Resumos
Tomando o maior polo de irrigação da América Latina como referência empírica, neste artigo trato das vicissitudes envolvidas na configuração de relacionamentos em torno do trabalho no âmbito do agronegócio. A partir de etnografia inicialmente endereçada a trabalhadores temporários migrantes de vários estados do Nordeste, busco analisar entrelaçamentos entre a transposição de modos camponeses ao agronegócio, a expropriação moral de trabalhadores e mecanismos de disciplinamento. Tais entrelaçamentos põem em solo (e em mente) uma espécie de ética do bom trabalhador, que é problematizada como construto de uma sociedade particular, que faz o agronegócio expandir com contornos e procedimentos próprios, ainda que heterogêneos.
Encontro cultural; Agronegócio; Desenvolvimento; Gaúcho; Trabalho rural
Taking the largest irrigation area in Latin America as an empirical reference, in this article I deal with the vicissitudes involved in rural work relationships in Brazilian agribusiness. Based on ethnography adressed to temporary migrant workers from several states in Northeast, I seek to analyze the interweaving between a) the transposition of peasant cultural traces to agribusiness, d) the moral expropriation of workers, and c) disciplining mechanisms. Such interlacing puts on the ground (and in mind) a kind of good worker ethics, which is problematized as a construct of a particular society, which makes agribusiness expand with its own contours and procedures, although heterogeneous.
Cultural encounter; Agribusiness; Development; Gaucho; Rural work
Prenant comme référence empirique le plus grand pôle d’irrigation d’Amérique Latine, j’aborde dans cet article les vicissitudes impliquées dans la configuration des relations autour du travail dans le cadre de l’agro-industrie. Sur la base d’une ethnographie initialement adressée aux travailleurs migrants temporaires de différents États du Nord-Est, je cherche à analyser l’entrelacement entre la transposition des modes paysans à l’agro-industrie, l’expropriation morale des travailleurs et les mécanismes de discipline. De tels enchevêtrements mettent sur le terrain (et à l’esprit) une sorte d’éthique du bon travailleur, qui est problématisée comme une construction d’une société particulière, qui fait croître l’agrobusiness avec ses propres contours et procédures, bien que hétérogènes.
Rencontre culturelle; Agrobusiness; Développement; Gaucho; Travail rural
INTRODUÇÃO
É usual se ouvir falar da expansão do agronegócio1 brasileiro tomando-a como algo reificado, cujo lastro social pouco aparece. Sendo o agronegócio uma modalidade avançada de um capitalismo metavalorativo, este é apresentado, frequentemente, expandido por si só, como uma máquina não humana (e desumana) desenfreada. Mas o cientista social atento a esse tipo de processo deve fazer o exercício, sempre, de tentar desvelar e compreender tudo o que há de social e cultural nessa expansão, a tal ponto que ela apareça, finalmente, não coisificada, mas formulada mediante mudanças e continuidades que se expressam em jogo. Similarmente, essa era uma das preocupações de Heredia, Palmeira e Leite (2010), quando tentavam, de modo exploratório, esboçar os contornos da “sociedade do agronegócio” no Brasil.
O agronegócio corresponde a uma categoria política, econômica e social que emerge como produto da ressignificação contemporânea da agricultura tecnicizada (“moderna”), em geral de larga escala. Embora empregue-se o termo para também fazer referência a tal agricultura como mera prática produtiva,2 uma ideia-força detrás dele deve ser considerada, por sua vez emplacada com a coalisão e orquestração de atores, o emprego de narrativas legitimadoras de práticas econômicas, ambientais e sociais suspeitas e a conformação de regime de verdade, cosmologia e ethos particulares (Porto, 2014; Ribeiro Neto, 2018; Gerhardt, 2021; Meyer; Gerhardt, 2024). Desse agrupamento interessado, forjam-se códigos de conduta específicos, ao passo que se espalham mensagens e signos à sociedade mais ampla, em um sentido cada vez mais englobante e naturalizante das formas como é conduzida a agricultura agronegocial de larga escala, não raro commoditizada e financeirizada (Sauer; Borras Júnior, 2016; Oliveira; Bühler, 2016).
O prosseguimento de tal processo enquanto ideia-força produz encontros dos atores coligados ao agronegócio com outros agrupamentos sociais/agentes não exatamente inclusos em seu mundo. Encontros necessários ou inevitáveis, ora consequentes de um esforço de legitimação (como ocorre em relação às críticas de socioambientalistas), outrora resultantes da sustentação material e objetiva das atividades agrícolas, como é o caso dos relacionamentos estabelecidos com trabalhadores temporários. Parte-se do pressuposto de que esses encontros mobilizam identidades e blocos de estratégias e conhecimentos distintos entre os atores dos processos. Na interação entre domínios discursivos e de representação, neles também se acionam negociações, agências e agenciamentos em arenas de poder específicas, em que se dão fricções e acomodações entre os atores, envolvendo a construção social de valores e a distribuição de significados, não raro forjando mudanças sociais (Long, 2007; Tsing, 2005).
No sentido acima exposto, o interesse central nesse artigo faz referência ao/à contato/fricção de trabalhadores migrantes do agronegócio com empresas agrícolas e agroindustriais e seus agentes. Estes últimos, com laços de sociabilidade bem estabelecidos, compartilham valores e traços identitários que os habilita a pertencer à sociedade do agronegócio. Já os primeiros, embora atuem como trabalhadores nos empreendimentos agrícolas, não podem (ou não querem) a ela pertencer. Entretanto, tendo estrategicamente que migrar sucessivamente a essas áreas (Menezes, 2002a), têm também de lidar com os códigos, regramento e assimetrias de poder construídos do seio das dinâmicas agronegociais, conferindo-lhes pouca margem de manobra nessa interação.
Apesar dos aspectos teóricos aqui sintetizados, nosso problema de pesquisa emergiu, inicialmente, de observações empíricas a uma área envolvendo a tríplice fronteira entre o Distrito Federal e os estados de Goiás e Minas Gerais. Trata-se de ampla área de agricultura de larga escala, parte dela sobreposta aos 160 km de BR-251 que liga Brasília (DF) a Unaí (MG). Nesse trecho, em que se percorre longas áreas de chapadas ocupadas por monoculturas do agronegócio, dois aspectos chamam a atenção do observador. O primeiro diz respeito à existência, exatamente no meio do percurso, de um povoamento às margens da rodovia, cujos residentes sempre causam algum tumulto nos acostamentos. Sobre o povoamento, ouve-se dizer com certa frequência: “um lugar perigoso no caminho pra Brasília”, em geral ocultando-se a existência de diversas empresas nos arredores. O segundo aspecto faz referência à quantidade descomunal de pivôs centrais de irrigação às margens da rodovia, denotando uma espécie de região de irrigação. Após algum esforço investigativo, o observador surpreende-se por se deparar com o maior polo de irrigação da América Latina e por desvelar que o povoamento “perigoso” constitui uma densa aglomeração de trabalhadores do agronegócio.
Isso constituiu motivação para que, em 2018, fosse realizada uma primeira incursão exploratória de pesquisa no povoamento, ocasião em que se empreendia traçar as características gerais de seus habitantes e do lugar. Marajó é o nome do povoamento, que, por sua vez, está inserido em uma conjuntura político-territorial intrigante. Trata-se, em realidade, do distrito de Campos Lindo de Goiás, pertencente a Cristalina (GO), mas distante 100 km de sua cidade-sede. Tal distrito é composto por dois bairros contíguos, o Marajó e o Alphaville, mas “Marajó” é como se nomeia o povoamento como um todo. Sua população está estimada (2018) em dezessete mil habitantes,3 sendo que, aproximadamente, sete mil são residentes fixos – embora de chegada recente ali – e dez mil trabalhadores temporários migrantes de alguns estados do Nordeste. A presença sazonal desses temporários se inicia, de modo geral, em março e finda-se em novembro, quando retornam aos seus estados de origem, marcando a dinâmica de trabalho ali. Parte significativa desses temporários permanece em alojamentos afastados do povoamento, ofertados pelas empresas que os contrata, ao passo que, outra parte, em quitinetes alugadas, dispersas no Marajó. Os trabalhadores empregam-se quase sempre em empreendimentos hortifrutigranjeiros (batata, tomate, cebola, alho, cenoura e café), ainda que soja, milho e feijão constituam as culturas típicas do agronegócio na região.
O povoamento é feito de ruas de estrada de terra (alagadiças à ocasião de 2018) – e marcado, conforme diziam os primeiros interlocutores de pesquisa, por um conjunto de problemas sociais: violência extremada com assassinatos em série, sistema de saúde deficitário, ausência de sistema de abastecimento de água e problemas graves no fornecimento de energia elétrica, enfim, compõe-se uma lista extensa. A imagem investigativa feita com base nesses interlocutores é de incômodo e curiosidade, porque contrasta com a informação midiaticamente circulante de que Cristalina detém um dos maiores PIBs agrícolas do país e é tomada como modelo para o desenvolvimento. Com a complexidade que se impunha – coexistência de largas áreas irrigadas, trabalho migrante sazonal, processo de fixação em um povoamento, imagens de degradação social etc. – decidia-se por empreender uma etnografia junto a esses trabalhadores,4 que seria iniciada alguns meses após (2019).
