RESUMO
Objetivo: Avaliar se, em comparação ao início tardio, o início precoce da terapia de substituição renal se associa com menor mortalidade em pacientes com lesão renal aguda.
Métodos: Conduzimos uma revisão sistemática e metanálise de ensaios clínicos randomizados e controlados, que compararam terapia de substituição renal com início precoce àquela com início tardio em pacientes com lesão renal aguda, sem sintomas relacionados à insuficiência renal aguda que oferecessem risco à vida, como sobrecarga hídrica ou distúrbios metabólicos. Dois investigadores extraíram os dados a partir de estudos selecionados. Utilizaram-se a ferramenta Cochrane Risk of Bias, para avaliar a qualidade dos estudos, e a abordagem Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation (GRADE), para testar a qualidade geral da evidência.
Resultados: Incluíram-se seis estudos clínicos randomizados e controlados (1.292 pacientes). Não houve diferença estatisticamente significante entre o início precoce e tardio da terapia de substituição renal, no que se referiu ao desfecho primário (OR 0,82; IC95% 0,48 - 1,42; p = 0,488). Foi maior o risco de infecção da corrente sanguínea relacionada ao cateter quando a terapia de substituição renal foi iniciada precocemente (OR 1,77; IC95% 1,01 - 3,11; p = 0,047). A qualidade da evidência gerada por nossa metanálise para o desfecho primário foi considerada baixa, em razão do risco de viés dos estudos incluídos e da heterogeneidade entre eles.
Conclusão: O início precoce da terapia de substituição renal não se associou com melhora da sobrevivência. Entretanto, a qualidade da evidência atual é baixa, e os critérios utilizados para início precoce e tardio da terapia de substituição renal foram demasiadamente heterogêneos entre os estudos.
Descritores: Lesão renal aguda; Estado terminal; Terapia de substituição renal; Ensaio clínico controlado aleatório; Revisão sistemática; Metanálise
ABSTRACT
Objective: To evaluate whether early initiation of renal replacement therapy is associated with lower mortality in patients with acute kidney injury compared to delayed initiation.
Methods: We performed a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials comparing early versus delayed initiation of renal replacement therapy in patients with acute kidney injury without the life-threatening acute kidney injury-related symptoms of fluid overload or metabolic disorders. Two investigators extracted the data from the selected studies. The Cochrane Risk of Bias Tool was used to assess the quality of the studies, and the Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation (GRADE) approach was used to test the overall quality of the evidence.
Results: Six randomized controlled trials (1,292 patients) were included. There was no statistically significant difference between early and delayed initiation of renal replacement therapy regarding the primary outcome (OR 0.82; 95%CI, 0.48 - 1.42; p = 0.488), but there was an increased risk of catheter-related bloodstream infection when renal replacement therapy was initiated early (OR 1.77; 95%CI, 1.01 - 3.11; p = 0.047). The quality of evidence generated by our meta-analysis for the primary outcome was considered low due to the risk of bias of the included studies and the heterogeneity among them.
Conclusion: Early initiation of renal replacement therapy is not associated with improved survival. However, the quality of the current evidence is low, and the criteria used for -early- and -delayed- initiation of renal replacement therapy are too heterogeneous among studies.
