"A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação."
Constituição da República Federativa do Brasil, 1988
O Sistema Único de Saúde (SUS) foi estabelecido em 1990 pela Constituição da República Federativa do Brasil com a finalidade de garantir acesso universal e gratuito à saúde para toda a população do país.(1) Em 1988, metade da população brasileira não dispunha de qualquer tipo de cobertura médica. Duas décadas após o estabelecimento do SUS, mais de 75% da população do país, hoje estimada em 190 milhões de pessoas, depende exclusivamente do SUS para os cuidados de sua saúde.(2) O fornecimento destes serviços representa uma grande oportunidade para captação de dados sanitários digitais, que são recursos importantes para o desenvolvimento de diretrizes clínicas localmente relevantes, em vez de simplesmente adotar diretrizes utilizadas por outros países.
A despeito deste potencial para aquisição de dados, os registros eletrônicos em saúde (RES) são atualmente utilizados no Brasil primariamente para suportar funções administrativas e de cobrança, e não armazenam informações clínicas em um formato adequado para análise.(3) Recente levantamento demonstrou que 70% das instituições brasileiras que utilizaram a internet nos últimos 12 meses têm algum tipo de registro eletrônico de informações médicas.(4) Em 48% das instalações, os registros são, em parte, feitos em papel e, em parte, eletrônicos. Sistemas de informação sem papel só estão presentes em 22% das instituições, sendo que esta frequência é só um pouco mais alta (33%) nas instituições privadas. Por outro lado, 30% das instituições mantêm todos seus registros de pacientes em papel, com proporção muito mais alta (51%) nas entidades púbicas.(4)
Dois setores governamentais poderiam desempenhar um papel importante no desenvolvimento da tecnologia para análise de dados sanitários no Brasil: (1) o Departamento de Informática do SUS (DATASUS), que fornece suporte aos sistemas de informação para todas as divisões do SUS,(5) e (2) o Telessaúde Brasil Redes, um programa nacional projetado para melhorar a qualidade dos cuidados providos pelo SUS, que integra serviços e educação por meio de ferramentas tecnológicas.(6) Com a integração do SUS, é possível criar um RES para cada cidadão, ou seja, formar um repositório de registros individuais de serviços realizados e dados clínicos que, quando agregados, poderiam levar a um registro preciso da trajetória da saúde e das doenças no Brasil.
As bases de dados projetadas para RES no Brasil são limitadas, em termos de escopo, e só são acessíveis a investigadores internos de hospitais ou organizações. Na verdade, dois fatores principais prejudicam a análise secundária dos registros de saúde no Brasil para melhora da saúde populacional: a falta de interoperabilidade entre os sistemas de informação utilizados no setor de saúde, e a atitude geral em relação aos dados com recurso. Embora o DATASUS proporcione acesso público amplo aos dados governamentais, estes não são atualmente uma fonte de pesquisa e se encontram espalhados entre os sistemas.
No entanto, é importante enfatizar algumas importantes iniciativas brasileiras em termos de RES. A TBweb é uma base de dados on-line utilizada no Estado de São Paulo para vigilância epidemiológica e monitoramento de casos de tuberculose. Trata-se de um sistema em tempo real, e os dados podem ser inseridos e avaliados on-line durante a evolução da doença.(7) Além deste, o Cadastro Único para programas Sociais (CadUnico) é um grande exemplo de um instrumento que combina características demográficas, intervenções e marcadores socioeconômicos de diferentes bases de dados.(8)
Neste cenário, iniciativas que promovem interação direta entre médicos, cientistas de dados, gestores e cientistas da computação com sistemas bem-sucedidos para análise de big data podem ter um valor prático e incentivar a futura integração de dados neste país. Organizamos um evento que reuniu especialistas e uma base de dados de alta qualidade para uma experiência prática de análise de dados sanitários. Em 6 e 7 de maio de 2017, realizamos, no Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), um datathon de dados em terapia intensiva.
O termo datathon é um jogo de palavras que reúne os termos data e hackathon, e enfatiza a aplicação de um modelo de hackathon para análise de dados. Nesta edição brasileira, membros do Laboratório de Fisiologia Computacional (LFC) do Massachusetts Institute of Technology (MIT) forneceram um acesso guiado ao Medical Information Mart for Intensive Care III (MIMIC-III), uma base de dados clínicos aberta e bem organizada mantida pelo LFC, e suportada por uma vibrante comunidade de pesquisa.(9) Conforme o modelo dos datathons prévios conduzidos pelo LFC, o evento MIT-HIAE foi dividido em dois componentes, durante 2 dias: uma conferência de meio dia a respeito de informática em saúde, seguida por 1 dia e meio de prática em análise de dados clínicos.
