Open-access Percepções de Formadores sobre Processos Identitários do Futuro Professor de Matemática

Trainers’ perceptions about the identity processes of the prospective mathematics teacher

Resumo

A formação inicial cumpre papel essencial na (re)constituição da identidade profissional docente (IPD) por meio dos contextos formativos e, especialmente, dos formadores, que participam ativamente dos processos de elaboração e mobilização das IPD dos licenciandos, manifestando traços de suas próprias identidades. Tal debate, todavia, encontra resistência em cursos que ainda carregam aspectos da tradição bacharelesca, como, por exemplo, a licenciatura em Matemática. Buscando adentrar nas discussões sobre IPD na formação do professor dessa área do conhecimento e ampliá-las, esta pesquisa teve por objetivo compreender como formadores do curso de licenciatura em Matemática percebem os processos identitários do futuro professor, isto é, aspectos relacionados à (re)constituição e mobilização dessa identidade profissional no âmbito da formação inicial. Para tanto, realizou-se uma investigação qualitativa, na qual foram entrevistados seis professores formadores, acerca de suas histórias de vidas, constituições profissionais e práticas docentes. Depreendeu-se, a partir das técnicas da Análise Textual Discursiva, que os formadores, em geral, reconhecem os aspectos dinâmicos e contextuais da IPD em Matemática, identificando elementos que dela fazem parte, como questões pessoais e familiares, a trajetória de vida e formação, e, ainda, sua própria influência enquanto docentes sobre as identidades dos licenciandos. Concluímos que os formadores têm potencial para, uma vez compreendidas as nuances dos processos constitutivos da IPD dos licenciandos, implicarem cada vez mais positivamente em sua formação profissional.

Identidade Profissional Docente; Professor Formador; Professor de Matemática; Formação Inicial; Processos Identitários

Abstract

Initial training plays an essential role in the (re)constitution of the teachers’ professional identity (TPI) through the training contexts and, especially, the trainers, who actively participate in the processes of elaboration and mobilization of the teachers' TPI, manifesting traces of their own identities. This debate, however, is resisted in courses that still carry aspects of the bachelor's tradition, such as, for example, the degree in Mathematics. Seeking to enter the discussions about TPI in the teacher training in this area of knowledge and expand them, this research aimed to understand how trainers of the degree course in Mathematics perceive the prospective teachers' identity processes, that is, aspects related to the (re)constitution and mobilization of this professional identity on the initial training. Therefore, a qualitative investigation was carried out, in which six trainer teachers were interviewed, about their life histories, professional constitutions and teaching practices. It was inferred, from the techniques of Discursive Textual Analysis, that trainers, in general, recognize the dynamic and contextual aspects of IPD in Mathematics, identifying elements that are part of it, such as personal and family issues, the trajectory of life and training, and also their own influence as teachers on the students' identities. We conclude that trainers have the potential, once they comprehend the nuances of the constituent processes of the TPI of the graduates, to imply even more positively in their professional training.

Teacher Professional Identity; Mathematics Teacher Educators; Mathematics Teacher; Initial Formation; Identity Processes

1 Introdução

As discussões realizadas nas últimas décadas por pesquisadores e teóricos do campo da formação de professores têm apontado a necessidade de considerarmos aspectos subjetivos nos itinerários formativos. Distanciam-se, assim, de tendências tecnicistas, que consideram o professor mero reprodutor de lições, e aproximam-se da concepção desse como um indivíduo, dotado de especificidades, que se torna docente a partir de vários processos socializadores na profissão.

Surge, nessa ótica, um olhar mais atento à identidade profissional do professor, que adquire e mobiliza aspectos da docência através da vivência na/com a profissão e, especialmente, da formação inicial, espaço-tempo voltado para sua profissionalização, isto é, para o desenvolvimento não apenas do saber fazer, mas também do saber ser enquanto docente. Nesse sentido, cumpre lançarmos vistas aos processos identitários de professores, compreendendo as nuances de como se (re)constitui a identidade profissional docente (IPD).

Tal discussão ganha ainda mais relevância no contexto das licenciaturas em áreas do conhecimento como a Matemática, que carregam traços de uma concepção bacharelesca, em muito devido à sua gênese como apêndice de cursos de bacharelado. Compreender a formação do professor de Matemática1, sobretudo em sua esfera subjetiva, considerando os elementos que implicam na constituição identitária desse profissional, é matéria premente, que demanda a dedicação de pesquisadores tanto da área da Educação, como da Educação Matemática.

Dentre os elementos que corroboram na (re)constituição/mobilização da IPD em Matemática no contexto da formação inicial podemos citar, apoiados em pesquisas realizadas anteriormente e na literatura a esse respeito, a história de vida do licenciando, os saberes da docência mobilizados ao longo da formação, o currículo do curso, o contato com a vivência escolar por meio dos estágios supervisionados e/ou iniciativas extracurriculares, e, de modo especial, a ação dos professores formadores ( MELO, 2018 ). A ênfase da influência daqueles que formam os professores de Matemática em suas constituições identitárias, que encontra eco nos estudos de Ronca (2007) , Belo (2012) , Belo e Gonçalves (2012) , Cunha Neto (2016) e outros, atraiu nossa atenção, conduzindo-nos ao desenvolvimento da presente investigação.

Diante do exposto e da necessidade de compreender como são mobilizadas as questões envolvendo a IPD na formação para o ensino de Matemática surge o seguinte questionamento: que percepções têm os formadores do curso de licenciatura em Matemática acerca dos processos identitários do futuro professor? De modo que o objetivo deste estudo – que é parte da pesquisa de mestrado do primeiro autor, sob orientação da segunda ( MELO, 2021 ) – é compreender como formadores dessa licenciatura percebem os processos identitários do futuro professor, isto é, aspectos relacionados à (re)constituição e mobilização da identidade profissional docente no âmbito da formação inicial.

