Open-access Estatuto da criança e do adolescente: é possível torná-lo uma realidade psicológica?

The child and the adolescent statute: is it possible to become a psychological reality?

Resumos

O artigo descreve as barreiras à aplicação efetiva de uma legislação avançada, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto às suas disposições sobre a família, a escola e o trabalho. Defende, ainda, maior participação dos cursos universitários no conhecimento e respeito à lei, favorecendo sua aplicação no cotidiano profissional.

Estatuto da Criança e do Adolescente; Família; Trabalho; Escola; Universidadade


The article describes the effective application of an advanced legislation, as the Child and Adolescent Statute, considering the family, school and work issues. It also defends a broader involvement of the university courses with the statute acquaintance and enforcement, favoring its aplication on the professional routine.

Child and Adolescent Statute; Family; Work; School; University


ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE: É POSSÍVEL TORNÁ-LO UMA REALIDADE PSICOLÓGICA?1

Sylvia Leser de Mello2

Instituto de Psicologia – USP

"Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena"

(Fernando Pessoa)

O artigo descreve as barreiras à aplicação efetiva de uma legislação avançada, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, quanto às suas disposições sobre a família, a escola e o trabalho. Defende, ainda, maior participação dos cursos universitários no conhecimento e respeito à lei, favorecendo sua aplicação no cotidiano profissional.

Descritores: Estatuto da Criança e do Adolescente. Família. Trabalho. Escola. Universidadade.

O artigo 5º da lei nº 8069, de 1990, denominada "Estatuto da Criança e do Adolescente" e cognominada com carinho Eca, logo em suas disposições preliminares, afirma: "Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais" (Oliveira, 1995, p.2).

A leitura dessa disposição pode nos encher de perplexidade. A primeira coisa que vem à mente é perguntar se uma legislação tão avançada não seria uma contradição a mais num país já tão cheio de contradições. É evidente que o dia-a-dia demonstra a grande distância que vai do que a lei dispõe para a realidade onde o dispõe. Basta ler os jornais para encontrar, cotidianamente, o relato da displicência com que são tratadas questões de cunho social envolvendo os jovens.

Esse tema da contradição entre a concepção da lei e sua aplicação já é, em si, um tema fascinante para pesquisas. Como não quero me deixar levar por ele, vou tratar a nossa temática, das relações da Universidade com o Estatuto, de modo bem formal.

Mesmo reconhecendo "a distância entre intenção e gesto" é preciso saudar o Estatuto, com suas concepções abrangentes dos direitos dos jovens, indo desde a criança como sujeito de direitos abstratos até as disposições jurídicas para a sua proteção em caso de delito. Também é importante que o poder público se estabeleça como zelador desses direitos, reconhecendo, implicitamente, que o futuro do país está guardado no coração e na mente das suas crianças.

Vou restringir minha exposição a três aspectos que merecem atenção especial no Eca: família, escola, trabalho. Há mais dois muito intimamente ligados a estes, a pobreza e a violência, que serão discutidos no interior dos outros. Por fim, tentarei esboçar algumas linhas de ação que poderiam transformar a universidade num foro de discussão e de apoio ao fortalecimento das linhas da lei.

Em seu art. 15 o Eca trata amplamente dos direitos que os jovens (crianças e adolescentes) têm a condições dignas de vida, explicitando especialmente o direito à liberdade, ao respeito e à dignidade.

Respeito e dignidade são elementos centrais na elaboração de um conceito adequado de liberdade. Sem estes elementos, por onde se começa a reconhecer o valor de si, e reciprocamente admitir-se o valor do outro, é difícil criar-se o sentimento verdadeiro de liberdade, aquele ao qual se refere a cidadania, feito de cuidado com o bem comum.

No entanto, as precárias condições de vida de uma grande parcela da população das metrópoles só recebe atenção quando acontecem catástrofes maiores em sua vida diária: incêndios, inundações, desabamentos. Nesse momento tornam-se especialmente visíveis os sinais do desrespeito e da indignidade, quando o Estado tolera que seus cidadãos vivam da maneira como vivem os segmentos mais pobres das camadas populares. Mas é apenas aquele o momento em que os seus problemas merecem consideração. São esquecidos em seguida. Às vezes, pequenos programas aparatosos, como o Cingapura, parecem resolver os problemas habitacionais mas, na verdade, o abandono a que está relegada a população maximiza o valor dessas obras aos olhos de quem vive em barracos, transformando-as em lucrativo modo de ganhar as eleições e manipular as necessidades dos que possuem pouco, muito pouco, ou quase nada.

