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A Família de Kafka ou da Educação de Crianças no Interior de um Organismo Animal

Kafka's Family or/On the Education of Children in the Interior of an Animal Organism

La Famille Selon Kafka ou L'éducation D'enfants à L'intérieur d'un Organisme Animal

Resumos

A partir de duas cartas de Kafka à sua irmã, aqui traduzidas, tecem-se comentários a respeito da concepção de família que tinha o escritor, que via nesta uma fonte originária de violência. Situa-se a origem desta concepção na própria experiência de vida familiar de Kafka e em suas reflexões a partir da literatura.

Kafka, Franz; Família; Educação


From two letters, which are translated here, written by Kafka to his sister, comments are woven on the conception of family held by the writer who saw in it an original source of violence. The origins of this conception is set on the writer's own family life experience and his reflections related to the literature

Kafka, Franz; Family; Education


À partir de la traduction jointe de deux lettres de Kafka à sa sœur, on tisse des commentaires sur la conception de l'auteur sur la famille, en qui il voyait une source de violence. On situe l'origine de cette conception dans la propre expérience sur la vie familiale de Kafka et ses réflexions à partir de la littérature.

Kafka, Frantz; Famille; Éducation


A FAMÍLIA DE KAFKA OU DA EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS NO INTERIOR DE UM ORGANISMO ANIMAL

Enrique Mandelbaum11Psicanalista, doutor pelo Centro de Estudos Judaicos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP com a tese Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (2001). Endereço eletrônico: Psicanalista, doutor pelo Centro de Estudos Judaicos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP com a tese Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (2001). Endereço eletrônico: eimande@terra.com.br

Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - USP

Belinda Mandelbaum21Psicanalista, doutor pelo Centro de Estudos Judaicos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP com a tese Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (2001). Endereço eletrônico: Psicanalista, doutor pelo Centro de Estudos Judaicos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP com a tese Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (2001). Endereço eletrônico: eimande@terra.com.br

Instituto de Psicologia - USP

A partir de duas cartas de Kafka à sua irmã, aqui traduzidas, tecem-se comentários a respeito da concepção de família que tinha o escritor, que via nesta uma fonte originária de violência. Situa-se a origem desta concepção na própria experiência de vida familiar de Kafka e em suas reflexões a partir da literatura.

Descritores: Kafka, Franz. Família. Educação.

No outono de 1921, Kafka envia duas cartas para a sua irmã Elli Herrmann, nas quais, dentre outros assuntos, aborda a questão da educação dos filhos. Quando Max Brod copiou os trechos acima expostos a partir das cartas que estavam em posse da irmã de Kafka, ele omitiu passagens que considerou menos importantes. Após a 2ª. guerra mundial, Brod quis restaurar as cartas por inteiro, mas descobriu que os originais haviam desaparecido. Tudo o que nos restou são essas incríveis passagens, fragmentos de um todo maior que, ao serem retirados por Brod das cartas de que eram partes constitutivas, tiveram o mérito de sobreviver à destruição nazista, que consumiu milhões de homens e seus objetos pessoais.

A idéia de que se deva extrair os filhos de seu núcleo familiar para promover a sua educação não é nova e tampouco é o essencial do que Kafka insinua nesses fragmentos. Montaigne, no final do séc. XVI, no capítulo XXVI do Primeiro Livro de seus Ensaios, Da Educação das Crianças, já assinalava que "quem quiser fazer do menino um homem" deve levar em consideração que "a presença dos pais é nociva à autoridade do preceptor, a qual deve ser soberana" (p. 83).

A família sempre foi o lugar privilegiado para o acolhimento das crianças em seus primeiros dias e anos de vida. Mas, é bastante arraigada também a desconfiança de que a família seja capaz de percorrer com eficácia todo o caminho que leva, do menino e da menina, ao homem e à mulher. O familiar é o suporte sobre o qual a história cultural dos homens se constrói. Mas, quem quiser participar ativamente dessa história, deve ser capaz de atravessar a insidiosa membrana familiar e tornar-se parte do espaço público, lugar legítimo da construção humana, incluindo nesta a própria constituição de um novo núcleo familiar.