Convém ressaltar que, ao falar em percepções, nos reportamos à apreensão dos elementos investigados por parte dos professores formadores a partir dos sentidos e significados por eles atribuídos, ou seja, à “ação ou efeito de perceber, de compreender o sentido de algo por meio das sensações ou da inteligência” ( FERREIRA, 2010 , p. 682). Não apenas às concepções inteligíveis, mas aos aspectos subjetivos e individuais. As percepções, assim, implicam não somente naquilo que compreendemos através de procedimentos racionais e cognitivos, mas abrangem, também, a esfera das crenças, do sensorial, emocional e afetivo.

Partimos da compreensão de que, dentre os principais propósitos da formação docente está o estímulo aos processos identitários, pois estes são parte fundamental do vir a ser professor, sem os quais o trabalho docente corre o risco de esvaziar-se. Por ser a função da licenciatura formar professores, espera-se que o formador compreenda o processo de formação, em suas múltiplas dimensões e nuances, e o contínuo (re)fazer-se profissional, que implica direta ou indiretamente na constituição/mobilização da IPD do licenciando. Essa compreensão é entendida como potencializadora do percurso formativo, visto que a consciência do tornar-se professor e seus desdobramentos possibilita ao indivíduo desenvolver autonomia e apropriar-se da formação, qualificando-se profissionalmente.

Uma análise panorâmica do cenário nacional de pesquisas nessa área indica certo avanço nas discussões sobre o desenvolvimento profissional do formador dos cursos de licenciatura em Matemática, assim como sobre sua identidade e constituição ( PEREIRA, 2016 ; CUNHA NETO, 2016; CUNHA NETO; COSTA, 2018). Incursões na literatura, inclusive internacional, sinalizam, contudo, considerável escassez no que se trata do enfoque na relação do formador na licenciatura em Matemática com os processos identitários dos professores em formação, nicho no qual se materializa o presente estudo ( DARRAGH, 2016 ; GOOS; BENNINSON, 2018 ; DE PAULA; CYRINO, 2018 ; GRAVEN; HEYD-METZUYANIM, 2019 ).

Após esta breve introdução, discutimos nossos temas centrais, quais sejam identidade profissional docente e formação inicial. Em seguida, apresentamos as escolhas adotadas no percurso metodológico da pesquisa e, na sequência, anunciamos e debatemos os resultados e suas implicações no entendimento da questão proposta. Por fim, arrematamos com algumas considerações finais.

2 Identidade profissional docente e formação inicial: imbricações entre categorias

Ao discutirem a IPD, muitos estudos partem dessa definição, tomando o conceito de identidade como trivial. Em nosso entendimento, assim como no de Graven e Heyd-Matzuyanim (2019), após realizarem uma vasta revisão na literatura internacional nas pesquisas dessa área, essa postura é equivocada, pois não apresentar as bases que sustentam a discussão sobre identidade é ignorar as nuances e, sobretudo, as divergências que marcam o debate em torno dessa temática. Com isso em vista, em Melo, Silva e Farias (2022) dedicamo-nos integralmente em aprofundar essa discussão e aqui sobre ela procedemos nossas análises.

Por muito tempo, no campo científico, considerou-se que a identidade seria o conjunto de traços – fixos, estáticos – que definem alguém, ou, em última instância, o cerne imutável que caracteriza uma pessoa. Essa visão, entretanto, foi sendo colocada em xeque por estudos que compreendem a realidade como sendo complexa, condicionada, sobretudo, pelas mudanças histórico-sociais, e que apontam nossa identidade como resultante dinâmica dos processos de socialização pelos quais passamos.

Dois expoentes dessa discussão são Dubar (2005) e Ciampa (2005) . O primeiro, sociólogo francês, postula que a identidade de alguém “nada mais é que o resultado a um só tempo estável e provisório, individual e coletivo, subjetivo e objetivo, biográfico e estrutural, dos diversos processos de socialização que, conjuntamente, constroem os indivíduos e definem as instituições” ( DUBAR, 2005 , p. 136). Dessa definição ressalta-se a ambivalência de permanência e impermanência que caracteriza nossa maneira de ser e estar no mundo, sobretudo a partir do desempenho de papéis socialmente tipificados.

Já o segundo, psicólogo brasileiro, assevera que a identidade é composta por “múltiplas personagens que ora se conversam, ora se sucedem; ora coexistem, ora se alternam” ( CIAMPA, 2005 , p. 162), e que, sobretudo, se transformam, se modificam. Esse autor associa o conceito em questão ao sintagma identidade-metamorfose-emancipação, que implica na alteridade de quem somos, a fim de que, ao transformarmo-nos, no sentido de nos tornar quem podemos vir a ser, sejamos cada vez mais nós mesmos.

Nossa identidade, nessa ótica, é o que nos materializa no mundo, como ponte entre o que somos, o que gostaríamos de ser e, ainda, como somos vistos pelos outros. No contexto do mundo globalizado em que vivemos, fortemente marcado pelo trabalho, ganham destaque as identidades profissionais, componente de nossa identidade social. Inegavelmente a profissão que exercemos absorve boa parte de quem somos e causa em nossa identidade transformações que deixam marcas em nós e em nossas representações sociais (sobretudo no seio da crise do sistema capitalista).

Cumpre, portanto, que olhemos para os processos socializadores das profissões, em busca de compreender como alguém se torna um profissional e incorpora em si traços de determinada profissão. No caso dos professores, essa identidade – aqui denominada identidade profissional docente, ou simplesmente IPD – é compreendida como “resultado da imersão do indivíduo (pessoa provida de uma identidade previamente estabelecida) nos processos de socialização da docência (com todos seus elementos e mecanismos de constituição identitária)” (MELO; SILVA; FALCÃO, 2021, p. 12).

