Open-access Uso de membrana de oxigenação extracorpórea venoarterial em um caso de miocardite chagásica fulminante como ponte para transplante cardíaco

RESUMO

Jovem com 17 anos de idade atendido com dispneia progressiva há 15 dias e piora nas últimas 24 horas. Foi admitido em estado de insuficiência respiratória e choque cardiogênico com disfunção de múltiplos órgãos. O ecocardiograma mostrou fração de ejeção ventricular esquerda de 11%, grave hipocinesia difusa e pressão sistólica da artéria pulmonar de 50mmHg. Houve necessidade de suporte hemodinâmico com uso de dobutamina (20mcg/kg/minuto) e noradrenalina (1,7mcg/kg/minuto). Após 48 horas, o paciente não apresentou melhora hemodinâmica nem clínica, optando-se, então, pela implantação de membrana de oxigenação extracorpórea. Ocorreu melhora do ponto de vista hemodinâmico, da perfusão sistêmica, da função renal e hepática, porém, após 72 horas, não houve recuperação da função cardíaca. Optou-se, assim, pela transferência para outro hospital. O paciente foi transferido por transporte aéreo de Salvador (BA) para Recife (PE). Foi realizado transplante cardíaco com rápida recuperação da função hepática e renal, e boa função do enxerto. A histopatologia do coração explantado demonstrou miocardite crônica ativa e amastigotas de Trypanosoma cruzi. A prevalência global estimada de infecção por T. cruzi caiu de 18 milhões em 1991, quando a primeira iniciativa regional de controle teve início, para 5,7 milhões em 2010. A miocardite é uma doença inflamatória causada por condições infecciosas ou não infecciosas. As manifestações clínicas variam desde um quadro subclínico até insuficiência cardíaca e choque cardiogênico. Diversos relatos sugerem que o uso de membrana de oxigenação extracorpórea em pacientes com quadro grave e refratário de miocardite é uma opção como terapia ponte até transplante cardíaco, nos casos sem recuperação espontânea da função ventricular. Em uma consulta ambulatorial de acompanhamento realizada 6 meses após o transplante, o paciente encontrava-se bem e assintomático.

Descritores: Oxigenação por membrana extracorpórea; Miocardiopatia chagásica; Transplante cardíaco; Relatos de casos

ABSTRACT

A 17-year-old Brazilian male presented with progressive dyspnea for 15 days, worsening in the last 24 hours, and was admitted in respiratory failure and cardiogenic shock, with multiple organ dysfunctions. Echocardiography showed a left ventricle ejection fraction of 11%, severe diffuse hypokinesia, and a systolic pulmonary artery pressure of 50mmHg, resulting in the need for hemodynamic support with dobutamine (20mcg/kg/min) and noradrenaline (1.7mcg/kg/min). After 48 hours with no clinical or hemodynamic improvement, an extracorporeal membrane oxygenation was implanted. The patient presented with hemodynamic, systemic perfusion and renal and liver function improvements; however, his cardiac function did not recover after 72 hours, and he was transfer to another hospital. Air transport was conducted from Salvador to Recife in Brazil. A heart transplant was performed with rapid recovery of both liver and kidney functions, as well as good graft function. Histopathology of the explanted heart showed chronic active myocarditis and amastigotes of Trypanosoma cruzi. The estimated global prevalence of T. cruzi infections declined from 18 million in 1991, when the first regional control initiative began, to 5.7 million in 2010. Myocarditis is an inflammatory disease due to infectious or non-infectious conditions. Clinical manifestation is variable, ranging from subclinical presentation to refractory heart failure and cardiogenic shock. Several reports suggest that the use of extracorporeal membrane oxygenation in patients presenting with severe refractory myocarditis is a potential bridging therapy to heart transplant when there is no spontaneous recovery of ventricular function. In a 6-month follow-up outpatient consult, the patient presented well and was asymptomatic.

Keywords: Extracorporeal membrane oxygenation; Chagas cardiomyopathy; Heart transplantation; Case reports

INTRODUÇÃO

O uso de membrana de oxigenação extracorpórea (ECMO) na insuficiência cardíaca de adultos pode ser feito como uma ponte até recuperação do miocárdio, transplante cardíaco ou implantação de um dispositivo de assistência ventricular esquerda.(1)

Há dois tipos principais de ECMO, a venovenosa e a venoarterial, sendo a venoarterial a modalidade de escolha para falência cardíaca aguda em pacientes adultos.(1) O sistema ECMO, que consiste em uma máquina coração-pulmão modificada, em geral apresenta uma bomba centrífuga, ou trocador, e um oxigenador de membrana. O sangue venoso dessaturado é aspirado do átrio direito para uma bomba centrífuga por meio de uma longa cânula reforçada em aço, inserida no átrio direito, por meio da veia femoral. O fluxo externo da bomba é direcionado para uma membrana oxigenadora, de onde é direcionado por uma cânula de saída para a aorta descendente por um acesso pela artéria femoral.(2) As típicas complicações da ECMO são a síndrome de resposta inflamatória sistêmica, a insuficiência renal, a isquemia do membro, e sangramentos.(2)

RELATO DO CASO

Jovem de 17 anos de idade foi atendido com quadro de dispneia progressiva há 15 dias e piora nas últimas 24 horas. O paciente foi admitido à unidade de terapia intensiva cardiológica do Hospital Ana Nery, em Salvador (BA), apresentando insuficiência respiratória e choque cardiogênico, além de disfunção de múltiplos órgãos. Um ecocardiograma revelou fração de ejeção ventricular esquerda de 11%, grave hipocinesia difusa e pressão sistólica da artéria pulmonar de 50mmHg. O paciente evoluiu com necessidade de suporte hemodinâmico utilizando dobutamina (20mcg/kg/minuto) e noradrenalina (1,7mcg/kg/minuto).

