RESUMO
Tendo como norte a psicanálise winnicottiana, o objetivo deste estudo teórico é refletir sobre o processo de adoecimento psíquico no conto “A imitação da rosa”, de Clarice Lispector. Laura, após um período de internação psiquiátrica, vivencia uma integração frágil, necessitando que elementos e figuras externas forneçam a ela o senso de unidade e identidade. Nota-se, a todo o momento, a tentativa de a personagem controlar seus comportamentos e pensamentos, demonstrando que estava bem e não mais adoeceria. O conto, desse modo, permite-nos refletir que o adoecimento psíquico continua costurando as relações da personagem mesmo após a finalização do seu período de internação, na tentativa de exercer um controle que, de partida, já revelava o seu colapso emocional.
PALAVRAS-CHAVE: Psicanálise; Saúde mental; Sofrimento psíquico; Clarice Lispector
ABSTRACT
Guided by Winnicott’s psychoanalysis, the aim of this study is to reflect on the process of psychic illness in the “The Imitation of the Rose”, a short story by Clarice Lispector. Laura, after a period of psychiatric hospitalization, experiences a fragile integration, requiring external elements and figures to provide her with a sense of unity and identity. It is noticed, at all times, the character’s attempt to control her behavior and thoughts, demonstrating that she was fine and would no longer get sick. This story, therefore, allows us to reflect that her psychic illness continues to tailor the character’s relationships even after her period of hospitalization, in an attempt to exert control that, from the start, already revealed her emotional breakdown.
KEYWORDS: Psychoanalysis; Mental health; Psychological suffering; Clarice Lispector
Introdução
O adoecimento psíquico é uma temática ampla e complexa, sendo discutido a partir de diferentes saberes, entre eles os da ciência psicológica. Compreendendo a necessidade de que esses saberes também dialoguem entre si, Leite (1987), em sua célebre obra Psicologia e literatura, recomenda que ambas as áreas devam se colocar a serviço de uma interpretação porosa, em resposta à tentativa de a Psicologia, muitas vezes, querer lançar-se como uma ciência que pode interpretar a literatura segundo seus próprios crivos, alocando- se como um conhecimento de mundo superior no qual a literatura só figuraria como objeto. Recomendação semelhante também é feita por Meneses (2004) ao refletir sobre o diálogo entre literatura e psicanálise.
Tendo como premissa essa consideração, os diálogos entre essas áreas têm oportunizado uma discussão fortuita sobre o adoecimento psíquico, o seu papel, bem como os estigmas construídos em sociedade e como cada período propõe novas e potentes inteligibilidades para uma compreensão mais fiel aos desafios da saúde mental. Nesse processo, Psicologia e Literatura apresentam-se como dimensões que, integradas, podem fornecer pistas importantes sobre como cada sociedade se coloca diante dessa temática, ampliando a possibilidade de uma atuação em saúde mental que se beneficie dessas discussões, recusando, novamente, o lugar de objeto (Junqueira; Scorsolini-Comin, 2021a; Santos; Santos; Silva, 2018; Scorsolini-Comin; Santos, 2010). Na perspectiva da literatura, essa pode se apresentar, como defendido por Candido (1995), como um convite à humanização justamente por permitir a reflexão, o exercício da crítica e o contato do humano com a sua essência, sendo a literatura, então, alçada à condição de direito incompressível.
No ano 2020 foi comemorado o centenário de nascimento de Clarice Lispector, atualmente a autora brasileira mais conhecida e traduzida no exterior. A obra de Clarice, ao longo do tempo, tem se consolidado como um fenômeno importante no domínio da literatura brasileira, mas também permitido a construção de diálogos importantes com a Psicologia e, dentro dessa, com a psicanálise (Meneses, 2004; Pojar; Scorsolini-Comin, 2020; Rosenbaum, 1999; Sanches, 2019; Scorsolini-Comin, 2020).
Clarice foi uma autora que marcou época na literatura brasileira. Para além dos elementos literários da construção de sua obra, a figura de Clarice sempre despertou o interesse do público e da crítica. Discussões importantes sobre o modo como a sua escrita foi costurada às experiências pessoais foram exploradas por seus biógrafos, como Montero (1999), Gotlib (2009) e Moser (2017), embora a própria Clarice, segundo eles, recusasse veementemente interpretações automatizadas ou que reduzissem as suas narrativas a retratos de vivências particulares. Obviamente que a tentativa de interpretar a obra a partir da vida da autora, exclusivamente, não apenas promove um esvaziamento em termos analíticos, como desconsidera a complexa construção literária de Clarice, reconhecidamente original e renovadora desde o lançamento de seu romance de estreia, Perto do coração selvagem, no ano 1943.
Embora a temática do adoecimento psíquico esteja presente em sua biografia a partir da esquizofrenia de um dos seus filhos, por exemplo, e em diversos de seus escritos, ainda que não de modo explícito, o conto “A imitação da rosa” tem sido um de seus textos mais emblemáticos sobre o assunto. Esse conto narra a história de Laura, que retorna ao seu lar depois de um período internada em um hospital psiquiátrico. Contudo, no decorrer do texto, em momento algum isso é dito abertamente, mas sempre com uma sutil alusão a tal fato - um retiro, uma internação, um afastamento do lar e da sua família para tratar-se. Podemos dizer, nesse sentido, que o conto retrata a vida de uma mulher que passara por algum tipo de tratamento no campo da saúde mental, tratamento este que deixara marcas importantes em sua vida atual. Essas marcas são sugeridas não apenas pelo modo como ela narra ou faz menção ao seu passado, mas também pelo modo como o marido fala desse período pregresso.
Sobre o conto encontramos outras análises na literatura científica, especialmente no tocante a um viés social que recai sobre a personagem, as questões de gênero, o papel da mulher, a conjugalidade e a maternidade, como em Freire (2020) e Ataíde (2020). Há também o estudo de Silva (2017) que aborda a “loucura” de Laura como fuga das imposições sociais colocadas sobre ela, tal qual um aprisionamento e sua libertação na forma de adoecimento mental. Esse conto tem sido revisitado na contemporaneidade, sobretudo a partir de uma discussão mais direta sobre o adoecimento psíquico e sobre o estigma associado aos transtornos mentais.
