Resumos
Crítica à designação de "projetivo" referente aos fenômenos implicados no material do TAT. Procurou-se mostrar que tal designação levou historicamente o teste a ser amarrado às teorias psicanalíticas, sem que nada, nos fenômenos registrados, obrigasse a tal leitura. Ao contrário, a nosso ver, a maior parte da problemática de seu uso em pesquisa e da possibilidade de um consenso geral referente à sua interpretação, deve-se aos problemas inerentes à próprias teorias psicanalíticas. Sugerimos então sua desvinculação desse termo que o remete a um sistema teórico fechado que como tal, impede a verdadeira observação do material obtido pelo teste. Essa observação dos fenômenos permitiria a superação dos impasses e consequentemente a ampliação de seu uso, já que o consenso seria procurado no material, para além de qualquer postura teórica prévia do observador.
Teste de Apercepção Temática; Projeção; Teoria psicanalítica; Técnicas projetivas; Psicologia clínica; Cognição
It criticises the "projective" designation, which refers itself to implicit phenomena on TAT material. It was intended to show that the "projective" led, in historical means, the test to be tied up to psychoanalytic theories, though nothing on those phenomena obliged this interpretation to be made. On the contrary, the largest part from the problematical of its research using and from the possibility of a general consensus, concerning its interpretation, are due to inherent problems of psychoanalysis theories themselves. We suggest, then, its disconnection from this term, which prevents a real remark of the material obtained by the test. The phenomena observation would allow the impasses overcoming and, consequently, the enlargement of its use, since consensus would be searched in the material, beyond any previous theoretical posture from the observer.
Thematic Apperception Test; Projection; Psychoanalytic theory; Projective techniques; Clinical psychology; Cognition
A DESVINCULAÇÃO DO TAT DO CONCEITO DE "PROJEÇÃO" E A AMPLIAÇÃO DE SEU USO
Vera Stela Telles1
Instituto de Psicologia USP
Crítica à designação de "projetivo" referente aos fenômenos implicados no material do TAT. Procurou-se mostrar que tal designação levou historicamente o teste a ser amarrado às teorias psicanalíticas, sem que nada, nos fenômenos registrados, obrigasse a tal leitura. Ao contrário, a nosso ver, a maior parte da problemática de seu uso em pesquisa e da possibilidade de um consenso geral referente à sua interpretação, deve-se aos problemas inerentes à próprias teorias psicanalíticas. Sugerimos então sua desvinculação desse termo que o remete a um sistema teórico fechado que como tal, impede a verdadeira observação do material obtido pelo teste. Essa observação dos fenômenos permitiria a superação dos impasses e consequentemente a ampliação de seu uso, já que o consenso seria procurado no material, para além de qualquer postura teórica prévia do observador.
Descritores: Teste de Apercepção Temática. Projeção (Mecanismo de defesa). Teoria psicanalítica. Técnicas projetivas. Psicologia clínica. Cognição.
O problema dos assim chamados testes projetivos começa na própria definição de "projetivo." Esse conceito carrrega consigo o sentido subjacente de que o fenômeno, a ser pesquisado, de certo modo já é previamente "conhecido" - ele pertence e é circunscrito dentro de uma dimensão "projetiva" (qualquer que seja o sentido dado à palavra). Essa forma de nomear implica então em uma específica posição frente ao fenômeno. Aliás, é precisamente à imprecisão do termo projetivo que os autores atribuem os erros dos "métodos projetivos" (Cattell, 1951 & Rappaport, 1952, citados por Imbasciati & Ghilardi, 1994, p. 40). Também Shentoub (1990) na sua introdução afirma: "Os testes ditos projetivos, seriam melhor nomeados de provas de personalidade, desde que eles procedessem de mecanismos que ultrapassam o quadro da projeção, mesmo na concepção mais ampla do termo ..." (p. 1, grifos nossos).
A história do TAT (Teste de Apercepção Temática) poderia ser concebida como uma démarche das mais complicadas, tentando resolver um impasse que, pensamos ter muito mais a ver com essa designação intempestiva do que com problemas suscitados pelos fenômenos psicológicos implicados na tarefa. As mais diferentes formas de avaliação e teorização do teste tentam, no fim, explicar a "projeção" (e o "inconsciente"); suas fundamentações teóricas deixam muito a desejar2 - tanto em relação à captação do fenômeno quanto ao consenso sobre sua explicação e sua metodologia. O problema é de tal magnitude que alguns autores põem em dúvida se existe algo neste teste compatível com a função de instrumento diagnóstico (Anderson, & Anderson, 1967). Quanto à sua utilização em pesquisas, o impasse parece insolúvel.
