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A missão francesa na História (USP): relato inaugural e monumentalização (1949-1971)

RESUMO

O corrente texto visa historicizar a memória enaltecedora da missão francesa na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP), conforme diversos historiadores e historiadoras desse centro de ensino superior expressaram ao longo da segunda metade do século passado. Após uma rápida introdução à temática, dois grandes momentos dividem a proposta: inicialmente, analisa-se a emergência de um relato fundador da memória pró mestres franceses no Departamento de História da USP; em seguida, cotejando esse documento inaugural com outros textos e outras ações, aponta-se para o processo de monumentalização da referida memória. Assim, baseando-se em fontes historiográficas e inspirando-se em reflexões sobre história e memória, procura-se mostrar quando e como o legado dos professores franceses tornou-se uma tópica memorialística forte entre os partícipes do curso de história uspiano.

PALAVRAS-CHAVES:
Memória; Missão francesa; Relato fundador; Monumentalização; Historiografia uspiana

ABSTRACT

The present paper intends to historicize the praising memory of the French mission in the old Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras at Universidade de São Paulo (USP), as many historian men and women from that teaching center of higher education expressed in the second half of the last century. After a brief introduction to the subject, two great moments divide the essay: first it is analyzed the appearing of a founding report of the memory for French masters in the history department at USP. Then, comparing this first document with other texts and other actions it is remarked the process of landmarking the mentioned memory. Therefore, based on historiographic sources and inspired by reflections of history and memory, I intend to show when and how the legacy of French professors has become a strong topic memory among the history course participants at USP.

KEYWORDS:
Memory; French mission; Founding report; Landmarking; Uspian historiography

Nenhuma história da memória pode furtar-se a uma análise historiográfica. A história da memória é um excelente exercício crítico - e um

exercício permanente - sobre o ofício do historiador.

(Henry Rousso)

Em fins de 1994, uma expressão historiográfica surgiu entre os historiadores e as historiadoras do Brasil, gerando a partir de então acirrados debates (Malerba, 2002MALERBA, J. Notas à margem: a crítica historiográfica no Brasil dos anos 1990. Textos de História, v.10, n.1-2, p.181-214, 2002.): escola uspiana de História.1 1 Almir de Carvalho Bueno, historiador graduado na USP em 1981, ao rever sua trajetória décadas depois, escreveu: “se há uma ‘escola uspiana de história’, Dilú [Maria de Lourdes Monaco Janotti, professor emérita da USP] é uma de suas expressões máximas” (Bueno, 2019, p.90). O tom, vacilante e hesitante, evidencia a dimensão polêmica e inquietante do vocábulo. O vocábulo, tanto com pretensões conceituais quanto como dado da realidade, veio à tona quando três historiadoras do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) foram instadas a escrever sobre os 60 anos do referido lugar institucional. Nessa conjuntura festiva, Maria Helena Rolim Capelato, Raquel Glezer e Vera Lucia Amaral Ferlini apontaram a existência de “uma tradição de pesquisa diferenciada”, de “um estilo profissional de trabalho” (Capelato et al., 1994, p.356), sustentado, singularmente, na vinda de mestres franceses que teriam fundado a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL) da USP em 1934.

Na óptica das autoras, “a tradição francesa” teria marcado o Departamento de História, definindo inclusive um “perfil acadêmico, de 1934 até o início da década de 1970”, quando “novos padrões de produção científica passaram a vigorar, com parcial influência do modelo norte-americano”. Durante várias décadas, os ditos mestres franceses teriam imprimido um “modo francês de fazer história” em seus discípulos, com os quais passaram a conviver fecundamente durante o período em que estiveram lecionando no Brasil. “Preocupação com a orientação metodológica e com o rigor da análise documental” (ibidem, p.350-6) seriam os traços de tal matriz francesa dos historiadores e das historiadoras que se graduaram na USP durante as décadas iniciais do século passado. A própria marca dos Annales não deixaria de estar aí presente, vinda com estes franceses e assimilada de maneira entusiasmada.2 2 Uma análise mais demorada do texto de Capelato, Glezer e Ferlini encontra-se em Freire (2019).

Muito já se falou a respeito tanto da fundação do curso de História da USP quanto sobre a relação entre a historiografia uspiana e os Annales (Roiz, 2012_______. Os caminhos (da escrita) da história e os descaminhos de seu ensino: a institucionalização do ensino universitário de História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934-1968). Curitiba: Appris, 2012.; D’Aléssio, 1994). O papel da missão francesa na estruturação do currículo e nas práticas disciplinares (Martinez, 2002MARTINEZ, P. Fernand Braudel e a Primeira Geração de Historiadores Universitários da USP (1935-1956). Revista de História, n.146, p.11-27, 2002.), o fazer pedagógico dos elevados catedráticos (Costa, 2018COSTA, A. De um Curso d’água a Outro: memória e disciplinarização do saber histórico na formação dos primeiros professores no curso de História da USP. Rio de Janeiro, 2018. Tese (Doutorado em História) - Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro.), as disputas institucionais das cátedras (Rodrigues, 2012RODRIGUES, L. A produção social do marxismo universitário em São Paulo: mestres, discípulos e um seminário (1958-1978). São Paulo, 2012. Tese (Doutorado em História) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.), o perfil discente das primeiras turmas (Roiz, 2007) foram e são alguns dos temas abordados pela pesquisa histórica das últimas décadas. Igualmente, a bibliografia especializada já mapeou e discutiu bem a história deste empreendimento universitário-cultural dos governos do Brasil e da França nos idos de 1930 (Lima, 2009LIMA, L. C. Fernand Braudel e o Brasil: vivência e brasilianismo (1935-1945). São Paulo: Edusp, 2009.; Capelato; Prado, 1989CAPELATO, M. H. R.; PRADO, M. L. À l’origine de la colaboraton universitaire franco-brésilenne. Une mission française à la Faculté de Philosophie de São Paulo. Préfaces, v.14, p.100-5, 1989.; Ferreira, 1999FERREIRA, M. de M. Os professores franceses e o ensino de história anos 1930. In: MAIO, M. C.; VILLAS BOAS, G. (Org.) Ideias de modernidade e sociologia no Brasil. Porto Alegre: UFRGS, 1999.).

O que está ainda em aberto, contudo, é justamente o momento em que uma memória enaltecedora da influência francesa começou a se formar, a ganhar contornos mais nítidos, circulando pelos interstícios do Departamento de História da USP e modelando várias práticas e discursos dos sujeitos que habitavam em tal universo.3 3 Nos dias que correm, pode-se apontar que essa memória engrandecedora da missão francesa ocupa um lugar bem reduzido e modesto entre os historiadores e historiadoras da USP. Consultando documentos oficiais do curso de história dessa instituição de ensino superior, como os projetos acadêmico e pedagógico (2019-2023), pouco se vê de referência aos mestres franceses. Tal situação é bastante diferente do que ocorreu entre os anos 1950-1970, quando praticamente todo e qualquer documento de apresentação do Departamento de História da USP apontava para a sua “marca” francesa. Tal mudança parece evidenciar que o tema - a memória da missão francesa na historiografia uspiana - passou de uma tópica vivenciada para um tópico de pesquisa. Mais informações em: <https://historia.fflch.usp.br/> e <https://revhistoria.usp.br/?page_id=7> Acessos em: 13 abr. 2022. Se a história dessa iniciativa é bem conhecida por estudos especializados de história da historiografia brasileira e história do ensino superior de História, o mesmo não se pode dizer a respeito de sua memória, isto é, sobre o processo de criação, circulação e sedimentação de tal reminiscência coletiva. Como o artigo “Escola uspiana de História” deixa entrever, o Departamento uspiano em tela, em especial, reteve, solidificou e vinculou fortemente a lembrança dos tempos franceses da FFCL. Todavia, o texto de Capelato, Glezer e Ferlini não representa o nascedouro desta memorialística historiográfica.