A primeira violência que sofrem as populações de origem rural, que fluem para São Paulo, está relacionada à moradia. Paradoxalmente, na cidade é mais fácil obter um pouco de alimento do que encontrar abrigo. Possuir uma habitação é, simbolicamente, mais do que estar abrigado do sol e da chuva. Para Hannah Arendt, a casa, "este lugar tangível possuído na vida por uma pessoa, oferece o único refúgio seguro contra o mundo público comum." As atividades relativas à conservação da vida e que ... "devem ser escondidas contra a luz da publicidade" (Arendt, 1981, p. 81)3 precisam da segurança do ocultamento que as paredes oferecem.4

A moradia não é a família, mas a idéia de lar, que abriga e protege, tem muito a ver com a casa. O lar não é, necessariamente, um lugar físico, mas com certeza os espaços públicos não suscitam a idéia de calor e proteção que dá substância à idéia de lar. Dir-se-ia que, no mínimo, a própria noção de família se complementa com a idéia de um lugar de repouso e abandono dos papéis e, algumas vezes, das máscaras que a vida pública impõe.

O Eca afirma que toda criança tem direito à vida familiar e define a família de um modo bastante amplo, procurando fugir dos estereótipos da família burguesa do casal e filhos. Trata, mesmo, do que denomina família substituta, reconhecendo, desse modo, o direito ao amparo afetivo e material nos anos de formação. A família, mais do que uma instituição legal e jurídica, é um direito subjetivo de encontrar acolhimento para as dificuldades, as dúvidas, as inseguranças que a vida vai fazendo aparecer aos que crescem. O pequeno ser humano é muito frágil e precisa proteção. Mas essa proteção não é, apenas, a comida e o agasalho. É difícil chegar ao mundo, e as mãos que cuidam devem fazê-lo com carinho. O direito que o Eca supõe está radicado nesta concepção de ambiente propício ao crescimento, não importando quem são, juridicamente, as figuras adultas que vão servir como mediadoras para o ingresso da criança no mundo institucional. O carinho representa, para a criança, o respeito e a dignidade que lhe são devidos, e o alimento deveria ser completado com o pão do afeto. Nada quer dizer a liberdade para a criança pequena, se ela não encontra, à sua volta, adultos que lhe dêem respaldo nos seus tateios da realidade e lhe assegurem a experiência positiva de estar no mundo. Penso que é essa a dimensão que o Estatuto quer dar à vida familiar. Resguardar o jovem da violência, no âmbito doméstico, significa permitir que cresça com uma experiência positiva da comunidade humana; significa, ainda, que o mundo institucional dos adultos está pronto a dar guarida aos projetos que os jovens têm para o futuro.

