Resumo
Este estudo teve por objetivo compreender quais são as percepções e experiências de pais e mães de adolescentes brasileiros acerca do uso da internet por parte dos seus filhos. Trata-se de um estudo qualitativo do qual participaram 12 genitores com idades entre 29 e 49 anos, sendo de 14 anos a média de idade dos seus filhos. Foram empregados dois roteiros de entrevista. Detectaram-se cinco modalidades de mediação parental: regras, restrição, observação, monitoramento e comunicação aberta. Esta última foi considerada a mais positiva pelos pais. Uma das maiores preocupações foi a facilidade com que a internet tem influenciado os adolescentes, demandando a necessidade de revisão das orientações parentais. Os pais se sentem angustiados e sem referências quanto ao manejo adequado do uso de internet pelos filhos, demonstrando dificuldade de ruptura com os padrões tanto de parentalidade quanto de mediação anteriormente aprendidos.
Palavras-chave:
parentalidade; internet; adolescentes
Abstract
This study reports on the perceptions and experiences of Brazilian parents regarding their adolescent children’s internet use. A total of 12 parents aged 29 to 49, with children around 14 years old, participated in this qualitative study by answering two interview scripts. We identified five modalities of parental mediation: rules, restriction, observation, monitoring and open communication, with the latter being considered the most positive by the parents. A main concern was the ease with which the Internet has influenced their children, leading to revised parental guidelines. Parents feel distressed and lack references as to how to adequately manage children’s internet use, demonstrating difficulty in breaking with previous patterns of both parenting and mediation.
Keywords:
parenting; internet; adolescents
Resumen
Este estudio tuvo como objetivo comprender las percepciones y experiencias de padres y madres brasileños sobre el uso de Internet por parte de sus hijos adolescentes. Se trata de un estudio cualitativo en el que participaron 12 padres de entre 29 y 49 años, siendo 14 años la edad media de sus hijos. Se utilizaron dos guiones de entrevistas. Se detectaron cinco tipos de mediación parental: reglas, restricción, observación, seguimiento y comunicación abierta. Esta última fue considerada la más positiva por los padres. Una de las mayores preocupaciones fue la facilidad con la que la Internet ha influido en los adolescentes, exigiendo la necesidad de revisar las pautas de los padres. Los padres se sienten angustiados y sin referencias en cuanto al manejo adecuado del uso de Internet por sus hijos, lo que muestra dificultad de romper con los patrones tanto de crianza como de mediación aprendidos previamente.
Palabras clave:
crianza de los hijos; internet; adolescentes
Résumé
Cette étude visait à comprendre les perceptions et les expériences des pères et des mères d’adolescents brésiliens sur l’utilisation d’Internet par leurs enfants. Il s’agit d’une étude qualitative à laquelle ont participé 12 parents âgés entre 29 et 49 ans, l’âge moyen de leurs enfants étant de 14 ans. Deux scripts d’entrevue ont été utilisés. Cinq types de médiation parentale ont été détectés: règles, restriction, observation, surveillance et communication ouverte. Ce dernier était considéré comme le plus positif par les parents. L’une des plus grandes préoccupations était la facilité avec laquelle l’Internet a influencé les adolescents, exigeant la nécessité de revoir les directives parentales. Les parents se sentent en détresse et sans références quant à la bonne gestion de l’utilisation d’Internet de leurs enfants, montrant des difficultés à rompre avec les schémas de parentalité et de médiation appris précédemment.
Mots-clés:
parentalité; l’Internet; les adolescents
As tecnologias digitais têm transformado hábitos, prioridades, valores e modos de se relacionar entre os adolescentes (Fialho & Sousa, 2019Fialho, L. M. F., & Sousa, F. G. A. (2019). Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Exitus, 9(1), 202-231. doi: 10.24065/2237-9460.2019v9n1id721
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), com destaque para as relações entre pares e familiares. Nesse contexto, as dinâmicas familiares se viram diretamente atingidas pela tecnologia (Silva & Silva, 2017Silva, T. O., & Silva, L. T. G. (2017). Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, 34(103), 87-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862017000100009
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; Sociedade Brasileira de Pediatria [SBP], 2016Sociedade Brasileira de Pediatria. (2016). Saúde de crianças e adolescentes na era digital. São Paulo, SP: SBP.). Dados da pesquisa TIC Kids Online Brasil de 2017 apontam que o uso de internet por crianças e adolescentes tem aumentado significativamente com o passar dos anos (Comitê Gestor da Internet no Brasil [CGI], 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.). Esse consumo, obviamente, tende a se intensificar a partir de um cenário pandêmico que atingiu a população mundial desde 2020, não apenas em decorrência das ações de isolamento e distanciamento social, mas também em razão do ensino remoto, oportunizado devido à interrupção das aulas presenciais em diversas partes do mundo e em momentos importantes do curso da pandemia.