Em princípio, como sugerimos, parece que é sobre a educação das crianças que Kafka está pensando ao escrever essas cartas. E, num primeiro nível, assim o é. Mas, a força da argumentação de Kafka não está na idéia de que os filhos devem ser educados pelo mundo e não pela família. Isto, como também acabamos de sugerir, é de há muito quase que um lugar-comum entre os homens. O estranhamento que o texto suscita em nós advém dele reivindicar à família o seu estatuto de organismo animal. Dentro da família, o humano penetra na sua dimensão animal. A idéia é assombrosa e vai na contra-mão de todas aquelas teses que atribuem à família o lugar privilegiado de construção do humano. E o terrível da argumentação de Kafka é que o contexto familiar também não é o lugar de atuação de singularidades humanas isoladas que pudessem dar fruição à sua animalidade. Não se trata de adultos e crianças atuando com autonomia, uns em relação aos outros. Todos são partes de um organismo e, portanto, partes de um sistema a cujo equilíbrio estão submetidos – um sistema no qual as partes constitutivas essenciais, pais e filhos, assumem atribuições em nada equilibradas. Aos pais, cabe tudo, aos filhos, quando muito, sucumbir. E não da maneira como o fariam no seio da sociedade, mas sucumbem amaldiçoados ou destruídos se não assumirem a determinação de responder "a exigências totalmente determinadas e, mais ainda, aos termos ditados pelos pais".

O que Kafka está explicitando é uma compreensão bem pessoal sobre a dinâmica das relações em família, tentando trazer à cena as forças que mobilizam essa dinâmica e que certamente, se de fato operarem com a eficácia que Kafka lhes atribui, tornam imperiosa uma intervenção do mundo para, nas crianças, sustentar viva a potencialidade de virem a se transformar em sujeitos sociais plenamente constituídos. Kafka, por assim dizer, explicita a mecânica do organismo familiar, investigando os movimentos promovidos entre pais e filhos e as forças que produzem esses movimentos. E, assim, aqui o vemos transformado num psicanalista. Porque sua investigação o leva a ter que lidar com o intercâmbio afetivo que se dá entre as partes, deixando surgir a estrutura que tal intercâmbio promove e dentro da qual cada um dos implicados é dinamizado.

Kafka compreende o que ele denominou de organismo familiar como um sistema, um conjunto de elementos em relação que se coordenam e funcionam como uma estrutura organizada. O que faz esse sistema ser um organismo é que a coordenação de todos os seus elementos realiza-se através de um meio comum. Diz Kafka: "os pais não são livres diante de seus filhos como sim o é um adulto diante de uma criança, porque se trata, no primeiro caso, de laços de sangue, do próprio sangue". Kafka opera na materialidade da metáfora do organismo familiar, como se este fosse um sistema que, à maneira de um organismo animal, de um corpo biológico complexo, tivesse, em torno dos órgãos que o compõem, um fluxo de irrigação sangüínea que mantivesse esse conjunto de órgãos intimamente relacionados entre si. "É sangue do meu sangue" é o que um membro pode dizer ao outro dentro desse organismo familiar, se bem que Kafka não esqueça do problema da "grave complicação: o sangue de cada um dos pais". Ao operar com tanta maestria no interior da metáfora do organismo, Kafka mantém-se nesses textos como o grande escritor que é. Ou seja, é no interior de sua atividade de escritor que Kafka se apresenta, através desses fragmentos, como um arguto psicanalista, explicitando o feixe de poderosas forças emocionais responsáveis pela configuração de um estado de coisas entre pais e filhos que é violento em sua essência.