Caetano Veloso foi um dos grandes entusiastas do conto. Segundo Moser (2017), em um texto de Caetano publicado originalmente no Jornal do Brasil em 1992 intitulado “Clarice segundo suas paixões”, destaca que o conto “A imitação da rosa” refere-se à “indizível luminosidade da loucura”, em uma acepção ao modo como o adoecimento psíquico é retratado, sendo tal expressão tomada de empréstimo para o título do presente ensaio.
Cabe destacar que o que irá ser entendido neste estudo por “loucura” e os elementos que a envolvem, bem como a tentativa de explicação do que levou a personagem a apresentar um adoecimento mental, referem-se a uma visão psicanalítica winnicottiana. Tradicionalmente o saber psicanalítico tem sido associado a uma densa literatura construída no campo da saúde mental para pensar o tratamento de pessoas em sofrimento psíquico.
Segundo Pires (2010), em Winnicott pode-se entender que o ser humano não partiria de uma organização inicial preestabelecida, mas, pelo contrário, o desenvolvimento precisa ser conquistado em uma não integração, que precisaria de ajuda para se organizar e se personificar. Para alcançar tais condições é preciso que existam ações muito concretas nas primeiras relações, sendo que tais atitudes têm implicações mentais importantes para o sujeito (Winnicott, 1945). Para Pires (2010), as experiências corpóreas abrem caminho para que as primeiras expressões de subjetividade possam vir à tona, sendo representações da criatividade e da vida mental.
Tendo como norte teórico o referencial winnicottiano, o objetivo deste estudo é refletir sobre o processo de adoecimento psíquico no conto “A imitação da rosa”, presente na coletânea Laços de família, originalmente publicada em 1960. Segundo Moser (2017), o livro Laços de família consolidou a reputação de Clarice no Brasil, tornando-a mais próxima do público, uma vez que seu romance de estreia, Perto do coração selvagem, havia sido recebido com entusiasmo pela crítica especializada, mas ainda era pouco conhecido pelos leitores. Laços de família foi considerado pela crítica um livro mais inteligível que os seus antecessores, como O lustre e A cidade sitiada.
Pelo sucesso de vendas, Laços de família foi o primeiro dos livros produzidos pela autora a possuir uma segunda edição. A primeira edição vendeu cerca de dois mil exemplares, rapidamente esgotados. O livro traz 13 contos que têm como temática/cenário em comum a família. As tramas acontecem em meio a reuniões familiares, dramas existentes no interior da família, ou mesmo que possuem a família como receptáculo dessas inquietações e conflitos.
Em especial, neste estudo, destaca-se o conto “A imitação da rosa”, que retrata, de modo expressivo, a questão do adoecimento psíquico. Essa seleção não partiu de uma referência explícita a possíveis diagnósticos ou psicopatologias neste conto, aspecto este que não é afirmado por Clarice - embora sejam feitas sugestões, como será posteriormente analisado -, mas processos de adoecimento vivenciados, tendo como ressonância o sofrimento em diversas esferas da vida, bem como aspectos como o estigma associado às pessoas em tratamento psiquiátrico e outros marcadores.
A imitação do conto
A história inicia com Laura arrumando-se para quando Armando, seu marido, voltasse do trabalho. Iriam visitar o casal de amigos Carlota e João. Laura contava com a ajuda de seus amigos no processo de retomada “à vida normal”, como se houvesse um esquecimento geral sobre o que havia se passado. Há, portanto, uma névoa protetora sobre o seu passado, como se as pessoas devessem se relacionar com ela a despeito do que havia ocorrido. Essa série de preocupações sobre o seu passado pode indicar que o seu período de tratamento ou mesmo de internação tenha sido conturbado, significativo ou traumático. Há, pois, uma certa necessidade de esquecer ou de relevar o passado de Laura e o seu adoecimento.
Diante do espelho Laura busca se reconhecer e nota que seu rosto possuía uma graça doméstica. Tinha pele morena, olhos castanhos, cabelos marrons e, lá no fundo, quase escondidas, suas mazelas. Laura tinha gosto pelo método e isso a fazia desde sempre ficar atenta aos detalhes, planejando e organizando para que no momento necessário tudo estivesse pronto. Enquanto esperava o marido chegar estaria de banho tomado, com seu vestido marrom de gola de renda creme. Laura era cuidadosa e lenta.
Devido ao que tivera acontecido - e que não é revelado ao leitor, apenas sugerido -, Laura tinha alguns “rituais” que seguia como recomendações médicas. Ainda que não fizessem sentido para si, por exemplo, deveria sempre, entre as refeições, tomar um copo de leite para que não ficasse de estômago vazio. Cumpria copiosamente as recomendações, ainda que não estivesse ansiosa, por exemplo. Mas sentia que nas recomendações do médico havia contradições, como a sugestão de que ela não ficasse preocupada ou ansiosa para se lembrar das recomendações, agindo com naturalidade. No entanto, cumpria sem questionar:
O embaraçante é que o médico parecia contradizer-se quando, ao mesmo tempo que recomendava uma ordem precisa que ele queria seguir com o zelo de uma convertida, dissera também: “Abandone-se, tente tudo suavemente, não se esforce por conseguir - esqueça completamente o que aconteceu e tudo voltará com naturalidade”. E lhe dera uma palmada nas costas, o que a lisonjeara e a fizera corar de prazer. Mas na sua humilde opinião uma ordem parecia anular a outra, como se lhe pedissem para comer farinha e assobiar ao mesmo tempo. (Lispector, 2009, p.36)
Enquanto esperava Armando, sentou-se no sofá e olhava a sua própria casa, recentemente recuperada, arrumada e fria, com um ar impessoal. A impessoalidade com que Laura descreve a sua casa revela a tentativa de não despertar sobre o outro qualquer olhar de julgamento ou de maior excentricidade, buscando não atrair para si qualquer tipo de atenção. Depreende-se que o processo de adoecimento teria colocado Laura em evidência, de modo que em seu tratamento ela passaria justamente a buscar a impessoalidade, tentando se esconder em gestos controlados, em roupas recatadas e em expressões que não revelassem ao seu interlocutor o seu estado interno de descontrole, de desintegração. Assim, Laura sentia que “seu lar era a sua imagem e semelhança” (Lispector, 2009, p.37), sem levantar suspeitas. Olhava a sua casa e ficava satisfeita em estar de volta e retomar sua rotina, podendo reconhecer a sua utilidade ao passar as camisas de Armando e arrumar as gavetas, chegando até mesmo a desarrumá-las para arrumá-las de novo e não sentir qualquer vazio.