Voltando às suas origens (1935), apesar de Henry Murray ter recorrido à teoria psicanalítica clássica para descrever a estrutura de personalidade do indivíduo achava "... que somente a psicanálise não seria suficiente para fornecer esquemas facilmente utilizáveis na ... praxis da psicologia; quis então integrá-la num sistema teórico que sublinhasse os problemas de adaptação e as influências ambientais" ((Imbasciati & Ghilardi, 1994, pp. 15-16). Tenta assim (segundo os autores) integrar a clínica e a psicologia experimental. Sua linha teórica é basicamente fundamentada nas necessidades do sujeito e nas pressões ambientais. Necessidades que incluem uma força determinada pelos processos internos e, mais freqüentemente, devidos às interferências ambientais "organizadoras de toda atividade do indivíduo em vista de uma modificação de uma situação tida como insatisfatória" (Imbasciati & Ghilard, 1994, pp. 15-16).
A idéia que fundamenta essa posição é a de adaptação e centraliza-se na problemática de harmonizar o interior do sujeito e o exterior, representado pelo seu ambiente. Para descrever as alterações perceptivas introduzidas pelo sujeito, Murray usa o termo psicológico de apercepção (Imbasciati & Ghilard, 1994, p. 34).3
Os trabalhos da Gestalt estabelecendo as leis da percepção também preocupam-se em dar sentido às distorções perceptivas; nestas distorções a Gestalt localiza "um processo dinâmico devido às leis da "pregnância" e do conceito de transponibilidade."
As imagens percebidas no TAT seriam então "antes de mais nada uma gestalt, formada desde a memória que fornece a imagem composta real das figuras concretas que lhes correspondem, e das imagens estímulos fornecidos pelo teste segundo uma organização perceptiva ótima" (Ancona, s. d., grifos nossos).
Essa configuração perceptiva não é um simples resultado de uma composição, mas a percepção é gestaltizada com os componentes afetivos que estão presentes no sujeito:
Estes últimos são responsáveis ... por um processo de distorção de tipo gestáltico que procura a organização mais simples possível; no nível desta gestalt superior, a organização se exprime como a manutenção do equilíbrio psíquico obtido com a exclusão subjetiva da dificuldade da realidade; o que perturba é evitado enquanto não é percebido, e o que não é percebido não existe.4 (Ancona, s.d., grifos nossos)
O eu aprende depressa o modo mais econômico de manter constante a própria organização deformando assim as percepções exteriores ..." por isso Bellak tem razão em dizer que "a organização da personalidade constitui um sistema de controles e de balanceamentos, de modo a absorver cada novo estímulo com o mínimo de mudanças" e Ancona acrescenta: "A percepção do mundo exterior torna-se por isso mesmo necessariamente projetiva" (Ancona, s.d., p. 8, grifos nossos).
Mais adiante o autor acrescenta:
... o modo mais correto de descrever essa situação é como fez Murray chamando apercepção. A apercepção é de fato uma distorção perceptiva porque através dela a nova experiência é assimilada e transformada segundo traços da experiência passada; e gera a projeção, segundo uma transferência de aprendizagem.5 (Ancona, s.d.)
Mais ainda; este modo de ver as coisas permite considerar os fatos de percepção como aqueles descritos pela psicanálise como "mecanismo de defesa," somente substituindo a noção de pregnância pela de defesa" Há aqui uma contradição flagrante: o autor está explicando a aprendizagem; parece-nos, então, absurdo falar em mecanismo de defesa; mais ainda, o termo projeção aqui descrito (e o único que poderia ser relativo à produção do TAT) refere-se ao conceito "normal" de projeção, não àquele advindo de mecanismos de defesa. Desse modo a apercepção mencionada nada tem a ver com a projeção como mecanismo de defesa. Faz-se então uma passagem indevida entre dois termos iguais mas de sentidos completamente diferentes (sempre dentro da própria psicanálise). Como se verá mais adiante, o único "projetivo"- (segundo autores de orientação psicanalítica) - pertinente à produção do sujeito no TAT seria aquele que precisamente nada tem a ver com mecanismo de defesa. Portanto nada, a não ser a coincidência do nome, justifica que se identifiquem as alterações perceptivas ou aperceptivas, com os mecanismos de defesa descritos pela psicanálise. Essa concepção é improcedente mesmo dentro da avaliação orientada psicanaliticamente.
Além disso, é absurdo fazer a substituição do termo pregnância por defesa. Cremos que absolutamente não se trata de uma mera substituição de conceitos - cada qual provém e explicita um contexto teórico completamente diferente. O problema, a nosso ver, é muito mais profundo; a substituição de pregnância por mecanismo de defesa, apercepção por projeção, implica uma drástica mudança do referencial teórico, onde essas palavras têm um sentido preciso, designando fenômenos diferentes, envolvendo, portanto, universos teóricos específicos, implicando conseqüentemente mudanças de perspectivas fundamentais em relação à pesquisa e sentido dos fenômenos.6 Na história do TAT essa substituição de palavras permitiu que se fizesse uma ponte apressada e, a nosso ver, de todo instável entre a proposta primitiva de Murray e as teorias psicanalíticas. Cremos que essa passagem acabou por afastar definitivamente o teste da possibilidade das pesquisas de psicologia em geral e determinou as dificuldades nas quais os autores até hoje debatem-se para resolver o problema.