Se o foco do presente artigo é tocante às possíveis fricções entre as lógicas dos trabalhadores rurais no Marajó e aquela conduzida por suas empresas, fazendo expandir o agronegócio ali, também as operações ideológicas por parte de seus agentes – tentando sustentar atividades lucrativas e visões de mundo em torno daquele universo – são aqui perseguidas. Mas, principalmente, busca-se lançar luzes sobre as operações que incidem nos trabalhadores e as formas de reação que desencadeiam. Toma-se como referência que o povoamento em questão, as empresas agroindustriais em sua proximidade e toda a área de agricultura irrigada ao redor constituem, juntos, um produto da expansão social de gaúchos5 país afora, hoje imersos na já referida sociedade do agronegócio (Andrade, 2008; Heredia; Palmeira; Leite, 2010; Bruno, 2013; Porto, 2014; Ribeiro Neto, 2018). De outro modo, em se tratando de uma experiência relativamente consolidada, com certa regularidade de itinerários, processos e produtos, e com a presença de grandes empresas com know how na contratação de trabalhadores migrantes, vê-se a dinâmica social ali estabelecida como indicativa das marcas passíveis de serem impressas alhures, particularmente no que tange ao relacionamento com trabalhadores camponeses e suas estratégias de reprodução social (Sigaud, 1979; Garcia Júnior, 1989; Woortmann, 1990; Menezes, 2002a; Rumstain, 2012).
Dessa forma, seguindo-se aquilo que é usual na prática etnográfica, entre abril e agosto de 2019, lançamos mão de recursos variados – observações simples e participante, conversas informais, entrevistas abertas, semiestruturadas e em profundidade, histórias de vida e análise documental, todas registradas em caderno de campo – para gerar informações ao redor do trabalho,6 abrangendo desde trabalhadores migrantes aos grandes gerentes e donos de empresas. Apesar disso, priorizamos neste artigo os trabalhadores migrantes temporários, nomeados peões. As seções a seguir foram organizadas, então, na expectativa de analisar a conformação de uma ética do trabalho resultante do encontro desses agentes em torno do agronegócio.
O artigo está dividido em quatro seções, sendo esta a primeira. Na segunda, é apresentado um panorama de (re)ocupação da área a que nos referimos, ao passo que são destacadas as vicissitudes históricas que culminaram em seu atual contexto. Na terceira, analisamos alguns processos de transvaloração, depreciação e disciplinamento em torno do trabalho. Aqui entende-se transvaloração como espécies de pontes que fazem circular determinados fragmentos de cultura entre contextos, em sentido de transposição. Mais especificamente, tratamos de empréstimos de traços culturais camponeses à experiência do agronegócio em questão. Em paralelo a isso, o leitor perceberá, por um lado, como a produção de sujeitos subalternos é operada no sentido de emplacar processos de disciplinamento e de produção de “corpos dóceis”, que culminam em uma ética do bom trabalhador. Optamos pelo termo ética por se tratar de expectativas, códigos de conduta e representações partilhados por trabalhadores7 quando ali posicionados. A ética aparece guiando o relacionamento entre empresas e trabalhadores temporários, estando em jogo hierarquias, negociações (assimétricas) e assimilação de valores. Por fim, na quarta seção são tecidas algumas considerações finais, em que esboçamos a tessitura de um cenário mais amplo. Com isso, o leitor perceberá que a ética do bom trabalhador surge normatizando o comportamento de trabalhadores temporários, particularmente, articulando processos de transvaloração, de depreciação de sua imagem e de disciplinamento, encerrando por conformar modelos mentais e formas de organizar o mundo ali, gerando consequências em termos de racionalidade, mas também implicações identitárias e de violência e dominação simbólicas.
UMA EXPANSÃO TERRITORIAL
Ao mesclar a observação de algumas imagens de satélite – que denotam uma região irrigada – e analisar alguns documentos históricos, é possível perceber que o povoamento Marajó, as empresas agroindustriais em sua proximidade e toda a área de agricultura irrigada ao redor, e ainda outras empresas dispersas nas proximidades, integram uma mesma experiência do agronegócio, iniciada em meados da década de 1970. Territorialmente, conforma-se uma área contígua que abrange porções dos municípios de Cristalina, Luziânia, Formosa (GO), Unaí, Paracatu, Cabeceiras (MG), além de uma parcela do Distrito Federal. Toda esta área, historicamente delimitada, curiosamente, não tinha um nome!8 Apesar disso, a percepção desta como integrando uma mesma “experiência” – uma espécie de projeto – não é só nossa. Nos escritórios dessas empresas podia-se avistar imensos mapas desses mesmos municípios, nos quais estavam indicados os números de seus respectivos pivôs centrais de irrigação. Como se os mapas, posicionados sob os vidros das amplas mesas de reunião, pudessem demonstrar a capacidade de tomada de decisões estratégicas ali implantada. Designaremos tal área, doravante, como Polo de Irrigação do Planalto Central, ou, simplesmente, Pi-place, uma abreviação que encera por aludir ao “lugar dos pivôs”. O Marajó, então, deve ser entendido como integrante da dinâmica do Pi-place; nos dias atuais, abastece-o de trabalhadores, ao passo que concentra parte significativa de suas unidades agroindustriais, particularmente aquelas ligadas aos hortifrutigranjeiros (ou simplesmente HF, como costuma-se designar ali).
A forma de ocupação do espaço e de transformação da natureza e das relações sociais que deu origem ao Pi-place – enfim, de “colonização agrícola” – guarda elementos comuns com vários, se não com a maioria, dos processos de territorialização da agricultura que ocorreram no Cerrado desde meados de 1970 (Heredia; Palmeira; Leite, 2010; PMCG, 2012; Andrade, 2008). Antes de o Pi-place ser forjado, compunha-se um território no qual se desenrolava uma época das fazendas, uma espécie de regime em que figuravam, marcadamente, fazendeiros personalistas e agregados de fazendas vivendo em estreita relação com a natureza. Eram fazendas com donos em que famílias de agregados produziam feijão, milho, mandioca e outras culturas, tanto para o autoconsumo como em troca de lugar de morada e de uso de terras cedidas por fazendeiros. A forma de vinculação entre agregados e fazendeiros era variada, mas prevalecia o sistema de meia. Sendo a área espacialmente dividida em vãos (aproximadamente 600 metros de altitude) e chapadas (aproximadamente 900-1100 metros), nestas últimas preferencialmente criava-se gado na solta, por parte de vaqueiros arregimentados por fazendeiros. Nos vãos desenvolvia-se, em geral, a agricultura pelos agregados.
A dinâmica nas chapadas, onde hoje estão localizados os pivôs centrais do Pi-place, mantinha estreita relação com a dinâmica social dos vãos, no sentido de que o complexo vãos-chapadas abrigava histórias próprias, da vida social, natural e produtiva, a despeito da clássica narrativa civilizatória de desenvolvimento formulada por gaúchos (Heredia; Palmeira; Leite, 2010; PMCG, 2012; Andrade, 2008). Na perspectiva destes, antes de sua chegada desde 1980, ali não havia nada, só mato lobos e onças. Daí chegou o desenvolvimento, “transformando o Cerrado em campos férteis”,9 às custas de sofrimento e perseverança de sua parte.10
Desde a década de 1970, três movimentos marcaram a colonização agrícola na área onde hoje é o Pi-place. O primeiro corresponde ao estímulo que o presidente Ernesto Geisel (1969-74) ofereceu a um produtor em particular, o paulista Luiz Souza Lima. Ao longo de alguns anos, ele adquiriu ali terras amplas e acumulou o status de ter introduzido a soja no Cerrado (1974). Souza Lima desmatou porções consideráveis, em atitudes dotadas de grande simbolismo, desagregando, por meio de barganhas, pessoas de suas terras, muitas das quais passaram a ser seus empregados. Também influenciou a implantação de infraestruturas na região e promoveu intercâmbios e visitas de poderosos para propagandear a potencialidade daquelas terras, em especial à soja, demandada pelo crescente mercado mundial. Atrelado a esta expansão, o segundo movimento foi a instituição de programas governamentais de desenvolvimento11 (Haddad, 2013; Freitas; Sobrinho; Mello, 2019), a partir dos quais criou-se uma atmosfera institucional de “desenvolvimento do Cerrado”. Sob esse marco, centenas de famílias gaúchas foram assentadas em lotes com grande extensão territorial, diversas cooperativas foram implantadas, infraestruturas foram expandidas. Ocorreram também investimentos em crédito rural, pesquisa e assistência técnica direcionados à agricultura empreendedora de larga escala. Para além das influências objetivas sobre a conformação do Pi-place, esse conjunto de programas, sobretudo, emanou mensagens de desenvolvimento e valores de progresso fundados na supressão da vegetação nativa e da invisibilização de populações originárias. Por fim, o terceiro movimento, sob forte influência desses programas, mas com interferência direta e exclusiva à configuração do Pi-place, foi a implantação do Programa de Assentamento Dirigido do Distrito Federal (Pad-DF), com centenas de famílias gaúchas assentadas em lotes de 300 ha.