Nas palavras de Pimenta (1999 , p. 19), a IPD se constrói

[...] a partir da significação social da profissão; da revisão constante dos significados sociais da profissão; da revisão das tradições. [...] da reafirmação de práticas consagradas culturalmente e que permanecem significativas. [...] Do confronto entre as teorias e as práticas, da análise sistemática das práticas à luz das teorias existentes, da construção de novas teorias. Constrói-se, também, pelo significado que cada professor, enquanto ator e autor, confere à atividade docente no seu cotidiano a partir de seus valores, de seu modo de situar-se no mundo, de sua história de vida, de suas representações, de seus saberes, de suas angústias e anseios, do sentido que tem em sua vida o ser professor. Assim como a partir de sua rede de relações com outros professores, nas escolas, nos sindicatos e em outros agrupamentos.

Ampliando a análise a partir do enfoque nas especialidades presentes na própria categoria docente, cabe, ainda, observarmos traços característicos da identidade profissional do professor de Matemática, através da literatura específica do campo da Educação Matemática ( VAN ZOEST; BOHL, 2005 ; RØ, 2015; LEVY; GONÇALVES, 2014 ; LEDOUX; GONÇALVES, 2015 ; CYRINO, 2016 , 2017 ; DE PAULA; CYRINO, 2018 , 2019 ; GRAVEN; HEYD-METZUYANIM, 2019 ). P

Para Cyrino (2017 , p. 704), essa IPD é entendida como um movimento, que “se dá tendo vista um conjunto de crenças e concepções interconectadas ao autoconhecimento e aos conhecimentos a respeito de sua profissão, associado à autonomia (vulnerabilidade e sentido de agência) e ao compromisso político”. A definição dessa pesquisadora, expoente nas investigações sobre identidade profissional de professores de Matemática, no Brasil, reflete elementos da concepção apontada inicialmente, como a noção de identidade como movimento e não produto. Ademais, evoca elementos caros à temática, como as crenças/concepções do sujeito sobre si e sobre a profissão, que dizem respeito aos anos de socialização prévia na docência que passamos enquanto alunos; a autonomia profissional, que articula a incompletude do ser professor, no sentido de sua formação permanente, e a capacidade de tomar decisões e agir pedagogicamente e, ainda, o compromisso político com a Educação, com os alunos, e consigo mesmo, enquanto profissional ( CYRINO, 2016 , 2017 ).

Nesse sentido, lançamos luz ao papel da formação inicial no processo de (re)constituição/mobilização2 identitária, sendo esse o espaço-tempo de iniciação formal da profissionalização do professor, incumbido do dever de formar o indivíduo para o exercício da docência. Consideramos, assim, que devem as licenciaturas preocuparem-se em contemplar tanto a dimensão do saber e saber fazer, relativa aos conhecimentos que deve possuir o docente, quanto a dimensão do saber ser, que diz respeito justamente à constituição identitária do professor em formação ( PONTE; OLIVEIRA, 2002 ; OLIVEIRA, 2004 ; D’ÁVILA, 2007 ).

Essa compreensão não caminha, entretanto, na esteira de um lugar comum , um modelo fixo de identidade docente, como se houvesse um jeito, uma maneira de ser professor. Ao contrário, tange a mobilização de elementos relativos à identidade do próprio indivíduo, como as crenças que carrega, a compreensão do propósito da docência enquanto profissão e o sentido de ação no agir profissional, entre outros. De modo que, longe de ser estabelecida como um componente curricular, a IPD deve ser constituída/mobilizada ao longo de toda a formação, através do que chamamos de elementos identitários, que provocam reflexão e consciência do licenciando sobre sua constituição profissional ( MELO, 2018 ).

São exemplos desses elementos identitários, amplamente discutidos pela literatura sobre IPD: a história de vida do próprio licenciando, os saberes da/para a docência, mobilizados ao longo da formação, a proposta curricular do curso, o contato com a prática escolar, entre outros (FARIAS et al. , 2009; LEDOUX; GONÇALVES, 2015 ; MELO, 2018 ). Reconhecendo que cada um dos elementos citados merece maiores estudos, a fim de compreender detalhadamente sua implicação na identidade do professor de Matemática, apontamos um, em específico, que ganha destaque em nossa apreciação.

Referimo-nos ao professor formador que atua no curso de licenciatura em Matemática, compreendido como o outro elemento humano no processo formativo. Sobre a formação desse professor cumpre dizer que há a ausência de especificações na legislação vigente, o que faz com que esse profissional, oriundo de diversas áreas, aprenda a sê-lo em um processo socializador de caráter, em partes, intuitivo, autodidata e repetindo a rotina e práticas dos pares ( PIMENTA; ANASTASIOU, 2002 ; CUNHA NETO, 2016; GOOS; BENNINSON, 2018 ). Afinal,

Se não há elementos formativos voltados à docência internos ao formador, a não ser sua própria experiência e os modelos prévios de professorado que teve (modelos referenciais e intuitivos), ganham maior destaque elementos externos e situacionais no fazer docente desse professor, em suma, na sua IPD. Elementos tais quais: a estrutura do nível superior de ensino e da instituição em que trabalha; a cultura docente na qual está inserido; as situações nas quais se envolve e as relações estabelecidas com os sujeitos desses contextos etc. ( MELO, 2021 , p. 115)

Tais considerações a respeito da IPD do formador em Matemática – que, na maioria das vezes, é marcada pela formação enquanto pesquisador ( PIMENTA; ANASTASIOU, 2002 ; GONÇALVES, 2006 ; BELO, 2012 ; BELO; GONÇALVES, 2012 ; CUNHA NETO, 2016) – são pertinentes, pois o professor em formação (re)elabora sua IPD, também, a partir de modelos presentes em seu processo socializador. Isto é, a ideia que temos sobre docência, que implica em nossa própria ação enquanto docente, logo, em nossa IPD, tem influência dos professores que tivemos, sobretudo daqueles que nos formam na licenciatura, que é, para muitos, a última etapa formativa antes do ingresso na profissão ( RONCA, 2007 ).