O conto narra o dia em que ela e o marido iam jantar na casa de Carlota - o primeiro desde o seu retorno. Por ser o primeiro evento fora de casa não queria chegar atrasada, tudo deveria estar perfeito. Laura pensa que tem que deixar tudo arrumado antes de ir e deveria estar pronta em seu vestido marrom com gola de renda creme que lhe dava um tom infantil. Estava de volta à paz noturna na Tijuca e não mais naquele lugar (possivelmente uma clínica, um hospital), cegada pela luz e à mercê das enfermeiras.
Um elemento estético que pode ser analisado no conto é o jogo de luz e sombra produzido por certas imagens, aspecto esse analisado de modo pioneiro pela professora e crítica literária Regina Pontieri (1994). Esse jogo seria produzido por meio das imagens de contraste presentes no conto. O espaço do hospital/clínica é descrito em sua luz, o espaço da noite, em sua escuridão. A casa não é descrita como um espaço iluminado, mas com baixa luminosidade. A mesma luz que promove a redenção quando relata a leitura de A imitação de Cristo durante a catequese na adolescência também promove o desconforto, o contato que cega, a sensação de estar pecando, de perder-se. Decorre disso a imagem de que seria impossível imitar Cristo em sua luminosidade. Essa luz também emerge na imagem do planeta Marte, alçado à condição de perfeição e também com seu significante de refúgio da loucura. No conto, portanto, a luminosidade aparece como uma dimensão a ser temida: a loucura é a luminosidade e é na sombra que ela poderia transitar com mais tranquilidade e sem alarde. Assim, a oposição entre sanidade e loucura torna-se imageticamente guiada pelo contraste de sombra e de luz.
Enquanto pensava tais coisas, olhou a sua sala, com as cortinas curtas da última lavagem, mas tudo arrumado, sem poeira e limpo pelas suas próprias mãos. Linda como uma sala de espera impessoal, com um jarro de flores. Este chamou sua atenção. Pensou como elas eram lindas, pequenas rosas silvestres, que ela comprara pela manhã na feira pela insistência do vendedor e por sua ousadia. Laura nunca havia visto rosas tão bonitas. Olhava as rosas com atenção, mas sentia que deveria interromper essa admiração, embora as achasse tão lindas. Pareciam até artificiais de tão lindas. Ficava até mesmo um pouco constrangida e perturbada com tamanha beleza, aquela beleza a incomodava. Aqui a imagem de luminosidade reaparece como algo que deve ser admirado, mas temido: seria a luz das rosas algo que a atraía para a contemplação do belo, do esplendor, da loucura?
Ouviu a empregada preparando-se para sair, então teve a ideia de pedir para que ela levasse, como um presente seu, as lindas rosas para Carlota. Imaginou a cena em sua mente, o diálogo entre ela e Carlota, e os agradecimentos pelo lindo presente surpreenderiam a todos e ela mostrar-se-ia sã, gentil e educada. Ela, então, ficaria livre daquelas rosas que a incomodavam. Mas Laura temia causar espanto nas pessoas, ainda mais depois de tudo que aconteceu - por isso a tentativa de se controlar, de ser impessoal, de não ser considerada excêntrica, de não atrair a atenção dos outros para si.
De súbito, chamou Maria, a empregada, e pediu para que deixasse as rosas na casa de Carlota a seu mando. Queria fazer um lindo arranjo para o presente, mas ouvia algo dentro de si dizendo para que ela não desse as rosas, já que eram tão lindas. Pensou: as rosas são suas e nada nunca era dela. Então se questionava se deveria ficar com aquelas rosas. Mas Laura tinha gravado em si que coisas bonitas eram para se dar e receber, “não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se ‘ser’” (Lispector, 2009, p.47).
Uma luta em seu interior acontecia, tentava persuadir-se a ficar com as rosas, ao mesmo tempo que considerava o incômodo causado por elas e como seu gesto seria recebido. Tentou isentar-se da responsabilidade pelas rosas, pensando que o vendedor insistiu para que ela as levasse, seria mais fácil assim livrar-se delas? Mas tais pensamentos eram em vão. Pensava apenas que já havia falado com Maria e não teria como voltar atrás. Poderia tentar dizer que as levaria à noite e depois mudar de ideia. No entanto, a empregada questiona Laura se as rosas estavam prontas para serem levadas. A patroa, surpreendida, responde que estavam e, aos poucos, vê as rosas de afastarem. Quando se dá conta, já não estavam mais ali.
Laura refletia que as rosas eram lindas e eram suas, a primeira coisa linda que era verdadeiramente sua. Mas já não estavam mais consigo. Pensou em alcançar Maria, mas agora ela já estava longe demais e não seria possível ter novamente aquelas rosas. Sentou-se no sofá e questionava onde estavam as suas rosas, elas faziam falta a ela, sentia uma grande ausência dentro de si.
Via que já era hora de arrumar-se para esperar Armando, mas não conseguia parar de pensar nas rosas. Pensava em como se arrumaria, mas a insatisfação já estava ali, passou a tarde e chegou a noite. Aqui a perda progressiva da luminosidade - do dia para a noite - parece trazer a protagonista para a realidade: o marido, o casamento, o compromisso com o casal de amigos, a necessidade de parecer estar “bem” para os outros. O recurso retórico das aspas empregado por Clarice diante do advérbio “bem” já aponta, desde o início do conto, para a fragilidade entre a loucura e a sanidade, em um continuum entre o desejo e o controle de si.