Esses movimentos, de um modo geral, representam a corrida por terras na área do Pi-place e seu entorno, algo que encerrou por valorizá-las. Tal valorização, entre outros fatores – alterações na legislação trabalhista, aparecimento de novas pragas nas roças dos agregados, circulação de mensagens de desenvolvimento (Ribeiro, 2008) que instalavam desejos e prometiam uma vida melhor nas sedes municipais etc. – contribuiu para a desestabilização definitiva da época das fazendas. Ainda que neste regime famílias agregadas não alcançassem de fato a posse de terras, a partir da relação com fazendeiros configurava-se sua permanência prolongada, por gerações, prolongamento este que constituía elemento fundante de uma visão naturalizada do acesso à terra por parte dos agregados. Terra, até aquele momento, sempre estivera disponível, mesmo que dependesse de certa concessão por parte de fazendeiros. Com a agricultura de larga escala e a subsequente valorização e mercantilização das terras, as expulsões de famílias de agregados tornaram-se sistemáticas e violentas. Ocorreu sobretudo aquilo que Palmeira (1989) nomeou de “liquidação do contrato tradicional” entre fazendeiros personalistas e posseiros .
Se na década de 1980 a agricultura mecanizada de larga escala foi finalmente territorializada pelos gaúchos, na década de 2000 territorializou-se a agricultura irrigada de larga escala, de modo que se ampliou o processo de cerceamento e de privatização da natureza, forjando, finalmente, o Pi-place. A possibilidade de uso intensivo e extensivo da água12 foi a grande “descoberta” dos anos 1990 e, consequentemente, a possibilidade de exploração de novas modalidades agrícolas ali, os HF (principalmente batata, tomate, cebola, alho e cenoura), complementando outras culturas já em voga à época (soja, milho e feijão). Com isso, emergiu a possibilidade e a necessidade de incorporação massiva de trabalhadores, particularmente para os plantios e colheitas. Mais inda, estabeleceram-se, simultaneamente, grandes unidades de processamento desses novos alimentos, os barracões. Assim o Pi-place conforma-se contando com um centro agroindustrial, cujas redondezas passaram a abrigar milhares de trabalhadores migrantes e ex-migrantes. Com a ocupação da maior parte das terras mecanizáveis das chapadas, ao longo de quatro décadas, as estratégias de reprodução social de gaúchos, baseadas na incorporação de mais terras para os sucessores, tiveram de ser ajustadas, no ímpeto de composição, então, de um corpo técnico-gerencial que os absorvesse, corpo este vinculado às grandes empresas agrícolas e agroindustriais. Inseriu-se ali mais uma vez o gaúcho como agente desestabilizador – agora de modo distinto –, produzindo lógicas, desejos e drásticas mudanças na organização social do trabalho e dos produtos consumidos e produzidos. Também transformando paisagens e relações sociais mediante o uso intensivo de tecnologias e o estabelecimento de lutas simbólicas, para atribuírem sentido ao espaço (Oliveira; Bühler, 2016).
No que tange particularmente à dimensão dos trabalhadores no Pi-place, atualmente, grosso modo, estes dividem-se entre peões – predominantemente homens, realizando trabalhos manuais nas lavouras (colheita, plantio, capina etc.) –, fiscais – coordenando turmas de peões (em geral com vinte e cinco) e eventualmente realizando tarefas de apontador –, encarregados – coordenando estratégias de colheita e plantio, selecionando peões e fiscais, articulando equipes de transporte para o deslocamento de turmas por entre as lavouras – e gerentes – coordenando a produção de modo mais amplo, respondendo por partes significativas da empresa (por exemplo, pela produção, ou pelos barracões) e, não raro, por questões agronômicas nos plantios. Hierarquia similar ocorre em relação aos barracões, em que aranhas (predominantemente mulheres) classificam e/ou processam os alimentos produzidos nas lavouras. Há ainda os administrativos, que realizam tarefas diversas de escritório, relacionadas à compra e venda de produtos, à contratação e demissão de trabalhadores, ao processamento de dados, marketing, jurídico etc. Trata-se de uma classificação geral que varia conforme a empresa. De qualquer modo, está em jogo um contingente avultoso de trabalhadores temporários oriundos do Nordeste (principalmente peões e fiscais), de residência intermitente ou fixa no bairro Marajó ou suas adjacências, e um pequeno corpo de trabalhadores fixos, cuja terra de origem é outra (ver Figura 1) e que, quanto mais elevada a posição hierárquica, mais tendem a residir distante do bairro Marajó, principalmente em Brasília. Na sessão a seguir, então, explora-se a forma como estes trabalhadores migrantes, ao estarem no Pi-place, se adequam a uma ética do bom trabalhador.
A ÉTICA DO TRABALHO
Muito se discute acerca da interdependência entre o emprego de trabalhadores migrantes em empreendimentos do agronegócio e a manutenção de famílias de agricultores no campo, particularmente de filhos de camponeses oriundos de diversas localidades do Nordeste (Menezes, 1985, 2002a; Rumstain, 2012). Já há muito tempo o agronegócio está integrado às estratégias de reprodução social camponesa (Menezes, 2002a). E se as duras condições de vida desses camponeses, ao largo do tempo, exigiu, a integração ocorreu com limitações, “para fora do sistema” agroindustrial (Cardoso, 2010), de modo que a adesão ao agronegócio pelas vias do trabalho não obrigatoriamente induziu à proletarização definitiva do camponês em um sentido teleológico. Encontram-se menos desenvolvidas na literatura, entretanto, discussões sobre os entrelaçamentos entre as lógicas camponesas e aquelas construídas para a fabricação e manutenção do agronegócio.
Em 2000, quando a territorialização da agricultura irrigada ainda estava em fase inaugural, grandes empresas agrícolas se estabeleciam no Pi-place, principalmente nos arredores do Marajó. Se, no início, constituir turmas de trabalhadores era tarefa árdua aos gerentes e encarregados das empresas, com o passar dos anos privilegiou-se a arregimentação – temporária e sucessiva – de trabalhadores migrantes de vários dos estados do Nordeste (Figura 1), culminando na institucionalização de milhares de postos temporários de trabalho.13 Uma consequência central nesse processo, então, foi a “conquista” de trabalhadores; não de trabalhadores quaisquer, mas daqueles dispostos a arcar com as adversidades da rotina nas lavouras. Rotina esta em que se implicam a lida de movimentos físicos extenuantes e repetitivos, a exposição prolongada ao sol e a percepção do envelhecimento precoce. Substancia-se aqui, assim, a ideia do “trabalho árduo” (Menezes, 2002a), por sua vez imperiosa para a apreensão da ética do trabalho emplacada no agronegócio ali. A premissa básica em jogo, nesse caso, é a de que o “árduo” do trabalho – aquele componente que tantas vezes faz o trabalho ser negado pelo corpo, ser sabotado14 – deve ser transposto por conceitos e preceitos condensados em uma ética particular.
TRANSVALORAÇÃO
Quatro aspectos parecem ser centrais para que empresas do Pi-place consigam mobilizar trabalhadores à realização do trabalho árduo com eficiência e elevada produtividade. Eles dizem respeito menos às estratégias das empresas em si e mais à sincronia entre seus interesses e as lógicas de reprodução social camponesa e os valores que lhes são adjacentes. Um primeiro aspecto, fundante, parece ser a “disposição” à migração demonstrada por muitos dos trabalhadores ali. Os sentidos de “rodar”, de “ganhar o trecho” (Guedes, 2011; Rumstain, 2012), de se estar intergeracionalmente acostumado aos deslocamentos (Menezes, 2002a) parecem operar na lógica de composição de uma classe de trabalhadores rurais ali. Conforme apontou Guedes em relação à mineração,
Ao invés de apelar para algum tipo de racionalidade onde a busca de determinados fins explicaria o recurso a certos meios, parece-me mais interessante pensar estas situações pela consideração de certo tipo de ‘disposição’ característica não apenas destes [trabalhadores], mas presente – em alguma medida, e com ‘intensidades’ variadas – em todos estes jovens de que falo aqui (Guedes, 2011, p. 168).
Se em determinadas situações a migração para o trabalho sazonal passou a ser empreendida por camponeses porque esta lhes tornava possível uma condição material mais vantajosa, fosse em situações de adversidade ou para a realização de um projeto patrimonial familiar (Menezes, 2002a), tais feitos assentaram-se, com o tempo, em uma tradição de mobilidade (Woortmann, 1990). Tal “disposição”, para Guedes (2011, p. 169), é “antes um estado de espírito ou do corpo [...] do que um intento ou propósito, [...] envolve a capacidade de ser versátil e polivalente [...] e coragem e valentia para não perder uma chance que se faz presente em situações inóspitas ou desfavoráveis”. A necessidade de sobrevivência, observa-se, parece não subsumir os sentidos da migração no Pi-place. Com isso, não se almeja desbancar a corporeidade da necessidade, mas problematizar o porquê de os postos de trabalho no Pi-place não serem ocupados, por exemplo, pela numerosa população de “necessitados” que reside no entorno de Brasília, mas sim por camponeses migrantes. A disposição à migração, dessa forma, é um marcador social camponês que é incorporado nas estratégias empresariais, dando os contornos da transvaloração e da ética do trabalho ali.