Compreender como se constitui a IPD do formador em Matemática ( BELO; GONÇALVES, 2012 ; CUNHA NETO, 2016; PEREIRA, 2016 ; CUNHA NETO; COSTA, 2018) se faz pertinente, visto que “nossas identidades são os veículos a partir dos quais participamos com os outros em comunidade” ( VAN ZOEST; BOHL, 2005 , p. 320, tradução nossa), mas não suficiente para a questão aqui posta. Dado a influência, consciente ou não, dos formadores sobre a (re)constituição da IPD dos licenciandos, não apenas pelas suas práticas, mas por quem são enquanto docente ( RONCA, 2007 ), faz-se necessário compreender também como esses sujeitos percebem a constituição identitária do professor de Matemática, a fim de que possam incidir ainda mais positivamente nesse contexto. O que entendem desse processo de formar-se para a docência, que reverbera não apenas nos domínios cognitivos do indivíduo, mas em sua identidade, é pauta para estudos nesse campo do conhecimento (GOOS; BENNISON, 2018).

A essa altura da discussão, nos colocamos diante do objetivo desta pesquisa, motivo pelo qual apresentamos na seção seguinte o percurso metodológico adotado, e, logo adiante, a análise empreendida aos dados levantados por meio das técnicas da Análise Textual Discursiva (ATD).

3 Percurso metodológico da pesquisa

A presente investigação está, de modo mais amplo, pautada no desvelamento dos processos constitutivos da identidade, dos caminhos que levaram nossos sujeitos a ingressar na docência e, como marco da especificidade deste artigo, como compreendem o processo de constituição identitária de futuros professores de Matemática. Consideramos, dessa forma, a abordagem qualitativa como a mais adequada, visto que essa “se ocupa, nas Ciências Sociais, com um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes” ( MINAYO, 2009 , p. 21).

Para ambientar a pesquisa adotamos como cenário o curso de licenciatura em Matemática do Centro de Ciências e Tecnologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), situado em Fortaleza. Tal escolha baseou-se por ser essa instituição “reconhecida regionalmente por sua vocação histórica na formação de professores” (FARIAS et al. , 2011, p. 7), voltada ao propósito de formação para a docência desde sua gênese. O referido curso, por sua vez, é o mais antigo dessa área no estado do Ceará, fundado ainda em 1950, e tem formado professores para o ensino de Matemática, contribuindo com a Educação Básica e, ainda, com o Ensino Superior brasileiro.

A escolha por um único curso de licenciatura deve-se à compreensão de que apreender mais fidedignamente as nuances dos processos identitários demanda conhecer o contexto de efetivação dessas identidades; ou seja, ao empreender estudo sobre os processos identitários em um determinado lócus, ficam mais acessíveis e mais assertivas as definições do cenário que ambienta essas manifestações de identidades. Evita-se, assim, o risco de, ao optar por cursos de diferentes realidades e contextos, perder elementos e detalhes importantes à análise dos processos constitutivos.

Naturalmente, tal escolha acaba impactando nos resultados ao explicitar a realidade de um curso de licenciatura em Matemática, dentre tantos no contexto brasileiro. Defendemos, todavia, que são inicialmente as pesquisas locais, em cenários específicos e situados, que possibilitam a elaboração de estudos mais amplos que propiciem uma visão panorâmica da temática. Em outras palavras, os dados produzidos nesse lócus são igualmente valiosos ao campo da Educação Matemática por fornecerem uma perspectiva da problemática, ainda que consideradas as especificidades do curso em estudo.

Dado nosso objetivo, delineamos como participantes os professores formadores do referido curso, que no momento da pesquisa totalizavam 21 sujeitos. Uma aproximação inicial foi feita via e-mail, através de endereços cedidos pela coordenação, apresentando a pesquisa e convidando os docentes a participarem, mediante preenchimento de um questionário online. Desse primeiro contato obtivemos retorno de apenas dez formadores. Esse dado nos indica, assim como em várias pesquisas, a resistência em participar, mesmo após reiteradas tentativas, sinalizando, entre outros fatores não evidentes, possível desinteresse ou recusa em discutir tópicos subjetivos da formação docente, ou, ainda, escassez de tempo para envolver-se com tal atividade, devido a acentuada demanda de trabalho.

Convidamos, assim, os dez respondentes a participarem da segunda etapa da pesquisa, que consistiu em uma entrevista por pautas, com ênfase em suas histórias de vida, constituição profissional e práticas docentes (o Quadro 1 expõe as questões disparadoras e os tópicos de aprofundamento abordados). Essa escolha deu-se por ser essa uma das técnicas mais utilizadas, não apenas no âmbito das pesquisas sociais ( GIL, 2008 ), como também no cenário internacional de produção científica sobre identidade profissional de professores de Matemática (GRAVEN; HEYD-METZUYANIM, 2018). É possível apreender com a entrevista muito mais do que apenas dados objetivos, como as explicações, as reações, as expressões, pausas e ênfases dadas a determinadas pautas, além de um fluxo mais fluido de ideias e articulações entre estas.

Quadro 1
– Perguntas disparadoras e tópicos de aprofundamento

Desse grupo, dois formadores não deram retorno e outros dois concordaram em participar, mas desistiram durante o processo. As entrevistas foram, dessa forma, realizadas com seis professores formadores, de maneira remota, via plataforma virtual, em decorrência do contexto de pandemia de covid-19 enfrentado no período de desenvolvimento da pesquisa. Mesmo com o quantitativo de apenas seis formadores (totalizando pouco mais de 28% do universo de sujeitos), consideramos que a amostra resultante representa em características centrais o conjunto de formadores do curso em estudo, conforme discorremos a seguir.

