RESUMO
A desigualdade de gênero (imbricada às desigualdades de classe e raça) configura-se como um problema social e histórico de graves consequências objetivas e subjetivas. Produz sofrimentos coletivamente compartilhados pelos grupos oprimidos. Este texto é uma reflexão sobre sofrimento e resistência, a partir das memórias e histórias de vida de mulheres que participam de movimentos sociais feministas. Buscamos apreender os sentidos e as transformações psicológicas que acompanham essa participação política, especialmente no contexto de um movimento social feminista, antirracista e anticapitalista: a Marcha Mundial das Mulheres. Partindo da trajetória biográfica de uma depoente, refletimos sobre aspectos psicossociais do silêncio e da fala como ligados a processos históricos de dominação e exploração, de resistência e enfrentamentos.
PALAVRAS-CHAVE:
Relações de gênero raça e classe; Enraizamento; Memória; Movimentos sociais feministas; Humilhação social
ABSTRACT
Gender inequality (imbricated with class and race inequalities) is a social and historical problem with serious objective and subjective consequences. It produces suffering collectively shared by oppressed groups. This text is a reflection on suffering and resistance, based on the memories and life stories of women who participate in feminist social movements. We seek to apprehend the meanings and psychological transformations that accompany this political participation, especially in the context of a feminist, anti-racist and anti-capitalist social movement: World March of Women. Starting from the biographical trajectory of a deponent, we reflect on psychosocial aspects of silence and speech as linked to historical processes of domination and exploitation, of resistance and confrontations.
KEYWORDS:
Gender; race and class relations; Rooting; Memory; Feminist Social movements; Social humiliation
Introdução: desvelando silêncios
Falar é antes de tudo deter o poder de falar [...]
Toda tomada de poder é também uma aquisição de palavra.
(Clastres, 2020CLASTRES, P. O dever da palavra. In: ___. A sociedade contra o Estado. São Paulo: Ubu, 2020., p.139)
A desigualdade de gênero é um problema social e histórico de graves consequências objetivas e subjetivas. Manifesta-se de diferentes formas: as mulheres já foram impedidas dos espaços públicos; dos direitos políticos; do livre acesso ao conhecimento e às artes; do trabalho em igualdade de condições e direitos; de relações familiares e amorosas igualitárias, livres de hierarquia ou de qualquer tipo de violência. Concebe-se que um aspecto psicossocial que historicamente ronda estes fenômenos em suas distintas manifestações é o silêncio, ou silenciamento.1 1 Ressalta-se a importância de perspectivas críticas em psicologia e ciência de modo geral, que desnaturalizem e historicizem as relações sociais (Bock, 2009).
Muitos avanços em todas essas esferas foram conquistados pela ação coletiva das mulheres. No entanto, ainda hoje pesquisas acadêmicas, estudos e ações de movimentos feministas têm mostrado que a dominação-exploração2 2 Termo empregado como em Saffioti (2015) que considera dominação política e exploração econômica como duas faces de um mesmo fenômeno. das mulheres segue compondo nossa realidade social, produzindo desigualdade, violências e silenciamentos nas mais diferentes esferas da vida e instituições:3 3 Pesquisas recentes apontam, inclusive, para novas modalidades de violência de gênero: as perseguições, exclusão e ameaças contra quem se posiciona em defesa das vítimas; intensificando pressões sociais pelo silenciamento (Puigvert et al., 2021). em casa, na escola, no trabalho, na política, no campo e na cidade.
A desigualdade de gênero, juntamente com o racismo e a desigualdade de classes (Saffioti, 2013SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes. São Paulo: Expressão Popular, 2013., 2015; Hirata 2014HIRATA, H. Gênero, classe e raça: interseccionalidade e consubstancialidade das relações sociais. Tempo Social, v.26, n.1, p.61-74, 2014.; Davis, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.) conjugam uma realidade em que somente alguns são tratados como sujeitos, têm sua humanidade reconhecida e suas vozes ouvidas. Ao passo que, aos outros, muitas vezes são interditados desde direitos sociais básicos a uma existência minimamente digna, até o direito ao reconhecimento e à palavra.
A partir de minha trajetória em Psicologia Social, busquei refletir sobre maneiras singulares como as mulheres são atingidas por sofrimentos psicossociais, e como os enfrentam. Aqui destacamos, especialmente, o impedimento à palavra como uma expressão de impedimento de si mesma, como silenciamento imposto pela dominação. Nesse sentido, o falar aparece como uma conquista, política e psicológica. Como resultado de um encontro profundo consigo mesma, e com outros/as, em comunidade de destino.
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As relações de dominação-exploração, embora tenham caráter político, estrutural, histórico e coletivo, são vivenciadas pessoalmente por cada um(a) de nós. Imprimem-se em nossas histórias singulares, deixam marcas psicológicas, compõem nossa subjetividade.4 4 A antropóloga Veena Das (2011) aponta, por exemplo, para formas como as normas patriarcais podem se inscrever sobre o corpo e as vozes das mulheres. Destaca-se a presença velada de uma pesada cortina de silêncio envolvendo a dominação masculina e eventos traumáticos de violência de gênero. E assim também é com nossa capacidade de resistência e enfrentamento. São capacidades que ganham força em grupo, se fazem na relação com o(a) outro(a). E então têm o poder de nos transformar individualmente, de maneira profunda.
Nesse sentido, busquei investigar as dimensões psicossociais ligadas à dominação-exploração de gênero sofrida por mulheres e, especialmente, os impactos psicossociais da participação política em movimentos sociais que se organizam na luta por sua superação. A Marcha Mundial das Mulheres (Marcha) ocupou um espaço de destaque nas memórias de depoentes que participam desse movimento social (Afonso, 2019AFONSO, M. L. Segura sua mão na minha, para que façamos juntas o que eu não posso fazer sozinha: memórias de mulheres que participam de movimento social feminista. São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.). A Marcha representou um lugar de política e pessoalidade. De luta e afeto. De construção de sonho e preservação de memória. De enraizamento e comunidade.
Da análise das memórias e histórias de vida dessas mulheres, emergiram categorias que sintetizam a dimensão pessoal dessa participação política. Neste artigo refletimos especificamente sobre uma delas, nomeada como: a conquista do falar.
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A pesquisa é de natureza qualitativa e contou com a realização de observação etnográfica e entrevistas semiestruturadas. Registramos histórias de vida das participantes por meio do trabalho da memória (Bosi, 2004BOSI, E. Tempo vivo da memória. Ensaios de Psicologia Social. São Paulo Ateliê Editorial, 2004.; 2012).
As entrevistas foram realizadas combinando-se perguntas exploratórias e livres relatos orais de história de vida, de modo a deixar as entrevistadas à vontade para explorarem as questões como desejassem, de maneira aberta e orientadas pela memória mais do que por mim. Foi construído um roteiro semiestruturado para colher as histórias de vida baseado em quatro eixos temáticos: Família; Escola e Universidade; Trabalho; Organização Política. Esses eixos foram estabelecidos pois são compreendidos como instituições estruturantes das vidas das participantes e contextos propícios a emergir tanto experiências e testemunhos de humilhação social e dominação-exploração de gênero, assim como de enfrentamento às mesmas. Foram realizadas quatro entrevistas com cada depoente.
Partilho da concepção de memória não como ato passivo, mas como ativa organizadora das lembranças: assim sendo, acredito ser importante respeitar os caminhos construídos pelos próprios sujeitos ao evocarem seu passado. Ainda seguindo as recomendações de Bosi (2004BOSI, E. Tempo vivo da memória. Ensaios de Psicologia Social. São Paulo Ateliê Editorial, 2004.), as entrevistas transcritas foram devolvidas às depoentes, caso quisessem realizar alterações ou acréscimos narrativos. Nenhuma delas desejou realizar qualquer alteração nos depoimentos. As entrevistas foram realizadas em locais de livre escolha das participantes, incluindo: espaços públicos da cidade, espaços de militância política, a casa delas e a minha casa.