Um segundo aspecto faz referência à intimidade com o trabalho nas lavouras, por sua vez exigida para que o vínculo entre empresas e trabalhadores adquira alguma regularidade, estabilizando fluxos e processos produtivos no Pi-place. Não se trata, entretanto, de uma condição formulada e imposta pelas empresas, mas, ao que tudo indica, de condição para que o próprio trabalhador queira e tenda a continuar na empresa, resista psicologicamente ao trabalho árduo e se interesse, sucessivamente, pelos empregos nas lavouras. Para tanto, é necessário que ele tenha acumulado certa “experiência camponesa”, em outros termos, que tenha passado por uma prévia “socialização emancipatória” (Woortmann, 1987, p. 31). Na perspectiva de Guedes (2011, p. 235), é necessário estar preparado, ao mesmo tempo amaciado e endurecido pelas experiências da infância e juventude. A disposição, e sua transposição ao agronegócio, assim, expressa-se também em relação ao tipo de trabalho em jogo: nas lavouras.
Com isso, não fica sem significado o predomínio de filhos de camponeses nos diversos alojamentos das empresas hortifrutigranjeiras, ainda que citadinos também façam parte dessa composição, muitos dos quais, entretanto, com ancestralidade camponesa e convívio com a vida no sítio. Tampouco o fato de metade dos trabalhadores das lavouras ter menos de 25 anos. Conforme observou Rumstain (2012), baseando-se em etnografia endereçada a jovens trabalhadores maranhenses migrantes no Mato Grosso, a experiência de “ganhar o trecho” em empreendimentos do agronegócio compõe as expectativas desses jovens que parecem seguir o fluxo de experiências em outros locais ou estados, em geral de modo temporário, compondo uma fase da vida. Experiências que lhes permite, adicionalmente, algum acúmulo financeiro para os estágios subsequentes da vida. Apesar disso, é crucial notar que a motivação à migração se faz heterogênea (fuga da seca, busca por trabalho, marca da juventude, manutenção da reprodução social no local de origem etc.).
Uma terceira sincronia “agronegócio-trabalho camponês” faz referência à eficiência no trabalho. Parece haver em jogo, também, uma espécie de competição sistematicamente travada entre trabalhadores em relação à produtividade individual. Em determinada altura da etnografia, intrigava-me o fato de, nos bares próximos aos alojamentos dispersos por entre as lavouras, trabalhadores de origem camponesa gabarem-se, ou mesmo enaltecerem colegas, pelo bom desempenho do trabalho, no sentido de sua produtividade. Comparavam, com certa obstinação, a quantidade de caixas colhidas, a metragem de capina realizada ou de fileiras plantadas. Contudo, seus feitos laborais apareciam, nas narrativas, entremeados a outros, alcançados em seus roçados na terra natal. Nesse sentido, a comparação interpessoal como forma classificatória balizada pela expressão da produtividade era revelada como mais um marcador social camponês que, assim como a disposição, mostrava-se a serviço das empresas e seu modelo de remuneração por produção.15 Um dos corolários disso, curiosamente, é que peões tidos como pouco aptos às lavouras são taxados de aranhas – de braços finos, lentos –, numa forma de classificação interna, entre peões, em que aranhas seriam mais desejados nos espaços dos barracões, junto às mulheres.
Os entrelaçamentos “agronegócio-trabalho camponês” se estendem até os barracões das firmas, compondo, enfim, o quarto aspecto. Trabalham nesses barracões prevalentemente mulheres, também taxadas de aranhas, que aparecem ocupando postos voltados à classificação de alimentos e com remunerações mais baixas.16 Isso remonta a clássica e sexista divisão casa-roçado (Woortmann, 1995; Brandão, 1999;) construída no seio das famílias camponesas, agora atualizada, no plano empresarial do agronegócio, em termos da oposição barracão-lavoura. Em paralelo, a presença relativamente massiva de mulheres na dinâmica do Pi-place – particularmente enquanto trabalhadoras residentes no Marajó, seja de modo fixo ou temporário – remonta Lopes (2013, p. 77), quando este sugere que a utilização simultânea de trabalhadores masculinos e femininos “traz importantes repercussões na formação de uma comunidade operária mais estável”. Se o Pi-place pode ser traduzido como uma experiência relativamente consolidada de agronegócio, emerge aqui uma sequência de imagens que a revela consolidando-se à medida que conjuntos mais ou menos coerentes de fragmentos camponeses – concernentes à sua ética de trabalho, à sua moral – são territorializados.
A distinção de papéis enquanto marcador social fundamental parece afirma-se, paralelamente, mediante o acionamento da imagem de que barracões são espaços femininos, a despeito da presença dos homens neles ser significativa.17 Eles são traduzidos, assim, como espaços em que o trabalho é mais leve do que nas lavouras, ainda que neles desenrolem-se atividades repetitivas e desgastantes. Curiosa e coincidentemente, o trabalho nos barracões é visto pelos peões como enclausurante e de remuneração mais baixa, propício às mulheres. Com isso a imagem emerge como que articulando a narrativa sexista que corrobora um universo camponês e, por consequência, o entrelaçamento “agronegócio-trabalho camponês”.
DEPRECIAÇÃO
A ética segundo a qual se produz bons trabalhadores no Pi-place opera a partir de um jogo em que figuram mais do que sincronias e transvalorações. Com a efetivação do polo e a crescente incorporação de trabalhadores, algumas características foram marcando a dinâmica ali. A primeira delas foi a tendência de se manter os migrantes em alojamentos afastados. Conforme adiantei anteriormente, desde 2000 o Marajó foi se tornando uma espécie de repositório de trabalhadores. Uma parte destes foi se fixando ali ou simplesmente residindo temporariamente na época da alta empregabilidade, entre março e novembro. Dada a intenção empresarial de se evitar o contato dos trabalhadores migrantes com a “indesejada” e “perniciosa” dinâmica de vida social que foi se configurando no bairro – algo que tratarei mais adiante –, as empresas foram estabelecendo uma espécie de política de apartheid. Alojamentos passaram a ser construídos, afastados no mínimo 15 quilômetros do bairro, ainda que, de modo geral, as sedes das empresas tenham permanecido ali posicionadas (Figura 2). Desta feita, parte expressiva dos trabalhadores teve que passar a conviver com o confinamento prolongado e com cotidiano tedioso das horas vagas, além de, sistematicamente, ter que lidar com o controle vigilante empreendido nos alojamentos.
Uma tipologia espacial de trabalhadores do Pi-place residentes no bairro Marajó ou proximidades
De fato, o isolamento dos alojamentos, como espécies de ilhas longínquas dispersas no mar de lavouras, pode causar estranhamento e incômodo ao observador, porque agrava a imagem mental que se constrói de trabalhadores já com dificuldades, que têm de conviver com a saudade gerada nos longos períodos de afastamentos da terra e da família, entre tantos percalços inerentes ao trabalho migrante. Em paralelo a este quadro de isolamento, as empresas passaram a evitar a contratação de residentes do bairro às lavouras, deixando-os expostos à condição multiplamente intermitente do trabalho, sendo-lhes este mais incerto e flexível. Dito de outro modo, as empresas passaram a privilegiar a contratação de contingentes de trabalhadores alojados, disciplinados pelo isolamento. Contudo, em razão de os tipos de cultivo e de trabalho nas lavouras do Pi-place serem múltiplos e imporem sazonalidades variadas, a demanda por trabalhadores é frequentemente alterada, de modo que sua eventual falta é suprida, convenientemente, com trabalhadores do Marajó.
O movimento de se lançar em busca de trabalho, para os residentes permanentes no bairro, aparece como uma articulação cotidiana, independentemente do tempo de trabalho (março-novembro.) e do tempo sem trabalho (dezembro-fevereiro.). É dessa forma que estes, de um modo geral, tornam-se mais dependentes das diárias junto aos gatos,18 cuja ação convém às empresas, particularmente, quando almejam regular a complicada oscilação na demanda por trabalhadores sem a necessidade de estabelecer contratos adicionais. Tais diárias são frequentemente ofertadas na informalidade e implicam remunerações mais baixas, jornadas mais longas, maior instabilidade, entre outras desvantagens. É relevante observar, de qualquer forma, que o trabalho oficial – temporário, mas formalizado, fichado – funciona em paralelo e na dependência do trabalho não oficial, ao passo que essa dinâmica é regulada pelo jogo depreciativo associado à produção de bons trabalhadores.
O salário do pessoal não é ruim, cara! Vai pra Brasília ver quanto uma secretária num escritório de advocacia ganha e vai comparar com um funcionário. Cara, eu já vi holerite de funcionário que quebra cenoura de três pau. Já vi holerite de chapa que carrega caminhão de quatro pau. Vai lá pra Brasília ver quem ganha isso! Então, assim, o salário não é ruim, cara! Não é, não é. Aí você pega os cearenses que estão aqui [morando no bairro], aonde eles gastam o dinheiro deles? Aqui não é, vão lá pra Planaltina. Sacam o dinheiro... Cara, pra você ter uma ideia, fica puta, um monte de puta, fila de puta na fila do banco, “ó, tô te esperando aqui, viu?” Você entendeu? Os cara gastam... Eles sai aqui eles brigam, tem briga de gangue, tem não sei que, facada, espancada... Então, cara, não tem, enquanto não tiver segurança a região não vai pra frente (fala do gerente de uma empresa de HF no Pi-place, 2019).