Quando falamos do futuro, falamos de escolaridade. O Eca reafirma o direito à escola, pública e gratuita, garantida, formalmente, pela Constituição. A escola é um dos mediadores que, juntamente com a família, vão dar à criança condições para o exercício da cidadania. Esta exige a compreensão plena da cultura e das condições de vida na sociedade da qual se é membro. Na família e na escola a criança deve ter acesso aos bens culturais da humanidade, tão indispensáveis à vida quanto é o alimento para a sua manutenção física. A criança fora da escola é uma das grandes contradições que a sociedade precisa resolver e está vinculada ao problema da pobreza. A criança que não estuda deixa a escola por motivos ligados às condições materiais de sua existência. Quando os jovens podem ir à escola, muitas vezes seu interesse desaparece pela força do desinteresse que a escola manifesta por eles. É um impasse de indiferença mútua. O que se aplica às mãos que cuidam da vida inicial da criança vale para a escola. Sem respeito à dignidade da criança, à sua família, não se faz o aprendizado indispensável das letras e dos números e do pertencimento a grupos sociais, que transcendem o pequeno universo da família. Se a escola não é capaz de reter o interesse da criança, e por fim a própria criança, ela é inadequada. Também a violência na escola não é desconhecida. Ela vai desde os castigos físicos até a estigmatização do aluno e a desqualificação de seu grupo familiar e social. Não se pode, pois, culpabilizar a família pela falta de escolaridade dos jovens. Para que os pais possam favorecer a permanência das crianças na escola, não basta dar à criança a merenda, o leite ou o livro. Sei que estes são pontos favoráveis à ida da criança à escola. Mas é preciso mais do que isso. É preciso amparar as famílias e permitir também o seu acesso à escola, quer em programas conseqüentes de educação de adultos, quer para participar da vida da escola sob a forma de Conselhos escolares ou outros. A escola pública, sobretudo, não deveria ser fechada à comunidade em que recruta seus alunos, recebendo não apenas as crianças mas acolhendo, sempre que possível, os pais não só para fazer críticas ao desempenho escolar dos filhos mas para estabelecer uma verdadeira parceria com a família na promoção do aprendizado. As crianças não nascem com sete anos. Seria preciso que a escola retomasse o processo educativo que os pais iniciaram, acrescendo-o dos elementos próprios à educação formal, sem desqualificar a família que não a possui. Além disso, é necessário ajudá-la a controlar o rendimento escolar das crianças, oferecer reforços nas matérias em que forem mais necessários, rever os conteúdos programáticos, auxiliar os mais imaturos. Poder-se-ia pensar, talvez, numa ajuda financeira condicionada à permanência da criança na escola, como parte do projeto da renda mínima. Mas ainda é pouco. Importante é melhorar a escola e o ensino que oferece. Se fosse possível fazer a criança progredir, incentivar seu desempenho, tanto a escola como a criança sairiam fortalecidas do processo educativo, capazes de gerar, reciprocamente, auto-imagens mais positivas. Também as escolas públicas e seus professores têm sua imagem maculada pela péssima qualidade dos serviços prestados. O bom desempenho dos alunos reforça o bom desempenho da escola, restitui a dignidade que ambos perderam nessa espécie de disputa sem glória em que se vêem metidos. Ambos saem dela vencidos, pois sem a educação o círculo da pobreza e da exclusão se completam, reproduzindo a miséria.

O Eca proíbe terminantemente o trabalho a menores de 14 anos. Neste ponto estamos em face de uma das maiores contradições entre o Eca e a vida real, sem ironia. Primeiro porque o próprio Estado encontra maneiras, para dar resposta a alguns setores produtivos, de legitimar o trabalho infanto-juvenil e não exerce fiscalização sobre pontos críticos que sabidamente exploram a labuta dos jovens. Em segundo lugar porque são dados do próprio governo que demonstram a existência do trabalho dos jovens no Brasil. Existem aproximadamente 60 milhões de crianças e adolescentes no Brasil entre 0 a 17 anos, 44% entre 7 a 14 anos e 18% de 15 a 17 anos. A maior parte vive nas cidades, cerca de 70%. O dado mais assustador é que 53,5% pertencem a famílias cuja renda per capita não ultrapassa meio salário mínimo. Sete milhões e meio de jovens brasileiros trabalham e esta é uma cifra oficial, o que pressupõe a existência, na prática, de mais trabalhadores infantis. Embora a idade média de início do trabalho esteja entre os 12 e os 13 anos, sabe-se que em algumas atividades o começo do trabalho se dá bem antes dos 10 anos. Dados do IBGE - de 1989 - informam que 40% trabalham na agricultura, 22% no setor de serviços, 14% na indústria, 12% no comércio, 4% na construção civil e 8% em outros serviços. O rendimento médio dessas crianças não chega a um salário mínimo.5 As ocupações não ajudam o seu desenvolvimento, quando não o prejudicam seriamente. São, em geral, ocupações desqualificadas que tendem a reduzir a criança e o jovem a mão-de-obra barata. Não há respeito ao ser humano em desenvolvimento e muito menos preocupação com a cidadania e a dignidade pessoal. O trabalho infanto-juvenil parece ser o paradigma da exploração capitalista. Não há qualquer compromisso com o futuro das crianças, pois as ocupações que exercem aproximam-se muito do trabalho forçado, não exigem formação profissional adequada e não solicitam intelectualmente os jovens.