Ouviu Armando chegando da rua. Podiam não falar verbalmente sobre o que havia acontecido no passado, mas havia uma linguagem não verbal que era perfeitamente compreensível para ambos, onde medo e confiança se comunicavam, até que o silêncio foi rompido quando ela disse: “- Voltou, Armando. Voltou” (Lispector, 2009, p.51-2). Armando questiona o que havia voltado (seria o adoecimento?), mas já começara a entender. Laura ainda tentou dizer que não conseguira impedir, mas havia voltado, quase como se o pedisse perdão. Armando a olhava, sem uma palavra a dizer, via apenas sua mulher sentada no sofá cada vez mais distante de si.
O sofrimento e a angústia da personagem Laura são evidenciados durante toda a narrativa, seja especialmente pelo medo do mal que antes a acometera (possivelmente um primeiro episódio psicótico) ou por outros dramas relacionados à sua imagem pessoal, além da sua infertilidade. As repetições operadas por Clarice formam um recurso literário que indicia ao leitor não apenas o “gosto” que a protagonista tinha pela repetição desde a infância, mas uma tentativa prosseguida de controle, de integração, de recusa à luminosidade do desejo e da loucura que a fizeram, no passado, adoecer, como discutido a seguir.
A loucura e o indizível
De saída deve-se considerar que Winnicott (1963/1983) propõe uma mudança de paradigma na visão de desenvolvimento emocional que circulava no meio psicanalítico de sua época, saindo da organização em fases psicossexuais (oral, anal, fálica e genital), como exposto inicialmente por Freud, para um olhar de dependência à independência. Segundo Winnicott (1963/1983), o desenvolvimento inicial de uma pessoa pode ser dividido em três categorias: a dependência absoluta, a dependência relativa e rumo à independência e, dentro desses estágios, há processos psíquicos importantes que devem acontecer em um desenvolvimento saudável. Embora devamos considerar os aspectos herdados, há aqui um forte papel do ambiente, que deve permitir à pessoa desenvolver e atingir o seu potencial. Para tanto, um importante processo psíquico deve acontecer, o de integração. Essa integração se dá desde o nascimento, por meio dos cuidados da mãe (Winnicott, 1945/2000).
Laura demonstra ser uma pessoa com uma frágil integração e personalização, o que pode nos sugerir, a partir de uma leitura winnicottiana, a existência de alguma falha pregressa que prejudicou o seu desenvolvimento e todo o potencial que ela poderia desenvolver. Embora não tenhamos acesso a essa pré-história da personagem, a partir de uma leitura winnicottiana devemos recuperar que quando não se atinge essa integração a criança pode sentir uma ansiedade inimaginável, manifestando dificuldades severas no seu senso de continuidade existencial e de formação da própria personalidade.
Winnicott (1962/1983) acrescenta que os resultados oriundos das falhas acontecidas durante a integração podem favorecer o surgimento de elementos esquizoides na personalidade, podem permanecer ocultos em uma “personalidade normal”, ou adaptados à cultura, dentro de um “gradiente de normalidade”. No entanto, cabe destacar que, não raro, a pessoa carrega sensações de desorganização e fragilidade muito intensos.
Laura casou-se com Armando e, quando jovem, frequentou o colégio religioso Sacré Coeur. Contudo, no próprio tempo do Sacré Coeur, já apresentava “sintomas”, ou padrões de comportamento que denunciavam algo estranho consigo, como ver-se repetitiva “amolando” as pessoas, a rigidez mostrada no seu gosto minucioso pelo método e dificuldades de aprendizagem, considerando-se “burra” (Lispector, 2009).
Outro ponto a se destacar sobre a frágil integração e personalização, no entanto, não sendo, neste caso específico, o foco principal, é que quando o ego fica frágil e se vê extremamente ameaçado pode desenvolver um falso self (Junqueira; Scorsolini-Comin, 2021b). O falso self se trata justamente de uma organização mais ou menos bem-sucedida para proteger o self verdadeiro (Winnicott, 1962/1983). É visto que Laura esforçava-se para acreditar que estava “bem” e inclusive contava com a “colaboração” de pessoas próximas para demonstrar que isto era, de fato, real. Aqui é oportuno notar que o aspeamento do advérbio “bem” pela autora funciona como um marcador linguístico do embate entre o verdadeiro self e o falso self. Este embate, na protagonista, é descrito com ambivalência, ansiedade e sofrimento.
De fato, Laura não está bem, possivelmente estando ainda em seguimento e acompanhamento médico. Mas o seu esforço por parecer normal ou demonstrar ações que sejam consideradas normais e aceitáveis socialmente acaba mesmo expressando-se de modo fragmentado, sugerindo uma proteção ao seu self verdadeiro, a quem ela realmente é. Mas Laura não pode ser, pelo contrário - deve seguir prescrições e ser como os demais esperam que ela seja - o marido, a amiga, a empregada, as demais pessoas que circundam as suas relações. A visão desse verdadeiro self parece ser descrita na luminosidade que cega, na beleza que inebria, no desejo que pode ser desmedido. Assim, o verdadeiro self emerge como algo que pode ser ameaçador para Laura (pode cegar, pode desintegrar, pode enlouquecer), o que a faz expressar um falso self, este sim controlado, submisso, sem desejo, refém do julgamento social, apartado de beleza. Aqui novamente a cisão se reflete no jogo de luz e sombra produzido por Clarice.