A fala acima remete-nos a duas imagens ali circulantes. A primeira faz referência à crença, forjada pelos gaúchos, de que o agronegócio, ali ou alhures, é uma espécie de máquina de desenvolvimento (Meyer; Gerhardt, 2024) que, como tal, gera inúmeros empregos e elevadas remunerações. No que tange aos trabalhadores do Pi-place, essa imagem é um tanto falseada por este gerente, assim como por outros agentes dali, porque faz-se prevalecer a ideia de que a remuneração mensal dos trabalhadores é próxima aos R$ 3000,00, quando, de fato, ela é da ordem dos R$ 1.650,00 (dados de junho de 2019). Tal circulação imagética é similar àquela de que as empresas geram ali milhares de empregos, quando, analisando-se mais de perto, percebe-se que o período médio de trabalho ofertado é inferior a seis meses/trabalhador/ano.19 Da segunda imagem, diferentemente, emerge o trabalhador nordestino,20 pouco apto à poupança e ao planejamento de uma vida decente; imagem pejorativa que denota pessoas desregradas, propensas ao apelo à prostituição, aos gastos supérfluos, ao consumo alcoólico. Mais ainda: a depreciação dos residentes do bairro, mais do que a dos alojados, aparece redobrada, e dela depreendem-se seres mais desregrados, que bebem, brigam, usam drogas, traficam, roubam, matam, faltam ao trabalho e, sobretudo, são preguiçosos, improdutivos e não valorizam o trabalho. Tal discriminação, ainda, parece ser corroborada pela diferença racial entre peões/aranhas/fiscais e agentes que ocupam cargos hierarquicamente superiores.
Importa observar, no sentido acima, que tal imagem extravasa o ambiente gaúcho das empresas e enraíza-se – ou é mesmo coproduzida – no bairro e seu entorno, entre os trabalhadores. Ainda que muitos deles demonstrem reflexividade acerca disso – algo que me foi revelado em ocasiões de maior intimidade, em que trabalhadores abertamente refutavam a ideia do trabalhador pernicioso – prevalece a imagem pejorativa, que se configura enquanto ideia-força, por sua vez construída sobre os pilares da assimetria de poder entre gaúchos e nordestinos (Figura 1). Esse “enraizamento”, no entanto, aparece de formas múltiplas, gradativas e silenciosas. É emblemático, nesse sentido, o fato de um goiano, dono de um dos bares por mim frequentados, insistir sistematicamente em anunciar, entre os trabalhadores, que nos alojamentos havia também assassinos e ladrões. “A gente não sabe quem vem, a vida da pessoa antes”, dizia ele, como que projetando sua insegurança ao desconhecido para compor a realidade ali. Já os trabalhadores, demonstravam constrangimento em indagar-lhe qualquer coisa. Mais ainda, pareciam querer concordar – em uma nítida discrepância quanto ao exercício do poder – com os posicionamentos de gaúchos e goianos, moradores das redondezas, que esporadicamente frequentavam os bares e, neles, tentavam impor suas visões ambíguas e enviesadas acerca dos trabalhadores, além de suas posições políticas e perspectiva tecnicista de mundo. É possível que no bairro, diferentemente, muito desse enraizamento se dê em consequência da presença permanente de encarregados e administrativos, a quem convém acenar positivamente às imagens pejorativas formuladas no seio das empresas; entretanto, encerram por carreá-las. Recordo-me, nessa direção, de meu vizinho de quitinete, um peão, dizendo às vezes: “pin-ão é bicho ruim!”. Nesse jogo, em que as assimetrias de poder estão em toda a parte, a necessidade de trabalho e a relativa vulnerabilidade dos trabalhadores – particularmente quando estão no Pi-place – parecem ter contribuído para que não se tenha conseguido contrapor a imagem negativa do peão que, lentamente, se espalhou em todas as direções e profundidades. Não fica sem significado, nesse caso, o fato de a presença recente dos nordestinos no bairro ser incômoda aos goianos, residentes mais antigos; afinal de contas, o forasteiro desconhecido está em cena, de modo análogo ao observado por Elias e Scotson (2000) em “Winston Parva”.
Até certo ponto, está em operação também um perigo objetivo no bairro. Observa-se notícias e queixas recorrentes de roubo a domicílios, de assassinatos21 e de uma violência banalizada contra a mulher, gestada no seio de uma dominação masculina que ali é imperativa. Chama a atenção, entretanto, os procedimentos com que tal realidade é localmente interpretada e incorporada na narrativa sobre o trabalhador, particularmente por gerentes e outros agentes ligados ao agronegócio. Ao invés de colocar em perspectiva o efeito da ação agronegocial sobre a produção do quadro degradante de vida (Favareto, 2019), traduzem as características violentas da dinâmica social em termos de índole do trabalhador migrante, do peão. Com isso, vem bem a calhar – e fica legitimada, inclusive entre os trabalhadores, gradativamente – a fabricação de regramentos que, lentamente, os enquadram em moldes rígidos. Constrói-se, por conseguinte, a imagem de vida errática associada aos trabalhadores, remetendo àquelas situações em que “o empresariado rural vai exatamente realizar uma expropriação moral da condição de trabalhador [...], reativando os preconceitos coloniais sobre a preguiça ou índole leniente” (Ferreira, 2015, p. 26).
Apesar da preferência pelos alojados por parte das empresas, a categoria “trabalhador”, de um modo geral, termina por recobrir possíveis variações entre trabalhadores em jogo, ao passo que a dimensão de classe se apresenta como um panorama de fundo: classe trabalhadora, errática, a ser disciplinada. Em oposição a este trabalhador, em geral nordestino, está o gaúcho, agente empreendedor e construtor de riqueza, que se coloca ali – e também em cenários mais amplos – espelhando condutas e moralidades. Ao que nos interessa, a circulação e assimilação dessas imagens, no bairro e entre os trabalhadores de um modo geral, produzem implicações sociais relevantes e entrelaçam-se com a tessitura da ética do bom trabalhador. Às empresas, o bom trabalhador é essencial, sobretudo para gerar eficiência em torno do trabalho árduo. Já ao peão, constituir-se como bom trabalhador parece-lhe fundamental para amenizar sua imagem de errante desregrado.
É nesse sentido que os contornos da ética parecem avançar em sentidos também identitários. Isso porque ser bom trabalhador é característica que integra o modo de peões, aranhas e fiscais se apresentarem aos outros, assim como ocorre em relação ao local de origem e à condição de temporário, ou seja, daquele que vai e que volta de terras longínquas, que roda, que rompe o trecho constantemente. Na maioria das vezes em que conheci trabalhadores no Pi-place, estes rapidamente deram pistas de sua origem, de sua honestidade, de alguns deslocamentos empreendidos em tempos recentes e dos valores do trabalho, particularmente relacionados a ser bom trabalhador. Se por meio de conversas informais e entrevistas em profundidade pode-se perceber os contornos de uma ética laboral, na interação casual com trabalhadores pode-se atestá-la também a pinceladas. Aqui, evidentemente, entra em cena a figura do pesquisador, sobretudo como um agente de fora, para quem parece ser importante colocar-se distante do quadro depreciativo que se pinta acerca da imagem do trabalhador errante, desregrado, a quem não se pode dar confiança. Se, por um lado, esse quadro é operado também pelos próprios trabalhadores, por outro, nenhum deles parece querer assumir o ônus pessoal da circulação de tal imagem. Dessa forma, acometidos pela relativa vulnerabilidade que a condição de temporário, de migrante, de peão, ou de residente do Marajó implica, peões, aranhas e fiscais encenam uma identidade no mínimo dupla, mas, sobretudo, ambígua: ora de bom trabalhador, mas, prevalentemente, de agente suspeito e perigoso que encerra por sabotar sua autoimagem.
DISCIPLINAMENTO
Tal qual se formula nas sociedades em elevado grau de ocidentalização, o desejo de estabilidade no trabalho constitui valor que orienta as práticas dos trabalhadores no Pi-place, ainda que a estabilidade esteja entremeada por períodos sem trabalho. A expectativa de ser contratado regularmente, amplificada pela crescente concorrência por postos de trabalho, parece alocar-se nos fundamentos de uma ética que postula normas e condutas para tal “estabilidade”. Daí que parece ser importante fazer nome como bom trabalhador, algo almejado por peões, fiscais, encarregados e aranhas que trabalham nos barracões. Há, no entanto, regramentos específicos detrás desse fazer nome, de modo que parece ser essencial: não se aguardar mandos e demonstrar atitude antecipatória para com a execução da tarefa subsequente, mostrar-se atento ao itinerário diário de atividades e não fazer corpo mole, não acumular muitas faltas, não fazer gracinhas com os colegas para atiçá-los a possíveis confrontos físicos, não chegar ao trabalho de ressaca ou chapado de maconha, não confrontar os fiscais, entre outros aspectos. Na visão de peões informados pela ética do bom trabalhador, o trabalhador que faz nome trabalha, ao invés de dar trabalho, se mantém fichado e com algum status no interior das redes de sociabilidade e parentesco que ali operam.