A partir da identificação inoportuna desses conceitos, os escritos sobre o TAT têm de preocupar-se em definir o sentido de projeção (além de outros) pertinente à natureza do que é observado na produção do sujeito. Assim, por exemplo, Shentoub (citado por Brelet, 1986) analisa e critica longamente um artigo de Laplanche e Pontalis, (1963) sobre o sentido de projeção em Freud, tentando encontrar qual deles poderia ser usado para explicar a produção no TAT. Contra a decisão dos autores de priorizar o termo que em Freud é explicitado como mecanismo de defesa (advindo da situação paranóide), ela cita Freud entendendo a projeção como um mecanismo "normal," que para ele explicaria a superstição, o anímismo e a mitologia (Brelet, 1986, pp. 71-72).
Além de Shentoub e Brelet secundando-a, temos já anteriormente Bellak em 1944, apontando esse sentido mais geral da palavra projeção em Freud: "um mecanismo perceptivo devido ao qual a percepção atual é recebida e estruturada em relação e dependência dos traços mnêmicos de todos os fatos até agora percebidos" (Imbasciati & Ghilardi, 1994, pp. 40-41). Franck (1939) descreve o fenômeno como o "... processo com o qual o sujeito organiza e estrutura a sua experiência vital e, especificamente, qualquer material não estruturado que perceba, projetando nele a sua experiência interior e a própria estrutura da sua personalidade ..." (grifos nossos).
Nessa teoria já existe o conceito de projeção que será depois desen-volvido e elaborado por Bellak" (Imbasciati & Tirelli, s.d., pp. 9-10, 18). Descrito assim, o conceito de projeção ganha tal amplitude que deixou de ter sentido na descrição e ainda menos na explicação do processo. Para usá-lo em psicologia com esta acepção, teria que fundamentar as razões de sua escolha. Como explicação da aprendizagem, por exemplo, por que priorizar esse enfoque em detrimento das descobertas da própria Gestalt e, mais modernamente, frente a posições como as da Psicologia Genética de Piaget (que explica o mesmo fenômeno em termos de assimilação e acomodação)?
O conceito de projeção envolve, na verdade, referências "subter-râneas" muito mais profundas e complexas que não poderiam ser ignoradas na escolha de um tal termo. É só superficialmente que ele "explica" a percepção e a apercepção do indivíduo. Dentro do próprio assinalamento de Freud (Imbasciati & Guilardi, 1994, p. 49)7 sobre a projeção "normal" está implícita a estrutura geral do indivíduo: antes de mais nada sua forma sensório-perceptiva de informar a realidade à qual ele compartilha com congêneres de sua espécie (e portanto a própria definição do que é estímulo está assim problematizada, Uexküll, s.d.); toda problemática do aprendizado (que é questionada inclusive com relação às teorias psicanalíticas atuais) (Imbasciati, 1990); todo estudo da memória e da própria percepção (estudos modernos sobre senso-percepção, por exemplo), enfim toda relação entre "consciente" e "inconsciente" está em jogo (atualmente preocupa-se mais com a possibilidade da consciência do que com o próprio "inconsciente") (Searle, 1998).
Em poucas palavras, o conceito de projeção nessa ampla acepção, envolve, no limite, praticamente todos os problemas que a ciência psicológica tenta explicar. Ainda mais: fora do campo específico da psicologia, ela arrasta consigo toda problemática filosófica de teoria do conhecimento. Como vemos, ela é uma palavra no mínimo perigosa e pretensiosa no atual estágio da psicologia.