Avalio que esse recurso metodológico, utilizado em um contexto de vínculo5 5 No caso desta pesquisa, propiciado por no mínimo um ano de trocas e convivência com cada uma das mulheres na observação participante. entre pesquisadora e depoentes, foi uma importante ferramenta para entrar em contato com experiências íntimas, relatos de violência e sofrimento - que historicamente acompanham as relações sociais de gênero, classe e raça - que com roteiros fechados, ou entrevistas mais curtas, possivelmente não emergissem na mesma profundidade. Uma particularidade desse método que pode traduzir-se em dificuldade de análise dos dados de pesquisa é o vasto conteúdo dos depoimentos, nas centenas de páginas de transcrição das entrevistas. Essa dificuldade foi atenuada pelo respaldo da orientação da pesquisa,6 6 Que devo à valiosa parceria do orientador da pesquisa, José Moura Gonçalves Filho. dos referenciais teórico-metodológicos, e do tempo disponível para aprofundamento e releituras de cada um dos depoimentos, garantido essencialmente pelo financiamento público à pesquisa.
Considero, ainda, que no âmbito de pesquisas em psicologia social - ou áreas afins -, que se interessam pelas relações sujeito-sociedade, individual-coletivo, subjetividade-estruturas sociais; este recurso permite um olhar aprofundado sobre essas relações sem perder de vista a singularidade do(a) sujeito(a) de pesquisa que partilha conosco suas experiências, sentimentos, elaborações. Nessa perspectiva, parece-me uma valiosa estratégia no sentido de evitar determinismos excessivamente sociologizantes ou individualizantes, concebendo uma relação dialética entre a pessoa e seu contexto sócio-histórico.
Neste artigo buscamos, a partir da história biográfica de uma depoente, refletir sobre articulações entre o singular e o coletivo. Acompanhamos os percursos de Helena, impedimentos que se impuseram sobre sua trajetória, as resistências alcançadas por ela, seus caminhos em direção ao encontro e apropriação de sua própria voz, e a potência desta voz colocada no mundo.
Helena Nogueira: vida e voz
A origem de sua força não era um poder místico vinculado à maternidade, e sim suas experiências concretas como escravas [...] trabalharam para sua família, protegendo-a, lutaram contra a escravidão e foram espancadas, estupradas, mas nunca subjugadas. Foram essas mulheres que transmitiram para suas descendentes do sexo feminino, nominalmente livres, um legado de trabalho duro, perseverança e autossuficiência, um legado de tenacidade, resistência e insistência na igualdade sexual - em resumo, um legado que explicita os parâmetros de uma nova condição da mulher.
(Davis, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p.41)
Quando fizemos as entrevistas, Helena tinha 64 anos. Nascida em Cravinhos (SP), é solteira, negra e de classe social definida por ela como classe pobre.7 7 Quanto à autora deste artigo, sou mulher, branca, trabalhadora e de classe média. Algumas dessas características - que definem lugares que ocupo no mundo e nas relações sociais de gênero, raça e classe - me aproximam de Helena, outras me distanciam. No que tange às distâncias (como quando falamos das relações raciais), o que apresento são reflexões e interpretações fruto da convivência, escuta e aprendizados que tive especialmente com ela e outras companheiras negras. São pontes possibilitadas pela parceria e generosidade dessas mulheres em compartilhar, ensinar e diminuir distâncias. Mas são, ainda, reflexões a partir de um lugar de alteridade e limitado. Para um melhor aprofundamento em assuntos ligados às relações raciais, recomenda-se a leitura de autoras e autores longamente comprometidos com a luta antirracista, como Gonçalves Filho (2017) e, sobretudo, autoras/es negras/os, como Angela Davis, bell hooks, Neusa Santos Souza, Marli Aguiar, entre tantos/as outros/as. Graduou-se em Jornalismo. Sem trabalho formal, alternava entre “bicos” para sobreviver.
Bisneta de escravos: ancestralidade e resgate de memória
Logo que conversamos sobre a proposta da pesquisa, Helena animou-se em compartilhar suas memórias para um registro escrito de sua história. Ela integrava um coletivo feminista: Conversa de negras - formado por mulheres negras de dentro e fora da Marcha -, que buscava recuperar histórias de vida daquelas mulheres e de seus ancestrais.
No início da primeira entrevista, antes que eu fizesse qualquer pergunta, ela contou, emocionada, que estava em processo de pesquisa sobre suas raízes e havia descoberto que seus avós foram dos primeiros negros a se casarem em sua cidade:
Fiquei emocionada! Nesse registro da igreja São José tem que meus avós foram um dos primeiros casamentos da paróquia. Porque os escravos, antigamente, não se casavam. Escravos não podiam casar, não tinham cidadania, né? Eram “seres”. E meus bisavós foram escravos, os quatro. Então meus avós, a Conceição Gonçalves de Souza e Agenor Gonçalves, foram um dos primeiros casamentos registrados na cidade [...] casaram 1º de janeiro, foi o ano novo, de 1916 e tem isso registrado. Eu fiquei muito emocionada de saber... Que eu nem sabia o nome dos meus bisavós! Sabia só de dois. Desses eu não sabia, e fui descobrindo os nomes deles. Através desse registro do casamento. Foi muito lindo.
Helena dedicou grande parte do tempo a falar sobre seus familiares. Parecia uma necessidade: dizer de onde vem, para poder falar dela própria. No trecho citado, o que logo notamos é uma mulher negra que procura os nomes dos parentes ascendentes próximos. Trata-se de uma pesquisa ligada à biografia pessoal, mas que já prepara para uma ligação entre biografia e história.
Acredito que a intensa emoção sentida por Helena ao descobrir aqueles nomes está ligada ao sentimento de que a relação com seus antepassados está interrompida por uma relação externa a eles. Essa interrupção remete diretamente às relações sociais de raça. Assim como a escravidão privou as negras e os negros escravizados do século XVI de futuro; um de seus efeitos, hoje, talvez seja a privação de passado.
Enquanto, para a maioria das pessoas brancas, o desconhecimento dos nomes dos bisavós provavelmente representaria no máximo uma dor leve - alguma culpa por associar-se a uma impressão de possível indiferença -, para Helena havia um significado muito mais profundo. Para a maioria das pessoas brancas, essa dor leve seria facilmente sanável: bastaria perguntar a familiares próximos e ter-se-ia acesso à resposta.
Acredito que, para Helena, tornou-se urgente saber os nomes porque essa descoberta não significa simplesmente preencher uma lacuna de informação. Significa vencer um golpe social e histórico de humilhação que implicou esgarçamento, ruptura das relações familiares, desenraizamento.
Valho-me da noção de desenraizamento de Simone Weil (1996WEIL, S. A condição operária e outros estudos sobre a opressão. São Paulo: Paz e Terra, 1996.), caracterizada pela interrupção em uma participação real ativa e natural em uma existência comunitária que compartilha memória e cultura. Pode ser causado por conquista militar, dominação econômica ou pela imposição de um modo de produção. Assim, a colonização europeia dos países latino-americanos e a escravização de países africanos impuseram o nível mais intensificado de desenraizamento (Weil, 1996). Ao se desenraizar, além de terem tido negada sua condição humana, as pessoas escravizadas tiveram suas memórias silenciadas, seu presente apropriado e um exercício do futuro impedido.