Indo ao encontro do interesse das empresas, a ética do bom trabalhador vai também na direção daquilo que é postulado e construído no seio das igrejas, em particular dos regramentos estabelecidos nos cultos evangélicos do bairro. O bom trabalhador, então, passa a ser aquele que não se expõe às liberdades, consequentemente, para não se expor aos perigos cotidianos, principalmente aqueles que se manifestam no bairro. O perigo revela-se ali de formas variadas e o hábito da bebedeira aparece como o mais expressivo, porque desperta, com frequência, uma cadeia de acontecimentos. A ausência frequente no trabalho – algo que suja o nome –, o gasto exacerbado com festas e jogos de aposta, a obstinação pela conquista de mulheres, o trânsito contínuo e perdulário pelos prostíbulos, as ressacas e eventuais caras inchadas que são exibidas na rua, o hábito de se estar sempre pedindo dinheiro aos outros em razão dos gastos avultantes de dias anteriores, entre outros aspectos, compõem esta cadeia. O consumo da maconha,22 principalmente, ou da cocaína, simultaneamente ou não ao do álcool, igualmente podem acionar a categoria perigo. No sistema de classificação forjado pelos trabalhadores, habita o perigo aquele trabalhador que simplesmente dá prosa para pessoas errantes ou em situação de perigo, ou que frequenta as festas, ou as zonas. O sentido disso por parte dos neopentecostais do Marajó remonta aquilo que já foi observado por Santos (2018) em relação aos caiçaras de Ilha Grande. No Marajó, o perigo e a presença do demônio coincidem, de modo tal que os indícios dessa relação poderiam constituir uma lista extensa.
Por mais que alguém sugira causas diversas influenciando a bebedeira – a solidão, os problemas de família, a saudade, a solteirice, a juventude etc. – surgirão, e prevalecerão, explicações religiosas para sua ocorrência. Nessa direção, duas questões parecem adquirir centralidade. A primeira faz referência a um ordenamento lógico cuja prioridade de aparecimento é sempre o demônio. Em geral, não seria a solidão ou o marasmo dos alojamentos a causa da vida errante aqui exemplificada com a bebedeira, mas a possessão pelo demônio é que causaria o afastamento gradativo por parte da família, a solidão, a infelicidade, a arrogância para com os fiscais. Não seria a solteirice a causa da vida errante nas zonas, mas a presença do demônio a causa da solteirice. O que passa a ser interessante, como segunda questão, é o fato de a ação do demônio se estender até dentro das empresas, de ela fazer explodir o “mau” comportamento, os atritos entre trabalhadores e fiscais, as brigas entre trabalhadores, as repetidas ausências ao trabalho. Assim o ordenamento lógico neopentecostal encerra por balizar a conduta dos trabalhadores nas empresas. É dessa forma que se entrelaçam a ética do trabalho, a moral evangélica e os interesses empresariais do agronegócio.
Diferente da “ética protestante e o espírito do capitalismo” (Weber, 2004), a moral evangélica expressa no bairro – e que parece sempre expandir na mesma velocidade em que expandem as áreas plantadas e os pivôs centrais de irrigação – aparenta não visar a ascensão aos céus por meio do trabalho, mas fazer esquivar do demônio e do perigo em terra. E na terra, particularmente no Marajó, os olhos dos fiéis exercem forte controle comportamental, remontando, de modo curioso, a expansão metodista descrita por Thompson (1987, p. 40), particularmente quando este diz ser via Satanás que “podemos ver as energias, impedidas de se manifestar efetivamente na vida social e reprimidas pelos princípios puritanos negadores da vida”. Então é relevante que uma das principais preocupações cotidianas de um interlocutor do bairro fosse os cururus – espias evangélicos da vida cotidiana que fazem fuxico por aí. Esse era o motivo pelo qual ele não gostava de esparrar, de empreender qualquer ação que desse margem ao julgamento alheio e que, por fim, reverberasse em sua vida pessoal ou profissional. A intersecção do evangelismo com a ética do bom trabalhador, ainda, é reforçada pelas orientações frequentes dos pastores aos trabalhadores, para respeitarem os fiscais e encarregados e não se envolverem em brigas, algo que projeta o comportamento para dentro das empresas. Já nas igrejas, estabelecem-se redes de interconhecimento e profissionais por meio das quais fiéis aparecem podendo obter trabalho e ascender a fiscal com mais facilidade.
Em paralelo a essa forma de disciplinamento, constrói-se ali métodos idiossincráticos de arregimentação de trabalhadores em que figura a seletividade de indivíduos “dóceis”. Mormente, tal política de arregimentação se deu pelo estabelecimento de vínculos em municípios específicos, localizados em geral nos estados do Ceará e Bahia. A escolha desses municípios foi guiada por neles ter sido identificada elevada concentração de indivíduos “tranquilos” e “aptos” ao trabalho nas lavouras, conforme relataram-me encarregados de empresas, responsáveis por seus processos de arregimentação. Com isso, foram estabelecendo-se redes de contatos entre agentes do Pi-place e agentes residentes nessas localidades, no interior das quais foram constituindo-se os processos seletivos, particularmente de bons trabalhadores. Se no início as empresas precisavam destinar funcionários para a realização dessa tarefa, no decorrer do tempo agentes residentes nesses municípios passaram a realizá-la, em troca de poderem, de modo remunerado, realizar o transporte de trabalhadores ao Pi-place, algo que encerra por reduzir o gasto das empresas.
O privilégio dessa vinculação espacial ocorre, por um lado, de modo a possibilitar que as empresas se aproveitem das redes de parentesco, amizades e interconhecimento já estabelecidas pelos trabalhadores em seus municípios de origem; redes cujo pertencimento encerra por forjar o principal critério de arregimentação de trabalhadores. Por outro lado, identifica-se, no seio dessas redes, uma moralidade que rege o relacionamento entre seus integrantes e as empresas do Pi-place, em sentido tal que o alargamento delas ocorre com critérios que vão além do parentesco e da amizade. Nessas redes, quando um trabalhador é solicitado por parentes ou amigos a fazer a interlocução com determinada empresa no sentido de empregá-los, entra em jogo a necessidade de cumprimento de determinados códigos de conduta, dentre os quais o de não se colocar em situação de perigo e o intuito de fazer nome. Há assim, frequentemente, desconfortos por parte dos trabalhadores que introduzem novas pessoas nas empresas; há, inclusive; desavenças familiares quando os códigos não são compreendidos, de modo que a maioria dos trabalhadores parece guardar experiências tensas que abalaram os esquemas de ajuda mútua que se estabelecem ora nos alojamentos ora no bairro.
Se o município de origem e o pertencimento a redes são critérios para a contratação de novos trabalhadores, acima dessa escolha está o estado em que tal município localiza-se. Em geral são contratados cearenses, baianos e maranhenses, sendo os primeiros os preferidos, por serem considerados os mais “tranquilos” e “aptos” às lavouras de HF. Ao longo da conformação dessa ética laboral, maranhenses foram sendo considerados por encarregados e gerentes como sendo mais “difíceis de se trabalhar”. Ainda que rendam mais no trabalho, maranhenses são tidos como grosseiros, ignorantes, agressivos e encrenqueiros. É assim que, atualmente, privilegia-se a contratação de cearenses e baianos, nessa ordem.
É curioso que, aos cearenses e baianos os maranhenses não lhes parecem de fato agressivos e encrenqueiros, mas mais articulados e reivindicatórios do que baianos e muito mais ainda do que cearenses. Em seu próprio sistema de classificação, cearenses, de modo geral, são pacíficos em demasia, tal qual observou Menezes (2002a) em relação a paraibanos quando comparados a pernambucanos. Mais do que isso: não têm a união dos maranhenses, que, regular e coletivamente, protestam de forma explícita contra determinada comida, contra algum ajuste nas condições de trabalho, em oposição a algum regramento abusivo nos alojamentos etc. Isto parece constituir uma das razões pelas quais os cearenses reclamam às escondidas de algumas atitudes empresariais que lhe parecem abusivas, como a revista às malas nos alojamentos, as mudanças desvantajosas no esquema de trabalho, as punições injustas, entretanto sem conseguirem efetivar ações concretas em seu favor. Dessa forma, ficam mais nítidos os contornos desses estranhos arranjos para a produção de trabalhadores “dóceis”, produção esta que, na percepção dos gerentes gaúchos, é imperiosa para o alargamento dos negócios ali.
Se a breve atenção às igrejas neopentecostais e aos esquemas de arregimentação fazem apontar um sentido normalizador decorrente da banalização do uso de tecnologias disciplinares, isso é mais radical quando mecanismos diretos de controle empregados pelas empresas estão em cena, a partir dos quais, de forma análoga, trabalhadores viram objetos a serem disciplinados em relações de poder (Rabinow; Dreyfus, 1995). O monitoramento e o controle dos amplos espaços de lavouras, não raro de forma armada, bem representam este ímpeto, também o controle filmado nos barracões e as formas de coerção que aparecem em cartazes afixados nas paredes, ou expressas diretamente pela vigilância ativa de fiscais que buscam incessantemente a disciplina e a eficiência (Li, 2011, p. 288). As formas de controle e a normalização que daí é esperada (Foucault, 1988) têm detrás um aparato simbólico que é operado e inserido no cotidiano e na vida laboral de formas variadas. Em termos práticos, ficam sumariamente regrados: os acessos aos banheiros e as conversas entre trabalhadoras nos barracões, o uso de celulares por peões nas lavouras, os modos de se vestir, a relação com a natureza – a exemplo do controle das empresas sobre as represas que abastecem os pivôs e impedem moradores do bairro e alojados do lazer –, a conduta dentro e fora dos alojamentos – como a presença de espias nos bares de trabalhadores –, entre outros aspectos.