Dos participantes, foram duas mulheres e quatro homens, elemento que evidencia a disparidade de gênero entre o conjunto total de formadores (sendo dezoito homens e apenas três mulheres). Quanto às titulações, tivemos mestres, doutores e pós-doutores, denotando, também, a diversidade de formação entre os docentes, os quais possuem experiência docente de dois a dezessete anos. Em relação à condição profissional, foram quatro professores temporários e dois permanentes, ressaltando não apenas a rotatividade de docentes em uma realidade de curso que opera com um quantitativo significativo de temporários, mas também maior disponibilidade e interesse desses profissionais em relação a esta pesquisa e sua temática. Tivemos, por fim, docentes de áreas como Educação Matemática, Geometria, Álgebra e Análise, representando certa diversidade de setores no curso, embora, proporcionalmente, muito mais educadores matemáticos tenham aceitado participar.

O Quadro 2 , a seguir, utilizando-se de pseudônimos, descreve os participantes e caracteriza sua formação e situação profissional:

Quadro 2
– Descrição dos participantes

Por se tratar de uma pesquisa com seres humanos, adotamos, naturalmente, todos os procedimentos éticos necessários, referendados pela Resolução CNS nº 510/2016, dentre os quais a garantia do anonimato, a assinatura por parte dos entrevistados de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a submissão do projeto de pesquisa ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), aprovado segundo o Parecer Consubstanciado no4.262.941 ( MELO, 2021 ). Além disso, levamos em consideração as discussões sobre ética em pesquisas em Educação (ANPED, 2019).

Com duração entre 50min. e 02h:30min., as entrevistas foram transcritas e resultaram em um corpus textual de, aproximadamente, 150 páginas ( MELO, 2021 ). Finalmente, no que tange ao delineamento da metodologia adotada, utilizamos como técnica de análise dos dados a Análise Textual Discursiva (ATD) ( MORAES, 2003 ; MORAES; GALIAZZI, 2016 ), que

[...] pode ser compreendida como um processo auto-organizado de construção de compreensão em que novos entendimentos emergem de uma sequência recursiva de três componentes: desconstrução dos textos do corpus, a unitarização; estabelecimento de relações entre os elementos unitários, a categorização; o captar do novo emergente em que a nova compreensão é comunicada e validada ( MORAES, 2003 , p. 192)

Situada entre a objetividade da análise de conteúdo e a subjetividade da análise do discurso, a ATD constitui-se como uma técnica que visa garantir metodicamente condições para que interpretações mais subjetivas emerjam, considerando os sujeitos e o fenômeno em sua totalidade. Seu processo está estruturado em três etapas: unitarização, quando pequenas partes significativas (frases, orações ou parágrafos) são destacadas; categorização, quando as unidades de significado elaboradas na primeira etapa são reagrupadas em torno de categorias escolhidas a priori ou emergidas do processo analítico; e a construção do(s) metatexto(s), quando as interpretações da análise são explicitadas em textos que traduzem o fenômeno sob nova ótica ( MORAES; GALIAZZI, 2016 ).

Isso posto, seguimos à análise, em si, e às interpretações dela emergentes, o que conferimos na seção a seguir.

4 Resultados e discussão dos dados

Seguindo os ditames da ATD, ao analisarmos o corpus textual das entrevistas realizadas, identificamos inicialmente 282 unidades de significado, ancorados em três eixos, que serviram de lentes em nossa apreciação: (i) percepção dos formadores sobre a própria constituição identitária; (ii) expressão e mobilização das percepções nas práticas formativas; e (iii) percepção dos formadores sobre a constituição da IPD dos licenciandos. Para efeito desta análise, todavia, nos deteremos no último desses eixos, que diz respeito ao objetivo do presente artigo.

Tais unidades de significado foram agrupadas em categorias iniciais, desta vez a partir da convergência de seus significados e das temáticas que abordavam. O esforço em categorizar os fragmentos de texto resultou na elaboração de dezoito categorias iniciais, reunidas, por sua vez, em oito categorias intermediárias e estas em três grandes categorias finais, seguindo o mesmo percurso de aproximação dos seus significados. Foram elas: (1) a IPD dos formadores é influenciada por aspectos pessoais e familiares, pelos ex-professores e pela relação estabelecida com a Matemática e a Educação Matemática; (2) a formação do professor de Matemática deve ser ampla, mas é limitada por tendências bacharelescas, que a direcionam conforme a formação/postura adotada pelo formador; e (3) a IPD em Matemática é marcada pelas experiências pessoais, formativas e pela relação com os saberes ( MELO, 2021 ). Na discussão aqui proposta, seguiremos, como dito, na esteira da categoria que reflete especificamente a respeito da constituição da IPD dos licenciandos sob a percepção dos formadores (categoria 3), não adentrando na constituição identitária, formação e prática docente dos próprios entrevistados.

Inicialmente, cumpre dizer que, de modo geral, os formadores evidenciaram não ter domínio da discussão teórica a respeito da identidade profissional docente. A maioria dos professores da área específica (Geometria, Álgebra e Análise) sequer havia ouvido falar nesse conceito, e, por mais que já tenham escutado sobre a IPD, nem mesmo os professores que têm a formação docente como objeto de pesquisa/trabalho mostraram possuir afinidade teórica com o tema. Ainda assim, foi possível notar que, embora intuitivamente, há uma visão bastante coerente com o que evidencia a literatura sobre a IPD e, de modo específico, sobre a identidade profissional do professor de Matemática, conforme se explicita nos relatos que seguem.

