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A SOCIOLOGIA DA ARTE E SUAS CONTROVÉRSIAS

INTRODUÇÃO

Durante muito tempo, a filosofia se encarregou de definir o lugar da arte e seus limites com relação a outras práticas sociais. Empreendeu um grande esforço para delimitá-la em uma esfera específica e segura, isolada da vida quotidiana e restrita a regras consideradas legítimas (Erber, 2015ERBER, P. Breaching the Frame. The rise of contemporary art in Brazil and Japan. California: University of California Press, 2015.). Os filósofos defenderam a arte desinteressada e autônoma, concepção posteriormente criticada pelos sociólogos, cujas pesquisas apontaram para os vínculos da arte com o mundo social. Não obstante, a filosofia deixou seu legado tanto na origem como no desenvolvimento da sociologia da arte. Tal herança se inscreve na controvérsia continuamente renovada entre a análise interna e externa das obras, que reatualiza as proposições de Kant (2009)KANT, I. Crítica da faculdade julgar. São Paulo: Ícone Editora, 2009. e Hegel (1996)HEGEL, G. W. F. Curso de estética. O Belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996. sobre a arte.

A concepção kantiana de uma arte desinteressada e autônoma, a partir de sua formulação acerca do juízo de gosto, tornou-se uma referência para os debates sociológicos que propugnavam, ao contrário, o estudo das conexões da arte – música, literatura, pintura –com o mundo social ao seu redor. Pierre Bourdieu deixou evidente seu enfrentamento com os problemas kantianos, sobretudo em A Distinção:

... a crítica social ao julgamento do gosto, no qual afirma que o livro contribui para: ambição excessiva de dar uma resposta científica às velhas questões kantianas da crítica do juízo, ao procurar na estrutura das classes sociais a base dos sistemas de classificação que estruturam a percepção do mundo social e designam os objetos do prazer (enjoyment) estético (Bourdieu, 2002BOURDIEU, P. Distinction. A social critique of the judgement of taste. Harvard: Harvard University Press, 2002., p. xiii – xiv, tradução nossa).

Ao escrever sobre a história da sociologia da arte, Heinich (2001)HEINICH, N. La sociologie de l’art. Paris: La Découverte, 2001 . afirma que os contornos iniciais da disciplina não se originaram da sociologia nem da história cultural, mas da estética e da história da arte, cujos estudiosos acrescentaram o termo sociedade ao binômio autor e obra. A partir dessa asserção, a socióloga distingue três gerações na história da sociologia da arte. A primeira delas seria representada por autores como Luckács, Benjamin e Adorno que, ao reformularem as ideias de Kant, Hegel e Marx, conceberam uma estética sociológica. A segunda geração integra historiadores cujos estudos procuraram evidenciar que a arte está na sociedade, a exemplo de Raymond Williams e Michael Baxandall, entre outros. Finalmente, nos anos de 1960, uma geração de estudiosos deu início a pesquisas sociológicas empíricas que consideram a arte como a sociedade. Esse último grupo reúne Bourdieu, Heinich, Becker, Passeron e outros especialistas.

Apesar das mudanças ocorridas no século XX, Heinich adverte que a análise interna das obras permanece sendo a questão mais polêmica, senão decepcionante, dos estudos sociológicos sobre arte, com relação à qual os estudiosos estão longe de chegar a um consenso (Heinich, 2001). Em publicação recente, contudo, Arturo Morató esclarece que, nas últimas décadas, um novo movimento teórico e metodológico vem se impondo no campo dos estudos sobre artes, que não mais se recusa a focalizar as obras no primeiro plano da investigação, mas, ao contrário, quer compreender em que medida a arte é capaz de criar e instituir valores sociais. Essa reviravolta nos fundamentos metodológicos aposta justamente no inverso de uma sociologia da arte, que insiste na determinação e na organização social da produção artística (Morató, 2017).

