A medicina intensiva caracteriza-se por ser uma especialidade na qual os resultados estão muito relacionados à capacidade de organização e trabalho em equipe. Por outro lado, o avanço tecnológico oferece grande variedade de exames e uma miríade de diferentes possibilidades de tratamentos e de procedimentos para a abordagem do paciente crítico. Porém, inúmeras vezes esse grande arsenal de possibilidades é utilizado de modo indevido, o que além de não proporcionar benefícios significativos para os pacientes, pode ocasionar riscos e danos desnecessários. Com base nesses princípios, a American Board of Internal Medicine Foundation (ABIM) iniciou uma campanha, em 2012, para identificar situações clínicas que deveriam ser questionadas quanto à sua indicação e utilização, com o objetivo de conscientizar os médicos sobre a importância de utilizar apenas as intervenções e os procedimentos indicados para os pacientes, e que não os colocasse em risco. Para isso, foram desenvolvidas listas com itens considerados mais relevantes para proporcionar tomadas de decisões conscientes, a qual foi denominada Choosing Wisely.(11 Cassel CK, Guest JA. Choosing wisely: helping physicians and patients make smart decisions about their care. JAMA. 2012;307(17):1801-2.) Desde então, inúmeras sociedades médicas ao redor do mundo passaram a realizar suas próprias listas, buscando fomentar a discussão e alertar sobre as principais condutas a serem questionadas e utilizadas sempre com o máximo de discernimento. São considerados princípios básicos da campanha: que seja liderada por médicos, as escolhas devem ser centradas no paciente, deve haver participação multiprofissional, ser baseada em evidências, e o processo de escolha precisa ser transparente.(22 American Board of Internal Medicine Foundation. Choosing Wisely. http://www.choosingwisely.org. Accessed August 17, 2018.
http://www.choosingwisely.org...
A Associação de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB) nomeou um grupo de experts para a elaboração das recomendações. Inicialmente, os especialistas elaboraram 28 recomendações e, pelo Método Delphi modificado, foram eliminadas aquelas que atingiam mais de 80% de consenso dentre eles. Ao final, chegaram às dez recomendações, que foram submetidas à escolha dos associados por meio de votação eletrônica, pelo site da associação (https://amorintensopelavida.com.br/choosing/). Os associados receberam, por e-mail, o convite para votar e foram identificados pelo CPF no momento do voto, para evitar duplicidade. Participaram 1.754 associados de todas as regiões do país, representando cerca de 30% dos associados AMIB. Todas as cinco recomendações mais votadas foram escolhidas por mais de 50% dos participantes, conforme figura 1.
Lista submetida à escolha dos associados da Associação de Medicina Intensiva Brasileira e votos recebidos. VM - ventilação mecânica.
RECOMENDAÇÕES MAIS VOTADAS
1 - Não usar ou manter antibióticos desnecessariamente
Restringir o uso de antibióticos para pacientes com infecção, sempre observando os critérios clínicos e pelo menor tempo possível. Descalonar o espectro antimicrobiano, assim que as culturas estiverem disponíveis, tem se mostrado a melhor prática, segundo as melhores evidências. Há cerca de 10 anos, Boucher et al.(33 Boucher HW, Talbot GH, Bradley JS, Edwards JE, Gilbert D, Rice LB, et al. Bad bugs, no drugs: no ESKAPE! An update from the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2009;48(1):1-12.) chamavam atenção para o impacto do uso de antibióticos desnecessários no surgimento de bactérias multirresistentes, que ficaram conhecidas como ESKAPE, o epônimo de Enterococcus faecium, Staphylococus aureus, Klebsiella pneumoniae, Acinetobacter baumanii, Pseudomonas aeruginosa e Enterobacter species. Estudos como o EPIC II (Extended Prevalence of Infection in Intensive Care) já davam conta de que, nos pacientes internados em unidade de terapia intensiva (UTI) na América Latina, a presença de pacientes infectados é maior, se comparada a outras regiões do mundo e com maior mortalidade.(44 Vincent JL, Rello J, Marshall J, Silva E, Anzueto A, Martin CD, Moreno R, Lipman J, Gomersall C, Sakr Y, Reinhart K; EPIC II Group of Investigators. International study of the prevalence and outcomes of infection in intensive care units. JAMA. 2009;302(21):2323-9.