Parece-nos interessante destacar as fontes de onde Kafka extrai o material com o qual a sua escrita opera. Em primeiro lugar, está a destinatária das cartas, sua irmã, sangue do seu sangue e, portanto, alguém a quem pode narrar de forma sublimada uma experiência familiar pessoal, como que sob o mote "você bem sabe do que eu estou falando". Ou seja, sob toda a abstração que a carta tem, falando de pais e filhos de uma maneira tão generalizada que atinge o mítico pai Cronos que, na Teogonia de Hesíodo, devora os filhos, parece estar-se comunicando à destinatária uma reflexão sobre a vida em família dos Kafka, a situação kafkiana por excelência. Bem sabe Kafka e bem sabe a sua irmã o quanto as inclinações para a escrita e seu modo de ser em nenhum momento ganharam do pai qualquer reconhecimento, a não ser o furor, um furor que, para Kafka, sempre beirou a repugnância por aquela criança, depois adulto, que teimava ou não podia configurar-se à forma de ser que o senhor Hermann Kafka acreditava ser a legítima para a vida em sociedade. Diante dessa almejada forma de ser, o pai se comportava como um zeloso funcionário que dá tudo de si para fazer bem feito mas que, por obstinação do filho, deve arcar com um fracasso difícil de explicar para o mundo: um filho já adulto solteiro e dado a esquisitices tão exóticas quanto a de ser escritor. Vale a pena salientar de passagem que a sensibilidade de Kafka para o impacto da conflituosa dinâmica dele em seu seio familiar era tão grande que não erraríamos muito se afirmássemos que grande parte da maravilhosa e perturbadora obra ficcional de Kafka emerge, dentre outras matrizes, de uma análise pessoal de sua vida em família. Mais do que espaços públicos, a obra de Kafka é ocupada por cenas familiares, em cujo interior a morte ronda à espreita, seja na forma de um veredicto promulgado pelo pai, em O Veredicto, ou como o triste resultado de uma transformação inesperada, em A Metamorfose. Definitivamente, em Kafka, a família não é o lugar de promoção da compreensão e do entendimento. Verdade que, no para além da família, no exílio de América, na vida urbana de O Processo ou na aldeia de O Castelo, as coisas não são mais fáceis. Mas, para Kafka, os espaços públicos são os lugares por excelência de busca, de uma busca difícil de ser bem sucedida porque o familiar lança as suas sombras para o coletivo. E, como em Kafka o poder e a violência autoritária materializam-se, antes de mais nada, em figuras tão concretas quanto a de um pai, o social, por assim dizer, emerge contaminado de toda essa desconfiança e poder de destruição que a incomunicabilidade é capaz de suscitar. Mapeia-se a dinâmica do poder do particular para o geral. Em Kafka, a família não é um instrumento através do qual uma determinada ideologia social põe-se em funcionamento. Kafka parece inverter esse modo de compreender as coisas. Em seus escritos, a família é núcleo originário de um modo de relação entre pais e filhos que conduz à alienação ou à solidão. Em Kafka, forças muito violentas atuam no interior da família, originariamente – uma violência que ele parece recuperar de textos tão fundantes quanto a Bíblia ou a Teogonia de Hesíodo. De fato, em ambos esses textos fundantes de uma situação originária do homem, mito-poético um – a Bíblia – e mítico o outro – a Teogonia -, o humano emerge de um núcleo familiar no qual dinamiza-se também a violência. Violência que já vimos na Teogonia e que, na Bíblia, emerge de uma forma tão explícita que poderíamos resumir todo o Livro do Gênesis a uma luta sem tréguas entre irmãos. E se é para lembrar da violência entre pais e filhos, a passagem do sacrifício de Isaac pelo pai Abrahão é insuperável. Aqui, o pai ergue uma faca diante do filho porque assim o exige a sua crença e porque é assim que as coisas entre os homens devem se dar. Deste ponto de vista, ser filho é ser sujeito de uma ação profundamente violenta, porque o novo ser que vem ao mundo deve, antes de mais nada, inserir-se numa história que o antecede. E o processo de incorporação, por um meio sócio-cultural e afetivo, de uma criança, é violento, porque incide no âmago da constituição desse sujeito. Verdade que as coisas não podem ser de outro modo. Mas, a mera atribuição de um nome a um bebê é um sinal demarcatório de propriedade, através do qual o sangue dos pais, para trabalhar no interior da metáfora kafkiana, encontra um novo meio para a expansão de sua corrente.

Kafka é, dos escritores do início do séc. XX, com certeza um dos principais a obrigar-nos a levantar suspeitas sobre todo e qualquer processo civilizatório. Talvez possamos traçar toda uma linha de afinidades das principais elaborações teóricas do séc. XX – que se caracterizam por manter uma atitude de suspeita diante das instituições responsáveis pela construção do humano, sejam estas o Estado, hospitais psiquiátricos, escolas, etc. – com Kafka, que, ao explicitar o modo de funcionar da família, violento em sua essência, levou a figura do pai e sua autoridade às alçadas de um tribunal, arranhando assim o autoritário poder que, originariamente, parecia lhe ser de legítima propriedade. Os pais, depois de Kafka, devem se explicar. E, diante dos filhos, por amor a eles (e melhor ainda se for só por respeito pelas almas humanas), devem se sentir pisando em ovos. Esta é, talvez, uma das idéias mais originais do séc. XX. E Kafka ajudou a consolidá-la. Todo o poder advém da figura paterna, mas este, no fundo, não passa de um esmerado funcionário de uma maquinaria ideológica que o atravessa e o aprisiona.