Segundo Winnicott (1962/1983) é possível considerar que as falhas ambientais muito precoces podem ainda distorcer a organização do ego, sendo o seu extremo a psicose. Para Winnicott (1959/1983) é possível considerar a utilização dos termos neurose e psicose. Contudo, é preciso cautela diante de classificações psiquiátricas, haja vista que, em psicanálise, fala-se em funções mentais, diferente de estruturas estáticas com as quais a psiquiatria tradicional trabalha. Nessa perspectiva psicanalítica, têm-se acesso a diferentes camadas da história pessoal do sujeito, compreendendo-se os momentos em que houve falhas dos diferentes estágios de seu desenvolvimento saudável.
Winnicott (1963/1994; 1959/1983) destaca que algumas pessoas sentem medo de um colapso nervoso. Pode-se pensar que quando existe esse temor o colapso já existiu e o que se observam como sintomas são as defesas utilizadas para lidar com a devastação que já aconteceu. É possível entender “colapso” como a angústia impensável vivenciada diante da sensação de ameaças precoces na vida do lactante, no período em que não tinha aparato mental para sequer entender o que sentia. Portanto, pode-se considerar que o temor de colapsar está ligado à ameaça de haver uma desintegração, ou despersonificação do eu, haja vista que isto ataca diretamente o senso de existência e de personalidade do sujeito. No entanto, o colapso já existente deixa reminiscências que podem vir à tona (Winnicott, 1963/1994; 1959/1983).
Laura, em seu esforço para sentir que estava “bem”, sentia e evitava pensar que poderia novamente colapsar, apesar da sensação iminente. Procurava acreditar que estava bem para não sentir aquela falta de fadiga, aquele vazio, a incapacidade de dormir. Isso nunca mais voltaria, não voltaria àqueles dias das enfermarias, afinal, fora apenas uma fraqueza. Aqui podemos pensar em uma personagem já em colapso, buscando lidar com os efeitos desse evento psíquico pelo mascaramento do que poderia evidenciar essa desintegração: por isso era importante manter a rotina, os costumes, os recatos - sem quaisquer aberturas para os seus desejos. Por isso mesmo Laura ancorava-se em um casamento tradicional, com um cônjuge tradicional, na tentativa de não se perder - como poderia ocorrer com quem tentasse imitar Cristo e a sua luminosidade.
Como dito, portanto, segundo Winnicott (1959/1983, p.124), “as deficiências ambientais que produzem psicose fazem parte do estágio anterior àquele que o indivíduo em desenvolvimento tem a capacidade de estar perceptivo”, ou seja, em estágios muito iniciais onde não há ainda uma mínima estruturação enquanto pessoa. Quando acontecem muito precocemente, estas deficiências ambientais deixam marcas no desenvolvimento, levando a dificuldades no estabelecimento do self do sujeito. Segundo Winnicott (1959/1983), o desenvolvimento de uma psicose é ao mesmo tempo resultante de uma impossibilidade de maturação do sujeito na infância e a representação de que as defesas do ego falharam, sendo preciso a utilização de defesas cada vez mais arcaicas, tais como negação da realidade, alucinação, delírio, mania ou depressão (Winnicott, 1963/1994).
Observa-se, ainda, que Laura seguia com esmero as recomendações médicas, ainda que essas não fizessem sentido para si, ao contrário, a deixavam mais confusa e angustiada. Seguir as recomendações era uma forma de esquecer o que havia acontecido e crer que tudo voltaria naturalmente a ser como era antes. Processo semelhante se dava com seus “rituais” para acalmar-se, como ocupar-se de coisas que a deixassem cansada, arrumar a sua casa de modo impessoal, passar as camisas de Armando e arrumar as gavetas (Lispector, 2009).
Observa-se, portanto, que Laura vinha tentando reorganizar suas defesas para lidar com o colapso acontecido e para que o mesmo não acontecesse novamente. Nessa busca por não entrar em colapso e repetir o itinerário parece estar, novamente, na iminência desse colapso. Tudo acontecia como o planejado, até o momento em que viu o jarro de flores sobre a mesa e esta visão a deixou confusa, angustiada, ansiosa e com medo de não poder se controlar. Como destaca Winnicott (1959/1983), durante a organização das defesas o sujeito é afetado por todo tipo de fator ambiental e permanece em um estado de desorganização, ou caos. Como descreve Lispector (2009, p.42-3):
[...] como era rica a vida comum, ela que enfim voltara da extravagância. Até um jarro de flores. Olhou-o.
- Ah como são lindas, exclamou seu coração de repente um pouco infantil. Eram miúdas rosas silvestres que ela comprara de manhã na feira, em parte porque o homem insistiria tanto, em partes por ousadia. Arrumara-as no jarro de manhã mesmo, enquanto tomava o sagrado copo de leite das dez horas.
Mas à luz desta sala as rosas estavam em toda a sua completa e tranquila beleza.
Nunca vi rosas tão bonitas, pensou com curiosidade. E como se não tivesse acabado de pensar exatamente isso, vagamente consciente de que acabara de pensar exatamente isso e passando rápida por cima do embaraço em se reconhecer um pouco cacete, pensou numa etapa mais nova de surpresa: “sinceramente, nunca vi rosas tão bonitas”. Olhou-as com atenção. Mas a atenção não podia se manter muito tempo como simples atenção, transformava-se logo em suave prazer, e ela não conseguia mais analisar as rosas, era obrigada a interromper-se com a mesma exclamação de curiosidade submissa: como são lindas.
[...] parecem até artificiais! [...] como são lindas, pensou Laura surpreendida
Mas, sem saber por quê, estava um pouco constrangida, um pouco perturbada. Oh. Nada demais, apenas acontecia que sua beleza extrema incomodava.
Há dois pontos importantes a serem considerados nessa passagem do conto. Primeiro, deve-se considerar que há uma profunda identificação de Laura com as rosas - era como se essas rosas, de algum modo, trouxessem para Laura alguma mínima integração. Winnicott (1945/2000) diz que a pessoa que vivencia uma integração frágil necessita que elementos e figuras externas forneçam o senso de unidade e identidade que não foi vivenciado quando era muito pequena e que não foi capaz de realizar sozinha. No entanto, um paradoxo parece acontecer: como há uma frágil integração, há confusões na visão que Laura tem de si - ao mesmo tempo em que se via “chatinha”, “burrinha”, desprovida de valor, em algum ponto, para si, via-se bela e luminosa como aquelas flores.