Uma vez estabelecida essa conexão com a psicanálise, a história do TAT será um verdadeiro roteiro de "correções" e "ajustes" que acompanha problemas e mudanças teóricas da psicanálise.8 Passa-se assim da explicação freudiana clássica para uma centrada na psicologia do ego; considera-se o teste de um ponto de vista de conteúdo depois passa-se a priorizar a forma, etc., até a escola francesa (centralizada nos estudos de Shentoub, de 1955 a 1971) (Shentoub, 1990, pp. 15-16). Esta resume o "drama," começando por considerações formais das histórias (modalidades do discurso, histórias banais, mecanismo de defesa etc.) seguindo-se uma focalização onde ao papel do eu e das funções conscientes e inconscientes no ato de organização dos estímulos tem prioridade até que em 1967 chega-se à conclusão de que uma teoria do TAT deveria:
... referir-se não aos elementos esparços das teorias psicanalíticas, mas ao corpo metapsicológico freudiano, tomado em seu conjunto. Deve-se, então, levar em consideração tanto a Primeira como a Segunda tópica (inconscientemente, pré-consciente; id, ego e super-ego) e os três pontos de vista clássicos: dinâmico, econômico e tópico sem entretanto confundir situação psicanalítica e situação TAT, associações livres obtidas na cura e fantasias espontâneas dadas no TAT. (Shentoub, 1990, p. 16, grifos nossos)
Assim, a história das interpretações do TAT parece apontar continuamente para reconhecimentos da insuficiência das teorias psicana-líticas na abordagem dos fenômenos que ocorrem no TAT (critica-se que seja interpretado como sonho, põe-se em dúvida o que seja fantasia no TAT, se as pranchas comportam ou não a teoria do conteúdo latente e manifesto, etc.). Uma vez atado às teorias psicanalíticas o teste perdeu uma preciosa autonomia teórica que poderia proporcionar-lhe correlações altamente criativas dentro do estudo do comportamento em geral. A designação de projetivo obriga o pesquisador, de início, partir de um referencial teórico básico, do qual nem sempre tem consciência e que aplica sem antever as conseqüências. Toma-o como um apriori inquestionável (no mais das vezes por inconsciência de que se trata de uma teoria); apoia-se nele e dele conclui como se tivesse um fundamento verdadeiro, e não como uma possível interpretação dos dados.
Enquanto isso, aparecem trabalhos em outras áreas, como na neuro-fisiologia, no cognitivismo moderno, estudos de perceptologia precoce e o próprio - e antigo - estudo de Piaget sobre a constituição evolutiva da inteligência, etc., que deveriam, no mínimo, serem levados em conta numa teorização desse gênero. Infelizmente, fechada em seu sistema teórico, a psicanálise não pôde considerar descobertas que necessariamente deveriam levar a reformulações conceituais em seu campo de estudo. Quando chegam a tomar consciência das novidades (exemplo a senso-percepção precoce) que, se "levadas a sério," necessariamente determinariam reformulações teóricas, (por exemplo, em relação à teoria kleiniana) simplesmente englobam tais achados justapondo-os ao seu sistema teórico, (e até usando-os para "confirmar" seus pontos de vista), quando na verdade exigiriam revisões teóricas essenciais.9
Assim, os vários impasses e defeitos do TAT parecem advir mais de uma herança do enfoque psicanalítico do que serem realmente devidos aos fenômenos que o teste elicia. A possibilidade de sua utilização em pesquisa, a construção de uma teoria que seja fruto do próprio material do teste, a constituição de uma metodologia geral frente ao seu uso, não nos parece ser algo que remeta necessariamente para além das características dos fenômenos que se encontram presentes no teste. Sua problemática parece ter raízes em determinadas propostas teóricas prévias, elas próprias eivadas de contradições.
Gostaríamos, entretanto, de assinalar que essas observações críticas não se referem aos achados observacionais derivados da experiência clínica. Os clínicos experientes sabem usar bem o teste apesar das teorias, diríamos; sua prática acaba por neutralizar os efeitos negativos e contraditórios das mesmas. O problema aparece em toda sua gravidade quando se trata de transmitir o que a experiência mais do que as teorias lhes ensinou. Alertar para uma crítica epistemológica, e sugerir a volta aos fenômenos, à observação seria, a nosso ver, ampliar o uso do teste, permitindo sua utilização em pesquisa por qualquer psicólogo, independentemente de suas posições teóricas prévias. Essa postura frente ao teste traria uma visão mais abrangente dos fenômenos implicados, e, eventualmente, uma fundamentação teórica mais pertinente.
Nossa postura frente ao TAT
Um tanto casualmente, devido ao público a que se dirigia nosso trabalho clínico - primeiro psiquiatras, depois alunos de psicologia - tivemos de abandonar uma avaliação do teste em termos psicanalíticos e nos concentrar em uma análise formal do texto do sujeito. Afim de evitar "projeções" de nossa parte, tentávamos avaliar sua produção sem qualquer conhecimento prévio da anamnese do indivíduo (era encarregada da supervisão, e só tinha acesso ao material do teste que os supervisionados traziam para discutirmos). Só conhecíamos o sexo e a idade dos sujeitos. Para nossa surpresa tal avaliação "selvagem" revelou-se capaz de permitir uma idéia bastante acurada do modo de funcionamento dos sujeitos e, muitas vezes, até conseguíamos prever as queixas e dados significativos de sua história de vida. Ficava muito claro, a partir do texto, o grau de possíveis desadaptações do indivíduo, a idéia que fazia de si próprio e sua relação mais ou menos objetiva com a realidade. A partir do recorte (Uexküll, s.d.) que fazia da prancha, podíamos fazer previsões sobre que áreas de sua vida estariam prejudicadas em seu funcionamento. Desde essa época (1970 dentro da Psiquiatria do HC) até hoje (desde 1971 lecionando o teste no Instituto de Psicologia da USP) estamos tentando ampliar nossa observação dessa performance do sujeito, tendo oportunidade muitas vezes de acompanhar e comparar no trabalho de Psicoterapia, a validade dessas previsões.