No momento em que tais autoras realizaram a graduação e a pós-graduação na USP, entre os anos 1960-1980,4 4 Capelato concluiu o bacharelado e a licenciatura em história no ano de 1971 (o mestrado e o doutorado em 1974 e 1986, respectivamente); Glezer finalizou o mesmo curso em 1966 (mestrado em 1968 e doutorado em 1977); Ferlini completou a graduação em história nos idos de 1977 (mestrado em 1980 e doutorado em 1986). Ver: <https://lattes.cnpq.br/> Acesso em: 13 abr. 2022. já circulava uma tradição memorialística de forte elogio ao legado francês. O escrito de 1994 daquelas historiadoras evidencia uma espécie de ressaca memorialística pró-herança francesa. Nos idos de 1990, a memória dos mestres originários da Europa já estava estabelecida e consolidada, ao ponto de estruturar falas e escritos sobre o passado da historiografia brasileira, para além dos muros da USP. Em fins do século passado, a pretensão dessa memória afrancesada já é a de se colocar como válida para toda a História no Brasil, na medida em que a escola uspiana de história teria formado no país “quadros para tantas outras escolas”, como se fosse uma espécie de “núcleo formador das especialidades” (Capelato et al., 1994CAPELATO, M. H. R.; GLEZER, R.; FERLINI, V. L. A. A escola uspiana de história. Estudos Avançados, v.8, n.22, 1994., p.354-6).

Discentes na segunda metade do século passado, quando os missionários europeus já tinham retornado, nenhuma das três referidas historiadoras foi aluna dos evocados mestres. Elas receberam a memória das origens europeias por intermédio, sobretudo, de seus professores e professoras. Logo, o que fizeram no texto de 1994 nada mais foi do que reatualizar institucionalmente uma lembrança dos fundadores recebida indiretamente, reforçando-a para o presente e para o futuro. Semelhante ao que propôs Michael Pollak (1992, p.202), trata-se de uma experiência vivida por tabela:

Acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer. São acontecimentos dos quais a pessoa nem sempre participou. É perfeitamente possível que, por meio da socialização política, ou da socialização histórica, ocorra um fenômeno de projeção ou de identificação com determinado passado, tão forte que podemos falar numa memória quase que herdada.

De fato, o caso em tela atesta uma memória incorporada a partir da vivência em um determinado espaço e grupo social, quais sejam, a USP e o seu corpo docente de História, por mais heterogêneo que estes fossem à época.

Circulando por esse microcosmo, onde se formaram e passaram a atuar profissionalmente, Capelato, Glezer e Ferlini explicitaram a força da tópica memorialística da ascendência francesa do Departamento de História da USP. A memória, longe de ser apenas objeto das ciências humanas, é também um fenômeno social agenciador, capaz de modelar falas, escritas, objetos e subjetividades. Conforme certa tradição, centrada nas noções de memória involuntária e memória espontânea, ela possuiu a estranha e a forte capacidade de irromper nos lugares e nos indivíduos - à revelia destes (Bergson, 1999BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martin Fontes, 1999.; Proust, 2006PROUST, M. No caminho de Swann. São Paulo: Globo, 2006.) -, o que faz que tenha existência social. Logo, não se trata de um mero princípio de conservação, o qual somente guardaria passivamente o vivido. Longe de ser simples faculdade biológica, a memória revela-se como uma espécie de tecido da própria vida humana, recobrindo o corpo e a mente tanto dos indivíduos e grupos sociais quanto da própria sociedade.

Jacy de Seixas (2001SEIXAS, J. A. Percursos de memórias em terras de história: problemáticas atuais. In: BRESCIANI, S.; NAXARA, M. Memória e (re)sentimento. Campinas: Unicamp, 2001., p.52) assegurou que “a memória existe fora ‘de nós’, inscrita nos objetos, nos espaços, nas paisagens, nos odores, nas imagens, nos monumentos, nas comemorações, nos arquivos, nos artefatos e nos lugares mais variados. É preciso reconhecê-la também em seu próprio movimento, ao mesmo tempo espontâneo e interessado, sempre descontinuo e atual”. Existente no meio social, de forma mais ou menos cristalizada, a memória condensa e oportuniza um passado, um tempo ido, o qual pode ser afirmado ou negado, atualizado ou desatualizado, por meio das mais variadas práticas sociais. A comemoração de um acontecimento, ocasião em que o passado vira um tema da ordem do dia, costuma ser a data redonda para a memória dos primórdios renovar-se. Quanto mais sujeitos, práticas e instituições participarem deste aggiornamento, maior será a força da memória, sua capacidade de estruturação, de agenciar e modelar realidades.

Para Helenice Rodrigues (2002RODRIGUES, H. Rememoração/comemoração: as utilizações sociais da memória. Revista Brasileira de História, v.22, n.44, p.425-38, 2002., p.432), “comemorar significa reviver de forma coletiva a memória de um acontecimento considerado como ato fundador, a sacralização dos grandes valores e ideais de uma comunidade constituindo-se no objetivo principal”. No caso dos mestres franceses da USP, em especial do seu Departamento de História, o processo ultrapassou as historiadoras Capelato, Glezer e Ferlini. Na mesma edição em que o texto a respeito da dita Escola apareceu, veio uma entrevista com Fernando Novais, sugestivamente intitulada “Braudel e a missão francesa”, a qual se iniciava com a seguinte pergunta: “Qual a contribuição dos historiadores franceses e dos cientistas da França para a evolução da FFCL?” (Estudos Avançados, 1994, p.161).5 5 A colocação dessa pergunta, indagando a respeito de uma contribuição já pressuposta dos mestres franceses, mostra como a memória dourada dos docentes estrangeiros atuava então como fator estruturador e organizador de narrativas. Não se admitia nenhuma dúvida sobre o legado francês em si, mas apenas a respeito de seu conteúdo e forma.

A resposta do entrevistado cuja formação se deu entre os anos 1950-1960, portanto posterior ao período da presença dos docentes estrangeiros, mobilizou um discurso igualmente já dado, ao destacar o papel fundamental dos franceses na área de História: “Jean Gagé, Émile Leonard, Émile Coornaert e, naturalmente, Braudel. Todos eles de primeira qualidade” (ibidem). Eduardo de Oliveira França, ex-aluno e ex-assistente de professores franceses, foi outro entrevistado que se valeu de uma memória francófona para positivar o legado de Braudel e Cia. Ao final, nos dois depoentes, creditou-se ao estrangeiro a modernização das ciências sociais no Brasil, replicando uma explicação exógena para grandes transformações nacionais.

Diante dessa memorialística historiográfica enaltecedora dos franceses, cabe levantar alguns questionamentos, ampliando o que já se sugeriu e delimitando a investigação das páginas seguintes: como e quando surgiu tal memória? Quais foram os seus artífices? De que maneira ela se estabeleceu no meio historiográfico uspiano? Quais transformações passou ao longo do tempo, até ser veiculada como que oficialmente pelo Departamento de História nos anos de 1990 por ocasião do sexagenário da USP? Qual papel os historiadores da USP desempenharam para a sua formulação, disseminação e sedimentação? Tais são as possíveis questões a se abordar e para as quais o presente ensaio tentará contribuir, preenchendo lacuna existente nos estudos relativos à missão francesa, aqui encarada com base em um dado departamento.

As próximas linhas tentarão abarcar um momento preciso da memória institucional em foco; seu alvorecer, sua primeira aparição no terreno delimitado da área de História, a ocasião em que se organizou e se disseminou pioneiramente uma enunciação favorável ao legado francês. O texto a seguir traz à luz e aposta em um relato inaugural, entendido e analisado como um texto primeiro: discurso fundador de uma dada memória disciplinar e institucional, o ponto inicial de narrativas aparentadas, “um discurso que renasce em cada um de seus pontos, que reaparece sem cessar, em todo frescor, a partir das coisas, dos sentimentos ou dos pensamentos” (Foucault, 2012FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2012., p.22).6 6 Nos últimos anos observava-se uma leitura crítica e desmistificadora dos enunciados uspianos sobre a (auto)proclamada marca francesa de sua historiografia. Nesse sentido, pode-se supor que o elogio das origens francesas na historiografia uspiana em particular e brasileira, em geral, predominou até fins do século XX, sendo a partir de então bastante relativizado. A proposta é flagrar e discutir o aparecimento intramuros da memória dourada sobre os historiadores franceses que participaram dos primeiros anos do curso de História da USP, na época irmanado ainda ao de Geografia.