Diante desse contexto, a necessidade de uma parentalidade mediadora ganha destaque (SBP, 2016Sociedade Brasileira de Pediatria. (2016). Saúde de crianças e adolescentes na era digital. São Paulo, SP: SBP.). Neste estudo, as relações entre pais e filhos adolescentes será compreendida e problematizada a partir da Psicologia do Desenvolvimento, recorrendo tanto à literatura específica sobre a adolescência quanto a produzida no campo da mediação parental na era digital, em diálogo com o modelo bioecológico do desenvolvimento (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.). A mediação parental se refere a posturas adotadas pelos pais, que compõem um conjunto de medidas que devem estruturar a educação digital dos filhos. Entre elas, podemos destacar condutas como as de exemplo, de transmissão de valores e de diálogos de orientação (Mondin, 2008Mondin, E. M. C. (2008). Práticas educativas parentais e seus efeitos na criação dos filhos. Psicologia Argumento, 26(54), 233-244. Recuperado de https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil-527288
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). O estilo parental adotado para mediar o acesso de internet dos filhos influencia diretamente o modo como eles utilizarão a rede, com possibilidade tanto de aumento quanto de diminuição de comportamentos considerados inadequados, como agressividade e desrespeito às regras (Guisso, Bolze, & Viera, 2019Guisso, L., Bolze, S. D. A., & Viera, M. L. (2019). Positive parenting practices and parental training programs: a systematic literature review. Contextos Clínicos, 12(1), 226-255. doi: 10.4013/ctc.2019.121.10
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). Estudos sobre o tema demonstram que pais com práticas parentais que envolvem disciplina inconsistente, punição, comandos ineficazes e pouco engajamento podem contribuir para o desenvolvimento e a manutenção de dificuldades comportamentais e emocionais dos filhos (Assunção, Costa, Tagliabue, & Matos, 2017Assunção, R. S., Costa, P., Tagliabue, S., & Matos, P. M. (2017). Problematic Facebook use in adolescents: associations with parental attachment and alienation to peers. Journal of Child and Family Studies, 26(11), 2990-2998. doi: 10.1007/s10826-017-0817-2
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; Grizólio & Scorsolini-Comin, 2020Grizólio, T. C., & Scorsolini-Comin, F. (2020). Como a mediação parental tem orientado o uso de internet do público infanto-juvenil? Psicologia Escolar e Educacional, 24, e217310. doi: 10.1590/2175-35392020217310
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).
A atmosfera atual de utilização de internet pelos adolescentes é composta por uma tendência cada vez maior de uso exclusivo da rede pelo celular (CGI, 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.; SBP, 2016Sociedade Brasileira de Pediatria. (2016). Saúde de crianças e adolescentes na era digital. São Paulo, SP: SBP.), o que dificulta o trabalho de mediação dos pais, pela autonomia que se tem para realizar atividades de acordo com a preferência de cada usuário. No contexto da pandemia de COVID-19, deflagrada em 2020, esse cenário se agravou em razão de os processos de ensino e aprendizagem acontecerem exclusivamente pela modalidade remota emergencial, em substituição às atividades presenciais, que foram suspensas devido à transmissão do vírus e à necessidade de distanciamento social.
Em uma perspectiva desenvolvimental, também é importante considerar que a adolescência é um período em que os indivíduos buscam encontrar ou reafirmar suas próprias identidades, constituindo uma fase de muitas dúvidas (Borghi, Szylit, Ichikawa, Baliza, Camara, & Frizzo, 2018Borghi, C. A., Szylit, R., Ichikawa, C. R. F., Baliza, M. F., Camara, U. T. J., & Frizzo, H. C. F. (2018). O uso das redes sociais virtuais como um instrumento de cuidado para adolescentes hospitalizados. Escola Anna Nery, 22(1), e20170159. doi: 10.1590/2177-9465-EAN-2017-0159
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), o que atravessa o modo como as relações entre pais e filhos se configuram. Algumas das transformações ocasionadas pela internet fomentaram um novo modo de pais e filhos se relacionarem. Embora algumas alterações sejam consideradas positivas, como a facilidade de comunicação em tempo real com os filhos (Fialho & Sousa, 2019Fialho, L. M. F., & Sousa, F. G. A. (2019). Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Exitus, 9(1), 202-231. doi: 10.24065/2237-9460.2019v9n1id721
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), o que se percebe é que a internet tem prejudicado o diálogo. Uma das razões que esclarecem o porquê desses eventos está no uso excessivo de internet, que pode causar uma cisão na comunicação entre pais e filhos, separando esses indivíduos em mundos totalmente diferentes (Silva & Silva, 2017Silva, T. O., & Silva, L. T. G. (2017). Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, 34(103), 87-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862017000100009
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).