É relevante considerar que Helena, negra retinta, bisneta de escravos, estava absolutamente privada de um contato mais profundo com seu passado. Ela não tem conhecimento sobre a língua, a religião, a cultura, os costumes, ou até mesmo o país de origem de seus ancestrais. Frente a tantos impedimentos, descobrir os nomes dos bisavós pode parecer um gesto pequeno. Mas, justamente pela intensidade e a violência dessas interdições, é um gesto que se faz grande. Acredito que provoque tanta emoção porque não se trata só de uma vitória contra ignorância, mas contra o desenraizamento. Talvez signifique, em alguma medida, vencer a escravidão.
A infância na fazenda e os impedimentos da menina
Helena é a décima primeira de 15 filhos. Nasceu em casa e foi criada na fazenda em que a família trabalhava. Para a depoente, o passado escravocrata está muito próximo. Seus pais trabalhavam em regime de semiescravidão:
Meu pai era lavrador, semianalfabeto e minha mãe também. Família muito pobre, embora não passássemos fome. Meu pai tinha horta. As pessoas, por mais pobres que fossem, tinham as hortas [...] Naquele tempo, infelizmente, era uma semiescravidão. As pessoas trabalhavam, mas não tinha salário. No fim da colheita tinha um acerto: o patrão dava o que queria [...] Então nascia uma criança, alguém ficava doente e precisava comprar um remédio... Curava em casa, tinha as benzedeiras, tinha os chás, remédios caseiros, tudo era em casa! As crianças nasciam no interior, não fazia exame, nascia em casa com parteira. O umbigo era curado com um negócio chamado picumã [fuligem do fogão de lenha]. Criava-se assim na cozinha, na madeira da cozinha, o picumã. E curava o umbigo das crianças.
O trabalho dos pais era remédio contra a fome. A sabedoria popular das mulheres - parteiras e cozinheiras, mãe, tias e avós - era remédio contra a morte. A posição de Helena nas relações sociais de exploração-dominação a colocam, desde que nasceu, em uma situação de vida ameaçada de morte, de impedimento. São situações tênues de limite entre a vida e a morte: vida física, fome, e morte moral, raiz.
A morte física chega cedo, Helena perde o pai aos cinco anos de idade. Ela atribui sua morte precoce justamente às condições sociais em que ele vivia, que teriam agravado a condição de “sofrer do coração”. A depoente discorre sobre as mortes de diversos outros familiares que também faleceram jovens. Relaciona a maioria dessas mortes às condições de trabalho, para aquela classe de trabalhadores rurais. A interpretação que ela compartilha sobre as mortes precoces como fruto das precárias condições de trabalho e de vida, só pode ser dada por alguém que atingiu um determinado nível de consciência de si e de consciência de classe.
Consideramos a consciência de si como em Silvia Lane (2004aLANE, S. T. M. A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In: LANE, S. T. M.; CODO, W. (Org.) Psicologia social - o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2004a. p.10-19.; 2004b), necessariamente como consciência social. De modo que, uma pessoa se torna mais consciente ao perceber as contradições entre os discursos, as representações e as atividades empreendidas na produção da sua vida material. Uma consciência reificada - que naturalizasse fatos sociais - aceitaria, por exemplo, uma explicação de ordem estritamente biológica para a morte do pai: “morreu cedo porque tinha problemas no coração”.
O ganho de consciência crítica não é um processo pelo qual uma pessoa passa sozinha. É mediado pelas relações sociais que ela estabelece com o mundo e pelos grupos dos quais participa (Goldmann, 1972GOLDMANN, L. A criação cultural na sociedade moderna. São Paulo: Editorial Presença, 1972; Lane, 2004b_______. Consciência/alienação: a ideologia em nível individual. In: LANE, S. T. M.; CODO, W. (Org.) Psicologia social - o homem em movimento. São Paulo: Editora brasiliense, 2004b. p.40-7.; Iasi, 2011IASI, M. Ensaios sobre consciência e emancipação. São Paulo: Expressão Popular, 2011.). A atuação em movimentos sociais parece ter tido especial importância para, em Helena, a memória de infância vir sob uma luz adulta e política.
Ainda sobre a família, Helena conta da avó paterna a partir da memória de sua mãe:
Era daquelas mulheres que sofria muito. Aquelas mulheres que tinham vários filhos. Um de cada cor! Uns mais mulatos, uns mais escuros [...] E minha mãe disse que ela era muito bonita, e naquele tempo as mulheres... eram estupradas em qualquer momento [...] Nunca vi meu pai falar do pai dele. Eu acho que ele não sabia quem era o pai.
Percebemos toda uma ancestralidade carregada de sofrimentos diretamente ligados às condições de raça, gênero e classe. Com sua própria infância, não foi diferente: houve sofrimento e houve a resistência que foi possível. Em suas narrativas observamos, por um lado, a aridez das condições sociais de vida espelhando-se em uma dureza nas relações interpessoais; por outro lado, vemos também momentos de ternura e de contornar, inclusive de forma lúdica, algumas das privações impostas. Quando, por exemplo, os patrões desligavam a energia elétrica dos empregados da fazenda, sua família usava um lampião para contação de histórias, através de sombras na parede.
Lembranças de brincadeiras de roda, esconde-esconde e passa-anel, que fazem a primeira infância ser recordada com ternura, logo vão cedendo lugar à experiência de trabalho infantil. Aos dez anos Helena trabalhava como empregada doméstica, e aos seis já cuidava dos irmãos mais novos - para que a mãe pudesse trabalhar.
Nesse contexto, as memórias de infância vêm acompanhadas da lembrança do anseio de ser menino: “Os meninos podiam brincar, era as meninas que tinham que cuidar das crianças, os meninos iam jogar... Ah eu pensava ‘que vontade de brincar, eu queria ser menino, ah eu queria ser menino!’”.
A experiência precoce do trabalho doméstico e de cuidado é tão impactante que acompanhava o anseio por um lugar alheio: o do menino. Anseio por um lugar e por condições no mundo alheias às condições de uma mulher. Acredito que esses mecanismos se consistiam como a estratégia de defesa que lhe era possível. Muitas vezes, a pessoa se defende com as armas disponíveis: os lugares sociais e os papéis sociais que parecem mais protegidos contra a violência, opressão e as privações do que os lugares violados.
O depoimento de Helena demonstra o sofrimento de estar, desde tão nova, aprisionada às condições sociais reservadas às mulheres. Em Simone de Beauvoir (2016BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2016.) vemos que o que caracteriza histórica e fundamentalmente o drama das mulheres é o de serem sujeitas impedidas. De um lado, almejamos - como todo sujeito - uma condição de existência que conte com autonomia, iniciativa, criação, possibilidades... transcendência. E, por outro lado, fomos historicamente colocadas em uma condição de imanência.8 8 Posição especialmente acentuada para as mulheres negras e pobres (Davis, 2016; Saffioti, 2015). E que historicamente, é também acompanhada por tensionamentos, ações de resistência e enfrentamento.
A partir da narrativa de Helena, vemos que esse impedimento, na infância, traduz-se especialmente em impedimento do brincar. Donald Winnicott (1975WINNICOTT, D. W. O brincar & a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.) ensina que é justamente no brincar que as crianças fruem da sua liberdade de criação. É no brincar que se desenvolvem os fenômenos transicionais, que se constituem espaços nem totalmente objetivos nem inteiramente subjetivos, onde é possível uma inserção não opressora no mundo. É onde a criatividade se manifesta e possibilita buscas e encontros consigo mesmo(a) e com o mundo. Assim, acredito que, tomando a criança como sujeito, possivelmente o brincar seria ação que mais a aproximaria de uma condição de maior liberdade e de transcendência.