Keywords: Acute kidney injury; Critically ill; Renal replacement therapy; Randomized controlled trial; Systematic review; Meta-analysis
INTRODUÇÃO
A lesão renal aguda (LRA) é uma condição comum em pacientes críticos e resulta em sobrecarga hídrica, distúrbios acidobásicos, desequilíbrios eletrolíticos e azotemia. Apesar dos diversos avanços que surgiram nas últimas décadas, no que se refere aos cuidados dos pacientes graves, os pacientes com LRA continuam a apresentar elevadas taxas de mortalidade hospitalar, especialmente quando é necessário utilizar alguma forma de terapia de substituição renal (TSR).(1-3)
O momento ideal para dar início à TSR não é claro. As diretrizes Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) de práticas clínicas para LRA indicam que a TSR deve ser iniciada precocemente quando se desenvolverem condições que ameacem a vida, como sobrecarga hídrica, hipercalemia ou acidose.(4) Caso contrário, o início da TSR deve ser retardado e basear-se em parâmetros laboratoriais e clínicos, como as tendências nos exames laboratoriais, débito urinário, condições clínicas prévias e prognóstico do paciente. Enquanto uma revisão sistemática e metanálise dos ensaios clínicos randomizados prévios demonstrou que o início precoce da TSR não se associa com redução da mortalidade em pacientes com LRA,(5) dois recém-publicados ensaios clínicos randomizados (ECR) controlados mostraram resultados conflitantes. Um ECR, realizado em centro único, identificou que, no que se refere à mortalidade aos 90 dias, o início precoce é superior ao início tardio.(6) Ensaiosclínico randomizado multicêntrico não encontrou diferenças entre o início precoce e tardio da TSR com relação à mortalidade aos 60 dias.(7) Levantamento transversal conduzido em 24 unidades de terapia intensiva (UTIs) revelou que mais de 90% dos médicos das UTIs creem que o início precoce da TSR beneficia todos os pacientes com LRA, com clara heterogeneidade no que se refere ao que os médicos chamam de "início precoce".(8)
Conduzimos uma revisão sistemática atualizada e metanálise de ECRs comparando o início precoce com o tardio da TSR. Adicionalmente à inclusão dos dois ECRs acima mencionados,(6,7) realizamos análises exploratórias, com uso de metarregressão, e uma análise sequencial de ensaios para avaliar o poder disponível para a presente análise. Nossa hipótese foi de que o início precoce é superior ao tardio da TSR, no que se refere à mortalidade.
MÉTODOS
Estratégia de busca
Os estudos foram identificados por meio de busca eletrônica nas bases PubMed e CENTRAL (The Cochrane Library) até agosto de 2016 por dois investigadores. Como estratégia de busca, utilizaram-se os seguintes descritores, com base no sistema Medical Subject Headings: (Acute kidney injury[MeSH] OR "acute renal"[ti] OR "acute kidney"[ti] OR kdigo[ti] OR critically ill[ti] OR intensive care unit[ti]) AND (Renal replacement therapy[MeSH] OR dialysis[ti] OR dialyzing[ti] OR dialyzed[ti] OR hemodialysis[ti] OR hemofiltration[ti] OR renal-replacement therapy[ti]) AND (Time to treatment[MeSH] OR Time factors[MeSH] OR Early[ti] OR earlier[ti] OR time[ti] OR timing[ti] OR accelerate[ti] OR accelerated[ti] OR accelerating[ti] OR acceleration[ti] OR late[ti]) AND (randomized OR clinical trial OR prospective). Todos os artigos obtidos por meio desta busca foram triados quanto à relevância, por meio de seu título e resumo. Para os artigos potencialmente relevantes, obteve-se o texto completo para revisão, assim como revisões e metanálise relacionadas; inspecionaram-se todas as referências e os títulos potencialmente apropriados foram submetidos à busca manual. Não se estabeleceram quaisquer outras limitações à busca.
Seleção dos estudos
Utilizaram-se os seguintes critérios de inclusão: ECRs sobre TSR; em pacientes adultos com LRA; comparação entre início precoce e tardio. Excluíram-se os estudos observacionais e retrospectivos, e os ECRs que se referiam, ao início da diálise, pacientes com nefropatia crônica progressiva ou outras indicações diferentes de LRA.