A segunda fonte de onde Kafka retira os elementos de sua reflexão nessas cartas é o texto escrito por Swift no início do séc. XVIII, Viagens de Gulliver, especificamente o cap. VI desse livro, "Dos habitantes de Lilliput; do seu saber, das suas leis e costumes, da sua maneira de educar os filhos. A maneira de viver do autor nesse país. A sua defesa de uma grande dama". Swift, nesse livro, através do relato fictício de uma viagem a terras desconhecidas, cria um espaço textual que funciona à maneira de um espelho ao mesmo tempo irônico e alegórico, no qual emergem com destaque os traços característicos da sociedade de onde o viajante partiu. Essa descrição de usos e costumes de povos em territórios exóticos serve para explicitar o caráter especular crítico que o texto pode ter em relação ao contexto em que se insere. Cada texto é um território novo, como o são as paragens onde Gulliver aporta. Mas, a exploração desse terreno possibilita a emergência de uma visão renovada do lugar de onde se parte, do contexto em que realizamos a leitura. Pelo menos, é assim que Kafka lê Swift, e encontra nele os argumentos necessários para dizer à sua irmã que o melhor lugar para a educação de seu sobrinho não é o seio familiar, mas o mundo.

Literatura e experiência pessoal são os materiais com os quais Kafka opera para desvendar uma mecânica de forças atuantes na família que nós poderíamos nomear de mecânica kafkiana. Se Newton, através de sua mecânica, permitiu-nos observar e controlar as forças que atuam nos movimentos dos corpos, a mecânica kafkiana, tal como explicitada nesses fragmentos, permite-nos observar aspectos essenciais da dinâmica entre pais e filhos.

Mandelbaum, E. (2002). Kafka's Family or/On the Education of Children in the Interior of an Animal Organism. Psicologia USP, 13 (2), 143-150.

Abstract: From two letters, which are translated here, written by Kafka to his sister, comments are woven on the conception of family held by the writer who saw in it an original source of violence. The origins of this conception is set on the writer's own family life experience and his reflections related to the literature

Indenx terms: Kafka, Franz. Family. Education.

Mandelbaum, E. (2002). La Famille Selon Kafka ou L'éducation D'enfants à L'intérieur d'un Organisme Animal. Psicologia USP, 13 (2), 143-150.

Résumé : À partir de la traduction jointe de deux lettres de Kafka à sa sœur, on tisse des commentaires sur la conception de l'auteur sur la famille, en qui il voyait une source de violence. On situe l'origine de cette conception dans la propre expérience sur la vie familiale de Kafka et ses réflexions à partir de la littérature.

Mots-clés : Kafka, Frantz. Famille. Éducation.

Recebido em 16.09.2002

Aceito em 30.09.2002

2Psicanalista e doutoranda do Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade do Instituto de Psicologia, USP. Endereço eletrônico: belmande@usp.br

  • Brod, M. (1982). Kafka Madrid, España: Alianza Emecé.
  • Hesíodo. (1981). Teogonia: A origem dos desuses (J. Torrano, estudo e trad.). São Paulo: Iluminura.
  • Kafka, F. (1977). Letters to friends, family and editors New York: Schocken Books.
  • Kafka, F. (1982). América (D. J. Vogelmann, trad.). Madrid, España: Alianza.
  • Kafka, F. (1986). Carta ao pai (M. Carone, trad.). São Paulo: Brasiliense.
  • Kafka, F. (1986). O veredicto / Na colônia penal (M. Carone, trad.). São Paulo: Brasiliense.
  • Kafka, F. (2000). O castelo (M. Carone, trad.). São Paulo: Companhia das Letras.
  • Kafka, F. (2000). A metamorfose (M. Carone, trad.). São Paulo: Brasiliense.
  • Kafka, F. (2000). O processo (M. Carone, trad.). São Paulo: Brasiliense.
  • Mandelbaum, E. (2001). Franz Kafka: Um judaísmo na ponte do impossível Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
  • Montaigne, M. (1972). Ensaios (S. P. Milliet, trad.). São Paulo: Abril Cultural.
  • Swift, J. (1987). Viagens de Gulliver (O. M. Cajado, trad.). Rio de Janeiro: Globo.
  • 1Psicanalista, doutor pelo Centro de Estudos Judaicos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP com a tese Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (2001). Endereço eletrônico:
    Psicanalista, doutor pelo Centro de Estudos Judaicos da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP com a tese Franz Kafka: um judaísmo na ponte do impossível (2001). Endereço eletrônico: eimande@terra.com.br
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2003
    • Data do Fascículo
      2002

    Histórico

    • Recebido
      16 Set 2002
    • Aceito
      30 Set 2002
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