Em suma, a Helena menina que caiu no anseio de ser menino não julga que ser menino é superior a ser menina. Mas julga que, como menino, ficaria mais livre de opressões. A menina fica sem tempo para brincar pois está em condição de mulher e a mulher, já menina, é quem vai se ocupar do cuidado dos irmãos. Ser menino não se configuraria como uma realização de si. Seria uma máscara que permitiria que a menina brincasse. Ela aspirou ser menino para poder ser uma menina que brinca.
Esse impedimento, ligado à sua condição de gênero, agrava-se substancialmente por sua condição de classe. Fosse uma menina rica, teria certos espaços e brincadeiras interditados, considerados “coisas de meninos”. Mas teria acesso a outras brincadeiras “de meninas” (embora frequentemente com caráter ideológico domesticador e cerceador). Especialmente, teria direito a tempo para brincar.
Do rural ao urbano: migração, escola e racismo
Com a morte do pai de Helena, a família perde seu lugar na fazenda e muda-se para a cidade, em Cravinhos. Se por um lado existiu certo encantamento com as praças, bandas e cinema; por outro, o ambiente citadino agravou a situação de miséria. Já no espaço da casa, não havia cama para todos os filhos e, durante muitos anos, as mulheres dormiam no chão. A experiência precoce no trabalho conheceu ainda uma sobrecarga. Como empregada doméstica, Helena descreve atividades intensas e pesadas.
Estudos de Psicologia Social do Trabalho mostram que, por mais opressoras e assimétricas que sejam as relações laborais, os trabalhadores não são seres passivos. De maneira individual ou coletiva, podem criar estratégias defensivas e engenhosidades para diminuir o sofrimento (Sato; Hespanhol; Oliveira, 2008SATO, L.; HESPANHOL, M.; OLIVEIRA, F. Psicologia social do trabalho e cotidiano: a vivência de trabalhadores em diferentes contextos micropolíticos. Psicol. Am. Lat., n.15, 2008.). Helena, inserida tão precocemente no mundo do trabalho, inventou como resistência a leitura, escondida, de livros infantis. Quando ficava sozinha, interrompia pelo tempo que fosse possível os serviços domésticos e refugiava-se nos livros da filha dos patrões. Em nossas conversas, recordou-se com carinho do seu livro preferido àquela época: Marcelino pão e vinho. Encontrou assim uma forma astuciosa de buscar ser criança, mesmo com exigências e obrigações já tão adultas.
A desejada escola da cidade foi também o ambiente em que a menina negra e pobre da roça sentiu de maneira significativa as diferenças e discriminações ligadas às suas origens: de classe e de raça. Antes da escola, Helena já sofria exploração e discriminação. Mas ali começou a ocupar um lugar - de estudante - que envolve encontrar outros estudantes que não participam de uma comunidade de destino.9 9 Cf. Ecléa Bosi (2009; 2012), uma comunidade de destino é formada a partir da compreensão de uma dada condição humana. Viver uma comunidade de destino é sofrer de maneira irreversível o destino do outro. Antes, ou ela estava sozinha sofrendo a dominação-exploração de classe (como empregada doméstica), ou estava dividindo com uma comunidade que também sofre (as trabalhadoras e trabalhadores rurais).
Na escola Helena não encontra parceiros e parceiras iguais em todos os sentidos. Embora estudantes como ela, muitos não trazem memória de opressão. Naquele espaço, as diferenças sociais vão se fazendo evidentes. As discriminações ligadas à classe social intensificavam e se misturavam às discriminações raciais. Retomamos, aqui, a perspectiva de Angela Davis (2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.), segundo a qual, dialeticamente, classe informa a raça e raça informa a classe.
Entre os estudantes, filhos de migrantes e trabalhadores rurais conviviam com filhos de médicos e fazendeiros. Ali, a preferência da professora era evidente:
A professora não se importava com a gente [...] preferiam as crianças brancas, de cabelo loiro... elas preferiam mesmo. Todo mundo percebia e sabia [...] eu pensava, “no outro dia acho que eu vou da cor da branca pra poder sentar no banco da frente”. Tinha vontade de, as crianças, a gente conversava entre a gente e eu pensava “será que eu vou acordar branca no outro dia pra ficar no banco da frente?!” [...] Eu pensava isso! E não era nem maldade, era pra poder ser aceita... eu não tinha noção do que estava pensando.
Ao longo do depoimento de Helena, é possível perceber que as relações de gênero, raça e classe estão todo o tempo imbricadas, estruturando a realidade social e sua realidade subjetiva. Heleieth Saffioti (2015_______. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.) sustenta que o patriarcado está enovelado com as classes sociais e o racismo. Ela faz a metáfora de um nó, formado pelas subsestruturas gênero, classe e raça:
Não se trata da figura do nó górdio nem apertado, mas do nó frouxo, deixando mobilidade para cada uma de suas componentes. Não que cada uma destas contradições atue livre e isoladamente. No nó, elas passam a apresentar uma dinâmica especial, própria do nó [...] De acordo com as circunstâncias históricas, cada uma das contradições integrantes do nó adquire relevos distintos. (Saffioti, 2015_______. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015., p.134)
Com Helena é possível visualizar essa perspectiva: especificamente no contexto das lembranças da escola, a categoria gênero não é desimportante, mas, nesse momento, fica em segundo plano. Raça e classe, contudo, misturam-se e influenciam-se dialeticamente. Em relação às crianças brancas e ricas, as negras, pobres e/ou (i)migrantes ocupam a condição de outro (Beauvoir, 2016BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2016.). São tratadas como não sujeitas. Toleradas no fundo da sala porque, por força da lei, não podiam ser expulsas dela. Mas ali ficam em condição de restrição e rebaixamento. Apenas as crianças da frente eram vistas e ouvidas pela professora.
Helena começava a se perceber como diferente daqueles e daquelas em posição de poder e privilégios, mas não tinha compreensão histórica ou política das relações sociais que estruturavam essas posições. A sua resposta subjetiva e individual, enquanto criança que ainda não elaborava, mas vivenciava esses tratamentos discriminatórios, vinha na forma do anseio de ser como o outro. Como em Marcelino pão e vinho, na ausência de uma saída política, a salvação vislumbrada para seus dramas parecia estar no campo do mágico ou sobrenatural: para o personagem do livro, um milagre; para Helena, um dia “transformar-se em menino” (para poder brincar) ou, em uma manhã, “acordar branca”, rica (para ter o afeto das professoras e os objetos de consumo que lhe eram interditados). Veremos, adiante, alguns dos processos pelos quais, progressivamente, Helena passará a desejar ser como ela mesma, encontrando uma voz própria no mundo.
Até o início da vida adulta, as barreiras de inserção em outras categorias profissionais10 10 Fosse em escritórios com datilografia (possível às meninas brancas); fosse como office boy ou ‘guardinha’ (acessível aos meninos negros). mantinham Helena como empregada doméstica. Nesse contexto, votou pela primeira vez:
Eu não sabia o que era de direita, tanto que o primeiro voto que eu dei, eu não sabia o que era Arena, mas votei na Arena... que era de extrema direita e eu não sabia [...] Meus patrões - eu era doméstica, em casa de família -, falavam que tinha de votar nele. Eu fui e votei, achei que tava fazendo [um bem]... depois, eu fui saber que eu tava votando contra mim mesma.
O lamento de Helena, de despender seu primeiro voto na Arena, reflete uma mudança na percepção de si, reconhecendo-se hoje como mulher, negra, da classe trabalhadora. Isso reflete uma consciência amadurecida de sua singularidade, de reconhecer-se enquanto alteridade do outro, e de reconhecer alteridade no outro.