Extração dos dados e avaliação da qualidade dos estudos
Dois investigadores extraíram os dados para uma base de dados desenvolvida para este conjunto particular de dados. Sempre que os autores divergiam quanto à extração, a questão era resolvida por meio de consenso. Utilizou-se a ferramenta The Cochrane Risk of Bias para avaliar a qualidade dos estudos. Apesar da descrição de ocultação dos códigos da equipe, pacientes ou dos que avaliaram o desfecho, em nossa avaliação de viés, consideramos sua existência para classificação dos estudos pelas seguintes razões: a natureza da intervenção, que não torna viável ocultar aos investigadores e à equipe de profissionais de saúde o grupo ao qual o paciente foi alocado; e ocultar os códigos aos que avaliaram o desfecho não acrescentaria um viés de detecção diferenciada, pois o desfecho primário avaliado foi mortalidade. Consideramos os estudos com risco mais baixo de viés para indicar os com menor risco de viés nos domínios avaliados.
Definição dos parâmetros
O parâmetro final primário foi mortalidade com o maior tempo de seguimento, definido como todos os óbitos durante o período de admissão até o maior tempo de seguimento relatado. Os períodos de seguimento quanto à mortalidade foram altamente variáveis e dependeram dos dados relatados nos artigos obtidos. Os parâmetros secundários foram: mortalidade hospitalar; mortalidade aos 28 dias; recuperação da função renal no momento mais tardio de seguimento (definido como independência de diálise quando do seguimento mais tardio); e complicações potencialmente relacionadas com a LRA ou TSR, como sangramento, infecção da corrente sanguínea relacionada ao cateter e trombose.
Análise estatística
Para a realização da metanálise, consideramos todos os manuscritos incluídos na revisão sistemática. Todos os pacientes foram avaliados no grupo de estudo ao qual foram randomizados no estudo original, ou seja, os braços com início precoce ou tardio da TSR (princípio intenção de tratar). Para os dados dicotomizados, calculamos a estimativa agrupada das odds ratio (OR) com intervalos de confiança de 95% (IC95%) nos estudos individuais, com utilização de modelo de efeitos aleatórios, segundo o método de DerSimonian-Laird, e representamos graficamente estes resultados com utilização de gráficos do tipo forest plot. A pressuposição de homogeneidade foi medida pelo I2 , que descreve a porcentagem total de variações entre os estudos que é, antes, devida à heterogeneidade do que ao acaso. Calculou-se o I2 a partir dos resultados básicos obtidos de uma metanálise típica, como I2 = 100% x (Q - df) / Q, onde Q é a estatística de heterogeneidade de Cochran. Valor de 0% indica que não se observou heterogeneidade, e valores mais altos indicam aumento da heterogeneidade. Para análise do desfecho primário, o viés da publicação foi tratado visualmente com uso de um gráfico do tipo funnel plot, utilizando-se a abordagem Grading of Recommendations Assessment, Development and Evaluation (GRADE) para testar a qualidade geral da evidência.
Realizaram-se análises de subgrupos pelo recálculo das estimativas agrupadas de OR para diferentes subgrupos, como segue: tipo de TSR (exclusivamente contínua versus intermitente ou contínua); e risco de viés (risco menor versus maior). Estas análises foram conduzidas para testar se os resultados gerais foram afetados por alguma alteração nos critérios de seleção da metanálise. Para o desfecho primário e secundário de recuperação da função renal após o seguimento mais tardio de cada estudo, foram realizadas metarregressões utilizando como covariáveis o ano de publicação, a porcentagem de pacientes que receberam método contínuo de TSR no braço com início precoce e o tempo entre a randomização e o início da TSR no braço precoce.
Como o tamanho do evento necessário para uma metanálise muito precisa é pelo menos tão grande quanto para um único ECR com poder ideal, calculamos o tamanho do evento necessário para o parâmetro primário em nossa metanálise, considerando taxa de mortalidade de 55% no grupo com início tardio, um efeito previsto do tratamento de 18%, poder de 80% e um erro tipo I de 5%.(6) Assim, seria necessário observar pelo menos 1.310 eventos. Realizamos análise sequencial dos estudos (trial sequential analysis - TSA; programa TSA versão 0.9 Beta; Copenhagen Trial Unit, Copenhagen, Dinamarca), com utilização do tamanho ideal de evento, para ajudar a construir os limites de monitoramento sequencial para nossa metanálise, de forma análoga ao monitoramento interino em um ECR.(9) Estabelecemos limites para limitar o erro tipo global I a 5%. Como avaliação da sensibilidade, conduzimos também uma análise sequencial de ECRs, considerando um erro tipo I mais estrito, de 1%. Esta abordagem mais conservadora pode ser apropriada para metanálise de estudos pequenos.(10)
Todas as análises foram conduzidas com utilização do programa Review Manager versão 5.1.1, Statistical Package for Social Science versão 20 (IBM SPSS Statistics for Windows, Armonk, NY: IBM Corporation) ou R versão 2.12.0 (R Foundation for Statistical Computing, Viena, Áustria). Para todas as análises, consideraram-se significantes os valores de p inferiores a 0,05.