Em síntese do que percebem os formadores, tem-se, inicialmente, que a IP do professor de Matemática não é algo estagnado, mas em constante movimento; é um aspecto abstrato à formação, mas concreto ao professor; e que se constrói em conjunto, não sozinha, mobilizada pelo conhecimento matemático e também por outros . Um exemplo dessa concepção pode ser evocado na fala da professora Marcela, ao afirmar, ainda que em tom interrogativo, que

Marcela: [...] as identidades estão em constante movimento, né? (Entrevista, 2020).

Na compreensão dessa professora:

Marcela: [...] são esses recortes, assim, que você vai, ao longo do tempo, adquirindo e chegando à sua prática... É claro que, essa identidade não está formada. Eu acho que ela não é estagnada [...] a identidade da gente não é algo estagnado, sabe? Que você adquiriu e para; acho que você está em constante evolução. Então, você vai aprendendo... (Entrevista, 2020).

Compreender que a identidade não é algo estagnado, estático, mas em constante movimento ( CIAMPA, 2005 ), é salutar à percepção identitária. Falcão e Farias (2020 , p. 170) asseveram que entender a identidade na perspectiva da permanente mudança “permite vislumbrar ações formativas que favoreçam processos reflexivos e críticos sobre o fazer docente, atentando para a subjetividade do professor, para os contextos em que estão inseridos e para quem se ensina”. Para o professor Lucas, por sua vez, a IPD é entendida

Lucas: [...] como aspecto abstrato, que ocorre ali, ao longo da graduação, que é intrínseco... mas não é explícito [...] É algo que ocorre mais no interior ali da pessoa... (Entrevista, 2020).

Essa noção, associada ao contexto geral das falas, indica a identidade como conceito ambivalente, uma vez que é abstrato à formação, ou seja, está ali, traz implicações, mas que acontece no terreno do subjetivo, do impalpável; e também concreto dentro de cada um dos licenciandos, haja vista que é a identidade que direciona e ampara o professor em sua prática profissional ( VAN ZOEST; BOHL, 2005 ). Também diz respeito aos aspectos experiencial e temporal da IPD, apontados por De Paula e Cyrino (2019) . Entendemos, junto a Goos e Bennison (2018), que a identidade deve ser interpretada como ação e não como aquisição, afinal é a identidade o que nos move, dentro e fora da profissão.

Quanto ao caráter coletivo da constituição identitária, sobretudo nos âmbitos da formação profissional, vemos ainda na fala da professora Marcela que:

Marcela: [...] essa constituição de identidade... eu acho que está no grupo, sabe? Eu sempre penso assim... eu acho que vem do grupo e depois vai para o aluno. E essa identidade que se forma no aluno já é resquício de algo que a gente está pensando, que a gente está atuando (Entrevista, 2020).

A professora Letícia complementa, nesse sentido, asseverando que

Letícia: [...] a gente vai se construindo como professor. E, aí, você se constrói, não só, mas se constrói em conjunto com os alunos. Tanto que eu digo para eles: “o ensino é uma via de mão-dupla; eu ensino, mas também eu aprendo muito mais, às vezes, do que eu ensino”. Não só no conteúdo matemático, às vezes, eles trazem outras ideias de resolver as coisas que a gente propõe, como também no final eles ensinam a você lutar com a sala de aula, sabe, por que, às vezes, você está na universidade e está afastada da escola, então você não sabe como é que está funcionando as coisas lá, e eles trazem muito das angústias, que, aí, a gente tenta trabalhar essas angústias adaptando o que a gente tá trabalhando em sala de aula, pra ver se dá certo levar (Entrevista, 2020).

Os depoimentos apresentados vão ao encontro da literatura no que diz respeito à IPD em Matemática. Como, por exemplo, os elementos que delineiam o movimento de construção/desenvolvimento da identidade do professor de Matemática, segundo Cyrino (2017) , tais como as crenças e concepções, autoconhecimento e conhecimentos da profissão, autonomia e compromisso político. Ou, ainda, aos aspectos a serem considerados em investigações sobre a identidade profissional do PEM, apontados por De Paula e Cyrino (2019) , quais sejam complexidade, dinamicidade, temporalidade e experiencialidade (CDTE).

Distanciando-se da visão inatista de identidade como um traço apriorístico do sujeito, o seguinte relato do professor João assevera esse entendimento da IPD como movimento, um processo que pode ser potencializado pela formação inicial:

João: [...] eu não acredito muito nessa questão de que você nasce vocacionado a uma coisa. Eu acho que o período de formação, as experiências que você vai adquirindo vão lhe levando a alguns caminhos, e eu acho que essa união de habilidades, que você tem naturalmente ou durante esse período de formação, vão fazendo você assumir determinadas identidades profissionais, por exemplo (Entrevista, 2020).

Seguindo a análise, outra percepção por parte dos formadores a respeito da IPD do professor de Matemática emerge: a identidade profissional é algo único, particular a cada professor, que está em constante evolução, mobilizada pelas experiências, pelos saberes, pela identificação com a profissão . A experiencialidade, como citado, é elemento importante na constituição identitária do professor, e que surge nos relatos dos formadores, como na seguinte fala:

João: [...] as experiências do professor são fundamentais para ele repassar e construir essa identidade, auxiliar na construção dessa identidade do aluno de licenciatura (Entrevista, 2020).

É cabível pontuar, todavia, que, para que as vivências se tornem experiências, é necessário reflexão. Uma situação, um aprendizado só se tornam experiência, da qual emergem saberes, se refletida, se observada no seio da constituição pessoal do sujeito ( BONDÍA, 2002 ). Por isso que a ideia de que as experiências mobilizam as identidades está atrelada à reflexão em torno das experiências, essa também mobilizadora da IPD, pois, “julgamos que o indivíduo, ao refletir, seja capaz de admitir-se como: (i) alguém singular, com base em certas características; (ii) alguém inserido, por aproximação, neste ou naquele grupo em função de outras tantas características” (LEVY; GONÇALVES, 2016, p. 71).