Concomitantemente, nosso trabalho em psicoterapia fundamentada no referencial psicanalítico sofreu modificações. Insatisfações concernentes à prática e questionamentos teóricos vinham intensificando-se com a experiência. Amparada em alguns autores (psicanalistas inclusive), começamos a encarar nossa prática terapêutica de um modo bastante diverso. Através de suas críticas epistemológicas às teorias psicanalíticas eles ofereciam um modelo de possível superação dos impasses com que nos deparávamos em cada momento de nossa prática.10Atualmente trabalhamos em psicoterapia sem recorrer às teorias psicanalíticas; baseando nossa prática na observação do paciente, tentamos, a partir da forma com a qual ele estrutura e dá sentido às suas experiências, encontrar características que nos ajudem a posicioná-lo frente a um momento do seu desenvolvimento cognitivo.11 Essa observação nos proporciona a estrutura - estruturadora que logicamente permitiria fazer aquele específico recorte de si e da realidade, e ter, conseqüentemente, os afetos e as ações pertinentes a ele. A partir da identificação dessa forma, tentamos rastrear em sua história (a maioria das vezes deduzida de seu comportamento) o sentido que ele pôde formar naquela etapa da vida e que atualmente, como memória alucinada (Ferrão) determina a construção de sentidos obsoletos. Quando essas significações precoces podem ser inferidas, elas são transformadas em representações (sentido piagetiano do termo) que a mente atual do paciente pode compreender; feita essa decodificação do alucinado em termos compreensíveis para a atualidade de sua mente, ele pode vir a perceber a não adequação daquele antigo sentido (que não é patológico a nosso ver, mas sim desadaptativo porque obedece a uma lógica superada).12
Essa possibilidade crítica das teorias psicanalíticas e a prática terapêutica onde tínhamos oportunidade de verificar um novo modo de conceber teoricamente a "patologia" e a ação terapêutica, nos deu subsídios para melhor fundamentar o que chamávamos primitivamente de análise de texto das histórias do TAT.
Passamos então, com relação ao TAT, a centralizar basicamente nosso parâmetro de comparação na noção biológica de adaptação. Dentro desse quadro referencial lemos o TAT como um problema, uma tarefa que o indivíduo tem de dar conta. O tipo de instrução dada a ele, descritivamente, implica que se atenha à figura, e ao mesmo tempo construa subjetivamente uma hipótese que dê sentido à cena. Tal exigência vai obrigá-lo a observar e partir da realidade ao mesmo tempo que deve recorrer a si próprio, aos recursos que tenha (ou pensa ter); àquilo que ele de fato ou imaginariamente pensa ser, enfim da identidade através da qual realmente funciona, para estabelecer uma relação significativa entre os elementos figurativos da prancha. Assim sendo, consideramos os elementos da prancha, somados às instruções fornecidas ao sujeito como sendo a "realidade:" o dado "fixo" que limita o indivíduo a circunstâncias dadas (o externo) por um lado, enquanto por outro o libera e incentiva a construir a partir de sua subjetividade (o interno) um sentido para ela. Assim, a proposta requer que ele, como em qualquer situação de sua vida, funcione, resolva a tarefa dentro do quadro restrito da realidade (a figuratividade da prancha mais instruções) usando sua própria organização. Desse modo, seja o que for que ocorra na sua interioridade, teremos na sua solução do problema, observacionalmente falando, a explicitação do instrumental utilizado. A comparação entre a prancha "vista" (seus elementos) e a prancha realmente "contada" nos apresenta de imediato, pela simples observação, o modo pessoal desse indivíduo recortar a realidade, e, portanto, também imediatamente, a expectativa (real ou não) que possui sobre si próprio para dar conta do problema adaptativo (lembramos aqui que Piaget mostra em termos simplesmente cognitivos que a constituição do eu e do mundo são dialeticamente construídas; são elementos complementares, lógica e reciprocamente constitutivas, Piaget, 1975).