Desse modo, divide-se o texto em duas partes. Inicialmente, chama-se para a análise uma conferência proferida em 1949 por um dos ex-alunos da missão francesa que passou a ocupar uma posição proeminente na FFCL da USP: Eurípedes Simões de Paula, protagonista de proa de uma memória francesa no universo uspiano. Em seguida, parte-se para destacar e discutir como, após sua primeira aparição, tal lembrança foi sendo monumentalizada, veiculada por outros sujeitos, ganhando robustez entre os historiadores da USP. Em ambas as partes, a busca maior é pela historicização de uma memória específica por seus primeiros momentos, de sua irrupção inicial, quando não passava de uma fala, até o momento em que ganhou ares institucionais, tornando-se uma memorialística recorrente, facilmente reconhecível e crível por uma determinada comunidade. Ao final, enfrentando o problema da historicidade das reminiscências coletivas, espera-se que este movimento histórico da memória - a partir de um caso particular, é certo - esteja evidenciado.

Um relato fundador

Segundo Fernanda Massi, a vinda de docentes da França para fundar cadeiras nos cursos da FFCL7 7 Até 1955, o curso de História estava irmanado ao de Geografia, ruptura que ocorreu somente a partir da lei federal n.2.594, aprovada em 8 de setembro do referido ano. encerrou-se formalmente nos últimos anos de 1940, após pouco mais de uma década de cooperação franco-brasileira. A socióloga assinalou a existência de três fases distintas: 1934-1935, marcada pela vinda de docentes consagrados, como Pierre Deffontanies (Geografia), Etienne Born (Filosofia), Emile Coornaert (História) e Paul Bastide (Sociologia); 1935-1938, quando aportaram da Europa jovens agregés com pouca ou nenhuma experiência no ensino superior, tais como Lévi-Strauss (Sociologia), Fernand Braudel (História) e Jean Maugüé (Filosofia); 1938-1946, já no cenário da Segunda Guerra, o que prolongou por um tempo não previsto a permanência de professores como Roger Bastide (Sociologia) e Jean Gagé (História) (Massi, 1991).

O retorno de Gagé no final do ano letivo de 1946, após reger a cadeira de História da Civilização Moderna e Contemporânea, pode servir como marco conclusivo desse empreendimento diplomático franco-brasileiro, de modo que “a partir dos anos 50 os brasileiros formados pela Universidade passaram a ocupar as cadeiras deixadas pelos franceses” (ibidem, p.14). Foi nessa conjuntura institucional nova que uma memória sobre a presença dos franceses começou a ser construída e veiculada no Departamento de História da USP. Nesse sentido, destaca-se a figura de Eurípedes Simões de Paula, aluno da primeira turma do curso de História, ex-assistente de Braudel e Gagé. Esse foi o orientador formal da tese de doutoramento de Simões de Paula, escrita em 1942: O comércio varegue e o Grão-Principado de Kiev.

Em 1946, Simões de Paula substituiu seu orientador, ao assumir a cátedra de História da Civilização Antiga e Medieval, após concluir o trabalho Marrocos e suas relações com a Ibéria na Antiguidade. Como alguém profundamente ligado aos mestres franceses, ele foi o principal artífice de uma memória consagradora do legado francês na historiografia uspiana que então começava a se afirmar. Três anos após a partida de seu professor-orientador, Simões de Paula foi convidado a ministrar a aula inaugural da FFCL no salão nobre da USP, então sediada na Rua Maria Antônia, centro pulsante da capital paulista. Como catedrático mais novo,8 8 Tal rito de abertura do ano letivo pelo mais recente catedrático era uma prática comum no corpo docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. caberia a ele falar para uma plateia formada por docentes e discentes ligados aos mais variados cursos de licenciatura, tais como Filosofia, Sociologia, História-Geografia, Letras, Química, Matemática e Pedagogia.

Diante desse auditório multidisciplinar, o ilustre convidado escolheu a temática “a história e o seu ensino nesta faculdade” (Paula, 2009_______. A história e seu ensino na Faculdade. Revista de História, n.160, p.75-84, 1º semestre de 2009.) como forma de contemplar um denominador comum entre todos, o qual apontava para o “desenvolvimento das ideias e práticas” (ibidem) ministradas na FFCL. Com tais pretensões, no dia 11 de março de 1949 Simões de Paula começou a articular uma memória positiva daqueles docentes que tinham, há não muito tempo, deixado a USP. Registre-se que na ocasião da solene aula, Simões de Paula ocupava a posição de vice-diretor da FFCL, cargo vivenciado entre 1947-1950,9 9 Nessa época, o diretor da FFCL era um colega de Simões de Paula, também membro do corpo docente do curso de História e catedrático: Astrogildo Rodrigues de Mello. Possivelmente, era um dos presentes na ocasião da aula de 1949, o que contribuiu ainda mais para elevar sua formalidade. quando saiu para se tornar diretor, posto que em anos posteriores viria novamente a desempenhar.

A aula, portanto, não era apenas de um professor, nem tampouco de um simples recém-catedrático; antes, era a preleção pedagógica de alguém que acumulava uma forte carga institucional à época, espécie de voz altamente representativa da instituição universitária. Com 38 anos de idade, pode-se imaginar que Simões de Paula, professor, catedrático, vice-diretor, ex-aluno das primeiras turmas e ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, era como que uma autoridade perante a sua audiência. Sua presença tinha o peso da história e era, pois, digna de atenção. Por si só, o momento parecia - e tinha tudo para ser - memorável.

A temática é por deveras sugestiva, como se o palestrante desejasse indicar que os franceses, antes de tudo, teriam influído no ensino das matérias das quais se ocuparam. Atividade relacional, todo ensino pressupõe uma aprendizagem, um contato entre aquele que ensina e um outro que aprende. Franceses e brasileiros estariam, assim, em relação, partilhando um contato (bem com um contrato) pedagógico. Daí a metáfora do mestre e dos discípulos. Diante de licenciandas e licenciandos, Simões de Paula trazia a experiência do magistério daqueles professores que foram os primeiros a fornecer lições de história. Com isso, era como se o detentor da fala revelasse ao seu público com quem ele aprendeu o que na época ensinava. Lugar de destaque maior não se poderia dar aos franceses em tal situação de fala. Para o orador, seus professores faziam jus ao título de mestre.

Seu discurso já começa prestando tributo a um historiador francês, Lucien Febvre, o qual seria a inspiração maior do pronunciamento. Disse o orador: “à guisa de modelo inspiramo-nos na magnífica aula inaugural que o mestre Lucien Febvre pronunciou em 1941, durante a feroz ocupação do solo de França pelo invasor nazista, aos alunos da École Normale Superieur de Paris. Muitas de suas ideias aqui estarão consubstanciadas” (ibidem, p.75). Desenvolvendo longamente a concepção febvreana segundo a qual o saber histórico é um conhecimento cientificamente conduzido a respeito do homem em sua dimensão social e temporal, Simões de Paula atribuiu o enraizamento destas lições historiográficas na USP aos mestres franceses. Estes teriam atuado como um verdadeiro elo entre Febvre e o corpo discente.

Assim foi feita a ligação franco-brasileira: “todas essas ideias nós a ouvimos dos nossos mestres franceses que, desde 1934, estão colaborando com as nossas autoridades universitárias na ereção de uma verdadeira Faculdade” (ibidem, p.79). Discípulos de Febvre, os mestres franceses do curso de História seriam os responsáveis não só pela conexão do Brasil com os Annales, como também seriam um dos construtores da própria instituição universitária na sociedade brasileira. Da historiografia brasileira para a cultura acadêmica no país, os mestres da douce france deveriam ter seus nomes igualmente escritos na história educacional e científica.