Aqui uma digressão em relação ao significante rosa pode ser importante, haja vista ser esse um elemento presente em outros textos e que remetem, fundamentalmente, a experiências infantis de Clarice, como no caso de Cem anos de perdão, em que a autora conta sobre a traquinagem infantil de roubar rosas e pitangas - sugerindo que todas as crianças que haviam roubado rosas fossem perdoadas. Em uma passagem de sua biografia, descreve que se fantasiou de rosa em um carnaval, em uma roupa improvisada por uma vizinha. No entanto, pelo fato de sua mãe ter adoecido, não pode ir para a festa, indo até a farmácia buscar remédios vestida de rosa (Montero, 1999). Essa passagem de sua infância, posteriormente, daria origem ao conto “Restos do carnaval”.
É possível notar um sutil, mas importante, movimento de Laura em direção à integração: apesar da insistência do vendedor da feira, a decisão por comprar as rosas foi um ato seu, ousado, mas seu e, principalmente, espontâneo e criativo. Ou seja, uma vivência muito íntima e particular de quem ela era e de aquisição de algo bom para si. As rosas representam esse algo bom e foram adquiridas para si.
E, mais ainda, pois, apesar do estranhamento a princípio, “teve uma ideia de certo modo muito original: por que não pedir a Maria para passar por Carlota e deixar-lhe as rosas de presente?” (Lispector, 2009, p.43). Isso, a princípio, vai ao encontro da sua “melhora”, pois, além de reconhecer em si algo de bom, ainda conseguiria oferecê-lo à sua amiga, de modo que apenas “mentes sãs” são capazes de oferecer “algo bom” a outrem. No entanto, sua frágil estrutura psíquica não conseguiu dar sustentação a esse pequeno ato de integração e perverteu grandemente tal fato, não podendo permanecer com o que era, de fato, bom.
Portanto, o incômodo por ter ideias tão conflitantes a seu respeito despertou em Laura um forte desejo de livrar-se daquelas rosas que eram ao mesmo tempo partes do seu “eu”, mas tão diferentes do que ela acreditava ser - ter aquelas rosas era um risco ou um incômodo. As rosas deixavam de ser “algo bom”, um presente para si, e passavam a ser algo perturbador, ameaçador da sua integração.
A ideia de presentear Carlota com as rosas transformou-se de um gesto espontâneo e criativo, em algo artificial, ainda que parecesse duplamente proveitoso, pois, ao mesmo tempo que amputava tal aspecto de si, via o ato de presentear a amiga como algo “refinado” e as pessoas veriam como ela estaria “bem” (Lispector, 2009). Esse refinamento correspondia ao que socialmente se esperava dela, ainda mais após o seu tratamento, podendo demonstrar, de fato, a sua recuperação e a sua volta à sociedade. Cabe salientar, no entanto, que, quando há uma necessidade do sujeito em demonstrar que “está bem”, já é a denúncia de que não está, é uma visão falseada a fim de afastar a realidade. Se retomarmos o medo do colapso descrito anteriormente, essa necessidade de controlar-se já pode denunciar, de fato, um processo de colapso por irromper.
Sobre isso, diz Winnicott (1945/2000), as falhas no processo de integração fazem com que a pessoa não possa vivenciar experiências por completo, por exemplo, causando dissociação entre ideias que são intoleráveis e não podem fazer parte da mente da pessoa. Isto também denuncia a existência de falhas nos mecanismos defensivos do sujeito que, exacerbadas, podem irromper em um colapso nervoso. Mas tudo o que Laura queria era demonstrar que estava bem e afastar a desconfiança das pessoas sobre o seu bem-estar.
É quando pede para que Maria, ao sair, deixe as rosas em seu nome para Carlota: livrar-se-ia delas e continuaria o seu dia. Todavia, Laura enfrenta um terrível conflito dentro de si, uma vez que se encanta com a beleza das rosas e com a sua profunda luminosidade. Mais do que encantamento, percebe as rosas como sendo parte de si; mas não se via na condição de ser bela como as flores ou de ser merecedora de receber tais atributos, como descreve Lispector (2009, p.46-7):
[...] olhou-as com incredulidade: eram lindas e eram suas. Se conseguisse pensar mais adiante, pensaria: suas como nada até agora tinha sido.
E mesmo podia ficar com elas pois já passara aquele primeiro desconforto que fizera com que vagamente ela tivesse evitado olhar demais as rosas.
Por que dá-las, então? Lindas e dá-las? Pois quando você descobre uma coisa boa, então você vai e dá? Pois eram suas, insinuava-se ela persuasiva sem encontrar outro argumento além do mesmo que, repetido, lhe parecia cada vez mais convincente e simples. [...]
E também porque uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E, sobretudo, nunca para se “ser”. Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita. A uma coisa bonita faltava o gesto de dar. Nunca se devia ficar com uma coisa bonita, assim, como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração.
Para Winnicott (1962/1983), o ego se baseia primeiramente em um ego corporal, pois é através do corpo que a criança entende quem é, seu formato, seu limite, um ser único e separado de outros e usa a descoberta de estímulos sensórios para entendimento do mundo. As falhas que acontecem durante o processo de personalização podem levar a pessoa a ter uma forte angústia de despersonalização, ou seja, perder a conexão entre o ego (mente) e suas funções e corpo. Diferentemente, havendo um estado de integração, pode-se haver uma relação com a realidade externa, por esta ser palpável e tolerável. Desse modo, o sujeito não fica à mercê de fantasias ou sensações internas, mas a realidade é usada para que a pessoa se organize e, muitas vezes, torna a realidade mais tolerável do que a extrema angústia vivenciada em fantasia (Winnicott, 1945/2000).