Da chegada em São Paulo ao PSDB: trabalho, cidade e política como expulsivos
É sobre dor - a dor da fome, a dor do excesso de trabalho, a dor da degradação e da desumanização, a dor da solidão, a dor da perda,
a dor do isolamento, a dor do exílio - espiritual e física.
(bell hooks, 2019, p.28)
Em 1979, Helena começou a faculdade. Depois de um ano, não podendo mais pagar os estudos, mudou-se para São Paulo. Na segunda migração, alguns caminhos parecem se repetir: depara com uma situação de pobreza mais intensificada e com longos anos de dominação-exploração de raça, gênero e classe.
Morou na casa da família para a qual trabalhava, como babá, em um bairro de elite. Ali, conta que “verdadeiramente sentiu o que era ser doméstica”. Seus relatos remetem ao fenômeno da invisibilidade pública, apontado como um aspecto ligado à humilhação social (Gonçalves Filho, 2004).
Teve um dia que eu fiquei muito triste, que foi no Rio de Janeiro com os patrões ricos… E aí, fomos tomar sorvete. Eu pensei que podia ir com minha roupa né, que era calça jeans, camisa. Aí meu patrão fez eu voltar pro quarto e vestir o uniforme. Eu fiquei muito mal esse dia. Eu fiquei com vergonha de comer lá, um lugar chique do Rio de Janeiro, cheguei lá e não tinha nenhuma babá de uniforme. Só eu. Todas as babás estavam com roupas delas e eu fiquei chateada, com vergonha… nem tomei sorvete.
Acredito que o uniforme vem carregado de sentimentos de humilhação porque materializa o papel social ocupado: o uniforme de empregada doméstica ou babá é signo e lembrança constante de que mesmo transitando nos mesmos espaços dos patrões, dos brancos, dos ricos, ela não é como eles e está ali para servir, limpar e cuidar. Para não aparecer, não ter voz.
O acúmulo dessas vivências e contradições vai levando à percepção de um estranhamento entre o mundo dos patrões e o mundo dos empregados. Bem como um sentimento de incomunicabilidade entre esses dois mundos, que polarizam os conflitos de classe. Helena começa a não se reconhecer e não se sentir reconhecida no mundo dos patrões.
Esse trabalho, contudo, possibilitou economizar algum dinheiro para a retomada do curso de Jornalismo. Ao longo do curso, Helena oscilou entre estágios de baixa ou nenhuma remuneração e bicos como vendedora de café ou de bala de coco em praças e terminais de transporte coletivo.
Mesmo nos trabalhos em sua área, como ao longo de seis anos em uma emissora, sentia as marcas da sua condição de gênero e raça como signos de rebaixamento. Relatou um sentimento de percepção de algo diferente, incômodo, mas que ainda não sabia nomear: “não tinha muita noção, não tinha assim muita dimensão, de que sofria, porque era negra [...] eu percebia que não era bem-vista”. Helena relata uma sensação ruim de deslocamento e a percepção de “não ser bem-vista”. Essas sensações e percepções, difusas, reverberavam em angústia.11 11 Partilhamos da noção de angústia como fenômeno intersubjetivo e componente da humilhação social: “O mais abstrato e o mais humano dos afetos, a angústia [...] representa sempre a ressonância em nós, mecanísmica, de um enigma intersubjetivo, um enigma que veio dos outros e no meio dos outros. Veio como um gesto, um olhar, uma palavra, são comportamentos verbais e pré-verbais que alcançam o sujeito e vêm invadi-lo, governando-o de dentro como uma força física, uma energia que perdeu significado, sem que o próprio sujeito possa agora decifrá-la” (Gonçalves Filho, 1998, p.24).
Por diversas vezes, ela refere-se a si mesma como alguém muito tímida, que falava pouco no passado. Nas diferentes situações de opressão relatadas até aqui, não conseguia esboçar reação pela fala.
Em casa, no trabalho e nos espaços públicos da cidade, vive racismo, assédio sexual, rebaixamento moral e exploração de classe. Em meio a essas vivências, Helena vai encontrando companheiras e companheiros em situações semelhantes. Alguns deles eram desconhecidos, que dividiam os trens lotados ao longo dos trajetos casa-trabalho-faculdade. Outros, eram os próprios colegas de curso.
Nesses diferentes contextos, a necessidade e a criatividade impeliram a estratégias de resistência diversas que foram sendo forjadas (Afonso, 2019AFONSO, M. L. Segura sua mão na minha, para que façamos juntas o que eu não posso fazer sozinha: memórias de mulheres que participam de movimento social feminista. São Paulo, 2019. Tese (Doutorado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo.). Nessa trajetória, Helena descobriu ações de resistência em grupo, ações que envolviam solidariedade e dependiam de solidariedade. Encontrou pessoas que partilhavam uma comunidade de destino. Entre elas, percebeu que não sentia vergonha e encontrava amparo para sofrimentos coletivamente compartilhados. Esse amparo favoreceu conquistas pessoais significativas, como a superação de inúmeros obstáculos - da fome ao atraso nas mensalidades, passando por situações diversas de discriminação - à conclusão do curso universitário.
O período da faculdade foi vivido como um momento de expressar-se mais livremente. Helena começava a adotar uma expressão estética contra hegemônica, onde o sonho da bolsa de marca foi sendo substituído pela materialidade da calça rasgada. O cabelo alisado começava a ceder lugar ao black power. Nesse movimento de ir encontrando uma expressão própria no mundo, Helena vive transformações de consciência, de olhares sobre si mesma e seus semelhantes. Descobre que situações de humilhação social, quando compartilhadas e amparadas coletivamente, podem doer menos. Essas transformações impulsionam para a ação e a busca de formas de organização coletivas.
*
Nessa busca, o primeiro espaço encontrado foi o PSDB, ainda em seus primórdios: “Nunca me esqueço um dia, um evento que estava acontecendo numa sexta, eu estava lá. Nisso eu comecei a observar que tinha um mínimo de negro, eu era uma das únicas negras. Todas aquelas mulheres ricas chegando, madame e não sei o quê, tudo na minha cara não olhava”.
O PSDB, em sua trajetória, parece ocupar um espaço de transição: representava uma ruptura com a posição anterior, simbolizada pela experiência de voto - descrito como sem reflexão - na Arena, e a busca por uma participação ativa na realidade em que vivia.
Helena prossegue sobre aquele evento que lhe marcou:
Eu fiquei… fiquei com vergonha! Com vergonha, uma vergonha de estar ali, naquele lugar, era uma casa chique... O Mario Covas chegou, aquelas mulheres chegando, aquelas bolsas chique. Elas chegavam com aquela bolsa Victor Hugo, aqueles saltos, e eu me arrumei pra ir também, mas tava abaixo delas, uma bolsa simples, aí eu comecei [a perceber] “ninguém olha na minha cara, eu estou fazendo o que aqui nessa festa?” [...] Eu sentia que eu não tava sendo aceita, ninguém me olhava, eu fiquei em uma cadeira em uma mesa sozinha. Aí eu peguei, eu dei um jeitinho e fui embora. Fui embora e falei: “eu nunca mais vou aqui nesse partido”
Podemos refletir sobre como alguns atos reverberam de maneira muito intensa quando se comunicam com trajetórias pessoais de impedimentos, rebaixamentos e exclusões. A experiência no PSDB parece ter sido símbolo de toda uma história de vida tentando se adequar ao mundo dos patrões. Helena se preparou, vestiu suas melhores roupas, estava arrumada, mas ainda estava “abaixo”. Mesmo despida do uniforme de babá, a invisibilidade social permanecia. Não era enxergada, ficou isolada em uma mesa, sentiu profunda vergonha e foi embora assim que pôde.