RESULTADOS
A busca inicial levantou 410 artigos, 157 da base MEDLINE e 253 da base CENTRAL (Figura 1). Após remover as duplicações, avaliamos os resumos de 303 artigos. Destes, 292 artigos foram excluídos por não atenderem aos critérios de inclusão para esta revisão sistemática. Subsequentemente, lemos o texto completo de cada um dos 11 artigos restantes. Cinco artigos foram excluídos em razão de o ECR não ter incluído pacientes com LRA (N = 3), ou porque não se tratava de um ECR (N = 2). Assim, pudemos utilizar para esta metanálise seis ECRs que envolveram 1.292 pacientes.(6,7,11-14)
A tabela 1 resume as características dos ECRs incluídos. É digno de nota que 2,3% dos pacientes no grupo com início precoce e 32,6% dos incluídos no grupo com início tardio jamais receberam TSR (Tabela 1). Os critérios para início precoce ou tardio da TSR, dose da TSR, modalidade utilizada, débito urinário acumulado e balanço hídrico nas 24 horas antes do início da TSR e o valor da creatinina basal variaram entre os estudos (Tabela 1S - material suplementar). A qualidade dos ECRs é apresentada pelas figuras 1S e 2S. Três ECRs foram considerados com baixo risco de viés, pois demonstravam baixo risco de viés em todos os domínios avaliados,(6,7,13) exceto ocultação dos códigos para a equipe, pacientes e avaliadores do desfecho. Na verdade, apenas um ECR utilizou avaliação cega do desfecho.(13) Em três ECRs,(11,12,14) a geração da lista de randomização e a ocultação dos códigos de alocação foram adequadas; nos demais ECRs, havia insuficiência de informações a respeito do método de randomização ou da ocultação da alocação.(11,12,14) Considerou-se que um dos ECR tinha elevado risco de outro tipo de viés, pois o tamanho da amostra não foi calculado a priori,(12) e outro ECR foi considerado com risco de viés não esclarecido, porque pacientes com indicação para início imediato da TSR por parte do intensivista ou do nefrologista foram excluídos, independentemente das indicações predefinidas de TSR.(14)
Parâmetro primário
Todos os ECRs foram considerados para a análise do parâmetro primário. Duzentos e cinquenta e cinco dos 657 (38,8%) pacientes designados para início precoce da TSR e 271 dos 635 (42,6%) dos designados para início tardio da TSR morreram durante o tempo mais longo de seguimento relatado (OR 0,82; IC95% 0,48 - 1,42; p = 0,488) (Figura 2). A heterogeneidade foi de moderada a alta (I2 = 72%; p = 0,003) e explicada por dois ECRs: um ECR em centro único com um grande tamanho de efeito(6) e um outro ECR conduzido em uma coorte de pacientes cirúrgicos na UTI.(12) O gráfico do tipo funnel plot foi visualmente assimétrico, sugerindo que viés de publicação pode ter afetado os resultados (Figura 3S).
Gráfico do tipo forest plot, que mostra o efeito do início precoce da terapia de substituição renal na mortalidade em seguimento mais longo de pacientes com lesão renal aguda.