Em Laura, é possível observar como ela sentia que as rosas eram parte dela, e mais, uma parte estruturante de si, mas temia fortemente ver essa sua “parte” não se permitindo reconhecer-se com tais atributos. Tal visão deixava-a muito vulnerável, uma vez que sem nenhum tipo de recurso “positivo”, não há como ou por que defender-se, seja das ameaças externas ou internas. No entanto, mesmo com esse conflito, as flores eram parte de Laura, e quando ela diz que Maria poderia levá-las é como se algo fosse arrancado dela mesma violentamente. É como se uma mínima parte de algo que estruturava Laura fosse, naquele momento, arrancado dela.
Os elementos luminosos, na narrativa, parecem sempre ser externos à Laura: estão na rosa, no Cristo, em um habitante perfeito de Marte. Quando a protagonista anuncia que as rosas são suas, parte dela, observamos uma luminosidade que deixa de habitar o campo externo e pode, enfim, corporificar-se em Laura. Mas essa imagem, de tão perfeita, não é sustentada por Laura em seu processo de recuperação. Estar com as rosas é significado no conto como uma alusão à própria tentação: assim como não era possível imitar a perfeição de Cristo desde a infância, assim como não era possível ter desejos extravagantes, era também impossível imitar a beleza e a luminosidade das rosas. A luminosidade e a beleza podiam cegar.
É possível considerar, segundo Winnicott (1945/2000), que mesmo em pessoas com um ego mais integrado, esse nem sempre permanece dessa forma, e em alguma medida existe o temor da loucura e do perder-se de si mesmo. Laura, como tinha uma estruturação egoica frágil, sofria com a iminente possibilidade de desintegração. Como destaca Winnicott, a desintegração é aterrorizante pois o sujeito alcançou algum nível de desenvolvimento e organização do ego e pode ter a visão de que estaria perdendo tais recursos - é a cegueira descrita por Clarice diante da luz - das rosas e também do Cristo.
Laura, em processo de recuperação, de volta à sua casa e aos eventos sociais mais íntimos, tentava se reorganizar, controlando-se o tempo todo, vigiando suas ações, retomando as prescrições médicas, cuidando para voltar à sua vida de antes do adoecimento. Isso não significa, em absoluto, que as vivências anteriores ao seu adoecimento eram consideradas normais ou mesmo integradoras, mas sugeriam a ela uma possibilidade de vida normal, dentro de seus parâmetros de controle e de julgamento social.
Para Laura, isso fora demais, agora já era tarde e não tinha como sustentar a sua frágil estruturação. Após perder as rosas sentou-se no sofá para esperar Armando e passaram-se as horas. Quando Armando chega, descreve Lispector (2009, p.51-2):
A chave virou na fechadura [...]. Ela ia sorrir para que de novo ele soubesse que nunca mais haveria o perigo dele chegar tarde demais. Ia sorrir para ensinar-lhe docemente a confiar nela. Fora inútil recomendarem-lhes que nunca falassem no assunto: eles não falavam mas tinham arranjado uma linguagem de rosto onde medo e confiança se comunicavam, e pergunta e resposta telegrafavam mudas. Ela ia sorrir. Estava demorando um pouco porém, ia sorrir. Calma e suave, ela disse:
- voltou, armando. Voltou.
Salienta Winnicott (1962/1983; 1959/1983; 1945/2000) que o cerne de um colapso nervoso é o colapso das defesas que o sujeito usa contra a desintegração. Nesse ponto, vive-se um grande vazio de sentido e a perda da frágil estrutura faz que a pessoa perca a clareza sobre quem é e o que pode fazer, deixando-a à mercê de suas fantasias, voracidade e impulsos destrutivos, sucumbindo a um estado de “loucura”: “Como num trem. Que já partira” (Lispector, 2009, p.53).
A ambivalência de Laura é construída a partir da linguagem da autora que contrapõe luz e sombra, sanidade e doença, impulso e controle, imitação e autenticidade, perfeição e espontaneidade, como na metáfora de um trem em movimento, mas que, ao mesmo tempo, não se pode mais alcançar. Como explorado por Gotlib (2009): “As duas faces do real - a da perfeição e a da falta - aparecem também figurados em dois estados: o de doença e o de sanidade. [...] Laura experimenta a cisão entre duas tendências diversas: a de obedecer, conscientemente, às ordens do médico e a de se abandonar, vivendo naturalmente” (ibidem, p. 400-4). A cisão descrita por Gotlib, aqui, corporifica-se na tentativa constante de não recrudescer.
Para Winnicott (1963/1983), é possível considerar que estudar o desenvolvimento saudável do sujeito é valoroso à medida que isto também remete à saúde de uma sociedade, pois, segundo seu pensamento, um ambiente social doente não consegue proporcionar as bases para que o sujeito se desenvolva de maneira saudável, gerando um ciclo destrutivo. No entanto, vale frisar que, segundo o Winnicott (1959/1983), é impossível para quem trabalha com psicanálise agarrar-se à ideia de que existam doenças psiquiátricas definitivas, sejam elas do sujeito como da sociedade.
Isso nos permite a leitura de que Laura estaria em seu processo de integração, ora agarrando-se às suas defesas para não entrar em colapso, ora demonstrando-se cansada e frustrada por não ter conseguido sustentar as rosas - e a sua beleza, e a beleza de si mesma - diante de si. Em que pesem os estigmas construídos socialmente sobre o adoecimento mental, Laura mostra-se em um processo, com uma rede de apoio, com recursos ambientais que podem prover o que ela necessita, como não estar sozinha e poder ser amparada em seu processo de reconstrução, em sua retomada de uma vida considerada normal. Mas o estigma desse adoecimento permanece vivo, sendo permanentemente lembrado:
Era preciso tomar cuidado com o olhar de espanto dos outros. Era preciso nunca mais dar motivo para espanto, ainda mais com tudo ainda tão recente. E sobretudo poupar a todos o mínimo sofrimento da dúvida. E que não houvesse nunca mais necessidade de atenção dos outros - nunca mais essa coisa horrível de todos olharem-na mudos, e ela em frente a todos. Nada de impulsos. (Lispector, 2009, p.45)
Laura busca readquirir a confiança do marido, a confiança de que ela está bem e de que não mais irá adoecer. Não apenas é importante estar bem, mas parecer bem e ajustada diante dos outros. Assim, a impressão de aparentar estar bem parece ser mais importante do que, de fato, acessar o modo como Laura ainda sofre, sobretudo pela necessidade de corresponder a um estágio de integração que ela ainda não conquistou.