Ter ido embora - e decidido não voltar mais - representou um momento de rupturas. O acúmulo de experiências de rebaixamento e expulsão nos ambientes das classes dominantes, em contraposição às vivências de acolhimento e solidariedade nos espaços das classes dominadas, acompanham mudanças na percepção de si mesma e do mundo.
Marcha Mundial das Mulheres: falar como condição de enraizamento
Antígona oferece um modo em que podemos pensar a voz como criação espetacular, desafiadora, do sujeito pelo ato da fala.
(Veena Das, 2011DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cad. Pagu, n.37, p.9-41, 2011., p.16)
Entre os colegas de faculdade e de trabalho, Helena encontrou o Partido dos Trabalhadores (PT) e o movimento negro. Nesses espaços, experimentou relações de identificação e amparo. Participou de ações coletivas, que deram às relações vividas em âmbito pessoal novos contornos e significados. Vislumbrou a possibilidade não somente de se revoltar contra as relações sociais pré-estabelecidas, mas de modificá-las. Vivenciou pela primeira vez uma participação política sentida como real, ainda que nos moldes de uma inserção tímida.
Ao narrar sua participação na Marcha, Helena traz o aspecto do falar como um ganho qualitativo. Esse aspecto parece assumir grande importância para potencializar um espaço de enfrentamento da humilhação social e dos impedimentos que lhe foram impostos. Para definir um lugar de enraizamento. A partir desse lugar, Helena qualifica e potencializa, inclusive, sua participação em outros espaços políticos como o próprio PT e movimentos de mulheres negras. Espaços valiosos, que ela segue compondo ao longo da vida.
Helena conheceu a Marcha há 18 anos, enquanto panfletava no Largo da Batata e viu ali “umas mulheres de lilás”, reconhecendo entre elas uma amiga. Esse primeiro contato parece já carregar um aspecto simbólico significativo: conhece a Marcha no local da cidade que havia adotado como seu depois de rejeitado espaços associados às classes dominantes. O Largo da Batata foi o local que cuidadosamente escolheu, anos antes, para cadastrar seu título de eleitor. Ela fala dali como um lugar da cidade em que circulavam livremente “os pretos, os pobres, os migrantes e nordestinos”. Um espaço em que se sentia em casa.
Helena enfatiza a importância da Marcha em sua vida: “Lá que eu desenvolvi mais essa parte política minha, foi através da Marcha Mundial”. A inserção na Marcha acontece como o desenrolar de um processo pessoal de anos de participação política, reflexão sobre si mesma e as relações sociais de dominação-exploração. Esses processos acompanham a busca por um lugar no mundo.
Nessa busca, ela conta sobre o que encontrou na Marcha:
Porque na Marcha eram mais mulheres, a gente tinha fala na Marcha. A gente podia falar. E eu admirava muito ver aquelas mulheres intelectuais conversando, achava bonito, gostava... até levei amigas [...] e é bom você estar no meio de pessoas intelectuais que você também vai fortalecendo. Eu gostei bastante de estar no meio delas, de estar no meio até hoje, eu aprendo bastante e todo tipo de mulher tava lá e eu percebia que não tinha diferença, de discriminação, das mulheres intelectuais que [muitas vezes] são brancas né? Intelectuais com as mulheres negras, domésticas, varredora de rua.
A Marcha pareceu se configurar como um lugar em que é possível falar. Vimos que ao longo de sua trajetória, em alguns espaços, Helena foi impedida de falar (como na escola e no trabalho). Em outros, ela não falava provavelmente porque carregava o peso histórico e simbólico deste impedimento. O falar a que Helena se refere, não está atrelado a uma condição psicomotora ou linguística. Aqui a fala parece estar mencionada como uma capacidade que fez diferença moral, política. Há ligações entre o não falar, um histórico de impedimentos e humilhação social, e uma conquista do falar que vem acompanhada de dignidade humana e de reconhecimento ético - que tem condições políticas.
Acredito que a trajetória singular de Helena se comunica com aspectos coletivos da história das mulheres. Que o cerceamento histórico à manifestação de opiniões e posicionamentos, assim como o impedimento da vida política e do espaço público dirigem-se especificamente às mulheres como aspectos de impedimento da palavra.12 12 Há também exemplos históricos mais explícitos e violentos deste impedimento. Silvia Federici (2019) apresenta uma etimologia do termo gossip (fofoca), ligando historicamente o processo de associá-lo a uma conotação negativa à dominação masculina, perseguição violenta das mulheres e degradação da transmissão oral de seus conhecimentos. Neste mesmo processo histórico, a autora chama a atenção para a criação de instrumentos de tortura (branks) utilizados contra mulheres na Europa no século XVI, de modo a impedir que elas falassem. Estes mesmos instrumentos foram usados posteriormente contra mulheres e homens negros escravizados nos Estados Unidos até o século XVIII. Enquanto esses processos históricos de dominação não são conscientes, a dificuldade de expressar-se pode ser associada a características individuais ou “de personalidade”, como introspecção e timidez. Era assim que Helena definia a si mesma antes da participação na Marcha: tímida, introspectiva.
Isso contrasta com sua imagem mais atual, conhecida carinhosamente por suas amigas e companheiras por se expressar de maneira livre, espontânea, pública. Acredito que nossas longas entrevistas, por exemplo, só foram assim porque inseriram-se em um momento pessoal em que Helena - por iniciativa conjunta de mulheres negras da Marcha e de outros coletivos - buscava recuperar sua história e a de seus antepassados. Apropriar-se dessa história: uma demanda pessoal - de autoconhecimento, busca de raízes - e, ao mesmo tempo coletiva e política. A história de seus antepassados reflete as histórias dos antepassados de todas aquelas outras mulheres, uma história eminentemente política. No processo de recuperação e afirmação dos nomes e das vidas das mulheres que a precederam, a voz de Helena vai se fortalecendo.
Esse movimento também só parece ter sido possível por um longo processo de consciência que a levou a olhar para si mesma e enxergar uma mulher preta, pobre, da classe trabalhadora, bisneta de escravos, migrante... a afirmar-se no que via e orgulhar-se disso. Concomitantemente, esse processo levou-a também a olhar para o mundo que estabeleceu a escravidão, a subjugação feminina e a exploração de classes. E a confrontar este mundo, compreendendo as relações sociais como injustas e históricas, desnaturalizando-as.
Dadas as complexidades das relações sociais que estruturam a realidade vivenciada por mulheres - especialmente por mulheres negras e pobres no Brasil -, apenas uma consciência que abarque a dimensão dessa multideterminação parece ser capaz de acolher e fortalecer esses sujeitos, levando em conta as condições objetivas de suas vidas e os sofrimentos psicológicos historicamente carregados.
Considerando cada pessoa como uma totalidade entre pensamento, afeto e comportamento (Lane, 2004aLANE, S. T. M. A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In: LANE, S. T. M.; CODO, W. (Org.) Psicologia social - o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2004a. p.10-19.), quando falamos sobre os processos de consciência, concebemos relações dialéticas entre consciência e ação. Assim, esses processos em Helena são acompanhados por ações. Aqui refletimos sobre a ação elencada como a mais significativa pela depoente: o falar.