Segundo a metarregressão, apenas a porcentagem de pacientes que receberam forma contínua de TSR no braço precoce tiveram associação significante com mortalidade no seguimento mais longo (p = 0,012) (Figura 4S). O número total de óbitos foi de 526, que é menor que o tamanho ideal de evento (1.310 eventos); isto é, a análise sequencial de ECRs indicou erro global tipo I superior a 5% para o resultado da metanálise. Na verdade, se fosse utilizado um erro tipo I mais conservador, de 1%, o número de eventos continuaria insuficiente, e a metanálise cumulativa não cruzaria o limite de monitoramento da eficácia (Figura 3). Classificamos a qualidade da evidência gerada pela metanálise para o desfecho primário como baixa, em razão do risco de viés dos ensaios incluídos e da incoerência.
Análise sequencial de ensaios avaliando o efeito do início precoce da terapia de substituição renal na mortalidade por ocasião do seguimento mais longo. A metanálise acumulada com 526 óbitos hospitalares (linha azul) não cruzou o limite de monitoramento da eficácia para o desfecho primário (isto é, o erro global tipo I é > 5% − linha púrpura). Considerando o erro global tipo I de 1%, a metanálise acumulada também não cruzou o limite de monitoramento da eficácia e o tamanho de evento ideal de 1.952 (linha verde) não foi atingido. Tamanho ideal de evento: o tamanho de evento necessário para uma metanálise muito precisa (que tem pelo menos o tamanho para um ensaio randomizado controlado com poder adequado).
TSR - terapia de substituição renal.
Parâmetros secundários
Não houve diferença no que se refere à mortalidade hospitalar (Figura 4A). A alta heterogeneidade foi explicada por um ECR conduzido em coorte de pacientes cirúrgicos na UTI.(12) Também não houve diferença com relação à mortalidade no 28º dia e na recuperação da função renal no seguimento mais longo (Figuras 4B e 4C). Segundo a metarregressão, o tempo entre a randomização e o início da TSR no braço com início precoce (p =0,030) e a porcentagem de pacientes que receberam o método contínuo de TSR no braço com início precoce (p = 0,046) tiveram associação significante com recuperação da função renal no seguimento mais longo (Figura 5S).
Com relação a complicações potencialmente relacionadas à LRA ou à TSR, não houve diferença em relação a sangramento ou trombose (Figura 6S). Contudo, houve maior risco de infecção da corrente sanguínea relacionada ao cateter nos pacientes no braço com início precoce (OR 1,77; IC95% 1,01 - 3,11; p = 0,047) (Figura 6S).
Análises de subgrupos
Não houve diferença em termos de mortalidade no seguimento mais longo quando se avaliaram os ECRs utilizando tanto TSR contínua como qualquer tipo de TSR (valor de p para as diferenças no subgrupo = 0,140) (Figura 7SA) ou ECRs com um risco menor de viés ou risco maior de viés (valor de p para as diferenças no subgrupo = 0,410) (Figura 7SB).
Em estudos que só utilizaram formas contínuas de TSR, foi mais frequente a recuperação da função renal no seguimento mais longo no grupo com início precoce (p = 0,025) (Figura 8SA). Não houve qualquer relacionamento entre o momento do início da TSR e a recuperação da função renal, no seguimento mais longo, quando se consideram os estudos que utilizaram qualquer tipo de TSR (valor de p para a diferença entre subgrupos = 0,05) (Figura 8SA). A análise combinada dos ensaios com menor risco de viés mostrou efeitos similares em relação à recuperação da função renal no seguimento mais longo em comparação à análise combinada dos ensaios com maior risco de viés (valor de p para a diferença entre os subgrupos = 0,60) (Figura 8SB).
DISCUSSÃO
Esta revisão sistemática atualizada e metanálise de ECRs a respeito de TSR em pacientes de UTI com LRA identificou que o início precoce não é superior ao início tardio da TSR, no que se refere a qualquer dos desfechos de mortalidade. Observaram-se infecções da corrente sanguínea relacionadas ao cateter mais frequentemente no grupo com início precoce da TSR, porém não se observaram diferenças em termos de eventos de sangramento ou trombóticos.