Acreditamos que esse modo simples de conceber a tarefa TAT abrange tudo o que o indivíduo é suas estruturas gerais de comportamento, sua experiência, sua história, os sentidos alucinados que veio a construir durante seu desenvolvimento, sua relação, consigo e com o mundo externo, enfim sua própria identidade. E isso, independente de sabermos que mecanismos poderiam estar "por trás" dessa ou daquela escolha feita (a ciência ainda não pode nos oferecer as "causas últimas" dos mesmos). Todo seu "inconsciente" (tudo aquilo que ignora porque é com tal estrutura estruturadora que apreende, informa a experiência) está aí e à mostra nos seus resultados, não precisamos sair à cata do "inefável" (em ciência devemos construir teorias a partir do observado). Tal "inconsciente," por ser aquilo com que categoriza as suas experiências, não pode logicamente ser-lhe consciente (Kant diz que são exatamente as categorias de nossa sensibilidade). Dado a exigüidade de conhecimentos objetivamente fundamentados sobre o mental, cremos ser de extrema importância nos atermos ao observado, fazendo realmente uma ciência do comportamento, evitando assim teorias precoces que enganosamente oferecem pseudos saberes.
Dentro dessa perspectiva, vemos o sujeito aparecer nas suas histórias como uma organização total; ele está inteiro naquela específica forma de recortar a realidade aliás, nem pode construir qualquer coisa com algo que não seja ele; e é por isso, e não por "projeção," que podemos inferir as características que intervieram e determinam seu processo de apreensão da realidade. Tais características serão a causa lógica, formal, daquele conseqüente recorde. Em suas histórias temos como dado de observação13 as causas formais que fundamentam e justificam logicamente o tipo de escolha que foi possível ao sujeito. A análise da pertinência ou não desse enfoque (segundo o que se espera de acordo com o desenvolvimento cognitivo do indivíduo) nos dá imediatamente as causas formais de suas possibilidades adaptativas.
Comparando-se, então, a prancha "vista," com a inferida de sua história temos imediatamente a visão de sua forma de "perceber" a realidade, se teve ou não de "transformá-la," se pôde ou não dar conta da tarefa dentro do enquadre proposto. Em outros termos, se pôde ou não, partindo do real tal como as circunstâncias que a vida lhe apresenta- posicionar-se adaptativa e criativamente a ele.
Sua história nesse sentido é a "descrição" de "caminhos" que ele concebeu durante seu desenvolvimento para adaptar-se. Independentemente de como e porque construiu tais apriores, eles estão necessariamente presentes quando se pede ao sujeito para resolver o problema proposto pela prancha (entendida aqui, para além de seu conteúdo temático, como expressão de uma solução pessoal a um problema previamente dado). Por mais "conflitos" que surjam na sua história, o que temos de seguro e observável é que a história, antes de mais nada, é dele, é sua produção, e portanto, sua expressão. Todo problema do observador reside em poder ver o que de fato está lá.
Nesta perspectiva, as possíveis deformações introduzidas no real não vão ser concebidas como um ato "voluntariamente inconsciente" que o indivíduo realizaria para não ver o que não deseja saber, mas como uma demonstração de que com aquela organização utilizada na apreensão desse real, a partir daquela particular estrutura estruturadora de suas experiências ele, na verdade, não pode ver de outro modo. Não seria então por motivos "afetivos" que o indivíduo deturparia o real, mas por motivos da especifica organização cognitiva (sentido que não pressupõe dicotomia entre afeto x cognição) que está funcionando naquela apreensão. É devido ao tipo de "enquadramento" da realidade que, como decorrência, vai aparecer determinada visão da mesma, seu sentido, e conseqüentemente um afeto e uma ação correspondentes. Por exemplo para nós, a modificação do estímulo da prancha (retirada de partes, introdução de personagens etc.) não estaria revelando rejeição do dado realístico antes de mais nada estaria evidenciando que para aquele indivíduo é "natural" transformar o real (não o perceber como um dado independente dele). E isso não porque ele é "onipotente." Isto é uma descrição de seu comportamento que tem origem em outras causas;14 pode ser descrito como onipotente justamente porque está estruturando aquela realidade dentro de uma condição psíquica primitiva, onde ainda não havia sido solidamente diferenciada a realidade interna da externa. A causa lógica para isso ocorrer está em que tal sujeito funciona dentro de uma dimensão cognitiva onde as categorias que permitem diferenciar idéia de fato, interno de externo, não estão consolidadas. Para que a noção de realidade e a concomitante identidade correspondente do indivíduo sejam estabelecidas deve ocorrer uma evolução cognitiva onde justamente vão constituir-se tais diferenciações (para Piaget, por exemplo, elas seriam tempo, espaço, conservação de objeto e causalidade, Telles, 1997).