2 - Não usar sedação excessiva
Limitar o uso de sedação aos pacientes com indicação precisa e utilizar a menor quantidade de sedativos possível, apenas com o objetivo de manter o conforto do paciente, utilizando escalas para avaliar sistematicamente a titulação das doses das drogas em uso, mostram melhores resultados nos desfechos clínicos.(55 Kress JP, Pohlman AS, O'Connor MF, Hall JB. Daily interruption of sedative infusions in critically ill patients undergoing mechanical ventilation. N Engl J Med. 2000;342(20):1471-7.) Dentre as inúmeras evidências, destacamos o ABC trial, que combinou a estratégia de interrupção diária da sedação com a realização de um teste de respiração espontânea em comparação ao tratamento padrão e demonstrou melhora em todos os desfechos, como mais tempo livre de ventilação mecânica, menor tempo de permanência na unidade de terapia intensiva e no hospital, mas, principalmente, menor mortalidade em acompanhamento de 1 ano.(66 Girard TD, Kress JP, Fuchs BD, Thomason JW, Schweickert WD, Pun BT, et al. Efficacy and safety of a paired sedation and ventilator weaning protocol for mechanically ventilated patients in intensive care (Awakening and Breathing Controlled trial): a randomised controlled trial. Lancet. 2008;371(9607):126-34.
3 - Não manter o paciente imobilizado no leito, desde que não haja indicação precisa
A imobilização de pacientes críticos está associada à maior incidência de complicações e a tempo de permanência no hospital mais longo. Existem evidências de que a mobilização precoce no leito e fora dele acelera a recuperação da doença crítica e melhora a qualidade de vida durante a internação e após a alta. Neste sentido, o estudo de Schweickert, que combinou a interrupção diária da sedação com atividades fisioterápicas e terapia ocupacional, demonstrou importante impacto na recuperação e na capacidade funcional dos pacientes no momento da alta hospitalar.(77 Schweickert WD, Kress JP. Implementing early mobilization interventions in mechanically ventilated patients in the ICU. Chest. 2011;140(6):1612-7.
4 - Não utilizar e nem manter dispositivos invasivos desnecessariamente
A indicação e a manutenção de dispositivos invasivos devem acontecer sempre de forma restritiva, respeitando critérios precisos. A vigilância rotineira é indicada para evitar ao máximo a indicação e o tempo de utilização de tubos traqueais, sondas digestivas e urinárias, drenos cavitários e cateteres diagnósticos ou terapêuticos. Existem evidências indicando que recursos invasivos determinam infecções preveníveis, e que o tempo de uso é prolongado por comodidade da equipe profissional, ou ausência de protocolos para retirada dos mesmos.(88 Ziegler MJ, Pellegrini DC, Safdar N. Attributable mortality of central line associated bloodstream infection: systematic review and meta-analysis. Infection. 2015;43(1):29-36.,99 Klompas M, Anderson D, Trick W, Babcock H, Kerlin MP, Li L, Sinkowitz-Cochran R, Ely EW, Jernigan J, Magill S, Lyles R, O'Neil C, Kitch BT, Arrington E, Balas MC, Kleinman K, Bruce C, Lankiewicz J, Murphy MV, E Cox C, Lautenbach E, Sexton D, Fraser V, Weinstein RA, Platt R; CDC Prevention Epicenters. The preventability of ventilator-associated events. The CDC Prevention Epicenters Wake Up and Breathe Collaborative. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(3):292-301.) Neste sentido, o estudo de Pronovost, conduzido nas unidades de terapia intensiva do estado de Michigan, conseguiu demonstrar a eficiência da utilização de um checklist, que incluía avaliar diariamente a possibilidade de retirada do cateter venoso profundo, na redução das infecções de corrente sanguínea associadas ao uso deste tipo de cateter.(1010 Pronovost P, Needham D, Berenholtz S, Sinopoli D, Chu H, Cosgrove S, et al. An intervention to decrease catheter-related bloodstream infections in the ICU. N Engl J Med. 2006;355(26):2725-32.
5 - Não oferecer Suporte Avançado de Vida a pacientes que não tenham possibilidade de recuperação
Evitar instituir ou manter Suporte Avançado em pacientes graves com alta probabilidade de óbito ou sequela significativa, sem considerar a possibilidade de instituir cuidado paliativo. As decisões clínicas dentro desse contexto devem ser tomadas sempre respeitando a vontade expressa dos pacientes ou de seus familiares, após amplo diálogo e consenso. Em recente estudo sobre terminalidade em unidade de terapia intensiva da World Federation of Societies of Intensive and Critical Care Medicine, ficaram demonstradas a grande variabilidade e a necessidade de sistematização destas decisões.(1010 Pronovost P, Needham D, Berenholtz S, Sinopoli D, Chu H, Cosgrove S, et al. An intervention to decrease catheter-related bloodstream infections in the ICU. N Engl J Med. 2006;355(26):2725-32.