Embora o trabalho infantil caracterize uma das falências mais sombrias na aplicação dos direitos sociais básicos, é preciso compreendê-lo na âmbito da experiência das famílias. No campo ou na cidade o trabalho dos jovens é parte da composição da renda familiar, mas a sua exploração não repercute na sociedade civil, que nem mesmo chega a compreender a extensão do problema, embora tenha repercussões fundamentais para a futura vida dos jovens. No trabalho sofrem mutilações físicas além das mutilações psicológicas. Não podem freqüentar a escola e arcam, muito imaturos, com a responsabilidade do sustento de irmãos menores ou de adultos incapacitados. Estão excluídos em várias dimensões: perdem a despreocupação da infância e do momento de descoberta do mundo nos jogos e brincadeiras; perdem o momento adequado do aprendizado formal, da socialização que a escola propicia, do prazer da sociabilidade e do fortalecimento da consciência do eu e da diferença do outro; perdem a possibilidade do desenvolvimento físico que os torne aptos a enfrentar o futuro plenamente capacitados; aprendem desde cedo a humilhação do trabalho desqualificado, quando não degradante; descobrem o valor do salário de modo negativo, ou porque não são diretamente remunerados - no campo a família é que é contratada - ou porque são explorados por adultos inescrupulosos, ou por empresas e patrões interessados em garantir o uso da mão-de-obra barata; chegam rápido a uma espécie de maturidade perversa, feita de exigências maiores do que podem dar; ganham, com a falta de preparação adequada, um futuro de reprodução da pobreza e da desigualdade, ou melhor, perpetuam, em seus filhos, a sobrecarga de trabalho com que se viram assoberbados desde pequenos. Como afirma José de Souza Martins são adultos nos corpos de crianças.6 Não há projeto de vida para a criança pobre que é obrigada a trabalhar muito cedo e sob condições extremamente desgastantes, pois que não é só o esforço físico a afetá-la, mas a situação geral de sua vida, apertada entre o trabalho e a impossibilidade de manter de outro modo a sua sobrevivência. A escola e a experiência de uma vida sem trabalho são parte daqueles sonhos que a criança nem se permite sonhar.

Mais uma vez é preciso não culpabilizar as famílias que levam as crianças a trabalhar. Certamente, na maioria dos casos, não o fazem porque desejam isso para a criança, mas porque constatam que a sobrevivência é impossível sem a sua contribuição. O trabalho infantil participa com 1/3 do orçamento familiar, quando não representa a sua totalidade.

O protagonista da pobreza é um protagonista coletivo. Não são crian-ças isoladas nem adultos isolados que vivem a falta dos meios mais essenciais de vida. A pobreza é uma experiência familiar. Adultos põem os filhos para trabalhar porque só conheceram essa realidade em sua infância. A experiência de uma vida sem saída, a não ser pelo trabalho, marcou as famílias desde as suas origens, predominantemente rurais. Adultos pobres e iletrados são, de modo geral, filhos de adultos pobres e iletrados, assim como adultos violentos podem ser frutos da experiência de pobreza e exploração violentadoras que viveram na infância e que se propaga como fogo e a todos atinge.

O trabalho duro e sem esperança é vivido pela criança como destino, como a continuação de uma sina que atinge o grupo familiar e todos os pobres igualmente. Sem escolaridade, marcado no corpo e na alma pelo esforço do trabalho precoce, não é por acaso que crianças e jovens se deixam levar pelo sucesso fugaz que lhes oferece o crime organizado, pelo pequeno tráfico das drogas de ganho imediato. Entrados nesse caminho a vida é curta e sem saída.

Quando, tangidas ainda pela adversidade de que a pobreza é pródiga, fogem para as ruas, não conseguem aí escapar do infortúnio. A violência de que são vítimas as crianças e os adolescentes no espaço público é, em si, um capítulo que está lentamente a ser escrito, depois do notório massacre da Candelária.7

Resumindo, embora o Brasil possua uma das mais avançadas legislações de proteção aos jovens, há muito trabalho a ser feito para torná-la efetiva. Convivemos com o descaso dos governantes pela vida dos jovens e com o abuso das autoridades constituídas, violando os direitos mais elementares que o Eca garante às crianças e aos adolescentes. A mídia burila suas invectivas, criminaliza os jovens das camadas populares, alcunhando-os de menores e estigmatiza as classes subalternas chamando-as de carentes. A mídia, porém, apenas retrata as representações mais presentes no imaginário da população. Os fóruns nacionais de discussão dos Direitos Humanos ainda estão muito longe de conseguirem tornar efetivas as disposições e protocolos internacionais que o governo federal firmou nos últimos anos.

O que pode a Universidade fazer para contribuir com a transformação da letra da lei em instrumento eficaz de promoção dos direitos das crianças e dos adolescentes?