Mas qual o motivo do interesse crescente pela sociologia da arte? É possível que ele se deva à importância, cada vez maior, atribuída à dimensão simbólica da vida social e, ainda, à estetização do cotidiano. Acrescente-se a isso o processo de desmantelamento dos cânones da arte, propiciando questionamentos acerca da autoria, dos materiais tradicionais, dos locais de exposição, da autenticidade e da duração das obras. Atualmente, assiste-se a entrada, nos museus, do grafite, do hip hop, de trabalhos de coletivos de arte, o que seria impensável há tempos atrás (Shapiro, 2007SHAPIRO, R. O que é artificação ? Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 1, p. 135-151, 2007.). De outra perspectiva, a ordem cultural tornou-se mais fluida, desestruturando as antigas fronteiras entre a alta cultura e a cultura popular e rompendo as relações entre estratos sociais e estilos de vida. Outro motivo mencionado por alguns autores (Bueno; Sant’anna; Dabul, 2018; Morató, 2017) refere-se às mudanças institucionais e políticas ocorridas em alguns países a partir da criação de ministérios da cultura e (ou) de agências de financiamento.

Do ponto de vista teórico e metodológico, as proposições de Pierre Bourdieu tiveram enorme impacto ao combater a ideia do “gênio artístico” e a concepção de uma arte desinteressada. Em troca, ele propôs o estudo de um espaço social estruturado pela concorrência, onde seriam geradas as criações artísticas. A recepção de seus conceitos de campo de produção simbólica e de habitus notabilizou-se em diversos domínios da pesquisa sobre educação, cultura e arte, não somente na França, mas em diversos países.

Nos Estados Unidos, Zolberg (2006)ZOLBERG, V. L. Para Uma sociologia das artes. São Paulo: SENAC, 2006. atribui a resistência ao estudo sociológico das artes, de um lado, às características da sociedade norte-americana, que se ergueu sob a perspectiva de ideais liberais democráticos, com forte desconfiança em relação à arte e à sua perspectiva aristocrática; de outro lado, ao cientificismo que dominou a sociologia norte-americana e buscava, a todo preço, utilizar os padrões das ciências naturais no campo das ciências sociais. Zolberg destaca duas tendências: uma vinculada à estética e outra que defende o estudo dos contextos sociais e históricos.

A boa acolhida da obra de Howard Becker em diversos países, inclusive na França, evidencia que a segunda tendência, à qual se refere Vera Zolberg, saiu, de fato, vitoriosa no embate entre os estudos de caráter humanista e aqueles de caráter empírico sociológico. Como Bourdieu, Becker recusou a análise das obras e de sua linguagem estética, voltando-se para a investigação de redes de cooperação que distinguem o espaço social da arte (Becker, 2008).

Vale notar, entretanto, que, apesar dos fatores conceituais, institucionais e históricos, mencionados acima, o desenvolvimento da disciplina foi desigual, obedecendo às lógicas internas, não apenas da tradição intelectual própria de cada país, mas da política autoritária ou democrática existente em cada um deles. O caso da Espanha é ilustrativo nesse sentido:

A nova sociologia das artes que se desenvolveu na Europa e nos Estados Unidos nas décadas dos setenta e oitenta deixou apenas uma centelha no panorama editorial espanhol, e, em geral, pode-se dizer que passou basicamente despercebida até bem pouco tempo no mundo de língua espanhola. Somente Bourdieu teve um impacto significativo, contudo tardio e parcial (suas obras sobre fotografia e museus nunca foram traduzidas, enquanto La Distinción foi traduzida com onze anos de atraso), foi de ordem “teórica”, como abordagem a ser utilizada interpretativamente e não tanto, há muito pouco tempo, como modelo de pesquisa para emular ou colocar em questão (Morató, 2017, p. 20, 21 tradução nossa).1 1 Tradução nossa.