Não é de se estranhar, então, que, engajadas a essas formas de controle e disciplina, as punições entrem em cena. A mais substantiva delas é aquela que pune eventuais ausências do trabalhador – as faltas – com dias adicionais sem trabalho, algo que lhe implica prejuízos financeiros diretos, mas que, sobretudo, ao distingui-lo no interior do grupo de convivência, abala-lhe moralmente. Este tipo de punição pode ocorrer também quando peões ou aranhas dos barracões confrontam fiscais ou elaboram gracinhas que resultam em brigas. Em isto se repetindo, o trabalhador “infrator” é dispensado e colocado numa espécie de “lista negra”23 que circula na empresa e entre empresas. Esse é o caso, já bem conhecido, em que a ficha denota uma tendência à individualização e produz o trabalhador objeto, compondo a hermenêutica da dominação. Para Foucault (1988, p. 99), “a publicidade da punição não deve espalhar um efeito físico de terror; deve abrir um livro de leitura”. Em outros termos, o comportamento do trabalhador fica registrado e é acessado a qualquer momento, no sentido de induzi-lo a “boas” condutas.
Há, evidentemente, pouca margem de manobra para reivindicações mais organizadas por parte dos trabalhadores, em decorrência das “entidades que memorizam” sua vida laboral e do “livro de leitura” que pode ser aberto a qualquer momento. Se as ameaças e atitudes disciplinadoras que produzem o trabalhador “dócil” contribuem para minar eventuais formas de resistência – formas estas esperadas nesse contexto carregado de violência simbólica e assimetrias de poder (Menezes, 1985, 2002b; Scott, 2002) –, outros entrelaçamentos também aparecem forjando a “estabilidade” ali.
Uma das duas principais formas de resistência ali faz referência ao desapego e à negligência para com o trabalho árduo nas lavouras, algo manifesto principalmente por peões do bairro e que, na lógica empresarial, foi sendo traduzido em termos de preguiça. Desapego talvez possível em razão de uma dinâmica de serviços24 ter se configurado no bairro, permitindo-lhes outras possibilidades de emprego. A segunda forma de resistência diz respeito às frequentes sabotagens aos fiscais, por parte de peões avessos ao seu comportamento controlador: estes os difamam (principalmente), os provocam, os desobedecem, entre outras artes silenciosas. Ambas as resistências, entretanto, mostram-se tautológicas e, assim, “fracas”. A primeira porque corrobora o quadro depreciativo do trabalhador e termina por reforçar a própria ética do bom trabalhador, que tem a depreciação como pilar central. A segunda porque tem como objeto de sabotagem o próprio trabalhador, o fiscal, que é não mais do que um peão que perseguiu algum privilégio salarial e de status. É dessa forma que as resistências parecem ser aplainadas ali.
É importante ainda atentar-se ao que Heredia, Palmeira e Leite (2010, p. 172) apontam sobre a participação de trabalhadores migrantes na dinâmica social do agronegócio. Para eles, “o lugar dos nordestinos é outro – é onde estão suas famílias”. Isso parece fazer sentido também no Pi-place, porque, de um modo geral, aos peões de moradia temporária ali, parece não lhes apetecer as contendas em torno de uma modalidade de trabalho que está longinquamente situada. Assim, por um lado, o interesse pela construção de agência aparece direcionado às redes familiares e comunitárias em seus locais de origem. Por outro, o Pi-place, enquanto destino migratório longínquo, aparece, frequentemente, como ambiente ameaçador e de desconfiança, de modo análogo ao que foi observado por Menezes (2002a) em outro estudo.
A ética do bom trabalhador surge no Pi-place normatizando o comportamento de trabalhadores temporários, particularmente, articulando processos de transvaloração, depreciação e disciplinamento. Conjunto este que é regulado pela crescente concorrência por postos de trabalho (Li, 2011, p. 286) e que encerra por conformar modelos mentais e formas de organizar o mundo, gerando consequências em termos de racionalidade, mas também implicações identitárias e de violência e dominação simbólicas. Parece ser dessa forma que as barreiras do trabalho árduo são transpostas e que a flexibilização radical do trabalho é implantada no seio do agronegócio, contudo não sem o protagonismo de atores particulares na formulação e condução desse processo: os gaúchos.
TATEANDO UMA VISÃO MAIS ABRANGENTE
A construção da ética do bom trabalhador tem como pano de fundo as estratégias de empregadores para garantir a ampliação de suas taxas de lucro, a partir da superexploração da força de trabalho, expressando determinadas relações sociais de produção vigentes na sociedade capitalista, Racionalidades, identidades, situações de violência e de dominação simbólicas, assim, parecem entrar em cena a partir desta base material e dos interesses de classes detentoras dos meios de produção, com destaque, aqui, para as frações do agronegócio brasileiro. Ocorre que a expansão desta modalidade produtiva é dotada de intencionalidade particular, por sua vez encarnada em um grupo social protagonista, os gaúchos. No Pi-place esse encadeamento não é diferente, de modo que a ética de trabalho que ali vigora informa tanto sobre trabalhadores temporários migrantes quanto sobre gaúchos, que lançando mão de alianças múltiplas, forjaram os atuais “agentes do Agro”, ou nos termos de Meyer e Gerhardt (2024), os “homens de camisas azuis”. Assim como intuíram Heredia, Palmeira e Leite (2010), a observância a este grupo social parece constituir uma boa forma de perseguir, em termos analíticos, a sociedade do agronegócio, por que foi ele que, objetivamente, o implantou e que o faz expandir. Daí que o presente artigo corrobora a importância de uma agenda de pesquisa em torno da sociedade do agronegócio, de modo a dar foco a questões de poder, gênero, conformação de novos aglomerados populacionais, mediação social, hierarquias e sociabilidades.
Nesse processo – que outrora parecia ser estritamente de expansão espacial – as formas de operação dessa sociedade se complexificam, como resposta às transformações contemporâneas. Assim a propagação ideológico-discursiva (Porto, 2014) que visa legitimar a exploração da natureza, a conformação de um ethos do gerente mediador (Meyer; Gerhardt, 2024), a cosmologia agro (Gerhardt, 2021) e a ética do bom trabalhador, aqui tratada, são representativas dessa resposta. Este conjunto de elementos nos sugere a expansão agronegocial não somente como reflexo mecânico de mudanças de ordem econômica e política, mas também como produto de uma espécie de “história cultural” – gaúcha, ou melhor, da sociedade do agronegócio, que, em decorrência de alianças e coalisões, mostra-se mais heterogênea – que se forja. A territorialização, no Pi-place, de uma ética do bom trabalhador é não menos do que uma mostra disso. Mais especificamente, a ética denota, entre outros aspectos, a forma (neocolonialista?) como tal sociedade lida com um outro que lhe é estranho, com cores de dominação.
Não é demais lembrar que, nos planos locais, nos quais se desenrolaram experiências de colonização agrícola, sobretudo nos pequenos e médios municípios que se prestam à agricultura mecanizada, o gaúcho aparece como importante ator de mudança técnica, social e natural, organizado em cooperativas e envolvido na tessitura de poderosas redes familiares (Andrade, 2008; Gaspar; Andrade, 2014) e ideológicas. Ele reconfigura a paisagem natural e sua significação (Meyer; Gerhardt, 2024), assim como o espaço social e político (Chaves, 2003), adaptando-se aos diversos cenários e momentos. Uma dessas adaptações diz respeito à mudança em suas estratégias de reprodução social, mencionada no início, que desloca seus descendentes da figura do agricultor especializado para a composição de uma elite gerencial dos empreendimentos do agronegócio, algo um tanto oportuno no recente contexto de empresarização, mas que, ao mesmo tempo, exige-lhe ter que lidar intensivamente com trabalhadores e, consequentemente, ter que translocar fragmentos (TSING, 2007) normativos advindos do tecnicismo instrumental e de contextos industriais, em que imperam as técnicas de administração, a flexibilização do trabalho e as metas produtivas.
Parece correr em paralelo um movimento de naturalização das formas com que trabalhadores se inserem no processo produtivo. Nesse caso, está em jogo o estabelecimento de espécies de modelos mentais que derivam de fabulações, dentre as quais a de que o trabalhador subalterno deve ser exaustivamente regrado e controlado para superar o trabalho árduo. Enfim, condensa-se a percepção de que ser trabalhador nas lavouras e barracões “é assim mesmo”. Aqui as reflexões de Boltanski acerca da ideia de dominação gestionária são mais do que inspiradoras. No jogo entre empresas – agentes despersonificados – e trabalhadores, as primeiras ficam eximidas de responsabilidades, ao passo que é rogado aos segundos que sejam realistas, que aceitem as restrições impostas, não porque são justas, mas porque não podem ser diferentes (Boltanski, 2013, p. 450). Tal naturalização parece preencher o quadro etnográfico segundo o qual, aos gaúchos – chefes ou proprietários de terra –, parece ser menos importante influenciar nordestinos para incorporá-los ao seu mundo; importa mais que se comportem, e que produzam. Nesse ímpeto, se faz necessária a incorporação de agentes intermediários – como os goianos, ilustrado na Figura 1 –, tornando abissalmente desconexa a relação entre migrantes esses distintos agentes. Mais ainda, pode-se dizer, considerando Boltanski, que a imposição de duras condições de trabalho fica sem agentes responsáveis, algo que repercute, inclusive, nas formas de resistência dos trabalhadores, conforme tratado acima.