Nossa revisão apresenta uma série de pontos fortes. Primeiramente, nossa estratégia de busca foi abrangente e incluiu bases eletrônicas de dados, registros de ensaios clínicos e busca manual nas listas de referências dos trabalhos incluídos e de outros estudos relevantes. Em segundo lugar, conduzimos a avaliação da elegibilidade e a extração dos dados em duplicata. Em terceiro lugar, realizamos diversas análises exploratórias com utilização de metarregressão. Em quarto, avaliamos a confiabilidade e a capacidade de conclusão da evidência disponível, por meio de método de análise sequencial de ECRs formal. Finalmente, avaliamos a qualidade da evidência com utilização do sistema GRADE.
A atual preocupação com a melhor ocasião para dar início à TSR nos pacientes com LRA representa importante lacuna na literatura e contribui para a maior amplitude nas variações, em termos de decisões clínicas a respeito de quando dar início à diálise em pacientes graves.(15,16) A falta de consenso no que se refere à definição de "precoce" na TSR torna as coisas mais difíceis e, em certas ocasiões, impede a interpretação dos achados. Na maior parte dos ECRs que avaliaram a ocasião da TSR na LRA, os pacientes foram randomizados a partir de um momento desencadeado pelo desenvolvimento de LRA diagnosticada por meio dos critérios Acute Kidney Injury Network (AKIN), KDIGO ou Risk, Injury, Failure, Loss of kidney function, and End-stage kidney disease (RIFLE). Convém observar que estas ferramentas nunca se destinaram a prever a necessidade de TSR.(14,17,18)
Acrescente-se que outro importante aspecto a ser considerado é a grande heterogeneidade dos pacientes e dos procedimentos de TSR entre os ECRs, o que pode variar de sepse, pós-operatório, leptospirose e populações mistas a TSR contínua (TSRC) ou hemodiálise intermitente (HDI), com diferentes doses e taxas de ultrafiltração, tornando a interpretação dos resultados ainda mais confusa.(19-23) Recentemente, publicaram-se dois novos ECRs com avaliação da ocasião da TSR em pacientes de LRA, com diferenças importantes nos resultados.(6,7) Enquanto o estudo ELAIN (Early versus LAte Initiation of renal replacement therapy in critically ill patients with acute kidNey injury) randomizou uma maioria de pacientes cirúrgicos submetidos à TSRC para grupos com início precoce ou retardado da TSR,(6) o ensaio AKIKI (Artificial Kidney Initiation in Kidney Injury) randomizou uma população mista com grande porcentagem de pacientes com sepse e utilizou HDI na maior parte dos casos,(7) o que torna difícil comparar os resultados de ambas as investigações. Além disto, os critérios referentes a início precoce de TSR no estudo AKIKI (com 6 horas após cumprir os critérios AKIN para estágio 3) são relativamente tardios em relação aos critérios do ELAIN para início tardio de TSR (dentro de 12 horas após cumprir os critérios AKIN para estágio 3).
A justificativa para início precoce da TSR se baseia tanto em raciocínio fisiológico quanto em dados clínicos. O início precoce da TSR, teoricamente, poderia melhorar o controle da uremia, acidemia, desequilíbrios eletrolíticos e acúmulo de volume extracelular. Observou-se que uma abordagem precoce poderia associar-se com melhora da sobrevivência em pacientes com choque séptico refratário, talvez pelos efeitos pró-inflamatórios causados por solutos urêmicos.(24-26) Também, demonstrou-se, em estudos observacionais, uma associação entre mortalidade, acúmulo de fluidos e níveis mais altos de ureia, por ocasião do início da TSR.(27,28) No entanto, pode ser difícil demonstrar os benefícios do início precoce da TSR em ensaios clínicos prospectivos, em razão da heterogeneidade dos critérios utilizados, tanto para definir os estágios de LRA quanto o que diferencia o início precoce do tardio.