Após 36 horas, como não apresentava melhora hemodinâmica, implantou-se uma ECMO venoarterial, utilizando uma bomba centrífuga magnética com uma membrana de oxigenação em polimetilpanteno (Rotaflow Centrifugal Pump®/Quadrox-i Adult/Bioline coated/MAQUET Cardiopulmonary AG, Hirrlingen, Alemanha). Iniciou-se o uso de heparina (100UI/kg, em bólus, e 20UI/kg/hora). O fluxo sanguíneo foi inicialmente estabelecido a 4.571mL/minuto, com fluxo de gás (oxigênio puro) de 6.000mL/minuto. Após 24 horas, a melhora foi evidente do ponto de vista hemodinâmico (a dose de noradrenalina caiu para 0,21mcg/kg/minuto), da perfusão sistêmica (o lactato que estava em 17mmol/L caiu para 2,5mmol/L, com aumento do volume de diurese), da função renal (creatinina sérica caiu de 3,5 para 1,2mg/dL) e da função hepática (proporção internacional normalizada caiu de 7,4 para 3,1) (Tabela 1). Após 36 horas, suspeitou-se de pneumonia associada à ventilador em razão de um infiltrado progressivo na radiografia do tórax, leucocitose e presença de secreções traqueobrônquicas purulentas, sendo iniciado o uso de teicoplanina e meropenem. Após 72 horas de uso da ECMO, não se observou qualquer melhora da função cardíaca, sendo então indicada a transferência do paciente para o centro de transplantes do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP) no Recife (PE).

Tabela 1
Parâmetros clínicos e hemodinâmicos antes e após a implantação da membrana de oxigenação extracorpórea* * Intervalo de 24 horas antes e após a implantação.

A transferência foi realizada de Salvador para o Recife utilizando transporte aéreo por meio de um avião militar, 4 dias após a admissão (distância percorrida de 675 km) (Figura 1S no material eletrônico suplementar). A logística para o transporte entre os hospitais envolveu cerca de 50 profissionais de diferentes especialidades, incluindo médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, paramédicos, perfusionistas e policiais, em razão da falta de uma equipe de transporte com especialização em transporte com ECMO (Figura 1). O transplante cardíaco com descanulação intraoperatória da ECMO foi realizado após 48 horas com excelente resultado, rápida recuperação da função hepática e renal, boa função do enxerto e desmame satisfatório do suporte circulatório. A histopatologia do coração explantado revelou miocardite crônica ativa e presença de amastigotas de Trypanosoma cruzi (Figura 2), comprovando uma miocardiopatia chagásica.

Figura 1
Logística do transporte entre os hospitais em Salvador (BA) e Recife (PE).

ECMO - membrana de oxigenação extracorpórea; SESAB - Secretaria Estadual de Saúde da Bahia; SAMU - Serviço Móvel de Urgência; IMIP - Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira.


Figura 2
Histologia de amostra do coração explantado. A) Fotomicrografia (x400) de uma amostra corada com hematoxilina e eosina. B) Nesta magnificação (x1.000), os organismos (amastigotas de Trypanosoma cruzi) dentro de um miócito (seta) e a resposta inflamatória adjacente são vistos mais claramente.

DISCUSSÃO

A prevalência mundial estimada de infecção pelo T. cruzi caiu de 18 milhões em 1991, quando começou a primeira iniciativa regional de controle, para 5,7 milhões em 2010.(3) A miocardite é uma doença que tem sua origem em causas infecciosas ou não infecciosas. O quadro clínico é variável, incluindo desde manifestações subclínicas até insuficiência cardíaca refratária e choque cardiogênico.(4) Deve ser considerado o uso de suporte circulatório mecânico, como o uso de balão intra-aórtico ou dispositivos de assistência ventricular nos casos refratários ao tratamento clínico.(4) Diversos relatos sugerem que o uso da ECMO em pacientes com quadro de miocardite refratária é uma opção como tratamento ponte até o transplante cardíaco nos casos em que não há recuperação espontânea da função ventricular.(5,6) A ECMO venoarterial pode ser implantada por via percutânea ao pé do leito e, com cuidados adequados, pode ser mantida por várias semanas. É o dispositivo de preferência quando está presente disfunção ventricular e, frequentemente, promove uma rápida melhora da condição hemodinâmica, dos parâmetros de oxigenação e da função dos órgãos.(7,8) Perante melhora da função, o dispositivo de suporte mecânico pode ser retirado de forma gradual, porém, quando o comprometimento da função cardíaca persiste, o tratamento de escolha deve ser um dispositivo para uso em longo prazo, ou um transplante cardíaco.(9,10) Em consulta ambulatorial de seguimento após 6 meses, o paciente se encontrava em boas condições de saúde, ratificando a custo-utilidade deste procedimento no Brasil.(10)