Os adolescentes são alvo fácil dos riscos oportunizados pela rede. Isso acontece porque são a população mais vulnerável por estarem em formação de suas identidades e terem grande necessidade de se conectar a grupos e ideias, além de, muitas vezes, adotarem como referência os conteúdos on-line (Fialho & Sousa, 2019Fialho, L. M. F., & Sousa, F. G. A. (2019). Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Exitus, 9(1), 202-231. doi: 10.24065/2237-9460.2019v9n1id721
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).Com a vulnerabilidade às tecnologias digitais, os adolescentes podem facilmente adquirir comportamentos considerados inadequados pelos pais, caso não haja mediação eficaz. Em uma perspectiva bioecológica (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.), também pode-se considerar que a internet e as redes sociais constituem ambientes ecológicos nos quais o desenvolvimento ocorrerá, haja vista a participação “virtual” ou “remota” do adolescente. No caso de pais que se mostram apartados desses contextos desenvolvimentais dos filhos, essas redes interativas podem representar um exossistema para os genitores, excluindo-os da possibilidade de participação efetiva nesse cenário em que os filhos irão interagir e se desenvolver.
Além disso, é oportuno considerar que no período da adolescência é frequente o desejo por novas experiências - processo que pode acompanhar uma sensação de invulnerabilidade. Como classicamente descrito na literatura psicanalítica dedicada à adolescência, o desejo de testar os próprios limites decorre da necessidade de enfrentá-los, vivê-los ou transgredi-los, que conduz o adolescente a um espaço de afirmação e busca de realização (Costa & Melo, 2017Costa, V. A. S. F., & Melo, M. F. V. (2017). A carência de fronteiras na adolescência da atualidade: o adolescente em pane? Subjetividades, 17(3), 13-22. doi: 10.5020/23590777.rs.v17i3.5571
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). Aqui compreendemos que a adolescência não se refere apenas a uma fase de interstício em direção à vida adulta, mas a um período no qual um importante trabalho psíquico deve ser realizado para que se possa ressignificar as experiências infantis (Teixeira, 2014Teixeira, L. C. (2014). O sujeito adolescente e a intervenção psicanalítica: notas a partir de um caso clínico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 17(3 Supl. 1), 797-804. doi: 10.1590/1415-4714.2014v17n3-Suppl.p797.19
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).
As exigências psicossociais dessa etapa envolvem, no contexto deste estudo, a compreensão e a equilibração de movimentos polarizados no que se refere à exploração oportunizada pelo acesso à internet e às tecnologias, ao mesmo tempo que se deve seguir regras construídas na família e representadas pelas figuras parentais. Dessa tensão entre esses dois movimentos podem surgir conflitos que deverão ser manejados no contexto familiar, mas que também poderão se expandir para outros terrenos interativos e de socialização, como a escola e a construção dos relacionamentos interpessoais, por exemplo. Nesses diferentes contextos interativos, sobretudo considerando a internet e as redes sociais, esses adolescentes poderão experienciar mudanças de papéis e de contextos, corporificando transições ecológicas essenciais no processo desenvolvimental (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.).
O diálogo e a proximidade entre pais e filhos podem ser uma estratégia de prevenção a riscos derivados da exposição excessiva à internet e às tecnologias comunicacionais (Appel, Stiglbauer, Batinic, & Holtz, 2012Appel, M., Holtz, P., Stiglbauer, B., & Batinic, B. (2012). Parents as a resource: communication quality affects the relationship between adolescents’ internet use and loneliness. Journal of Adolescence, 35(6), 1641-1648. doi: 10.1016/j.adolescence.2012.08.003
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; Silva & Silva, 2017Silva, T. O., & Silva, L. T. G. (2017). Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, 34(103), 87-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862017000100009
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). Diante disso, é cada vez mais relevante a investigação de como tem sido a percepção dos pais em relação à utilização de internet pelos seus filhos adolescentes, bem como estão vivenciando essas experiências. Entender como pais e mães estão passando por esse fenômeno é fundamental. A partir desse panorama, este estudo teve por objetivo compreender quais são as percepções e experiências de pais e mães de adolescentes brasileiros acerca do uso da internet por parte dos seus filhos.
