se refere à instabilidade financeira e às transformações digitais, com todos os sinais negativos sobre as dificuldades de criação de emprego e renda.
A educação remota é uma realidade contemporânea nas Universidades, que se reflete no futuro do emprego e nos impactos da automação acelerada. Essas novas tecnologias não trazem somente consequências positivas e, por isso mesmo, colocam para a universidade a remodelagem de suas atividades de ensino, pesquisa e extensão em todos os níveis.
Os esforços para combater a Covid-19 fizeram questionar, de fato, a forma como as Universidades operam hoje e, se mantido o estilo anterior, desafiam sua capacidade de adaptação, sustentabilidade e mesmo sua viabilidade.
É possível educar e conduzir pesquisas de forma remota - sem a presença física de professores, estudantes, funcionários - por meio de trabalhos colaborativos e com práticas ancoradas em uma longa tradição de um trabalho individualizado e com disciplinas compartimentalizadas? Esse é apenas um dos novos desafios que revelam disfunções existentes há muito na universidade brasileira.
A necessidade de mudança é clara, ainda que se reconheça que os períodos de transição são férteis na produção de incerteza. Há muitas dúvidas em relação aos caminhos que deve ser seguido e aos recursos a serem utilizados. Somente o livre debate ajudará a apontar as escolhas e a encontrar novos rumos.
A busca por formas híbridas de educação, capaz de combinar o remoto com o presencial, adaptadas à realidade de cada país é uma questão relevante que marca a nossa era. O número crescente de iniciativas voltadas para educação à distância demonstra a necessidade de que nações e governos não desperdicem o conhecimento atual e abram novas oportunidades para as próximas gerações. Essas janelas de oportunidades podem se fechar se as Universidades não conseguirem se adaptar e se preparar para vencer esses desafios.
A USP mostrou-se diligente na produção de informação, dados e conhecimento qualificado, o que aumentou sua legitimidade e poder de resiliência. A USP não apenas gerou dados públicos relevantes, mas também reiterou a necessidade de transparência, ponto frequentemente ignorado por agências e instituições públicas brasileiras. A Universidade reagiu ao descompromisso do Ministério da Saúde, e não paralisou diante da inação e dos atrasos do Programa Nacional de Imunização, que acarretaram drásticas consequências para a população. Mesmo assim, a USP manteve-se constantemente aberta ao diálogo com diferentes autoridades do executivo, do legislativo e do judiciário de todo país muitas das quais, mostraram-se dispostas a criar projetos de lei e aceitar sugestões e recomendações para o enfrentamento da crise atual.
As iniciativas da USP chamaram a atenção de governos e também do setor privado, o que foi motivo de orgulho para toda a comunidade e para os seus colaboradores. A base relacional da Universidade se expandiu significativamente com o compartilhamento de conhecimento de qualidade. No entanto, é possível avançar ainda mais na consolidação institucional da universidade. A USP demonstrou sua capacidade de recomendar políticas públicas baseadas em evidências científicas a partir da atuação de suas unidades, centros e núcleos de pesquisa. Essa capacidade efetiva pode ser articulada para dar forma à criação de um novo Centro multidisciplinar, dedicado a contribuir com o poder público no acompanhamento, avaliação de Políticas Públicas e para a qualificação avançada de policy makers em todos os níveis de governo. Um centro capaz de mobilizar competências e reunir a expertise da USP para dialogar com instituições de governo voltadas para formulação de políticas públicas.
Há muito tempo a USP vem oferecendo cursos, programas de graduação e pós-graduação com foco em Políticas Públicas. No entanto, a pandemia revelou um grande potencial ainda a ser explorado, capaz de sustentar uma iniciativa socialmente inovadora a partir da integração de pesquisadores de diferentes áreas em um Centro dedicado profissionalmente às Políticas Públicas, orientado para elevar a qualidade das políticas e na qualificação de futuros planejadores e tomadores de decisão.
Uma iniciativa desse porte tem o potencial de fornecer ao setor público uma grande variedade de profissionais experimentados, o que ajudaria a população a receber programas e políticas mais testadas, robustas e seguras. A união da pesquisa de ponta com a excelência pedagógica, sustentada por uma interação estreita entre profissionais de diferentes áreas em uma instituição de criação recente, ajudaria a construir na USP um centro de expressão nacional em condições de dialogar em permanência com as demandas sociais.
A USP conta com um conjunto de pesquisadores maduros e testados na produção de conhecimento. Muitos se dedicam diretamente a salvar vidas. Outros ainda possuem longa trajetória na educação e na habilidade de avaliar iniciativas e políticas públicas, testadas positivamente durante a pandemia. Há razões de sobra para abrir essa discussão sobre o futuro institucional da Universidade.
Em direção ao futuro
As adversidades advindas da pandemia ajudaram a USP a entender a relevância de uma ciência aberta, na qual todo tipo de conhecimento pode ser rapidamente transmitido e compartilhado, seja com a transmissão de dados, publicação de artigos científicos, workshops, palestras ou até mesmo por meio de conferências e aulas remotas. Essa nova abordagem recomenda que um debate para superar aquilo que divide a Universidade, sua fragmentação e pulverização em uma profusão de especialidades. O que se propõe é que as atividades acadêmicas se tornem mais integradas, que se comportem efetivamente como centros multidisciplinares, pois essa é a forma atual de se promover o avanço científico.
Os dois últimos anos foram marcados por um período de experimentação, em que a atuação da USP mostrou de forma decisiva que a pesquisa científica nem sempre possui conexões óbvias e claras com a sociedade. Os anos de pandemia também mostraram que a ciência pode ser feita de modo diferente. E os formuladores de políticas públicas, começaram a aprender a ouvir os profissionais da saúde, os pacientes, as famílias e também a Universidade.
A multiplicação desse diálogo entre instituições e agentes transformadores abriu novas possibilidades para a melhoria da vida em sociedade. Além de educação, pesquisa, extensão e inovação, a universidade pode se consolidar como fonte confiável e celeiro para o aperfeiçoamento de políticas públicas.
Referências
-
COLLINS, F. A pivotal Moment for Science: a conversation with Dr. Francis Collins. Podcast: Beyond the White Coat, May 1st. 2020. Disponível em: https://podcasts.apple.com/us/podcast/beyond-the-white-coat/id1507383813>.
» https://podcasts.apple.com/us/podcast/beyond-the-white-coat/id1507383813 -
HOLLY ELSE. How a torrent of COVID science changed research publishing. Nature, v.588, p.553, 16 December 2020. Doi: https://doi.org/10.1038/d41586-020-03564-y
» https://doi.org/10.1038/d41586-020-03564-y - RIBEIRO, K. B. Social inequalities and Covid-19 mortality in the city of S. Paulo, Brazil. International Journal of Epidemiology, p.1-11, 2021.
Notas
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1
Texto adaptado e ampliado do artigo: “Universities as reliable sources for public policy proposals”, escrito pelos autores para o XIIIth Glion Colloquium, realizado em Glion, Suíça, de 16 a 20 de junho de 2021 e publicado nos anais do evento.
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2
As cifras variam de acordo com os termos de pesquisa, com a cobertura do banco de dados e abrangência de definições sobre o que é considerado um artigo científico.
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3
Dimensions Database. Disponível em: <https://reports.dimensions.ai/covid-19/>.
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4
Dimensions Database. Coronavirus Preprints Report.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
18 Fev 2022 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2022
Histórico
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Recebido
20 Nov 2021 -
Aceito
23 Dez 2021