Em seguida, de forma linear, acompanhando ano a ano, o orador dedica parágrafos para evocar cada um dos três principais estrangeiros: Coornaert, Braudel e Gagé. Sobre o primeiro, anuncia que “em 1934, tivemos a honra insigne de sermos discípulos do professor do college de France, um grande especialista em história econômica da Idade Média” (ibidem, p.79). Ex-aluno de Coornaert, Simões de Paula coloca-se na condição de discípulo que relembra o mestre para uma plateia que não teve o privilégio de seu aprendizado. Instruindo a audiência, a mistura pedagógica entre passado e presente segue com os demais missionários:

De 1935 a 1937 e, ainda, em 1940, tivemos entre nós o professor Fernand Paul Braudel, da École dês Hautes Études da Sorbonne, grande conhecedor da história moderna, principalmente do século XVI na Península Ibérica, e que há pouco mais de dois anos defendeu brilhante tese de doutoramento, depois de permanecer cinco anos num campo de prisioneiros de guerra e ter aí, como Henri Pirenne na 1 Guerra Mundial, organizado uma verdadeira universidade de que foi reitor. (ibidem)

O modelo memorial do orador opera não só com os fatos idos, ocorridos na primeira década de funcionamento da USP, mas também com o tempo recente. Com essa abordagem, o auditório estudantil ficava mais familiarizado com o sujeito lembrado, facilitando a identificação. Por fim, com o último nome da trinca francesa a mesma relação de proximidade é buscada: “de 1938 a 1945, esteve entre nós o professor Jean Gagé, da Faculdade de Letras da Universidade de Estrasburgo, não menos notável que os seus antecessores. Só os que se dedicam ao estudo da Antiguidade, principalmente ao período Augusto, é que podem fazer ideia do valor desse professor no campo da epigrafia e da arqueologia romana” (ibidem).

A linguagem do “nós”, típica do discurso institucional, comparece para estabelecer uma vinculação direta entre o orador, a plateia e o objeto do discurso, unificando todos os nomes próprios ali presentes, direta e indiretamente. A fala de Simões de Paula age no intuito de criar uma só voz, um único coro, como se emergisse um som homogêneo do passado. Seus mestres estariam juntos e compenetrados em uma missão pedagógica formadora de discípulos.10 10 Em nenhum momento do seu texto, Simões de Paula chega a apontar alguma tensão, conflito ou dificuldade entre os partícipes da missão francesa em sua lida pedagógica com o corpo discente brasileiro. A partir de estudos mais recentes, sabe-se que tais elementos existiram bastante (Costa, 2018). Após detalhar os principais partícipes da missão, arremata-se todas as figuras citadas: “assim, tivemos, desde 1934, durante 14 anos, um estudo de história orientado mais para os estudos econômicos e sociais do que para outros setores, formando, pois, uma bela unidade, responsável sem dúvida pela homogeneidade que se nota entre os jovens professores de História formados pela nossa faculdade” (ibidem, p.80). Pela periodização, a época dos mestres não estava distante no tempo. Ao invés do afastamento temporal, o que se vê é a justaposição de épocas: a do orador e a da plateia, as quais se fundem e garantem um espírito de corpo. Na temporalidade da aula, a missão francesa vai até o presente de 1949, prolongada no tempo, como se fizesse parte da atualidade de todos que estavam ali no salão.

Dessa forma, assegura-se a presença do passado no presente de forma viva e vibrante. O discípulo nunca esquece o mestre, a quem rende graças, mantendo o seu legado sempre vivo. A memória do mestre instituía uma política de lembrança (Huyssen, 2014HUYSSEN, A. Culturas do passado-presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.). O mestre, sempre atual, viveria em seus discípulos. Um se eterniza por intermédio do outro (Rancière, 2002RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.). Assim como o presente liga-se ao passado, o aprendiz vincular-se-ia a quem lhe ensinou os primeiros preceitos. É essa relação que Simões de Paula buscou estabelecer com seus professores além-mar. Ela é, antes de tudo, pedagógica, de formação de discípulos e herdeiros. Uma áurea formativa, baseada em uma relação de ensino-aprendizagem, marcou o aparecimento da memória pró-mestres franceses na FFCL da USP.

Embora tenha tido professores estrangeiros e nacionais entre os seus anos de graduação (1934-1936), Simões de Paula não fez praticamente nenhum registro sobre esses últimos. Durante sua formação, assistiu a cursos com Afonso Taunay e Plínio Ayrosa, docentes das cadeiras de História da Civilização Brasileira e Etnologia Brasileira e Tupi-Guarani,11 11 Aryana Costa (2018) destaca que as referidas cadeiras, muito mais do que aquelas ministradas pelos franceses, contaram com uma organicidade de aulas, com métodos, conteúdos e avaliações mais claras, tendo um peso importante no primeiro currículo do curso de História e Geografia da USP. respectivamente. Além desses nomes ausentes, podem-se mencionar também outros: aqueles (ou aquelas) pertencentes ao Instituto de Educação da USP, os quais ministravam cadeiras como Biologia Educacional Aplicada ao Adolescente, Psicologia da Adolescência, História e Filosofia da Educação, Educação Secundária Comparada e Metodologia do Ensino Secundário no último ano do curso de História, a fim de conceder o título de licenciado. Tais cadeiras foram oferecidas em 1936 e, muito provavelmente, Simões de Paula cursou uma ou algumas delas, uma vez que era requisito obrigatório para a obtenção do diploma (Costa, 2018COSTA, A. De um Curso d’água a Outro: memória e disciplinarização do saber histórico na formação dos primeiros professores no curso de História da USP. Rio de Janeiro, 2018. Tese (Doutorado em História) - Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro.).

Para não dizer que apenas os professores brasileiros foram esquecidos na memória pró-missão francesa, cabe apontar que dois franceses igualmente o foram: Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig, ambos docentes da cadeira de Geografia,12 12 Até 1939, só havia no curso uma única cadeira de Geografia na qual se ministrava, anualmente, diferentes cursos. A partir daquele ano, operou-se uma divisão, surgindo as cadeiras de Geografia Física e Humana, ambas cursadas nos primeiro e segundo anos da graduação (Roiz, 2012). a qual era ministrada do primeiro ao último ano do curso. Deffontaines atuou somente no primeiro ano (1934), sendo substituído pelo seu colega francês anteriormente citado, o qual permaneceu até 1936. De acordo com Larissa Lira (2017LIRA, L. A. de. Pierre Monbeig e a formação da geografia brasileira. São Paulo, 2017. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo..), a primeira turma de História da USP teve aulas com Monbeig. Todavia, ao contrário de Coornaert, Braudel e Gagé, os geógrafos esquecidos não atuaram na cadeira de História da Civilização, o que travou sua ligação com a historiografia, embora os dois tivessem uma clara vinculação com este campo disciplinar.13 13 O que transparece não só em suas obras intelectuais como no próprio curso que fizeram na Sorbonne dos anos 1920-1930, quando havia a formação em História e Geografia. Mesmo com o curso de História irmanado ao de Geografia, a memória de Simões de Paula não alcançou seus docentes geógrafos, mas apenas os de História. Como explicar essa predileção, para além dos esquecimentos inevitáveis de toda memória?

Para Patrícia da Silva (2019), a segunda metade da década de 1940 marca uma importante inflexão na trajetória de Simões de Paula. Terminada a Segunda Guerra, ele retornou ao Brasil após uma temporada na Itália, onde ficou entre 1943-1945 como combatente oficial. Seu retorno deu-se em meados de 1945, quando reassumiu o posto de professor-assistente de História da Civilização Antiga e Medieval. Segundo Janice Theodoro (2009THEODORO, J. Eurípides Simões de Paula (1910-1977). Revista de história, n.160, p.17-50, 1º semestre de 2009., p.18), o fim do conflito mundial coincidiu com o momento em que Simões de Paula “optou pela carreira universitária desligando-se do serviço ativo do Exército brasileiro”. No ano 1946, obteve a cátedra de História da Civilização Antiga e Medieval. Ato contínuo, passado um ano, tornou-se vice-diretor da FFCL, em um mandato de três anos, após o qual se tornara diretor até 1954. Registre-se ainda que no começo de 1950 houve a criação do periódico Revista de História (RH), para o qual Simões de Paula dedicara enormes esforços ao longo de sua vida.