Essas idéias que são apenas um início de uma pesquisa que pretende visualizar o problema de um outro ângulo - não têm a pretensão de criticar os achados observacionais que toda história do uso clínico do TAT colecionou, a partir de estudos obtidos da experiência. A nosso ver, qualquer que seja a postura teórica básica do observador, se ele realmente observa o fenômeno, suas conclusões diagnósticas deverão ser pertinentes, e nessa dimensão encontrar um consenso geral. (Isso naturalmente vale também para os achados observáveis da psicanálise). O que pretendemos aqui é chamar atenção para as teorias fechadas em sistemas prévios à observação do fenômeno e utilizadas para apreendê-los. Tais "fixações," casualmente ou não, apresentam uma "patologia" encontrada em material de sujeitos desadaptados, que não podem lidar com o novo criativamente. Quando as teorias impedem que conhecimentos novos sejam revolucionariamente incorporados, elas revelam-se obsoletas e impedidoras da continuidade da pesquisa do fenômeno. Por isso, achamos inadequado, mesmo descritivamente, pensar o TAT em termos de projeção.
Poderíamos perguntar aqui sobre a validade de pretendermos assinalar um modo diferente de visualizar e interpretar o material fornecido pelas histórias do TAT.
De um ponto de vista epistemológico, não há nada que obrigue tal material ser interpretado segundo uma teoria pronta, prévia, sobre o mental. Pessoalmente não encontramos em nenhum momento no material por nós consultado, uma fundamentação coerente com o objeto de estudo que justificasse atá-lo às teorias psicanalíticas. Tentamos explicitar a colocação, meramente afirmativa, da passagem para o conceito de projeção que levou o TAT ser considerado nessa vertente psicanalítica. Como decorrência, sua pesquisa acaba regularmente nos mesmos impasses das teorias psicanalíticas. Sua interpretação fica, então, atada a conceitos pertencentes a um sistema fechado que não podem, sob pena de romper essa "unidade," serem modificados segundo exige a atualidade das pesquisas de ciências correlatas. Acreditamos que pela natureza dos fenômenos que intervêm na realização das histórias, o teste situa-se num lugar privilegiado tanto em termos de diagnóstico quanto como parte de um instrumental de pesquisa do comportamento humano. Mas para isso realmente efetivar-se, deveria haver uma liberdade real de interpretação de seus achados observacionais, dentro de teorias abertas, provisórias, que dessem lugar às reformulações contínuas exigidas pelas novas descobertas. Observamos na história do TAT a impossibilidade dele obter um mínimo de validação consensual15 que permitisse seu uso na pesquisa científica da mente, por pesquisadores pertencentes a qualquer linha teórica de pensamento. E note-se que ele faz parte da formação profissional do psicólogo! Uma vez ligado a uma interpretação psicanalítica, seu uso vê-se drasticamente limitado e circunscrito aos que elegeram as teorias psicanalíticas como referencial prévio de trabalho.
Se observarmos com atenção, veremos que, mesmo dentro do âmbito de diagnóstico, o aparente "consenso geral" só é compatível se considerarmos os fundamentos fornecidas pelas teorias psicanalíticas. Tal "consenso"16 não deriva do próprio material obtido através do teste. Aliás, a sua história mostra que mesmo entre pesquisadores que desconfiavam haver "algo mais" naquela experiência, diante do limite de saber imposto por nossa ignorância do fenômeno, preferiram trocar esse desconhecimento natural (e incentivador), por um pseudo-saber previamente "garantido" pelos sistemas teóricos da psicanálise.
Uma segunda razão (mais condizente com nossa prática) e não menos séria, diz respeito ao ensino do mesmo, na formação do psicólogo. Os testes fazem parte especifica do seu instrumental de trabalho. Nesse sentido, qualquer teste deve estar coerentemente alicerçado nas possibilidades de sua formação profissional. O psicólogo não pode esperar transformar-se em psicanalista para usar devidamente esse instrumento de avaliação diagnóstica. Apesar do aluno de psicologia dever ser informado sobre as teorias psicanalíticas, como de qualquer outra linha de pesquisa psicológica ele não recebe "formação psicanalítica" no curso básico de sua preparação. E os testes serão o instrumental básico que ele terá para garantir-se, no início de sua vida profissional, contra a falta de experiência. Nesse sentido, achamos absurdo, e epistemologicamente incorreto, ligar um teste a uma específica linha teórica de explicação dos fenômenos (qualquer que seja), principalmente quando ela não encontra fundamentação na própria ciência psicológica. Ele deve estar baseado em conhecimentos que o campo da formação específica pode oferecer.
A pesquisa psicológica deve então ter como requisito básico, uma flexibilidade nos conceitos de que se vale para dar sentidos provisórios às suas descobertas. Justamente o que a designação de "projetivo" vai impedir. Como ter a liberdade de conceituar uma observação que não se encaixe na "projeção?"
