Involuntariamente, a hipoxemia pode persistir ou mesmo sobrevir em pacientes submetidos à oxigenação por membrana extracorpórea veno-venosa (ECMO-VV) por hipoxemia refratária. De acordo com as diretrizes da Extracorporeal Life Support Organization (ELSO), o limiar adequado de saturação arterial de oxigênio é > 80% - 85%,(11 Extracorporeal Life Support Organization (ELSO). ELSO Guidelines for Cardiopulmonary Extracorporeal Life Support Extracorporeal Life Support Organization, Version 1.4. Ann Arbor, Michigan: ELSO; 2017 [cited 2022 Nov 3]. Available from: www.elso.org
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) enquanto o limiar em outras diretrizes é > 88%.(22 Brodie D, Bacchetta M. Extracorporeal membrane oxygenation for ARDS in adults. N Engl J Med. 2011;365(20):1905-14.) Embora a incidência exata seja difícil de determinar e a própria definição possa variar, a hipoxemia durante ECMO-VV requer tanto avaliação sistemática quanto rápida otimização das variáveis modificáveis, pois está associada ao aumento de mortalidade.(33 Munshi L, Kiss A, Cypel M, Keshavjee S, Ferguson ND, Fan E. Oxygen thresholds and mortality during extracorporeal life support in adult patients. Crit Care Med. 2017;45(12):1997-2005.) Para entender completamente por que a hipoxemia ainda ocorre, é preciso considerar os princípios que sustentam a capacidade da ECMO de assegurar a transferência adequada de oxigênio do pulmão de membrana para o sangue do paciente. Primeiro, há uma fração de oxigênio no gás de varredura fresco, que pode ser ajustada - geralmente em 1,0. Segundo, o pulmão de membrana com área de superfície apropriada disponível para troca gasosa precisa estar funcionando corretamente, permitindo que o sangue flua sem obstáculos ao redor das microfibras de polímero que contêm gás. Terceiro, deve-se considerar a quantidade absoluta de sangue que flui através do oxigenador (QECMO) e sua proporção relativa ao débito cardíaco do próprio paciente (Qpaciente). Finalmente, a fração de sangue oxigenado que flui pela ECMO e não entra na circulação pulmonar, mas recircula para dentro da cânula de drenagem, influencia na eficácia oxigenadora da ECMO-VV.(44 Montisci A, Maj G, Zangrillo A, Winterton D, Pappalardo F. Management of refractory hypoxemia during venovenous extracorporeal membrane oxygenation for ARDS. ASAIO J. 2015;61(3):227-36.)
Em um estudo conceitual, Schmidt et al. demonstraram claramente que o fluxo sanguíneo pelo circuito ECMO é determinante para a oxigenação do sangue.(55 Schmidt M, Tachon G, Devilliers C, Muller G, Hekimian G, Bréchot N, et al. Blood oxygenation and decarboxylation determinants during venovenous ECMO for respiratory failure in adults. Intensive Care Med. 2013;39(5):838-46.) Além disso, como uma proporção maior de sangue venoso desoxigenado atravessa o lado direito do coração do paciente do que o circuito ECMO, ficando QECMO/Qpaciente abaixo do limite de 0,6, a saturação de oxigênio arterial diminuirá, mesmo que o fluxo absoluto de sangue através do pulmão de membrana seja apropriado à área de superfície corporal.(55 Schmidt M, Tachon G, Devilliers C, Muller G, Hekimian G, Bréchot N, et al. Blood oxygenation and decarboxylation determinants during venovenous ECMO for respiratory failure in adults. Intensive Care Med. 2013;39(5):838-46.) Isso é especialmente importante se o grau de shunt pulmonar for tal que qualquer função pulmonar residual que contribua para a oxigenação seja insignificante, o que normalmente ocorre em pacientes considerados para ECMO-VV.(44 Montisci A, Maj G, Zangrillo A, Winterton D, Pappalardo F. Management of refractory hypoxemia during venovenous extracorporeal membrane oxygenation for ARDS. ASAIO J. 2015;61(3):227-36.)