Uma consideração importante para os médicos é se os gatilhos utilizados para dar início à TSR nos ensaios submetidos à metanálise são, de fato traduzíveis, para a prática clínica rotineira, junto ao leito.(29) Na verdade, com exceção de um ECR, em todos existiam pacientes no braço de início tardio que jamais receberam a TSR com base nos gatilhos preestabelecidos. Na verdade, pode-se inferir que alguns pacientes no braço com início precoce podem ter recebido TSR desnecessariamente e teriam experimentado recuperação espontânea.(29) Na ausência de marcadores objetivos para informar a necessidade da TSR, uma estratégia de início precoce da TSR inevitavelmente inscreveria pacientes que poderiam jamais necessitar da TSR. Com base nos dados fornecidos pelo presente estudo, esta abordagem poderia resultar em um pequeno aumento do risco de infecções da corrente sanguínea relacionada ao cateter.
Os resultados desta metanálise devem ser interpretados dentro do contexto dos ECRs incluídos. As revisões sistemáticas estão sujeitas à qualidade geral do viés, que pode ocorrer nos estudos e publicações. Adicionalmente, tivemos grande variação de práticas nos estudos com relação ao momento do início da TSR, diagnóstico de LRA, duração do seguimento e tipo de TSR. O fato de que praticamente todos os desfechos secundários só foram relatados por alguns dos estudos elegíveis é outra limitação. Na verdade, os desfechos não relatados podem levar a superestimar os efeitos na metanálise. Também, a presença de heterogeneidade moderada à alta em algumas análises diminui a força dos achados. Finalmente, classificamos a qualidade da evidência gerada por esta metanálise como baixa. As principais razões para diminuição da qualidade da evidência foram o risco de viés nos estudos incluídos e sua inconsistência. Consideramos os resultados inconsistentes em razão da presença de heterogeneidade moderada a alta. Mais ainda, apesar de nossa busca abrangente, não podemos descartar completamente o viés de publicação, em razão da assimetria no gráfico funnel plot, embora a interpretação deste tipo de gráfico tenha sido comprometida pelo de o número de ECRs ter sido baixo. Além do mais, a metanálise cumulativa não obteve o tamanho de evento ideal, com um erro tipo global I de 5% ou 1%. Assim, existe alguma chance de que pesquisas futuras contradigam a presente evidência. Finalmente, publicou-se recentemente metanálise que incluiu os mesmos seis ensaios.(30) Em comparação àquele trabalho, o presente estudo avaliou um número maior de desfechos e considerou diferentes análises exploratórias com o uso de metarregressões, para avaliar o impacto de diferentes covariáveis no desfecho e o relato da análise sequencial de ECRs, que avaliou a confiabilidade e o poder de conclusão da evidência disponível.
CONCLUSÃO
Esta revisão sistemática e metanálise sugere que o início precoce da terapia de substituição renal não melhora a sobrevivência de pacientes de unidades de terapia intensiva com lesão renal aguda. No entanto, a qualidade da presente evidência é baixa e insuficiente, em termos de permitir conclusões definitivas e confiáveis. Também, os critérios utilizados para definição de início precoce e tardio da terapia de substituição renal foram heterogêneos entre os estudos, e este fato pode ter impacto na precisão dos nossos achados.
Contribuições dos autores
F.T. Moreira e A. Serpa Neto conceberam a ideia de desenvolver o presente estudo. A. Serpa Neto delineou a estratégia do estudo e realizou a análise dos dados. F.T. Moreira e R.C.F. Chaves selecionaram os estudos elegíveis para inclusão nesta revisão. F.T. Moreira e A. Serpa Neto redigiram o manuscrito com contribuições de H. Palomba, M.J. Schultz e C. Bouman. Todos os autores leram e aprovaram o manuscrito final.
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Editado por
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Editor responsável: Gilberto Friedman
Disponibilidade de dados
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jul-Sept 2018
Histórico
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Recebido
19 Out 2017 -
Aceito
19 Mar 2018