O reconhecimento dessa dimensão na formação do professor e em sua constituição identitária está presente na seguinte fala do professor Lucas:

Lucas: [...] discussões como essas... como a gente tá fazendo aqui... a gente vem discutindo isso, e, no meio dessa discussão, a gente tem ideia do que pode contribuir para a formação do professor, do que atrapalha, está entendendo? Então, estudar isso [a IPD], com certeza, traz uma visão melhor de como deve... de como se deve formar um professor. Talvez, assim, talvez não traga... quando eu falo visão, não é que vai trazer um modelo de como ser formado, mas é [...] eu nunca tinha parado para pensar sobre isso, está entendendo? Então, refletir sobre isso e estudar isso abre aí um precedente para a gente pensar sobre como realmente é o processo de formação da identidade do professor [...] porque, ok, você tem aqui a personalidade da pessoa, mas essa pessoa como professor... (Entrevista, 2020).

A reflexão, em termos da formação docente, é capaz de estabelecer meios de identificação para com a docência, outro elemento mobilizador da IPD, que perpassa, de certa forma, a motivação do aluno em ingressar numa licenciatura (PINTO; SOUSA; MELO, 2021 ). Tal aspecto deve ser explorado, refletido e mobilizado ao longo do curso para que possam os futuros professores identificarem-se com a profissão e, assim, constituírem e apropriarem-se de uma identidade profissional emancipada.

Nesse sentido, faz-se necessário desenvolver e estimular uma visão de si enquanto professor, um sentimento de pertencimento à classe profissional docente. Cabe também aos cursos de formação, bem como aos formadores, envidarem esforços no sentido de mobilizar nos licenciandos a autopercepção dessa IPD que, como se sabe, começa a ser constituída muito antes de seu ingresso na formação inicial (FARIAS et al. , 2009). O professor João faz um relato que evidencia elementos desse aspecto da formação/constituição identitária do professor, elucidado a seguir:

João: [...] o erro começa nessa falta de identidade, né?, nessa falta de reconhecimento da pessoa como professor. Então, ela já entra de uma forma errada no curso, e, em boa parte dos casos, ela... é difícil a gente dizer boa parte dos casos, porque é complicado a gente tentar parametrizar alguma coisa desse tipo, mas, em muitos casos, a pessoa não está adequadamente pronta para ser professor, e ela fica ali a vida inteira dela trabalhando como professor, mas sem essa identidade (Entrevista, 2020).

Outra perspectiva das percepções dos formadores a respeito dos processos identitários do professor de Matemática é a de que concorrem à constituição da IPD a experiência, os aprendizados, o formador, as disciplinas do curso, a prática e o contexto no qual se insere, entre outros , em consonância com as pesquisas nessa temática (FARIAS et al. , 2009; LEVY; GONÇALVES, 2014 ; LEDOUX; GONÇALVES, 2015 ; MELO, 2018 ). Tais elementos são sintetizados na fala de um dos formadores:

Lucas: [...] formação de identidade docente é isso: é contato com práticas e experiências, formação durante a graduação, disciplinas de matemática, disciplinas de pedagogia... a vida da pessoa, particular em si, faz parte da construção da identidade dela como docente [...] é um fator que, com certeza, é importante, assim, para construção da profissionalidade, da pessoa como professor... (Entrevista, 2020).

Fazendo coro a essa compreensão, assevera a professora Letícia:

Letícia: [...] eu acho que todos esses pouquinhos aí já vão construindo na cabeça deles, quem é que eles querem ser. [...] nesses pouquinhos a gente vai tentando também ajudar eles a construir a identidade profissional deles (Entrevista, 2020).

Essas falas apontam para o entendimento dos entrevistados, que é também o nosso, de que não é competência primeira e apenas do formador responsabilizar-se pela mobilização da IPD dos licenciandos, haja vista o caráter pessoal, complexo e dinâmico da constituição identitária aqui já ressaltado, assim como em Cyrino (2017) . O formador é um parceiro no percurso formativo, não um condutor; colabora com ele, mas não o determina. Tal concepção deve estar clara para ambos – os que formam e os que são formados –, para que, cientes de seu papel na formação do futuro professor de Matemática, possam desempenhar bem suas funções. Defendemos, a partir disso, que, para qualificar sua ação formativa, o formador deve compreender as dinâmicas identitárias, associadas ao propósito da formação docente e aos objetivos do curso.

Em suma, a concepção dos formadores aproxima-se, ainda que intuitivamente, isto é, não refletida teoricamente, dessa concepção sobre a identidade, nos termos discutidos aqui com apoio dos autores. Ilustra esse entendimento a significativa visão do professor João, expressa no seguinte fragmento:

João: [...] eu não acredito muito nessa questão de que você nasce vocacionado a uma coisa. Eu acho que o período de formação, as experiências que você vai adquirindo vão lhe levando a alguns caminhos, e eu acho que essa união de habilidades, que você tem naturalmente ou durante esse período de formação, vão fazendo você assumir determinadas identidades profissionais, por exemplo (Entrevista, 2020).

Em se tratando de aspectos identitários, os formadores enxergam, e relatam em suas falas, semelhanças entre seus próprios percursos e os dos alunos. Isso é um ponto positivo no trabalho formativo, pois possibilita ao formador traçar paralelos e direcionar a formação mais propriamente aos seus objetivos e, ainda, sensibilizar-se quanto às subjetividades dos licenciandos, não no sentido de diluir a identidade do curso ou descaracterizá-lo de seu propósito, mas de mobilizar tais especificidades, a fim de potencializar o processo de tornar-se professor.