Foram concebidas diferentes estratégias para superar a hipoxemia persistente. Entre elas, a mais imediata seria aumentar QECMO/Qpaciente. O fluxo nominal típico da ECMO é de ~7L/minuto; esse é o fluxo máximo no qual a hemoglobina (12g/dL) está totalmente saturada na saída da membrana. Em situações extremas, quando o paciente sem contribuição pulmonar e com débito cardíaco muito alto tem hipoxemia ou hipercarbia grave persistente, adicionar um segundo oxigenador ao circuito extracorpóreo, seja em paralelo ou em série, pode ser uma opção intuitiva. Nesta edição da Revista Brasileira de Terapia Intensiva, Melro et al.,(66 Melro LM, Santos YA, Cardozo Júnior LC, Besen BA, Zigaib R, Forte DN, et al. Exploring the association of two oxygenators in parallel or in series during respiratory support using extracorporeal membrane oxygenation. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(4):402-409.) empregando modelo suíno, avaliaram o impacto dessas duas configurações de circuito sobre a oxigenação do sangue. Além disso, foram analisadas a eficácia da descarboxilação e as mudanças de pressão e resistência ao circuito, impostas pela presença “virtual” de um segundo oxigenador. A fim de atingir o objetivo, os autores basearam-se em seu próprio trabalho anterior,(77 Besen BA, Romano TG, Zigaib R, Mendes PV, Melro LM, Park M. Oxygen delivery, carbon dioxide removal, energy transfer to lungs and pulmonary hypertension behavior during venous-venous extracorporeal membrane oxygenation support: a mathematical modeling approach. Rev Bras Ter Intensiva 2019;31(2):113-21.) usando um modelo matemático validado para calcular a saturação periférica de oxigênio arterial, a saturação de oxigênio do pós-oxigenador e a pressão parcial de dióxido de carbono (PaCO2) arterial para diferentes fluxos de ECMO, mantendo as demais variáveis constantes (fração de shunt pulmonar, fração inspirada de oxigênio [FiO2] do ventilador, débito cardíaco, fluxo do gás de varredura, fração de oxigênio do fluxo do gás de varredura, concentração de hemoglobina, consumo de oxigênio e produção de gás carbônico [CO2]).
Os resultados foram claros. Em série ou em paralelo, um segundo oxigenador tem pouco efeito sobre a saturação de oxigênio arterial, mesmo com um fluxo nominal da ECMO de até 6,5L/minuto. Para esse fluxo, a pressão parcial de oxigênio pós-oxigenador é, por definição, ~500mmHg, restringindo qualquer ganho relevante na oxigenação, independentemente da configuração do circuito. Em outras palavras, mais oxigenadores não significam fluxo maior. Quanto à descarboxilação, uma vez que a depuração de CO2 é influenciada principalmente pelo fluxo do gás de varredura, a adição de um segundo oxigenador diminuiu o CO2 sistêmico, efeito ainda mais notório quando se utilizou configuração em paralelo, uma vez que maior entrada de PaCO2 também levará à melhor depuração de CO2.(88 Park M, Costa EL, Maciel AT, Silva DP, Friedrich N, Barbosa EV, et al. Determinants of oxygen and carbon dioxide transfer during extracorporeal membrane oxygenation in an experimental model of multiple organ dysfunction syndrome. PLoS One. 2013;8(1):e54954.) Quanto às pressões e às resistências, as mudanças introduzidas por um segundo oxigenador, seja em série ou em paralelo, são mínimas, quando comparadas a oxigenador único.
Quais são as implicações desse estudo para a prática clínica? Analisamos alguns relatos de casos em que um segundo oxigenador foi instalado no caso de hipoxemia refratária durante a ECMO-VV, com melhorias pouco significativas na oxigenação do sangue.(99 Leloup G, Rozé H, Calderon J, Ouattara A. Use of two oxygenators during extracorporeal membrane oxygenator for a patient with acute respiratory distress syndrome, high-pressure ventilation, hypercapnia, and traumatic brain injury. Br J Anaesth. 2011;107(6):1014-5.,1010 Kang DH, Kim JW, Kim SH, Moon SH, Yang JH, Jung JJ, et al. The serial connection of two extracorporeal membrane oxygenators for patient with refractory hypoxemia. Heart Lung. 2021;50(6):853-6.) Entretanto, isso somente foi alcançado à custa de fluxos excepcionalmente altos (> 7L/minuto) de ECMO, obrigando a colocação de uma segunda cânula de drenagem e resultando em aumento, tanto de procedimentos invasivos quanto da probabilidade de complicações relacionadas ao acesso. Entretanto, e com base nos resultados de Melro et al.,(66 Melro LM, Santos YA, Cardozo Júnior LC, Besen BA, Zigaib R, Forte DN, et al. Exploring the association of two oxygenators in parallel or in series during respiratory support using extracorporeal membrane oxygenation. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(4):402-409.) a adição de um segundo oxigenador provavelmente não deveria ser incluída nas possíveis estratégias para melhorar a oxigenação, porém poderia ser usada se a descarboxilação adequada não fosse obtida com alto fluxo do gás de varredura e minimizada a produção de CO2. Assim, quando diante de hipoxemia durante a ECMO-VV, intensivistas devem considerar outras opções. Para auxiliar no processo decisório, alguns grupos propuseram adotar medidas por etapas.(1111 Patel B, Arcaro M, Chatterjee S. Bedside troubleshooting during venovenous extracorporeal membrane oxygenation (ECMO). J Thorac Dis. 2019;11(Suppl 14):S1698-S1707.,1212 Nunes LB, Mendes PV, Hirota AS, Barbosa EV, Maciel AT, Schettino GP, et al. Severe hypoxemia during veno-venous extracorporeal membrane oxygenation: exploring the limits of extracorporeal respiratory support. Clinics (Sao Paulo). 2014;69(3):173-8.) Considerando o equilíbrio entre oferta e demanda de oxigênio e a importância da QECMO/Qpaciente, as medidas podem variar de hipotermia, bloqueio neuromuscular, posição prona, transfusão de glóbulos vermelhos embalados ou uso de betabloqueadores para reduzir o débito cardíaco. De todas elas, a posição prona durante a VV-ECMO parece ser uma das estratégias mais promissoras, pois tem sido associada não apenas à melhor oxigenação, mas também à redução da mortalidade em estudos observacionais. Ensaios randomizados em andamento (NCT04139733, NCT04607551) podem, com o tempo, confirmar se o benefício da sobrevida de colocar em posição prona pacientes não ECMO com SDRA também se aplicará à população com ECMO.