Tendo vivido a Universidade em 1968, de comissões paritárias e intensa movimentação estudantil, que exigia que os meios acadêmicos não se afastassem da realidade sócio-política e econômica do mundo e, de certa forma, com nostalgia pelo profundo envolvimento, que então se propunha, da Universidade com os problemas nacionais e com a transformação da sociedade, desejo que minhas reflexões tenham esse ponto de partida. Penso que a Universidade pode atuar em pelo menos dois níveis. Se fosse possível ir um pouco além da técnica, valorizar e dar espaço maior a discussões e debates como o que estamos realizando aqui hoje, sobre questões de cunho social mais amplo; se fosse possível comprometer todos os alunos na realização de trabalhos de extensão à procura de soluções para problemas que afetam a população do país; se fosse possível quebrar as barreiras que separam as especialidades, tornando o conhecimento um trabalho de equipe; se fosse possível liberar a universidade de compromissos nem sempre muito claros com as empresas privadas e com a classe dirigente; se, por fim, o futuro engenheiro, assim como o médico e todos os outros profissionais recebessem, no conjunto das disciplinas que compõem os cursos, noções básicas de direitos humanos; se tudo isso fosse possível estaríamos mais próximos de proporcionar a um número maior de estudantes a reflexão sobre instrumentos tão fundamentais para a cidadania, como o Eca. A reflexão, o debate e o conhecimento podem ser um primeiro momento para a ação.

O segundo nível de atuação da Universidade pode ser bem exemplificado pelo curso de Psicologia. Este vem ganhando, com o tempo, um caráter técnico. Os alunos aprendem uma infinidade de técnicas, desde os testes, que ainda têm um largo espaço nos currículos, até variadas formas de terapias e de intervenção. Até mesmo o conhecimento se congela num ritual de técnicas. Tem-se a impressão de que um currículo de Psicologia é um desajeitado arranjo de coisas que nem sempre casam umas com as outras. Não há tempo ou espaço para questões que não sejam estritamente psi. Nada de errado nisso se estamos formando psicólogos. Porém, trabalhar com a subjetividade não é como tratar a dor de barriga (e mesmo esta não é tão simples...). A subjetividade é histórica e social. Isto significa não só que estamos diante de seres singulares, mas que estes seres singulares também não são iguais social e culturalmente. A inegável expansão da Psicologia para áreas que envolvem o trabalho com setores mais amplos da sociedade, como o trabalho em escolas públicas, centros de saúde, hospitais, no poder judiciário em varas da infância e da juventude, e tantas outras, exige uma urgente reformulação dos cursos. Tomemos os aspectos a que me referi, mais especialmente da família, da escola e do trabalho com suas referências à pobreza e à violência.

Tarefa urgente nos cursos de Psicologia é não partir do pressuposto de que as famílas pobres são indignas, denunciando e tentando reverter o abuso cometido contra elas sempre que são transformadas em responsáveis pela violência, pela criminalidade, e até, no extremo, pelos desajustes do país. É preciso dizer e tornar a dizer que a famosa "família desorganizada ou desestruturada" é um estereótipo que culpabiliza as vítimas. A aplicação indiscriminada de modelos familiares normativos a grupos familiares que são divergentes deles pode causar muito mal, acentuando as diferenças e transformando-as em estigmas. A mulher que cuida sozinha de seus filhos não é um monstro. Ela e a criança são uma família. Este é o entendimento do Eca e é preciso fazê-lo chegar aos alunos na universidade. Um bom psicólogo deve começar seu trabalho pelo respeito ao cliente e à sua dignidade. Respeitar significa aplicar-se na compreensão das diversidades e no acatamento das divergências.

Tarefa igualmente importante é fazer chegar às escolas de Psicologia uma saudável desconfiança do valor dos testes, quer os de inteligência e nível mental, quer os de diagnóstico de personalidade. Deveria fazer parte do ensino levar os alunos a compreenderem a qualidade do poder que a "especialização" lhes confere: encerrar no inferno da Febem um jovem, negar uma adoção ou facilitar a " guarda" de crianças, afastar filhos de pais, lançar uma criança na carreira, sem esperança, das classes especiais, contribuir para a morte civil da criança ou jovem contraventor.

É preciso introduzir o problema do trabalho dos jovens, quando se fala de orientação vocacional ou profissional. Tornar a Universidade menos auto-centrada, pensando o trabalho e a profissão também para aqueles que não podem escolher e nunca irão ocupar os seus bancos.

Enfim, ensinar responsabilidade social junto com as técnicas, incentivar a criatividade dos alunos não os sobrecarregando com disciplinas excessivas. Transformar a Ética num princípio ativo, devolvendo aos alunos a humildade necessária aos profissionais que trabalham face a face com a alteridade.