Trata-se de uma ação que acompanha importantes transformações subjetivas, possibilitadas por uma participação mais ativa no mundo:
Nossa, mudou assim, 99%. Mudou, mudou muito. Porque eu, antes de engajar na Marcha, eu participava de política, mas eu era muito assim, introspectiva, não era de me colocar... E depois eu comecei a me colocar mais, a dar palpite, dar opinião... Depois da Marcha, eu comecei a ver mulheres negras lá falando, comecei a ver as meninas falando e falei: eu também vou começar a falar. Começar a participar também, não ficar só de expectadora.
*
A trajetória de Helena pareceu acompanhar um caminho de descoberta de si, à aceitação e orgulho de si mesma. Um caminho de almejar ser ela própria. Nessa trajetória, à medida que vai se encontrando, se firmando enquanto sujeito, encontra também a própria voz.
Para a depoente parece que, na Marcha, o ato de falar ganha uma conotação diferenciada. Helena liga falar a conversar. E conversar a uma troca de opiniões e saberes que não seria esperada em qualquer situação social. Por exemplo, ela diz com surpresa que ali havia mulheres mais instruídas do ponto de vista escolar e universitário que compartilhavam o que sabiam e ouviam, aprendiam. Dessa forma, falar parece ter o significado de conversa,13 13 Entendemos conversa, nesse sentido, como espaço igualitário de trocas: lugar de fala e escuta, onde cada uma é tocada e transformada pelo pensamento e ponto de vista da outra. Onde novos sentidos podem aparecer a partir dessas trocas (Gonçalves Filho, 2004). Onde então o discurso, que emerge pelo falar, corresponde à distinção: viver como ser distinto e único entre iguais (Arendt, 2020. de reciprocidade. Essa conversa aparece como um ato igualitário entre pessoas de grupos que normalmente são desiguais. De acordo com o seu relato, ali, não importa o nível de letramento das mulheres, se elas sabem ou não o português correto, todas falam e são ouvidas. Isso parece trazer um senso de fortalecimento significativo.
Eu vejo que mesmo as mulheres muito pobres, lá da favela [...] pode falar um português assim incorreto, mas elas têm uma fluência, pra intelectualidade, pra conversar. Acho que é porque de convivência, acho que foi muita experiência no falar, era essa fluência no que tá falando. Elas têm fluência e tem conhecimento, sendo mulheres lá da periferia, mães solteiras, mulheres domésticas... falam muito bem.
Para Helena, conversar assume o sentido não só de trocar mensagens, mas trocar mensagens de forma que a relação entre as interlocutoras não é hierárquica, desigual.
A Marcha foi referida ainda como um “espaço de crescimento e desenvolvimento pessoal”. Além do fortalecimento da perspectiva de ação coletiva, Helena destaca que em sua vida pessoal, também houve importantes mudanças “na esfera intelectual” e na “esfera profissional”, apoiando-a a sair da precariedade dos “bicos”. Ela relaciona mudanças em sua vida após a participação na Marcha, especialmente no aspecto da fala, associando-o a uma participação mais ativa no mundo.
Acredito que Helena traz um saber sobre o que é falar quando falar é um ato político, não só linguageiro. Assim, o exame de suas memórias revela uma importante possibilidade de resposta à pergunta de pesquisa “o que a participação na Marcha traz para as mulheres?”: traz a possibilidade de falar. De falar politicamente, ou como ato político. Trata-se não de uma fala sobre política, mas de um falar que acompanha alterações na própria vida e na convivência com os outros. A pesquisadora e ativista feminista negra bell hooks (2019) fala sobre uma dimensão de silenciamento historicamente compartilhada pelas mulheres, que se perpetua pelo medo que individualmente sentimos da exposição. Medo de que nossos pensamentos e sentimentos mais íntimos, uma vez compartilhados, fossem desprezados como meros devaneios. Da perspectiva do oprimido(a), falar, portanto, é um ato de coragem e cura.
Com Helena, aprendo que é ação que floresce em comunidade. E, desde então, torna-se um importante ingrediente de enraizamento nessa comunidade. Falar, nesses termos, parece caracterizar-se como uma iniciativa, que incide diretamente sobre a autonomia, potencializando a atuação da pessoa como sujeita da história.14 14 Partilha-se da concepção de Silvia Lane (2004a,b), de que quanto maior o grau de iniciativa e de autonomia alcançado por uma pessoa, mais atuante como sujeito da história ela pode ser.
Uma iniciativa que ganha força no resgate da própria história, da memória, da ancestralidade. E então, provoca rupturas em silêncios longamente impostos à sua classe, raça e gênero. A poesia de Conceição Evaristo traduz esse processo de maneira sensível e precisa. Acredito que, assim como a escritora, quando Helena fala, faz reverberar com ela suas ancestrais: incontáveis vozes historicamente interrompidas:
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
(Evaristo, 2008EVARISTO, C. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê, 2008., p. 10-11)
Fragmento póstumo: a Voz que ecoa além da vida
Ao agir e ao falar, os homens [e as mulheres] mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais únicas, e assim fazem seu aparecimento no mundo humano.
(Hannah Arendt, 2020ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2020., p.222)
A trajetória biográfica de Helena se encerrou na madrugada do 24 de março de 2020, quando faleceu em decorrência de problemas de saúde. Sua vida e suas memórias, no entanto, se eternizam naquelas que conviveram e lutaram com ela. Em meio à tristeza e à saudade, sua vida e sua singularidade são celebradas no interior do movimento social. À despeito da ausência física, sua presença é convocada e afirmada. Destaco um trecho de uma nota em sua homenagem:
A história de Helena se mistura com a história da Marcha Mundial das Mulheres, que ela ajudou a construir diariamente, nunca abrindo mão da luta radical, feminista, antirracista, socialista, por um mundo novo [...] Nesse estranho momento do mundo, não sabemos bem o que o futuro nos reserva. Mas sabemos que [...] não haverá uma militante que não sentirá a falta de Helena, sempre presente.15 15 Disponível em: <https://www.facebook.com/marchamundialdasmulheresbrasil>. Acesso em: 24 mar. 2020.
A Marcha das Mulheres Negras de São Paulo também publicou uma nota muito carregada de afeto, que finalizava desejando “Que o Órun a receba em festa! Virou nossa ancestral e fará imensa falta na luta!”.16 16 Disponível em: <https://www.facebook.com/mmnegrasSP>. Acesso em: 24 mar. 2020. Em um livro lançado um ano depois, Marli Aguiar (2021AGUIAR, M. F. (Des)Águas e afluentes. São Paulo: Feminas, 2021.) - companheira das Marchas e amiga da vida - o dedica à Helena. Independentemente de parentesco sanguíneo, ela é convocada como ancestral. É um livro autobiográfico de poesias, profundamente pessoal, sensivelmente político. Assim também entendo que seja o significado desta dedicatória.
*
No convívio com essas mulheres é possível perceber a dialética que acompanha um tipo de participação política real, que produz enraizamento. Participação em comunidade pautada por singularidade e pluralidade, relações horizontais, de cuidado, reconhecimento mútuo e afeto; de preservação de passado e sonhos de futuro. Nos depoimentos e convivência com Helena, era notável que a Marcha Mundial foi parte muito importante dela, do processo de encontrar a si mesma e se firmar no mundo como sujeito. O que se percebe também é que Helena foi/é parte valorosa da Marcha. “Suas histórias se misturam”: Porque se constroem, se transformam e se alimentam. Mutuamente, em reciprocidade.
Processo semelhante parece acontecer com a Marcha das Mulheres Negras. Ali podemos observar que Helena, que no início de nossos contatos buscava vivamente sua ancestralidade; acaba por tornar-se ancestral para suas companheiras.