Compareceram à conferência de meio dia sobre dados de saúde 204 pessoas. Os tópicos cobertos pela apresentação e os painéis de discussão incluíram o valor do compartilhamento de dados e da colaboração multidisciplinar, em termos de privacidade e segurança referentes ao compartilhamento de dados no Brasil, e o cultivo de um ecossistema de inovação ao redor dos grandes dados sanitários e biotecnologia. O datathon em terapia intensiva teve lugar imediatamente após a conferência. Participaram dela 31 cientistas de dados e 19 médicos, totalizando 50 participantes. Os médicos apresentaram questões de pesquisa que foram triadas pelas equipes do MIT e do HIAE para avaliar se poderiam ser avaliadas por meio da base de dados MIMIC. Estes tópicos incluíam: variações entre o dia e a noite nas práticas de sedação desfechos dos pacientes, força mecânica em pacientes mecanicamente ventilados, associação entre a trajetória do lactato sérico e disfunções específicas de órgãos, efeito da hiperóxia em pacientes com sepse, desfechos após cirurgia em pacientes muito idosos admitidos à unidade de terapia intensiva, comportamento do peptídeo natriurético cerebral na lesão renal aguda, e, finalmente, impacto das admissões durante a noite em comparação às durante o dia nos desfechos clínicos.
Os grupos foram formados com base na especialidade e interesse em uma questão clínica em particular. Logo no início do segundo e último dia do evento, foram realizadas sessões de devolutiva para avaliar o progresso de cada grupo e fornecer sugestões com relação ao delineamento do estudo e análises adicionais. Ao final do evento, todas as equipes fizeram uma rápida apresentação de seus projetos de pesquisa.
A reunião de médicos e cientistas de dados no datathon MIT-HIAE serviu para demonstrar mutuamente o valor de cada especialidade. Mais importante, o datathon gerou interesse do HIAE em contribuir com a constituição de uma base de dados de alta resolução sobre terapia intensiva para a comunidade de pesquisa, pela suplementação de recursos existentes, como a MIMIC. Esta decisão pode vir a encorajar outras instituições deste país à integração e ao compartilhamento das bases de dados clínicos de forma padronizada, fornecendo uma abordagem valiosa a todos os ecossistemas sanitários.
A mudança está visível no horizonte, à medida que cresce o interesse na análise secundária de registros sanitários para incrementar os sistemas de aprendizado em saúde. No entanto, para que ocorra uma real revolução no Brasil, no que se refere aos dados sanitários, o ambiente - tecnologia, políticas e pessoas, tanto provedores quanto pacientes -, deve apoiar a mudança. Aqueles que se encontram na vanguarda da revolução dos dados em saúde devem adquirir e manter a confiança da sociedade, e demonstra que todas as análises são em benefício dos pacientes. Os proponentes do compartilhamento de dados sanitários trilham um caminho escorregadio, já que se movem em áreas não mapeadas. Nossa esperança é que a experiência do nosso datathon inspire a realização neste país de iniciativas similares, que incrementarão a coleta de dados rotineiros no processo de cuidados para seu uso na prática clínica e nas políticas sanitárias.
AGRADECIMENTOS
A viagem da equipe do MIT para São Paulo foi financiada por verbas do MIT-Brazil TVML Seed Fund, da MIT International Science and Technology Initiatives (MISTI) e do National Institute of Health NIBIB, número R01 EB017205-01A1.
REFERÊNCIAS
- 1 Paiva CH, Teixeira LA. [Health reform and the creation of the Sistema Único de Saúde: notes on contexts and authors]. Hist Ciênc Saude Manguinhos. 2014;21(1):15-35. Portuguese.
-
2 Hummel GS. Brazil eHealth - Overview, Trends & Opportunities. [Internet].São Paulo (SP); November 2016. [cited 2018 Feb 9]. Available from: http://bit.ly/2vCR5IY
» http://bit.ly/2vCR5IY -
3 Wolters Kluwer. EHRs and healthcare information technology: the solution for smarter decisions and better bare in Brazil. [Internet]. [cited 2018 Feb 9]. Available from: http://bit.ly/2uzrvrA
» http://bit.ly/2uzrvrA - 4 Marin HF, Senne F, Barbosa A. ICT health 2013: infrastructure and adoption by healthcare providers in Brazil. Stud Health Technol Inform. 2014;205:496-500.
- 5 Oliveira HF, Sampaio AL, Oliveira CA. DATASUS as a instrument for developing otologic public health policies. Braz J Otorhinolaryngol. 2011;77(3):369-72.
-
6 Brasil. Departamento de Atenção Básica. Telessaúde Brasil Redes na Atenção Básica à Saúde. [Internet]. [citado 2018 Fev 9]. Disponível em: http://bit.ly/29iMWCu
» http://bit.ly/29iMWCu -
7 São Paulo (Estado). Secretaria Estadual de Saúde. Coordenadoria de Controle de Doenças. Centro de Vigilância Epidemiológica "Prof. Alexandre Vranjac". Divisão de Tuberculose. Manual TBWEB versão 1.6. [Internet]. São Paulo; 2008. [citado 2018 Fev 9]. Disponível em: http://bit.ly/2vIL7uI
» http://bit.ly/2vIL7uI -
8 Brasil. Governo Federal. Economia e emprego. CadÚnico. Available at: http://bit.ly/2gJIB0v
» http://bit.ly/2gJIB0v - 9 Johnson AE, Pollard TJ, Shen L, Lehman LW, Feng M, Ghassemi M, et al. MIMIC-III, a freely accessible critical care database. Sci Data. 2016;3:160035.
Editado por
-
Editor responsável: Jorge Ibrain Figueira Salluh
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Mar 2018
Histórico
-
Recebido
25 Jul 2017 -
Aceito
15 Set 2017