Considerações finais
Refletindo sobre o título do conto, “A imitação da rosa”, pode-se considerar que Laura busca justamente colocar-se à semelhança desse objeto externo - pela sua beleza, pela sua aceitação social, pelo desejo que evoca, pelo seu prestígio como marca de bom gosto e de refinamento, como certa perenidade. Laura ancora-se nessa imagem da rosa e, por um tempo, permite que essa semelhança seja explorada, permite-se identificar com as rosas e tudo o que elas representam. Mas esse lugar de semelhança, de proximidade e mesmo de identificação também passa a promover o medo e a ansiedade - como sustentar essa imagem? Como sustentar para si e, especialmente, para os outros - o esposo, Carlota, Maria - que essa era a nova Laura? Por isso essa imagem se esfacela, se perde, é abandonada - não sem culpa pela perda da rosa.
O título do conto ainda remete a um livro mencionado por Laura, A imitação de Cristo, que lera, sem entender, nos tempos de escola. Compreendera que ser ou imitar Cristo seria uma tarefa perigosa, pois “Cristo era a pior tentação” (Lispector, 2009, p.36). De modo similar, imitar a rosa também parecia arriscado, por isso era melhor não vê-la mais, afastar-se dela. Tanto Cristo quanto as rosas traziam uma imagem de perfeição, sendo que a busca pela perfeição fora o que provocara o seu adoecimento: “Não mais aquela perfeição, não mais aquela juventude. Não mais aquela coisa que um dia se alastrara clara, como um câncer, a sua alma” (Lispector, 2009, p.39). Assim, era preciso, em seu processo de reabilitação, recusar-se à busca por essa perfeição.
“A imitação da rosa”, nesse sentido, traz a imagem de uma mulher em busca de integração, de acolhimento e de possibilidade de fruição do que ela é, do que ela representa, do que gosta, do que deseja, do caminho que quer para si. Essas possibilidades, de alguma forma, lhe são negadas pela necessidade de corresponder ao que era antes do adoecimento ou ao que desejavam que ela fosse.
Na tentativa de corresponder, Laura busca a imitação como recurso e o abandona tão logo surgem - ou ressurgem - os primeiros medos. O copo de leite, recomendação médica, por exemplo, torna-se, então, um objeto externo ao qual ela pode se agarrar sem maiores questionamentos. O horário em que o marido chega. As constâncias em seu cotidiano, as repetições rotineiras com que Clarice parece descrever o retorno, a retomada, a conferência diária dos elementos, comportamentos e prescrições essenciais para não se perder, para não colapsar. As repetições e hipérboles são empregadas no conto para marcar a crescente desintegração de Laura, o seu iminente colapso.
Marcada pelos seus prováveis privilégios sociais - morar em um bairro de classe média, contar com uma funcionária e até mesmo ser casada com um marido que compreende e respeita o seu tratamento - são aspectos que protegem Laura de um colapso maior. Mas, ainda assim, funcionam como recursos externos - importantes, mas não suficientes.
Ao final deste ensaio é fundamental reforçar que a presente análise não exclui outros caminhos interpretativos e igualmente pertinentes. De modo similar, não se esgotam aqui o olhar psicanalítico para o conto nem o modo como o conto potencializa, a cada leitura, novos gestos interpretativos.
Um exemplo que pode ser mencionado é que, apesar de a presente análise não recuperar ou aprofundar o elemento erótico associado à rosa, como anunciado desde o início, é importante ponderar que o conto também permite a exploração de diversos aspectos da feminilidade e da sexualidade de Laura que ficaram latentes na presente leitura. Laura busca a todo momento não apenas controlar seus impulsos que poderiam sugerir um colapso, mas também os seus desejos. Deve ser recatada, usar um vestido que não valorize a sua beleza e que, inclusive, a revele um pouco infantil para o marido. Não deve ser excêntrica ou extravagante, mas limitar-se a ser impessoal, apartada de qualquer desejo, cumpridora do itinerário associado à boa esposa, devotada ao lar e ao marido. Escolarizada em colégio católico, seguia à risca o destino de ser uma mulher para o marido, para a família, para o lar. Por isso a tentação era tão perigosa, por isso a beleza haveria de ser ameaçadora.
A protagonista sentia que as rosas eram parte dela, mas, paradoxalmente, temia o reconhecimento desses atributos positivos. Nota-se, a todo o momento, a tentativa de a personagem controlar seus comportamentos e pensamentos, demonstrando que estava bem e evitando aventar que poderia novamente adoecer. O conto, desse modo, permite-nos refletir que o adoecimento psíquico continua costurando as relações da personagem mesmo após a finalização do seu período de internação, na tentativa de exercer um controle que, de partida, já revelava o seu colapso emocional.
É importante reconhecer que a leitura aqui apresentada explora aspectos relacionados ao itinerário individual da personagem. No entanto, essa leitura não deve estar apartada de elementos sociais que não puderam ser aqui problematizados de modo mais intenso - como o papel da mulher em nossa sociedade, a questão do casamento e o modo como o adoecimento psíquico, em nossa sociedade, ainda continua compondo um estigma que dificulta o processo de reintegração do sujeito. Apesar dessas limitações, que refletem escolhas no percurso analítico, a análise aqui empreendida pode ser potente para uma discussão em saúde mental que se mostra bastante atual, revelando que a porosidade entre psicanálise e literatura pode assumir contornos necessários à construção de um cuidado em saúde mental mais humanizado e que lance luz ao que, até então, era indizível.
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Nota
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2023
Histórico
-
Recebido
07 Dez 2021 -
Aceito
03 Fev 2022