No Brasil, o modernismo da década de 1920 colocou, na ordem do dia, os estudos sobre a música, as artes plásticas e a literatura, lançando a centelha da pesquisa da produção cultural nacional. Essa movimentação em direção ao entendimento da cultura brasileira, popular ou erudita, perdurou mesmo depois da criação das faculdades de filosofia no Rio de Janeiro e em São Paulo, na década de 1930.

Nos anos de 1950, os suplementos literários dos jornais, incluindo o conhecido Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, ampliaram o horizonte de expectativas dos leitores, informando sobre as novas linguagens artísticas. Mais adiante, na década de 1960, em que pesem a censura e a repressão política, distinguiram-se a Revista da Civilização Brasileira (1965-1968) e Encontros com a Civilização Brasileira (1978-1982), com artigos diversos sobre artes e literatura, inclusive de integrantes da Escola de Frankfurt.

Somente a partir dos anos 2000, entretanto, a sociologia da arte começou a ganhar autonomia. Atualmente, há 84 grupos de pesquisa voltados para a sociologia da arte, 11% do total dos grupos filiados à sociologia no Diretório de Grupos de Pesquisa da Plataforma Lattes do CNPq.2 2 http://lattes.cnpq.br/web/dgp, consulta realizada em 02/05/2019. Para tanto, utilizamos os seguintes filtros de busca: Grande Área: Ciências Humanas (Predominante no Grupo); Área: Sociologia (Predominante no Grupo). Como Termos de busca, ingressamos separadamente as seguintes palavras: arte, literatura, cinema, teatro, música, fotografia, performance, cênica e estética. Eliminamos as repetições e as discrepâncias. Os museus, os espaços de exposições, o mercado da arte e a globalização, assim como o público e a formação e a trajetória de artistas constituem alguns dos temas investigados.

Dentre os projetos de pesquisa dos 84 grupos cadastrados no DGP da Plataforma Lattes (DGP), a maioria realiza pesquisas que integram duplamente a área da sociologia da arte e as áreas da sociologia de gênero, da educação, da juventude, das questões raciais e da violência. Essa tendência mais recente da sociologia da arte é observada também por Quemin (2017)QUEMIN, A. The sociology of art. In: KORGEN, K. (Org.) Cambridge handbook of sociology. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 293-303., para quem tais pesquisas vêm oferecendo subsídios para a elaboração de políticas públicas em diversos países.

O crescimento das pesquisas e da participação da sociologia da arte nas associações da área da sociologia não significou, contudo, que a velha polêmica relativa à abordagem da configuração estética inerente à obra artística versus a abordagem da obra ou dos processos artísticos da perspectiva de um campo de relações sociais tenha desaparecido. Este dossiê apresenta exemplos das duas tendências que caracterizam a sociologia da arte.

Em “Sobre a necessidade de uma sociologia textual da arte”, Eduardo de La Fuente propõe justamente enfrentar o dilema que envolve as disputas entre as abordagens internalistas e externalistas dos fenômenos estéticos; ou o que o autor caracteriza como a “necessidade de sair de um modelo ‘ou arte ou sociedade’ para um modelo de lógica ‘tanto arte quanto sociedade’”. Para tanto, sugere um paradigma textural, em contraposição ao que o autor chama de perspectiva textual da sociologia da arte.

Seguem-se três artigos que focalizam o cinema, o cinema documentário e o audiovisual: “Imagens da classe trabalhadora no documentário brasileiro: apontamentos metodológicos” de Rodrigo Oliveira Lessa, Antônio da Silva Câmara e Bruno Vilas Boas Bispo discute uma metodologia de pesquisa adequada para compreender as representações da classe trabalhadora no cinema documentário brasileiro, a partir de uma perspectiva dialética. Já o artigo de Humberto Alves Silva Junior, “Indústria Cultural, Ideologia e Cinema” coteja a relação entre o pensamento de Adorno e as proposições de Frederic Jameson. Em “Audiovisual y región: otra historia en los estudios del arte latinoamericano”, Javier Campo e Ana Silva investigam as experiências pensadas, produzidas e consumidas nas províncias da Argentina, enfatizando a regionalização do documentário argentino.