Melhoria da qualidade, redução de custos, maximizar valor e maior atenção ao doente crítico crônico são desafios atuais de nossa especialidade. Neste sentido, as escolhas inteligentes certamente podem contribuir de forma significativa. Divulgue a lista, torne-a parte de seu dia a dia, inclua-a nos checklists de sua unidade e discuta estas escolhas durante a visita multiprofissional. Desta feita, contribuiremos com uma medicina intensiva mais racional e certamente com melhores resultados para nossos pacientes.
GRUPO QUE ORGANIZOU AS RECOMENDAÇÕES CHOOSING WISELY DA AMIB:
Ederlon Alves de Carvalho Rezende, Mirella Cristine de Oliveira, Cristiano Augusto Franke, Marcos Knibel, Nelson Akamine, Álvaro Rea-Neto.
REFERÊNCIAS
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1Cassel CK, Guest JA. Choosing wisely: helping physicians and patients make smart decisions about their care. JAMA. 2012;307(17):1801-2.
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2American Board of Internal Medicine Foundation. Choosing Wisely. http://www.choosingwisely.org Accessed August 17, 2018.
» http://www.choosingwisely.org -
3Boucher HW, Talbot GH, Bradley JS, Edwards JE, Gilbert D, Rice LB, et al. Bad bugs, no drugs: no ESKAPE! An update from the Infectious Diseases Society of America. Clin Infect Dis. 2009;48(1):1-12.
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4Vincent JL, Rello J, Marshall J, Silva E, Anzueto A, Martin CD, Moreno R, Lipman J, Gomersall C, Sakr Y, Reinhart K; EPIC II Group of Investigators. International study of the prevalence and outcomes of infection in intensive care units. JAMA. 2009;302(21):2323-9.
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5Kress JP, Pohlman AS, O'Connor MF, Hall JB. Daily interruption of sedative infusions in critically ill patients undergoing mechanical ventilation. N Engl J Med. 2000;342(20):1471-7.
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6Girard TD, Kress JP, Fuchs BD, Thomason JW, Schweickert WD, Pun BT, et al. Efficacy and safety of a paired sedation and ventilator weaning protocol for mechanically ventilated patients in intensive care (Awakening and Breathing Controlled trial): a randomised controlled trial. Lancet. 2008;371(9607):126-34.
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7Schweickert WD, Kress JP. Implementing early mobilization interventions in mechanically ventilated patients in the ICU. Chest. 2011;140(6):1612-7.
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8Ziegler MJ, Pellegrini DC, Safdar N. Attributable mortality of central line associated bloodstream infection: systematic review and meta-analysis. Infection. 2015;43(1):29-36.
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9Klompas M, Anderson D, Trick W, Babcock H, Kerlin MP, Li L, Sinkowitz-Cochran R, Ely EW, Jernigan J, Magill S, Lyles R, O'Neil C, Kitch BT, Arrington E, Balas MC, Kleinman K, Bruce C, Lankiewicz J, Murphy MV, E Cox C, Lautenbach E, Sexton D, Fraser V, Weinstein RA, Platt R; CDC Prevention Epicenters. The preventability of ventilator-associated events. The CDC Prevention Epicenters Wake Up and Breathe Collaborative. Am J Respir Crit Care Med. 2015;191(3):292-301.
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10Pronovost P, Needham D, Berenholtz S, Sinopoli D, Chu H, Cosgrove S, et al. An intervention to decrease catheter-related bloodstream infections in the ICU. N Engl J Med. 2006;355(26):2725-32.
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11Myburgh J, Abillama F, Chiumello D, Dobb G, Jacobe S, Kleinpell R, Koh Y, Martin C, Michalsen A, Pelosi P, Torra LB, Vincent JL, Yeager S, Zimmerman J; Council of the World Federation of Societies of Intensive and Critical Care Medicine. End-of-life care in the intensive care unit: Report from the Task Force of World Federation of Societies of Intensive and Critical Care Medicine. J Crit Care. 2016;34:125-30.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Maio 2020 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 2020
Histórico
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Recebido
04 Out 2019 -
Aceito
15 Out 2019