Dessa forma, o agronegócio no Pi-place deve ser tomado como produto social, com interfaces, fricções, acomodações, vicissitudes e idiossincrasias (TSING, 2005). Este estudo sobre os trabalhadores nos indica que, embora estejam em jogo práticas produtivas capitalistas, logo, metavalorativas, estas não desbancam a conformação de grupos sociais e processos identitários e valorativos particulares. Aquilo que é tido como agronegócio, em seu sentido produtivo e ideológico, tem atores, de carne e osso, com nomes, origens, valores, símbolos, linguagens, modos e estratagemas, próprios ao seu mundo. Nesse sentido, parece ser promissor considerar seu desenvolvimento em perspectiva que valoriza a história incorporada e os eventos fundamentais que conformam suas experiências (Thompson, 1987; Lopes, 2013). Particularmente no Pi-place, os contornos dessa ação gaúcha são revelados, sobretudo no aparecimento de agentes intermediários, pela incorporação massiva de mulheres trabalhadoras, pelo deslocamento definitivo de parte dos trabalhadores para o bairro e pela construção de uma ética laboral.
REFERÊNCIAS
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1
Adotamos o itálico para designar categorias êmicas, termos locais ou ideias-força e “aspas duplas” ora para indicar termos que merecem relativização, ora para as citações na íntegra.
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2
Nestes casos, quando possível empreender tal dissociação, escreve-se agronegócio sem itálico.
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3
Não há dados oficiais sobre a contagem populacional desse populoso distrito especificamente, de forma que os números apresentados são estimativas realizadas, aparentemente, de modo impreciso pela administração local do Marajó.
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4
A etnografia e a pesquisa como um todo ocorreram no âmbito de um estágio pós-doutoral realizado junto ao Departamento de Antropologia/Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília, nos anos de 2019 e 2020.
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5
Gaúcho, colocado em itálico para designar uma categoria êmica, corresponde a um termo genérico – mas, ainda assim, êmico – bastante impreciso, que, entretanto, pode ser percebido como formulação nativa de designação na maioria dos espaços que abrigam uma expansão agrícola recente. Nesses contextos, gaúcho não denota simplesmente um gentílico, mas um grupo social oriundo do “Sul”, de pele clara, de fala diferente e valores particulares. Assim gaúchos, paranaenses, catarinenses e, não raro, paulistas são todos gaúchos quando estão em terras de agronegócio.
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6
Tal investida de pesquisa esteve marcada por inúmeras dificuldades de percurso, algo, inclusive, bastante recorrente nos estudos envolvendo trabalhadores rurais (Menezes, 2002a). Dentre elas, destacaram-se a inexistência de associações ou sindicatos atuantes, certa “blindagem” por parte das empresas, o ambiente de desconfiança que se configura em razão de não ser terreno nativo de trabalhadores migrantes, a natureza da relação estabelecida entre empresas e trabalhadores, a inexistência de interlocuções anteriores entre universidades e agentes do bairro ou das empresas, a apatia empresarial para com pesquisadores e, evidentemente, a diferença cultural, racial e de classe entre pesquisadores e trabalhadores. Por essas razões, foi necessária a residência parcial do pesquisador no local, durante cinco meses.
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7
Apesar disso, reconhece-se a existência de diferentes estratégias de reprodução e, portanto, de um comportamento diferenciado desses trabalhadores, de acordo com aspectos como sexo, geração e situação conjugal.
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8
Expressa-se no pretérito em razão de hoje poderem ser observadas articulações por parte de fazendeiros e mediadores locais em torno da designação “Polo de Irrigação do Planalto Central”. Adoto aqui a mesma designação, mas por mera coincidência: estranhamente cunhamos o mesmo termo, mas sob circunstâncias discrepantes.
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9
Disponível em: https://www.coopadf.com.br/o-pad-df.
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10
Nesse sentido, pode-se dizer que há uma narrativa mestra no interior do país que incide sobre os modos locais de descrever a história sempre na perspectiva dos vitoriosos.
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11
Neste âmbito o “Programa de Cooperação Nipo-Brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados” (Prodecer), em 1974, o “Programa de Desenvolvimento do Centro-Oeste” (Prodoeste), em 1971, o “Plano de Desenvolvimento econômico e Social do Centro-Oeste”, em 1973, e o “Programa de Desenvolvimento dos Cerrados” (Polocentro), em 1975, são os mais proeminentes.
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12
Aqui vê-se uma questão técnico-numérica de suma importância. O pivô central de irrigação é um braço mecânico que gira em torno de um ponto fixo central, irrigando uma área circular. No Pi-place, em geral, esses braços medem 550 metros, irrigando um círculo cujo diâmetro é 1100 metros e cuja área compreende 95 hectares. Somam-se ali aproximadamente cinco mil pivôs (dado gerado por mim, a partir de contagem sobre imagens de satélite), que juntos potencialmente consomem 104.000 L/s (estimado a partir de Brannstrom, 2005), ou seja, no mínimo quatro vezes o volume da transposição do rio São Francisco (considerando o volume hídrico operado).
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13
Em 2019, em um ano de “baixa” e considerando apenas a produção hortifrutigranjeira no entorno do bairro Marajó, estimei (mediante a informação de empresas) oito mil trabalhos temporários. Este valor, entretanto, é extremamente variável a cada ano e depende de um complexo conjunto de fatores.
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14
Nesse “árduo”, coaduna-se também as condições e circunstâncias de trabalho, para além do trabalho em si.
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15
Em geral, peões das empresas de HF são remunerados na modalidade por produção, a partir da qual ganha-se proporcionalmente àquilo que se trabalha, algo medido pelo número de caixas colhidas, metragem capinada, fileiras plantadas etc. O salário mínimo só é praticado quando o valor do total trabalhado for inferior ao salário mínimo. Nesses casos, entretanto, o trabalhador é advertido ou dispensado. Destaca-se, assim, a elevada produtividade do trabalhador sendo perseguida por empresas para evitar a contratação de mais trabalhadores e os gastos adicionais que isto implica.
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16
Em geral, o salário mínimo estipulado em lei.
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É verdade que as mulheres constituem a maioria nos barracões, entretanto, analisando a proporção entre homens e mulheres em uma das maiores empresas do agronegócio do Pi-place, identifiquei que quase a metade era constituída de homens. Já em outras, a proporção de homens era menos expressiva.
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18
Arregimentadores autônomos de trabalhadores.
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19
Apenas como exemplo, uma determinada empresa mantém nos meses de dezembro a fevereiro uma equipe fixa de setenta trabalhadores, os ditos de confiança (operadores de máquinas, fiscais, peões da cenoura). Em março essa mesma empresa tem contratados trezentos e vinte funcionários, em maio quatrocentos e vinte, em julho seiscentos e vinte, ao passo que, de setembro em diante, essa relação numérica se inverte, de modo a decrescer o número de trabalhadores a ela vinculados até o final de novembro, restando novamente, em dezembro, somente a equipe fixa.
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20
No prefácio de Moacir Palmeira ao livro de Rumstain (2012, p. 17), tem-se que a oposição entre gaúchos (ou sulistas) e nordestinos “[...] envolve muito mais que a referência a estados ou regiões de origem. Os sulistas se concebem como produtores, como pessoas que “trabalham”, e veem os [...] nordestinos [...] como “gente que não gosta de trabalhar”, gente que “prefere o boteco ao trabalho” ou [..] como apenas “aptos ao trabalho braçal”.
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21
Para se ter uma dimensão da magnitude desse perigo objetivo, em um único mês de 2018 foram registrados 24 assassinatos no bairro Marajó. As explicações dessa onda de assassinatos são controversas, entretanto prevalece a explicação assentada na necessidade de se acabar com os ladrões. Em 2019, seus dezessete mil habitantes dispunham, na prática, de apenas dois policiais e uma viatura, um quadro que, sobretudo, sinaliza a ausência do Estado e o não cumprimento da promessa de desenvolvimento na região tida como a mais próspera do país em termos de PIB-agrícola.
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A maconha, em particular, tem um lugar específico na fala dos trabalhadores, que evitam se expor à prosa ruim dos usuários que tantas vezes aparece no decurso do trabalho.
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23
Uma série de elementos apresentados aqui – formas de punição e controle, trabalho árduo etc. – coincidem com as informações levantadas por Menezes (2002a) em relação ao trabalho canavieiro em usinas de Pernambuco na década de 1990. Isso dá indícios de que a ação gaúcha mediante a agricultura irrigada no Pi-place toma de empréstimo determinadas práticas que ocorrem no setor empresarial agrícola já há algumas décadas.
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24
Identifica-se extensa rede de serviços no Marajó, que emerge como desdobramento da instalação das grandes empresas de HF, de modo que a rede pode ser acessada por residentes do bairro como fonte opcional de renda. Nesse sentido, destacam-se: barbearias, farmácias, postos de saúde, supermercados, creches, escolas, lanchonetes, restaurantes, bares, clínicas veterinárias, prostíbulos, papelarias, armazéns, lojas de roupas e de móveis, conjunto de quitinetes para alugar, oficinas mecânicas, pousadas, escritórios de advocacia etc. Identificam-se também possibilidades de prestação de serviços de: pedreiro, eletricista, babá, diarista, motorista, tratorista, operador de máquinas agrícolas, manicure, cantor etc.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
26 Jan 2024 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
15 Dez 2020 -
Aceito
09 Nov 2023