Articulada a todas essas iniciativas, está igualmente a lembrança dos louvados mestres historiadores que passaram pela USP. O esforço de rememoração feito por Simões de Paula caminhou pari passu com sua escalada institucional e historiográfica. Por meio da memória, agregava valor a sua trajetória, ao mesmo tempo em que a vinculava ao percurso da própria instituição, criando assim uma simbiose marcante entre si e a USP, entre o historiador e a FFCL. Não à toa, em seu discurso de posse como diretor dessa unidade, apresentou-se exatamente como um homem profundamente ligado à seção que passava então a reger:

Ex-aluno desta Escola, ligado a ela desde os seus primeiros dias, tenho - como sabeis - consagrado todo o meu tempo e esforço ao ensino de História da Civilização Antiga e Medieval nesta Faculdade, interrompendo a minha modesta vida de estudo e de trabalho, nesta Casa, apenas durante o tempo que tive a honra de servir nas Fôrças Armadas. Vós, porém, tivestes a bondade de lembrar o meu nome para a direção desta escola. Aceitei a vossa gentileza e ouso lembrar-vos, uma vez ainda, que é, seguro na vossa confiança e no vosso apôio, que eu conto levar a bom têrmo a tarefa de que me incumbistes. Estou sempre pronto aos altos interêsses da nossa Faculdade. (Paula, 1952PAULA, E. S. de. Discurso do Prof. Dr. Eurípides Simões de Paula. In: UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Anuário da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (Universidade de São Paulo) (1950). São Paulo: Secção de Publicações [da] FFCL-USP, 1952, p.164-170., p.166)

O uso da palavra “Escola” é bastante significativo, na medida em que serve como elemento a cimentar a identidade do orador-diretor com a unidade que passava a dirigir. Ocupando o presente da instituição e lançando-se ao futuro da mesma, Simões de Paula mostrou-se também como alguém que fez parte do passado da FFCL: foi aluno, mas não qualquer aluno; foi o discípulo dos mestres franceses, com os quais atuou desde o início.

A força de tais lentes oriundos do Velho Mundo teria irradiado para além das cadeiras que ocuparam, garante Simões de Paula na sequência de seu discurso de 1949. As disciplinas relacionadas à História do Brasil e da América teriam incorporado a mesma orientação trazida da França, a despeito de não terem sido fundadas por nenhum integrante da missão francesa. Como prova, o regente da aula magna cita o exemplo de Astrogildo Rodrigues de Mello, que “tem procurado desenvolver o ensino recebido de seus mestres” (Paula, 2009, p.80). O mesmo valeria para os catedráticos Afonso Taunay e Alfredo Éllis Júnior, que em História da Civilização Brasileira “tomaram também o mesmo rumo que as outras suas companheiras” (ibidem). A lição não ficou apenas com os catedráticos herdeiros dos franceses: abrasileirou-se, tamanha foi a sua força, acredita e rememora Simões de Paula.

Ao trazer dois nomes nacionais como igualmente influenciados pelos missionários franceses, Simões de Paula eleva ainda mais a ação fertilizadora dos seus mestres, responsáveis pela formação de uma cultura universitária de alto valor. Daí porque todos os participantes da USP deveriam trazer sempre “os últimos ensinamentos e as experiências da ímpar cultura francesa” (ibidem). A memória dos mestres não poderia ser esquecida, de modo que Simões de Paula, com sua aula inaugural, abrindo o ano de 1949, procurava justamente cumprir tal esforço. Uma vez realizado tal intento, a memória francesa uspiana ganharia novos guardiões, homens e mulheres que garantiriam uma maior perenidade histórica para os nomes de Coornaert, Braudel e Gagé.

Desse modo, o pronunciamento de Simões de Paula não inaugurou apenas o ano letivo. Sua fala marcou também um primeiro momento de entrada institucional da memória francesa no meio universitário uspiano. Por certo, falas coloquiais a respeito da época dos docentes franceses e evocações furtivas sobre o seu ensino devem ter sido proferidas anteriormente em ocasiões banais ou até mesmo nas salas de aula. Mas, até o momento da solenidade, a lembrança desse período circulava caoticamente, sem organização e sistematicidade, carente de interpretação e sentido. Não havia ainda um trabalho de memória (Ricouer, 2007), isto é, um enquadramento relativamente coerente das experiências pretéritas, capaz de fazer sentido não só ao sujeito da lembrança como a todo um grupo de pessoas. Simões de Paula apresentou ao público uma memória relacional, tanto com traços individuais quanto com marcas coletivas, ligada ao grupo uspiano de sua geração. Daí a sua capacidade de produzir identificação e pertencimento, pontos nodais de toda e qualquer memória.

Foi isso que Simões de Paula ofereceu como boas-vindas, com o fim de revelar a singularidade daquele centro de ensino superior. Não era um espaço qualquer que acolhia o corpo discente; era preciso conhecê-lo, e tal conhecimento passava, obrigatoriamente, pela história daqueles mestres franceses que teriam fundado a FFCL e o seu ensino. Um seria parte do outro. Um espaço pedagógico, um centro de ensino superior cheio de histórias, de vivências pretéritas balizadoras da atualidade de 1949, foi a oferta que o catedrático entregou ao seu público. Trabalho de explicitação e organização de experiências pretéritas, em uma espécie de gestão do passado via memória, foi realizado por Simões de Paula, lançando, assim, as bases de uma memória social.

Uma memória monumentalizada

Na sequência dos anos, outras iniciativas trataram de consolidar a memória francesa, tal qual enquadrada por Simões de Paula. Mais uma vez, esse assumira um destaque. Em 1950, quando fundou a RH com pretensões de ser o periódico oficial do seu Departamento, o ex-assistente de Braudel e Gagé não perdeu a oportunidade de relembrar um de seus mestres:

Já em 1937, quando lecionava na Faculdade, o ilustre Prof. Fernand Paul Braudel - com que tivemos a honra de trabalhar na qualidade de assistente - pensávamos em fundar uma Revista destinada à fundação de trabalhos históricos, não só de professores e assistentes, mas também de licenciados e alunos. Motivos vários, entretanto, impediram a concretização dessa ideia que, só agora, vencidos em grande parte os óbices antigos, pode ser levada a efeito. Aparece assim a nossa Revista. (Revista de História, 1950, p.01).

A lembrança foi das melhores: além de marcar a FFCL com suas aulas, com suas lições em classe, estando na origem do centro de ensino, Braudel teria ainda participado do nascimento da RH. Dez anos após a sua estada, era relembrado por uma ação institucional pioneira: o primeiro período acadêmico especializado no país. Assim, a própria memória de Braudel adensava-se; além de professor e orientador de tantos discentes, integrante da missão francesa formadora de discípulos, ele era agora também um dos principiadores do periódico criado em 1950. Seu lugar de origem, de pedra angular, recebia novos investimentos, monumentalizando-se já no ano seguinte a 1949.

Na década posterior, Pedro Moacyr Campos, ex-aluno de Simões de Paula, por quem foi orientado em sua tese, escreveu um “Esboço da historiografia brasileira nos séculos XIX e XX”. Nesse trabalho publicado na RH, a memória francesa, já pontilhada nas décadas anteriores, seguiu sendo adornada:

Para São Paulo e Rio de Janeiro vieram professores franceses, cujos nomes jamais serão esquecidos, ao tratar-se da história cultural do país: Émile Coor- naert, Fernand Braudel, Henri Hauser, Eugène Albertini, Jean Gagé. Sob a orientação dêste último as cadeiras de historia, em São Paulo, principiaram a formar seus primeiros doutores; por mais defeituosas que fôssem as teses apresentadas, em virtude de condições dominantes, não se pode negar representarem um grande progresso. Pela primeira vez no Brasil, trabalhava-se metodicamente, sob a orientação de um mestre europeu. (Campos, 1961aCAMPOS, P. M. Esboço da historiografia brasileira nos séculos XIX e XX. Revista de história, v.22, n.45, 1961a., p.156)

Embora cite a experiência universitária carioca, Campos não se deteve nela, focando exclusivamente na sua universidade. O destaque vai todo para o cenário paulista. A mesma trinca francesa citada por Simões de Paula ressurgiu: Coornaert, Braudel e Gagé.