CONCLUSÃO

No presente caso, a membrana de oxigenação extracorpórea foi utilizada em um paciente com falência de múltiplos órgãos secundária a um choque cardiogênico claro e refratário. O benefício do método foi inquestionável, mesmo em estágios avançados de falência renal e hepática. O paciente apresentou recuperação parcial dos sistemas afetados, tornando possível a efetivação do tratamento definitivo da miocardite grave: o transplante cardíaco. O transporte inter-hospitalar em curta e em longa distância pode ser realizado com segurança durante o uso de membrana de oxigenação externa, porém requer uma equipe subespecializada, altamente competente em terapia intensiva e alerta quanto aos riscos envolvidos no transporte desses pacientes.

  • Editor responsável: Luciano César Pontes de Azevedo

AGRADECIMENTOS

Queremos agradecer à equipe de transplante do Instituto de Medicina Integral Professor Fernando Figueira (IMIP), em Pernambuco, a Christiane Pádua Arantes Freitas, Anísio Silva Freire Filho, Pompilio Sampaio Britto, ao Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), em Salvador (BA), ao Grupamento Aéreo da Polícia Militar da Bahia (GRAER-PMBA), à Central Estadual de Regulação da Secretaria Estadual de Saúde da Bahia (CER-SESAB) e ao Hospital Ana Nery.

REFERÊNCIAS

  • 1 National Institute for Health and Care Excellence - NICE.Extracorporeal membrane oxygenation (ECMO) for acute heart failure in adults. Published on March 2014. Available in https://www.nice.org.uk/guidance/ipg482/informationforpublic
    » https://www.nice.org.uk/guidance/ipg482/informationforpublic
  • 2 Werdan K, Gielen S, Ebelt H, Hochman JS. Mechanical circulatory support in cardiogenic shock. Eur Heart J. 2014;35(3):156-67. Review.
  • 3 Bern C. Chagas' disease. N Engl J Med. 2015;373(5):456-66.
  • 4 Montera MW, Mesquita ET, Colafranceschi AS, Oliveira Jr AC, Rabischoffsky A, Ianni BM, Rochitte CE, Mady C, Mesquita CT, Azevedo CF, Bocchi EA, Saad EB, Braga FG, Fernandes F, Ramires FJ, Bacal F, Feitosa GS, Figueira HR, Souza Neto JD, Moura LA, Campos LA, Bittencourt MI, Barbosa Mde M, Moreira Mda C, Higuchi Mde L, Schwartzmann P, Rocha RM, Pereira SB, Mangini S, Martins SM, Bordignon S, Salles VA; Sociedade Brasileira de Cardiologia. I Brazilian guidelines on myocarditis and pericarditis. Arq Bras Cardiol. 2013;100(4 Suppl 1):1-36.
  • 5 Kindermann I, Barth C, Mahfoud F, Ukena C, Lenski M, Yilmaz A, et al. Update on myocarditis. J Am Coll Cardiol. 2012;59(9):779-92.
  • 6 Atluri P, Ullery BW, MacArthur JW, Goldstone AB, Fairman AS, Hiesinger W, et al. Rapid onset of fulminant myocarditis portends a favourable prognosis and the ability to bridge mechanical circulatory support to recovery. Eur J Cardiothorac Surg. 2013;43(2):379-82.
  • 7 Chen JM, Spanier TB, Gonzalez JJ, Marelli D, Flannery MA, Tector KA, et al. Improved survival in patients with acute myocarditis using external pulsatile mechanical ventricular assistance. J Heart Lung Transplant. 1999;18(4):351-7.
  • 8 Sayer GT, Baker JN, Parks KA. Heart rescue: the role of mechanical circulatory support in the management of severe refractory cardiogenic shock. Curr Opin Crit Care. 2012;18(5):409-16. Review.
  • 9 Bassi E, Azevedo LC, Costa EL, Maciel AT, Vasconcelos E, Ferreira CB, et al. Uso de suporte hemodinâmico e respiratório por meio de oxigenação extracorpórea por membrana (ECMO) venoarterial em um paciente politraumatizado. Rev Bras Ter Intensiva. 2011;23(3):374-9.
  • 10 Park M, Mendes PV, Zampieri FG, Costa EL, Antoniali F, Ribeiro GC, Caneo LF, da Cruz Neto LM, Carvalho CR, Trindade EM; ERICC research group; ECMO group Hospital Sírio Libanês and Hospital das Clínicas de São Paulo. The economic effect of extracorporeal membrane oxygenation to support adults with severe respiratory failure in Brazil: a hypothetical analysis. Rev Bras Ter Intensiva. 2014;26(3):253-62.

Disponibilidade de dados

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2015
  • Aceito
    12 Nov 2015
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