Enquanto um direito formal não se transforma em direito reconhecido e intersubjetivamente compartilhado, tem-se que lutar por ele, com as armas que a Universidade pode nos dar: consciência e conhecimento. No caso do Eca tem-se que incluir necessariamente, não só a guerra contra a pobreza e a violência senão também contra as formas mais insidiosas de discriminação como o preconceito, o estigma e a exclusão. Mas vale a pena.

Mello, S. L. (1999). The Child and the Adolescent Statute: Is it Possible to Become a Psychological Reality? Psicologia USP, 10 (2), 139-151.

Abstract: The article describes the effective application of an advanced legislation, as the Child and Adolescent Statute, considering the family, school and work issues. It also defends a broader involvement of the university courses with the statute acquaintance and enforcement, favoring its aplication on the professional routine.

Index terms: Child and Adolescent Statute. Family. Work. School. University.

2 Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia. Av. Prof. Mello Moraes, 1721, São Paulo, SP – CEP 05508-900. E-mail: sldmello@usp.br

3 Weil (1979) também vê como condição para combater o desenraizamento operário a posse "de uma casa, de um canto de terra e de uma máquina ..." (p.354).

4 Os dados sobre São Paulo são assustadores: "Entre seus 11,3 milhões de habitantes, 61,4% (7 milhões) vivem em favelas e cortiços, muitos em terrenos com situação irregular" (Pinheiro & Adorno, 1993, p. 112).

5 Dados do PNAD, 1990.

Referências bibliográficas

  • Arendt, H. (1981). A condição humana (R. Raposo, trad.). Rio de Janeiro: Forense-Universitária / Salamandra, São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo.
  • Castro, M. M. P. (s.d.). Vidas sem valor: Um estudo sobre os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições de Segurança e Justiça (São Paulo 1990-1995). Trabalho mimeografado. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Martins, J. S. (1991). Introdução. In J. S. Martins (Coord.), O Massacre dos inocentes: A criança sem infância no Brasil (pp. 9-18). São Paulo: Hucitec.
  • Oliveira, J. (Org.). (1995). Estatuto da criança e do adolescente: Lei n. 8069, de 13 de julho de 1990 (5a. ed.). São Paulo: Saraiva.
  • Pinheiro, P. S., & Adorno, S. (1993). Violência contra crianças e adolescentes, violência social e estado de direito. São Paulo em Perspectiva, 7 (1), 106-117.
  • Weil, S. (1979). A condição operária e outros estudos sobre a opressão (T. G. G. Langlada, trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra.
  • 1
    Texto apresentado no Simpósio
    Estatuto da Criança e do Adolescente: o que o Psicólogo tem a ver com isso? Faculdade de Psicologia PUC-SP e Instituto de Psicologia USP, São Paulo, 1996.
  • 6
    "Criança sem infância não é sinônimo de criança abandonada. É noção que a esta inclui, mas a ela não se limita. Abrange, também, multidões de crianças que têm lar e família, mas não têm infância. É de outra natureza a carência que sofrem e elas próprias o dizem. Algumas carecem de amor, cujas famílias, às vezes mutiladas, sucumbem às adversidades de um mercado de trabalho excludente, ao trabalho incerto, ao salário insuficiente, à brutalização da chamada mão-de-obra sobrante. Outras carecem de justiça. Seus supostos direitos estão sendo negados. E elas sabem disso. Todas carecem de infância, pois nelas já foi produzido à força o adulto precoce, a vítima precoce, o réu precoce" (Martins, 1991, pp. 12-13).
  • 7
    Ver, a respeito, o excelente trabalho da pesquisadora Miriam Mesquita Pugliese de Castro, do Núcleo de Estudos da Violência da USP, que há longos anos trabalha com assassinatos de crianças e adolescentes. Em seu trabalho mais recente, intitulado
    Vidas sem valor: Um estudo
    sobre os homicídios de crianças e adolescentes e a atuação das instituições de Segurança e Justiça (
    São Paulo 1990-1995), com dados cuidadosamente coletados e analisados, ela sugere duas teses: que se pode configurar, no Brasil, uma situação próxima do extermínio, no que tange às mortes de jovens; que se pode configurar, também, a quase absoluta impunidade dos matadores.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Ago 2000
    • Data do Fascículo
      1999
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