Verdadeiro acontecimento, divisor de águas da história no Brasil, a chamada missão francesa teria lançado as bases da “moderna historiografia brasileira” (ibidem p.166). Se em Simões de Paula a memória francesa tem sua amplitude limitada ao espaço da FFCL, sobretudo o Departamento de História, nas palavras escritas do seu orientando o legado dos mestres europeus alcançaria toda a historiografia, bem como a “história cultural do país”. Um esboço da historiografia brasileira, por mais modesto que fosse, não poderia deixar de conter o capítulo francês. Com isso, a memória uspiana dos franceses revestiu-se de uma dimensão nacional; sua relevância estaria para além do meio originário. Logo, tratar-se-ia de uma memória marcada por grandes feitos realizados igualmente por homens que deveriam ter seus nomes elevados nacionalmente.

Coornaert, Braudel e Gagé, recriados por uma memória discente em busca das origens do presente, aparecem como grandes homens, maîtres de la pensée, o que justificaria e legitimaria a própria reminiscência realizada. Para Aleida Assmann (2011ASSMAN, A. Espaços de recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.), memória e fama costumam andar juntas, em um relacionamento de retroalimentação, garantindo, pois, a transmissão dos grandes feitos por sucessivas gerações ao longo do tempo. A trinca francesa, colocada como fundadora, tanto do curso de História da USP quanto da modernização dos estudos históricos no Brasil, mereceria a fama, isto é, um posto, um status digno de não ser mais esquecido. A pretensão não é outra senão a de eternização, tal qual um monere fixado no tempo.

Seguindo essa mesma linha, Simões de Paula reutilizou sua fala de 1949 em um evento de 1971, 22 anos depois. No dia 5 de julho, ao participar de uma mesa-redonda organizada pelo núcleo regional do Paraná da Associação dos Professores Universitários de História,14 14 A Associação Nacional do Historiadores (ANPUH), principal entidade representativa dos historiadores e das historiadoras atualmente, foi criada originalmente em 1961, quando ocorreu o I Simpósio dos professores universitários de História, na cidade de Marília, São Paulo. Até os anos 1970, identificava-se como APUH (Da Silva, 2014). o catedrático da USP trouxe o texto Algumas considerações sobre a contribuição da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para a historiografia brasileira. Aqui, passagens praticamente idênticas da aula inaugural de fins da primeira metade do século XX foram aproveitadas. Embora essa sua última intervenção seja maior do que aquela primeira, as informações a respeito da missão francesa não sofreram substancialmente nenhuma alteração. Assim, após enumerar os juízos de Febvre, Simões de Paula (1971, p.429) repetiu: “Tôdas essas ideias nós as ouvíamos dos nossos mestres franceses que, desde 1934, estavam colaborando com as nossas autoridades universitárias na criação de autêntico centro de estudos”.

Em seguida partiu para caracterizar a trinca historiográfica da missão francesa. Tal qual na aula de 1949, após destacar Coonaert, chega ao nome de Braudel, onde, contudo, introduziu sensíveis mudanças:

De 1935 a 1937 e, ainda, em 1947, tivemos entre nós o Prof. Fernand Paul Braudel, aquêle que, merecidamente, vem sendo identificado como o “papa” da historiografia francesa contemporânea. Professor da École Pratique des Hautes Etudes da Sorbonne, especialista em História Moderna, especialmente do século XVI na Península Ibérica: sua tese de doutoramento é, ao que se saiba um tournant, uma nova maneira de ser das ciências humanas. Homem de ação, corno Henri Pirenne na I Guerra Mundial, organizou com alguns colegas - presos como êle - urna espécie de Universidade muito semelhante às Universidades medievais pela impossibilidade da experimentação. Foi libertado no fim da guerra graças aos bons ofícios da Cruz Vermelha Internacional. (ibidem, p.429-30)

Agora, mais de duas décadas depois, a menção à figura de Braudel já faz questão de destacar a grande importância mundial do historiador da longa duração, colocado como a maior autoridade da historiografia francesa. Tal fato agrega mais valor não só ao mestre dos anos 1930-1940, como à própria missão francesa que teria fundado a historiografia na USP. Do seu presente, Simões de Paula inflaciona o passado do seu universo institucional e disciplinar, adensando-o de forma ainda mais positiva, em uma operação de monumentalização da experiência pretérita.

Para a figura de Gagé, o inflacionamento do passado foi mais modesto. Assim o catedrático iniciante do ano letivo de 1949 referiu-se ao mestre Gagé em 1971:

Dando continuidade ao programa pré-estabelecido e sempre com a colaboração do govêrno francês, lecionou de 1938 a 1945 o Prof. Jean Gagé, então da Faculdade de Letras da Universidade de Estrasburgo e atualmente do Collège de France, não menos notável do que os seus antecessores. Aquêles que se dedicam ao estudo da Antigüidade clássica, especialmente ao período de Augusto, é que podem fazer uma idéia do valor dêsse professor no campo da epigrafia e da arqueologia romanas. (ibidem, p.430)

A informação acrescida foi justamente o posto na prestigiada instituição de ensino e pesquisa Collège de France que Gagé ocupou entre 1955-1972. Simões de Paula valeu-se do sucesso posterior dos membros da missão francesa para adensar ainda mais a relevância do empreendimento cultural. O sucesso a posteriori das carreiras de Braudel e Gagé serve como um elemento que insufla a memória das origens francesas do Departamento de História uspiano.

Além disso, na mesa-redonda o historiador paulista aproveitou para reforçar a relação de continuidade entre Gagé e os dois membros anteriores da missão francesa. Apesar de ter sido o professor que ficou mais tempo e que mais orientou trabalhos na USP,15 15 “Os doutoramentos em história tiveram início com a atuação de Jean Gagé, que orientou quatro teses de 1942 a 1944. Três de seus alunos fizeram carreira na USP: Eurípedes Simões de Paula; Alice Cannabrava e Astrogildo Rodrigues de Mello. Gagé orientou também a tese de Olga Pantaleão, defendida em 1944” (Da Silva; Dantes 2015, p.182). o destaque maior não foi dado a Gagé, mas sim a Braudel.16 16 Atualmente, existe no prédio do curso de História da USP um auditório chamado Fernand Braudel, o que não deixa de explicitar tanto uma monumentalização desse intelectual francês como uma preferência por seu nome, em detrimento dos demais integrantes historiadores da missão francesa. Isso mostra como a memória afrancesada da historiografia uspiana foi lidando com diferentes passados, anteriores e posteriores ao evento da vinda dos docentes franceses. Trata-se de uma construção memorialística que, como toda memória, foi incorporando os acontecimentos a fim de se consolidar e se cristalizar em um dado presente. Tais camadas de tempo contribuem igualmente para monumentalizar a memória dos mestres franceses em terras paulistas. Em 1971, agora diante de um auditório mais nacional e mais homogêneo disciplinarmente, Simões de Paula operacionaliza e atualiza a memória das origens da FFCL, reforçando a elaboração de 1949. Essa memória foi tornando-se tanto historiografia quanto história, isto é, escrita da história e passado dela mesma, uma recobrindo a outra.

No princípio era a memória, a memória de Simões de Paula, formada, obviamente, não no íntimo do seu ser, mas em contato com vários outros indivíduos e espaços. Requisitado por catedráticos, diante de uma plateia discente formada por futuros professores e professoras, e ocupando um importante cargo de chefia, o historiador vice-diretor da FFCL evocou seus mestres de sala de aula e de ofício. Assim, marcava sua posição de discípulo e recuperava sua trajetória de formação, ao mesmo tempo que reconstruía “a história e o seu ensino” na USP. Do individual ao institucional, tecia-se a tríade do jogo da memória, marcada pelos três sujeitos de atribuição da lembrança: o eu presente que lembra, o outro porvir que preservará a memória e os próximos para os quais se ambiciona admoestar (Ricoeur, 2007RICOEUR, P. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.). Tal memória imiscuiu-se com a história da própria instituição paulista, de maneira geral, e da FFCL, de modo particular.