Bell hooks (2019) enfatiza que, no ato de superar o medo da fala e no processo de aprendizagem de falar como sujeitas, as pessoas oprimidas e exploradas participam da luta global para acabar com a dominação. Nesse processo, de dar fim ao seu silêncio, suas palavras têm o poder de se conectar com qualquer pessoa que viva em silêncio, em qualquer lugar. Hoje, Helena é voz que ressoa nas companheiras que deixou. Voz que a memória mantém viva, que ecoa nas mulheres do agora e tem a potência de reverberar em mulheres do futuro.
Tenho compreendido que sobreviver ao luto não é sinônimo de aprender a viver bem sem a pessoa que partiu. Mas sim, de encontrar dentro de nós - e entre nós - aquela que já não existe mais fora. Assim, nas homenagens individuais e coletivas, nos rituais de despedida, no amparo mútuo, na palavra escrita e na falada, nas fotografias rememoradas e compartilhadas, as mulheres da Marcha Mundial e da Marcha das Mulheres Negras atualizam cotidianamente a presença de Helena, sua voz única.
*
Silvia Federici (2019FEDERICI, S. Mulheres e caça às bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019.) fala sobre momentos históricos em que as mulheres ocupavam um lugar comunitário de tecelãs da memória: aquelas que mantem vivas as vozes do passado e as histórias das comunidades. Essa manutenção do passado, da vida e das vozes da comunidade se dava a partir do cultivo de um certo tipo de falar (gossip) entre mulheres, que enfrenta a dominação econômica e patriarcal e emerge em relações de amizade e parceria.
Talvez, enquanto as mulheres das Marchas cuidam do próprio luto, estejam (re)ocupando também um lugar de tecelãs da memória. De testemunhas, aliadas e multiplicadoras de vozes de resistência, como a de Helena - vozes que simbolizam um tipo de poder de pessoas dominadas e exploradas, que pode surgir em comunidade e, de alguma forma, atravessar o tempo.
Referências
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Notas
-
1
Ressalta-se a importância de perspectivas críticas em psicologia e ciência de modo geral, que desnaturalizem e historicizem as relações sociais (Bock, 2009BOCK, A. M. B. Psicologia e sua ideologia: 40 anos de compromisso com as elites. In: ___. (Org.) Psicologia e o compromisso social. São Paulo: Cortez, 2009. p.15-28.).
-
2
Termo empregado como em Saffioti (2015_______. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.) que considera dominação política e exploração econômica como duas faces de um mesmo fenômeno.
-
3
Pesquisas recentes apontam, inclusive, para novas modalidades de violência de gênero: as perseguições, exclusão e ameaças contra quem se posiciona em defesa das vítimas; intensificando pressões sociais pelo silenciamento (Puigvert et al., 2021PUIGVERT, L. et al. Breaking the Silence within Critical Pedagogy. Multidisciplinary Journal of Educational Research, v.11, n.3, p.203-17, 2021.).
-
4
A antropóloga Veena Das (2011DAS, V. O ato de testemunhar: violência, gênero e subjetividade. Cad. Pagu, n.37, p.9-41, 2011.) aponta, por exemplo, para formas como as normas patriarcais podem se inscrever sobre o corpo e as vozes das mulheres. Destaca-se a presença velada de uma pesada cortina de silêncio envolvendo a dominação masculina e eventos traumáticos de violência de gênero.
-
5
No caso desta pesquisa, propiciado por no mínimo um ano de trocas e convivência com cada uma das mulheres na observação participante.
-
6
Que devo à valiosa parceria do orientador da pesquisa, José Moura Gonçalves Filho.
-
7
Quanto à autora deste artigo, sou mulher, branca, trabalhadora e de classe média. Algumas dessas características - que definem lugares que ocupo no mundo e nas relações sociais de gênero, raça e classe - me aproximam de Helena, outras me distanciam. No que tange às distâncias (como quando falamos das relações raciais), o que apresento são reflexões e interpretações fruto da convivência, escuta e aprendizados que tive especialmente com ela e outras companheiras negras. São pontes possibilitadas pela parceria e generosidade dessas mulheres em compartilhar, ensinar e diminuir distâncias. Mas são, ainda, reflexões a partir de um lugar de alteridade e limitado. Para um melhor aprofundamento em assuntos ligados às relações raciais, recomenda-se a leitura de autoras e autores longamente comprometidos com a luta antirracista, como Gonçalves Filho (2017) e, sobretudo, autoras/es negras/os, como Angela Davis, bell hooks, Neusa Santos Souza, Marli Aguiar, entre tantos/as outros/as.
-
8
Posição especialmente acentuada para as mulheres negras e pobres (Davis, 2016DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.; Saffioti, 2015_______. Gênero, patriarcado e violência. São Paulo: Expressão Popular, 2015.). E que historicamente, é também acompanhada por tensionamentos, ações de resistência e enfrentamento.
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9
Cf. Ecléa Bosi (2009_______. Cultura de massa e cultura popular. Leituras de operárias. Petrópolis: Editora Vozes, 2009.; 2012), uma comunidade de destino é formada a partir da compreensão de uma dada condição humana. Viver uma comunidade de destino é sofrer de maneira irreversível o destino do outro.
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10
Fosse em escritórios com datilografia (possível às meninas brancas); fosse como office boy ou ‘guardinha’ (acessível aos meninos negros).
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11
Partilhamos da noção de angústia como fenômeno intersubjetivo e componente da humilhação social: “O mais abstrato e o mais humano dos afetos, a angústia [...] representa sempre a ressonância em nós, mecanísmica, de um enigma intersubjetivo, um enigma que veio dos outros e no meio dos outros. Veio como um gesto, um olhar, uma palavra, são comportamentos verbais e pré-verbais que alcançam o sujeito e vêm invadi-lo, governando-o de dentro como uma força física, uma energia que perdeu significado, sem que o próprio sujeito possa agora decifrá-la” (Gonçalves Filho, 1998, p.24).
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Há também exemplos históricos mais explícitos e violentos deste impedimento. Silvia Federici (2019FEDERICI, S. Mulheres e caça às bruxas. São Paulo: Boitempo, 2019.) apresenta uma etimologia do termo gossip (fofoca), ligando historicamente o processo de associá-lo a uma conotação negativa à dominação masculina, perseguição violenta das mulheres e degradação da transmissão oral de seus conhecimentos. Neste mesmo processo histórico, a autora chama a atenção para a criação de instrumentos de tortura (branks) utilizados contra mulheres na Europa no século XVI, de modo a impedir que elas falassem. Estes mesmos instrumentos foram usados posteriormente contra mulheres e homens negros escravizados nos Estados Unidos até o século XVIII.
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Entendemos conversa, nesse sentido, como espaço igualitário de trocas: lugar de fala e escuta, onde cada uma é tocada e transformada pelo pensamento e ponto de vista da outra. Onde novos sentidos podem aparecer a partir dessas trocas (Gonçalves Filho, 2004). Onde então o discurso, que emerge pelo falar, corresponde à distinção: viver como ser distinto e único entre iguais (Arendt, 2020ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 2020..
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Partilha-se da concepção de Silvia Lane (2004aLANE, S. T. M. A psicologia social e uma nova concepção de homem para a psicologia. In: LANE, S. T. M.; CODO, W. (Org.) Psicologia social - o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense, 2004a. p.10-19.,b), de que quanto maior o grau de iniciativa e de autonomia alcançado por uma pessoa, mais atuante como sujeito da história ela pode ser.
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Disponível em: <https://www.facebook.com/marchamundialdasmulheresbrasil>. Acesso em: 24 mar. 2020.
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Disponível em: <https://www.facebook.com/mmnegrasSP>. Acesso em: 24 mar. 2020.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2024
Histórico
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Recebido
23 Dez 2021 -
Aceito
23 Set 2022