Além desses problemas, temos um de formação: pensamos que os alunos atuais serão os futuros pesquisadores de nossa incipiente ciência. Eles têm de saber que pouco sabemos e, portanto, que todo conhecimento atual é provisório; neste sentido, devem ser alertados contra teorias "prontas", fechadas em sistemas, pois estas entravam e mesmo impedem a observação de tudo que o fenômeno tem a nos apresentar, sendo desse modo um empecilho ao desenvolvimento da ciência.
Assim pensamos que treiná-los no TAT, baseados antes de mais nada na análise do texto, significa treiná-los precisamente em observação o que a nosso ver deveria ser a base de uma formação inicial na carreira de qualquer pesquisador, com mais razão ainda quando se trata do estudo de um objeto tão complexo como o fenômeno mental.
Em terceiro lugar, contra uma aparência de introdução de uma maior subjetividade na interpretação, essa proposta visa aumentar a objetividade na avaliação das histórias, na medida em que o referencial usado não remete a nada externo à sua constituição. Acreditamos ser um engano ingênuo pensar que a classificação prévia das respostas do sujeito, - freqüentemente usada na maioria das avaliações do teste, - garanta uma base mais objetiva de avaliação. Essa classificação prévia na verdade provém da decisão do avaliador, e portanto, na melhor das hipóteses, depende de sua prática clínica e conhecimentos aprofundados para discernir convenientemente sobre elas. Fica, portanto, na dependência do nível de experiência do avaliador a decisão sobre a objetividade de uma classificação - o que absolutamente não nos assegura que a técnica seja pertinente. Podemos facilmente estar diante de um TAT do observador mais do que do sujeito testado!
Telles, V. S. (2000). Disconection of TAT from the "Projective" Concept and its Use Enlargement. Psicologia USP, 11 (1), 63-83.
Abstract: It criticises the "projective" designation, which refers itself to implicit phenomena on TAT material. It was intended to show that the "projective" led, in historical means, the test to be tied up to psychoanalytic theories, though nothing on those phenomena obliged this interpretation to be made. On the contrary, the largest part from the problematical of its research using and from the possibility of a general consensus, concerning its interpretation, are due to inherent problems of psychoanalysis theories themselves. We suggest, then, its disconnection from this term, which prevents a real remark of the material obtained by the test. The phenomena observation would allow the impasses overcoming and, consequently, the enlargement of its use, since consensus would be searched in the material, beyond any previous theoretical posture from the observer.
Index Terms: Thematic Apperception Test. Projection (Defense mechanism). Psychoanalytic theory. Projective techniques. Clinical psychology. Cognition.
2 Anzieu (1990), diz, comparando o TAT com o teste de Rorschach, o qual foi provido pelo seu autor de uma teoria, além do material e do método de aplicação: "Está aí sua força (do TAT) ao mesmo tempo que sua fraqueza: o material e a aplicação são modificáveis segundo a população estudada; a interpretação corre atrás de uma teoria que a fundamentaria; donde em contrapartida, uma grande adaptabilidade deste teste a conceituações diversas." (p. 7)
5 Recorre-se aqui ao uso da palavra projeção que além de ser problemático como explicação da aprendizagem (seria quando muito descritiva), o é também quanto ao seu uso dentro da própria teoria psicanalítica - Esse termo aqui só se justifica (dentro das teorias psicanalíticas) se fosse referido não a mecanismos de defesa, mas à projeção descrita como "normal" em Freud, e que mereceu ser descartada (como veremos adiante) como não significativa na obra de Freud. (Laplanche & Pontalis, citados por Brelet, 1986).
9 Por exemplo Stern (1989) "... dizendo que os conceitos psicanalíticos necessitam comprovação experimental." É interessante notar um viés epistemológico mesmo em autores que podem observar a teoria mais criticamente. Ele não chega a pensar que os conceitos já existentes podem ser modificados.
11 Sentido do termo segundo cognitivistas modernos (citados por Imbasciati) onde é totalmente abolida a dicotomia afeto x cognição.
12 Para melhor esclarecimento ver Telles (1997).
14 Em psicanálise é comum confundir-se descrição com explicação do fenômeno.
16 Shentoub na introdução explicita essa opinião: "Aqui, a técnica, ou mais exatamente certos princípios metodológicos, não são senão o instrumento que permaneceria letra morta se ele não se apoiasse sobre uma teoria da personalidade do qual procede e que permite então que os elementos dispersos recolhidos virem a ordenarem-se em um todo. A técnica não pode ser assimilada por aquele que não possue o conhecimento das teorias, mas tais provas constituem também o lugar privilegiado onde os conhecimentos teóricos - corpus- abstrato- encontram, sua ilustração e sua encarnação ..." (Parece soar tautológica uma tal afirmação). (Shentoub, 1990, p.1, grifos nossos)
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Set 2000 -
Data do Fascículo
2000