No mesmo ano de 1949, a audiência da aula ministrada por Simões de Paula foi alargada: as páginas do boletim da FFCL, em seu número 12, transcreveu e publicou o discurso de seu autor. Durante muito tempo, o manuscrito publicizado ficou arquivado no Centro de Documentação Histórica, setor de preservação e apoio à pesquisa histórica da FFCL, criado em 1966. Anos depois, o documento ganhou nova atualidade, igualmente relacionada aos esforços institucionais: em 2009, com um dossiê especial dedicado a Simões de Paula, a RH republicou o conteúdo escrito da aula de 1949. Tal documento, monumentalizado, inseriu-se no contexto de efeméride dos 30 anos do falecimento trágico (atropelamento) de Simões de Paula em 1977.

Toda essa trajetória (da oralidade à documento-monumento escrito) evidencia o grau de acolhimento institucional da memória de Simões de Paula, feito, inclusive, por ele próprio, a partir de suas posições de comando. Além disso, presta-se também para aquilatar a relevância da aula de 1949. Como um monumento, seu conteúdo não poderia ser esquecido; antes, deveria ser preservado, colocado à disposição de quem se interessasse. Daí as diferentes iniciativas de preservação e de atualização, evidenciando a historicidade, a atualização e a manutenção da memória, em um trabalho de arquivamento e de gestão memorialística do passado. Com isso, a própria memória dos missionários franceses foi ganhando terreno nos meios oficiais. Não à toa, o nome de Simões de Paula está ligado aos mestres franceses, como se um reforçasse o outro, como se um dependesse do outro. Caminhos cruzados, a história de um passaria obrigatoriamente pela história do outro.

Todavia, essa conquista do espaço por parte de uma memória favorável ao legado francês não ocorreu de imediato. Em 1951, Astrogildo Rodrigues de Mello publicou na RH Estudos históricos no Brasil, artigo no qual ambicionou recuperar a historicidade da historiografia brasileira, tomando como ponto de partida a experiência da FFCL, onde era catedrático de História da Civilização Americana. Em seu artigo, ele nada apontou sobre a missão francesa, a despeito de seu colega de instituição - Simões de Paula - ter afirmado que o próprio Rodrigues de Mello teria sido influenciado pelos mestres europeus.

Para Rodrigues de Mello (1951MELLO, A. R. de. Os estudos históricos no Brasil. Revista de História, ano II, n.6, 1951., p.385), o impulso renovador da história no Brasil adveio dos ventos modernistas de 1922, que nacionalizou a produção cultural no país, libertando a nação da “tutela intelectual europeia, não apenas na história, mas também, na literatura, na arte e em outros setores da vida cultural”. Os nomes da modernização não seriam forasteiros, mas sim nacionais: Oliveira Viana, Alfredo Ellis Júnior, Pedro Calmon, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior e Gilberto Freyre. Esse silêncio sobre os mestres franceses é significativo, ainda mais devido ao fato de que o autor, assim como Simões de Paula, foi aluno de Coornaert e Braudel; e mais, sua tese de doutorado, defendida em 1942, Política colonial da Espanha através das encomendas, foi orientada por Gagé.

Mesmo tendo tido contato com a trinca francesa - tal qual Simões de Paula -, rememorada apenas dois anos antes por um colega de instituição, o autor de Estudos históricos no Brasil ignorou essa memória, nada apontando sobre um suposto legado francês. Tal lacuna, ao invés de indicar um ato premeditado do sujeito, como que querendo silenciar algo ou se contrapor a alguém, parece apontar muito mais para uma inscrição precária da memória pró missão francesa entre os historiadores uspianos do início dos anos 1950. Nesse momento, tal lembrança havia apenas sido lançada e anunciada, carecendo de força suficiente para estruturar práticas discursivas e não discursivas. Para a memória afrancesada do Departamento de História da USP ganhar estabilidade e robustez foi necessário um conjunto de ações institucionais. Nos anos 1950, tal processo estava ainda em marcha, sujeito a avanços e retrocessos.

Três anos após Rodrigues de Mello, Moacyr Campos rememorou o estudo da História na FFCL. Igualmente ex-aluno de Braudel, Coonaert e Gagé entre 1937-1940, Campos apresentou uma visão ambígua a respeito da missão francesa que conheceu de perto, a qual, como visto, será anos depois reformulada. Seu texto foi publicado no jornal O Estado de S. Paulo, na edição de 25 de janeiro de 1954, sendo republicado na RH no segundo número desse ano. Nessa republicação, apontou-se que o texto foi “reeditado pela revista de História com a gentil anuência do autor e do conceituado matutino” (Campos, 1954, p.491).

Assim como seu colega Rodrigues de Mello, Campos também destacou a atmosfera de modernização dos anos 1920-1930 como ponto importante da renovação historiográfica no Brasil: “a auto-crítica característica do período lançou as bases para uma renovação também do ensino, criando, assim, o ambiente favorável à fundação das primeiras Universidades entre nós” (ibidem, p.494). Porém, esse começo, ainda que com colaboração europeia, foi bastante complicado, em razão das

Dificuldades encontradas pelos mestres franceses na Faculdade [as quais] não foram muito menores do que aquelas com que se defrontaram, em idênticas circunstâncias, professores de outras nacionalidades: falta de preparado secundário adequado por parte dos alunos, abrangendo insuficiência do conhecimento de línguas estrangeiras (inclusive do francês), e absoluta inexistência de material bibliográfico especializado ao alcance dos estudantes. (ibidem, p.495)

Ao contrário da memória de Simões de Paula, o artífice das palavras acima fez questão de apontar as adversidades que marcaram os primeiros momentos do curso de História, distanciando-se de um elogio absoluto das origens. Nos primórdios da memória, a história era outra, menos alvissareira e mais atribulada. O confronto com a memória edulcorado de Simões de Paula é inevitável. Nesse sentido, Campos ponderou:

As cadeiras de História principiaram a formar os seus primeiros doutores, e por mais defeituosas que fôssem as teses apresentadas, em virtude das condições dominantes, é absolutamente inegável que representavam um grande progresso. Pela primeira vez no Brasil, trabalhava-se metodicamente, sob a orientação de um mestre europeu e dava-se ao movimento de auto-crítica que fermentava na elite brasileira desde o fim da Guerra de 1914 uma nova direção. (ibidem, p.497)

Elogio e crítica, em busca de uma avaliação equilibrada, parecem marcar o texto do historiador supracitado. O que fornece ao seu escrito um tom perceptivelmente diferente do de Simões de Paula, atravessado por um verniz de encantamento típico de uma relação afetuosa entre um discípulo e os seus mestres.

Campos, no texto de 1954_______. O estudo da história na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Revista de História, v.8, n.18, 1954., contrabalanceou a vinda dos ditos missionários com o cenário nacional de modernização. A vinda de Braudel, Coonaert e Gagé não teria ocorrido em um cenário cultural vazio; muito pelo contrário, na medida em que a elite letrada da época passava por um processo de autoquestionamento, como a querer renovar suas ideias, práticas e visões sobre o Brasil. A missão francesa coincidiu com o modernismo, de modo que tal encontro teria impactado indelevelmente a historiografia brasileira. Assim, o papel da trinca francesa acabou por ser nuançado, diminuindo bem mais o tom elegíaco presente na aula de 1949 proferida por Simões de Paula.

Assim, dois ex-alunos que travaram contatos bem próximos com os docentes estrangeiros apresentaram uma leitura diferente (quiçá divergente) de uma suposta herança francesa. Em um, essa não foi sequer mencionada; já em outro, a influência, existente, precisaria ser cotejada com o ambiente local. Em ambos, porém, o modernismo de 1922 ocupou um lugar proeminente na renovação da historiografia brasileira. Tudo isso parece reforçar que, na primeira metade dos anos 1950, a valorização excessiva e exaltada dos ilustres mestres franceses não estava de todo colocada entre os representantes do curso de História da USP. Esse centro de ensino estava longe de ser um espaço uniforme, capaz de produzir um consenso a respeito de sua origem ou começo. Menos de uma década após o fim da missão francesa, a memória dessa era bastante frágil, incerta e não consensual entre os historiadores que a vivenciaram. No princípio da memória, a história, isto é, a dispersão, a multiplicidade de vozes e de posições; em uma palavra, a incerteza.