Perceber aspectos e contextos formativos inerentes à licenciatura que contribuem para a constituição identitária faz com que o formador possa mediar as relações com os licenciandos, colaborando para a revisão de crenças pré-existentes sobre a profissão e para a elaboração de novas, pautadas na reflexão. A importância disso reside no fato de serem nossas crenças lentes através das quais enxergamos a profissão; caso essas lentes permaneçam irrefletidas, cristalizadas em sua forma de senso comum, longe das discussões pertinentes à categoria profissional, a visão do professor sobre sua própria atuação será, por assim dizer, turva.

Embora haja avanços na maneira de pensar e encarar a formação do professor de Matemática, há, ainda, forças contrárias nesses espaços, que resistem às inovações, e, como nos lembram Gellert, Espinoza e Barbé (2013, p. 543), “em tempos de reforma, é essencialmente a identidade dos professores que está em jogo”. Em geral, o docente – especialmente o bacharel que atua no curso de licenciatura – tende a atuar conforme sua formação o preparou ou conforme considera coerente e confortável, não se mostrando disposto, muitas vezes, a refletir sobre sua prática e sobre a adequação desta aos objetivos da formação inicial para a docência ( PEREIRA, 2016 ).

Do conjunto das falas compreendemos, em síntese, que, para os formadores participantes desta pesquisa, a IPD em Matemática é marcada pelas experiências pessoais, formativas e pela relação com os saberes . Somada às análises subjacentes da investigação, como um todo, depreendeu-se que os formadores, de modo geral, reconhecem os aspectos dinâmicos e contextuais da IPD, identificando elementos que dela fazem parte, como questões pessoais e familiares, a trajetória de vida e formação, e, ainda, sua própria influência enquanto docentes sobre a identidade dos licenciandos. Conhecer tais aspectos é fundamental para o aprimoramento dos percursos formativos e para um despertar de consciência do futuro professor quanto à sua IPD, em suas nuances e complexidade.

5 Considerações finais

Estamos, cada vez mais, convencidos de que as identidades são construídas nas interações relacionais, sob o olhar do outro, através do qual delimitamos nossa maneira de ser e estar no mundo, como sujeitos e como profissionais docentes. O professor formador, naturalmente, representa um outro significativo ( RONCA, 2007 ) na constituição pessoal e profissional do licenciando, e essa relação subjetiva entre tais sujeitos merece um olhar atento daqueles que se preocupam com a formação para a docência, visto que a identidade do professor não é meramente um produto da formação, mas, sim, uma aliada à constituição profissional daquele que futuramente educará através da Matemática. Daí decorre a importância de se debruçar sobre as mobilizações e interações das identidades no âmbito da formação inicial, atentando às concepções e crenças dos sujeitos – de modo especial os formadores – sobre essas IPD.

Reconhecemos que o pequeno quantitativo de formadores dispostos a dialogar sobre os processos identitários limita o potencial de generalização dos resultados desta pesquisa. Dos dados produzidos pela investigação, todavia, inferimos que, embora com passos lentos, os avanços nas discussões sobre a formação do professor de Matemática têm impactado nas concepções de formadores, especialmente se compararmos às décadas passadas ( MELO, 2021 ). Não podemos negar que a Educação Matemática, com sua consistente trajetória, tem provocado discussões e disparado novas perspectivas sobre a formação para o ensino.

Notamos dos formadores investigados uma percepção surpreendentemente ampliada da formação para a docência, que considera aspectos subjetivos como a história de vida, as experiências e as relações estabelecidas ao longo do percurso formativo como elementos importantes. Não podemos, contudo, afirmar que esse entendimento é compartilhado pelos demais professores do curso e, menos ainda, pelos formadores de Matemática no Brasil, de modo geral. Para essa compreensão, maiores investigações são necessárias.

Nesses termos, concluímos que os formadores têm potencial para, uma vez compreendidas as nuances dos processos constitutivos da IPD dos licenciandos, implicarem cada vez mais positivamente em sua formação profissional. Esta pesquisa intencionou, desse modo, gerar reflexões acerca das reverberações do papel dos formadores na constituição, sobretudo subjetiva, do licenciando em Matemática. Especialmente no sentido da potência que conserva a relação formador-formando e as concepções e crenças arraigadas na identidade dos sujeitos envolvidos nos processos formativos, das quais dependem, em muito, a formação dos futuros professores de Matemática.

Ficam em aberto, ainda assim, questões a serem respondidas em investigações futuras, tais como: de que modo essas percepções dos formadores sobre as IPD na licenciatura em Matemática são, de fato, instrumentalizadas em suas práticas? Como potencializar a formação de futuros professores de Matemática através das percepções identitárias dos formadores? Para além da visão dos formadores, como os licenciandos percebem a própria constituição identitária no âmbito da formação inicial?

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  • 1
    É do nosso conhecimento que a literatura mais recorrente no campo da Educação Matemática tem utilizado a terminologia Professor que Ensina Matemática (PEM), no intuito de englobar todos aqueles que atuam no ensino dessa disciplina, seja na Educação Básica ou Superior. Como nos referimos, todavia, especificamente àqueles licenciados em Matemática, optamos por utilizar a expressão professor(es) de Matemática , compreendendo que as especificidades da formação do pedagogo e de profissionais de outras áreas que eventualmente venham a ensinar Matemática, e, por conseguinte, sua constituição identitária, requerem um olhar direcionado que considere elementos próprios desse percurso.
  • 2
    A escolha dessa terminologia não é fortuita. Compreendendo a identidade como movimento, entendemos que ela é constantemente construída e reconstruída, com base no entorno social, especialmente em se tratando da IPD, pois interagimos com a docência durante anos na condição de alunos, até ingressarmos nos processos socializadores da profissão. Assim, ao (re)constituirmos nossa IPD, estamos mobilizando-a.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    24 Jun 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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