O estudo de Melro et al.(66 Melro LM, Santos YA, Cardozo Júnior LC, Besen BA, Zigaib R, Forte DN, et al. Exploring the association of two oxygenators in parallel or in series during respiratory support using extracorporeal membrane oxygenation. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(4):402-409.) tem certas limitações, devidamente reconhecidas pelos autores. Embora seus cálculos sejam matematicamente sólidos, eles não podem considerar todas as variáveis cogitadas e, sobretudo, foi utilizado apenas um tipo de oxigenador, seguido de extrapolação para um modelo de dois oxigenadores. Não obstante, eles devem ser elogiados por responderem a uma questão clínica relevante que não só nos guiará na direção correta, mas também provavelmente contribuirá para melhor alocação de recursos no futuro.
REFERÊNCIAS
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1Extracorporeal Life Support Organization (ELSO). ELSO Guidelines for Cardiopulmonary Extracorporeal Life Support Extracorporeal Life Support Organization, Version 1.4. Ann Arbor, Michigan: ELSO; 2017 [cited 2022 Nov 3]. Available from: www.elso.org
» www.elso.org -
2Brodie D, Bacchetta M. Extracorporeal membrane oxygenation for ARDS in adults. N Engl J Med. 2011;365(20):1905-14.
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3Munshi L, Kiss A, Cypel M, Keshavjee S, Ferguson ND, Fan E. Oxygen thresholds and mortality during extracorporeal life support in adult patients. Crit Care Med. 2017;45(12):1997-2005.
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4Montisci A, Maj G, Zangrillo A, Winterton D, Pappalardo F. Management of refractory hypoxemia during venovenous extracorporeal membrane oxygenation for ARDS. ASAIO J. 2015;61(3):227-36.
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5Schmidt M, Tachon G, Devilliers C, Muller G, Hekimian G, Bréchot N, et al. Blood oxygenation and decarboxylation determinants during venovenous ECMO for respiratory failure in adults. Intensive Care Med. 2013;39(5):838-46.
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6Melro LM, Santos YA, Cardozo Júnior LC, Besen BA, Zigaib R, Forte DN, et al. Exploring the association of two oxygenators in parallel or in series during respiratory support using extracorporeal membrane oxygenation. Rev Bras Ter Intensiva. 2022;34(4):402-409.
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7Besen BA, Romano TG, Zigaib R, Mendes PV, Melro LM, Park M. Oxygen delivery, carbon dioxide removal, energy transfer to lungs and pulmonary hypertension behavior during venous-venous extracorporeal membrane oxygenation support: a mathematical modeling approach. Rev Bras Ter Intensiva 2019;31(2):113-21.
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8Park M, Costa EL, Maciel AT, Silva DP, Friedrich N, Barbosa EV, et al. Determinants of oxygen and carbon dioxide transfer during extracorporeal membrane oxygenation in an experimental model of multiple organ dysfunction syndrome. PLoS One. 2013;8(1):e54954.
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9Leloup G, Rozé H, Calderon J, Ouattara A. Use of two oxygenators during extracorporeal membrane oxygenator for a patient with acute respiratory distress syndrome, high-pressure ventilation, hypercapnia, and traumatic brain injury. Br J Anaesth. 2011;107(6):1014-5.
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10Kang DH, Kim JW, Kim SH, Moon SH, Yang JH, Jung JJ, et al. The serial connection of two extracorporeal membrane oxygenators for patient with refractory hypoxemia. Heart Lung. 2021;50(6):853-6.
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11Patel B, Arcaro M, Chatterjee S. Bedside troubleshooting during venovenous extracorporeal membrane oxygenation (ECMO). J Thorac Dis. 2019;11(Suppl 14):S1698-S1707.
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12Nunes LB, Mendes PV, Hirota AS, Barbosa EV, Maciel AT, Schettino GP, et al. Severe hypoxemia during veno-venous extracorporeal membrane oxygenation: exploring the limits of extracorporeal respiratory support. Clinics (Sao Paulo). 2014;69(3):173-8.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
03 Mar 2023 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 2022
Histórico
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Recebido
21 Nov 2022 -
Aceito
21 Nov 2022