O legado francês era, portanto, um tema em aberto, livre de enquadramentos mais rígidos e de uma memória já organizada e disponível. Foi justamente com essa condição de fragilidade e de não inscrição plena da memória dos docentes estrangeiros que Simões de Paula deparou-se em 1949. Até o momento de sua aula, nenhuma performance pública e institucional tinha sido feita a respeito dos seus professores franceses historiadores. Tamponando essa lacuna, emergiu sua reminiscência enaltecedora daqueles homens doutos que cruzaram o oceano para ensinar história e que, agora, no alvorecer da segunda metade do século XX, não estavam mais presentes. Diante da saída dos franceses, o que fazer com sua ausência? Que história contar? Qual memória guardar? O que dizer sobre os mestres de outrora? Que papel desempenharam? Provavelmente foram estas questões que inquietaram Simões de Paula e o impeliram a organizar discursivamente a “marca” francesa na FFCL e, em especial, no Departamento de História da USP. No princípio da história, igualmente, a memória.

Fontes

  • CAMPOS, P. M. Esboço da historiografia brasileira nos séculos XIX e XX. Revista de história, v.22, n.45, 1961a.
  • _______. O estudo da história na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo. Revista de História, v.8, n.18, 1954.
  • CAPELATO, M. H. R.; GLEZER, R.; FERLINI, V. L. A. A escola uspiana de história. Estudos Avançados, v.8, n.22, 1994.
  • ESTUDOS AVANÇADOS, v.8, n.22, p.5-643, 1994.
  • MALERBA, J. Notas à margem: a crítica historiográfica no Brasil dos anos 1990. Textos de História, v.10, n.1-2, p.181-214, 2002.
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Notas

  • 1
    Almir de Carvalho Bueno, historiador graduado na USP em 1981, ao rever sua trajetória décadas depois, escreveu: “se há uma ‘escola uspiana de história’, Dilú [Maria de Lourdes Monaco Janotti, professor emérita da USP] é uma de suas expressões máximas” (Bueno, 2019, p.90). O tom, vacilante e hesitante, evidencia a dimensão polêmica e inquietante do vocábulo.
  • 2
    Uma análise mais demorada do texto de Capelato, Glezer e Ferlini encontra-se em Freire (2019FREIRE, D. J. F. Memória, história e identidade: o caso da “escola uspiana de história”. Artcultura, v.21, n.39, p.139-53, 2019.).
  • 3
    Nos dias que correm, pode-se apontar que essa memória engrandecedora da missão francesa ocupa um lugar bem reduzido e modesto entre os historiadores e historiadoras da USP. Consultando documentos oficiais do curso de história dessa instituição de ensino superior, como os projetos acadêmico e pedagógico (2019-2023), pouco se vê de referência aos mestres franceses. Tal situação é bastante diferente do que ocorreu entre os anos 1950-1970, quando praticamente todo e qualquer documento de apresentação do Departamento de História da USP apontava para a sua “marca” francesa. Tal mudança parece evidenciar que o tema - a memória da missão francesa na historiografia uspiana - passou de uma tópica vivenciada para um tópico de pesquisa. Mais informações em: <https://historia.fflch.usp.br/> e <https://revhistoria.usp.br/?page_id=7> Acessos em: 13 abr. 2022.
  • 4
    Capelato concluiu o bacharelado e a licenciatura em história no ano de 1971 (o mestrado e o doutorado em 1974 e 1986, respectivamente); Glezer finalizou o mesmo curso em 1966 (mestrado em 1968 e doutorado em 1977); Ferlini completou a graduação em história nos idos de 1977 (mestrado em 1980 e doutorado em 1986). Ver: <https://lattes.cnpq.br/> Acesso em: 13 abr. 2022.
  • 5
    A colocação dessa pergunta, indagando a respeito de uma contribuição já pressuposta dos mestres franceses, mostra como a memória dourada dos docentes estrangeiros atuava então como fator estruturador e organizador de narrativas. Não se admitia nenhuma dúvida sobre o legado francês em si, mas apenas a respeito de seu conteúdo e forma.
  • 6
    Nos últimos anos observava-se uma leitura crítica e desmistificadora dos enunciados uspianos sobre a (auto)proclamada marca francesa de sua historiografia. Nesse sentido, pode-se supor que o elogio das origens francesas na historiografia uspiana em particular e brasileira, em geral, predominou até fins do século XX, sendo a partir de então bastante relativizado.
  • 7
    Até 1955, o curso de História estava irmanado ao de Geografia, ruptura que ocorreu somente a partir da lei federal n.2.594, aprovada em 8 de setembro do referido ano.
  • 8
    Tal rito de abertura do ano letivo pelo mais recente catedrático era uma prática comum no corpo docente da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.
  • 9
    Nessa época, o diretor da FFCL era um colega de Simões de Paula, também membro do corpo docente do curso de História e catedrático: Astrogildo Rodrigues de Mello. Possivelmente, era um dos presentes na ocasião da aula de 1949, o que contribuiu ainda mais para elevar sua formalidade.
  • 10
    Em nenhum momento do seu texto, Simões de Paula chega a apontar alguma tensão, conflito ou dificuldade entre os partícipes da missão francesa em sua lida pedagógica com o corpo discente brasileiro. A partir de estudos mais recentes, sabe-se que tais elementos existiram bastante (Costa, 2018COSTA, A. De um Curso d’água a Outro: memória e disciplinarização do saber histórico na formação dos primeiros professores no curso de História da USP. Rio de Janeiro, 2018. Tese (Doutorado em História) - Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 11
    Aryana Costa (2018COSTA, A. De um Curso d’água a Outro: memória e disciplinarização do saber histórico na formação dos primeiros professores no curso de História da USP. Rio de Janeiro, 2018. Tese (Doutorado em História) - Instituto de História, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) destaca que as referidas cadeiras, muito mais do que aquelas ministradas pelos franceses, contaram com uma organicidade de aulas, com métodos, conteúdos e avaliações mais claras, tendo um peso importante no primeiro currículo do curso de História e Geografia da USP.
  • 12
    Até 1939, só havia no curso uma única cadeira de Geografia na qual se ministrava, anualmente, diferentes cursos. A partir daquele ano, operou-se uma divisão, surgindo as cadeiras de Geografia Física e Humana, ambas cursadas nos primeiro e segundo anos da graduação (Roiz, 2012_______. Os caminhos (da escrita) da história e os descaminhos de seu ensino: a institucionalização do ensino universitário de História na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934-1968). Curitiba: Appris, 2012.).
  • 13
    O que transparece não só em suas obras intelectuais como no próprio curso que fizeram na Sorbonne dos anos 1920-1930, quando havia a formação em História e Geografia.
  • 14
    A Associação Nacional do Historiadores (ANPUH), principal entidade representativa dos historiadores e das historiadoras atualmente, foi criada originalmente em 1961, quando ocorreu o I Simpósio dos professores universitários de História, na cidade de Marília, São Paulo. Até os anos 1970, identificava-se como APUH (Da Silva, 2014).
  • 15
    “Os doutoramentos em história tiveram início com a atuação de Jean Gagé, que orientou quatro teses de 1942 a 1944. Três de seus alunos fizeram carreira na USP: Eurípedes Simões de Paula; Alice Cannabrava e Astrogildo Rodrigues de Mello. Gagé orientou também a tese de Olga Pantaleão, defendida em 1944” (Da Silva; Dantes 2015, p.182).
  • 16
    Atualmente, existe no prédio do curso de História da USP um auditório chamado Fernand Braudel, o que não deixa de explicitar tanto uma monumentalização desse intelectual francês como uma preferência por seu nome, em detrimento dos demais integrantes historiadores da missão francesa.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    13 Mar 2023
  • Aceito
    01 Jun 2023
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