Os artigos seguintes lançam luz sobre o passado da socióloga da arte Vera Zolberg e a produção artística e cultural na revolução cubana. O artigo de Glaucia Villas Bôas e Layssa Bauer von Kulitz, “A sociologia da arte como vocação: um relato de Vera Zolberg” traz uma contribuição singular sobre a formação da sociologia da arte nos EUA, ao analisar a trajetória acadêmica de Vera Zolberg (1932-2016), uma das desbravadoras do campo, baseando-se em depoimento da socióloga. Sílvia Cezar Miskulin revisita a efervescência política e cultural dos anos 1960-70 em Cuba, em “Arte e cultura na Revolução Cubana: os anos 1960 e 1970”, fazendo uma análise das publicações, instituições culturais e manifestações artísticas daquelas décadas.

Finalmente, o artigo de Anderson de Jesus Costa, Lucas Catalan e Bruno Sampaio sobre “O emergir da música popular e suas interfaces com a indústria fonográfica” focaliza a música popular nas periferias do mundo, a partir da concepção adorniana da inter-relação entre a objetividade e a subjetividade na arte. Guilherme Marcondes dos Santos, autor de “Deslocamento, formação e legitimação: uma análise de programas de residência artística no Brasil”, busca compreender como os programas de residência artística têm alterado os processos de formação e legitimação de artistas no Brasil, analisando os editais de seleção de três programas de residência. Ambos os artigos tratam de mudanças no campo artístico.

Esperamos que os leitores e leitoras possam apreciar a diversidade temática e metodológica inscrita nos artigos deste dossiê, que traduz uma das orientações atuais da sociologia da arte.

REFERÊNCIAS

  • BECKER, H. Artworlds. California: University of California press, 2008.
  • BUENO, M. L.; SANT’ANNA, S. P.; DABUL, L. Sociologia da Arte: notas sobre a construção de uma disciplina. Revista Brasileira de Sociologia - RBS, São Paulo, v. 6, n. 12, p. 267-289, jan. 2018.
  • BOURDIEU, P. Distinction. A social critique of the judgement of taste Harvard: Harvard University Press, 2002.
  • ERBER, P. Breaching the Frame. The rise of contemporary art in Brazil and Japan. California: University of California Press, 2015.
  • KANT, I. Crítica da faculdade julgar. São Paulo: Ícone Editora, 2009.
  • HEGEL, G. W. F. Curso de estética. O Belo na arte. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
  • HEINICH, N. La sociologie de l’art. Paris: La Découverte, 2001 .
  • MORATÓ, A. R.; ACUÑA, Á. S. La nueva sociologia de las artes. Una perspectiva hispanohablante y global. Barcelona: Gedisa Editorial, 2017.
  • QUEMIN, A. The sociology of art. In: KORGEN, K. (Org.) Cambridge handbook of sociology. Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 293-303.
  • SHAPIRO, R. O que é artificação ? Sociedade e Estado, Brasília, v. 22, n. 1, p. 135-151, 2007.
  • ZOLBERG, V. L. Para Uma sociologia das artes. São Paulo: SENAC, 2006.
  • 1
    Tradução nossa.
  • 2
    http://lattes.cnpq.br/web/dgp, consulta realizada em 02/05/2019. Para tanto, utilizamos os seguintes filtros de busca: Grande Área: Ciências Humanas (Predominante no Grupo); Área: Sociologia (Predominante no Grupo). Como Termos de busca, ingressamos separadamente as seguintes palavras: arte, literatura, cinema, teatro, música, fotografia, performance, cênica e estética. Eliminamos as repetições e as discrepâncias.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2019
  • Aceito
    13 Nov 2019
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