Método
Tipo de estudo e considerações éticas
Trata-se de um estudo qualitativo e de corte transversal. Para garantir a validade do estudo qualitativo, foram observados os itens de verificação presentes no protocolo COREQ (Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research). Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (CAAE 82380418.5.0000.5154).
Participantes
Participaram do estudo 12 genitores (pais e mães), com média de idade de 39 anos, variando de 29 a 49 anos, sendo de 14 anos a média de idade dos seus filhos. Esses genitores são provenientes de uma cidade do interior do estado de Minas Gerais, Brasil, e de uma do interior do estado de São Paulo. Na composição da amostra foi empregado o critério de saturação, ou seja, o número de participantes foi definido à medida que as entrevistas foram respondendo suficientemente bem aos objetivos do estudo e os dados foram se repetindo. A escolha de pais e mães que residissem com pelo menos um filho entre 12 e 18 anos deu-se em razão de poder permitir maior compreensão de como ocorrem as interações em família, de forma a abranger os desafios da convivência diária diante das práticas parentais. Ainda, ressalta-se que, neste estudo, adotou-se a nomenclatura “adolescente” para pessoas de 12 a 18 anos. Tal critério está alinhado às pesquisas The Kids Online Brasil, feitas desde 2012. Neste estudo, não foram entrevistados casais, apenas um membro da díade - pais e mães -, haja vista que o objetivo não era comparar as experiências e práticas parentais em uma mesma família. O Quadro 1 apresenta a caracterização da amostra.
Como podemos notar, a maioria dos adolescentes (n=11; 91%) tem seu próprio celular, concentrando suas atividades na utilização das plataformas YouTube, WhatsApp e Netflix. Percebe-se que a maioria dos pais não estipula horário determinado para a utilização da rede. Além disso, 58% dos pais/mães (n=7) não utilizam nenhuma forma de restrição do uso da internet. Destaca-se, ainda, o predomínio de mães nesta pesquisa, com apenas um pai entrevistado. Embora a coleta tenha buscado acessar esses pais, as mães se mostraram mais disponíveis e interessadas em tratar da temática, o que nos aventa a possibilidade de compreensão de um movimento também de feminização da mediação parental em relação à internet, em consonância com a feminização do cuidado e do exercício da parentalidade (Cunico & Arpini, 2014Cunico, S. D., & Arpini, D. M. (2014). Conjugalidade e parentalidade na perspectiva de mulheres chefes de família. Psicologia em Estudo, 19(4), 693-703. doi: 10.1590/1413-73722418811
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).
Instrumentos
Os instrumentos utilizados foram a entrevista semiestruturada para pais de adolescentes e a entrevista estruturada, ambos desenvolvidos pelos próprios pesquisadores. No roteiro de entrevista semiestruturada foram abordadas temáticas referentes às percepções e experiências acerca do uso de internet pelos filhos, abarcando os sentimentos gerados nessas vivências, além dos principais desafios de pais na era da internet. O roteiro de entrevista estruturada abordou questões mais pontuais a respeito de modo e frequência do uso da internet, como sites mais visitados e tempo de uso pelos filhos.
Procedimento
Coleta de dados
Os participantes foram contatados a partir dos contatos sociais dos pesquisadores, sendo posteriormente indicados mediante o procedimento conhecido como “bola de neve”. O recrutamento também ocorreu via Facebook. Após a seleção dos participantes, foram explicados os termos de participação, bem como procedeu-se à assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após esse processo, foi iniciada a coleta de dados. As duas entrevistas foram aplicadas face a face em uma única sessão, sendo audiogravadas e posteriormente transcritas na íntegra, compondo o corpus analítico.
Análise dos dados
As entrevistas foram analisadas minuciosamente, destacando-se, em um primeiro momento, os eixos temáticos encontrados a partir das falas de cada um dos respondentes, ou seja, foi realizada uma análise vertical do material. Em um segundo momento, foi feita uma análise horizontal de todas as entrevistas, elencando os pontos de semelhança e as diferenças entre as falas, também a partir dos eixos temáticos construídos. Para a análise qualitativa das entrevistas, foram utilizados os procedimentos de análise temático-reflexiva propostos por Braun e Clarke (2019Braun, V., & Clarke, V. (2019). Reflecting on reflexive thematic analysis. Qualitative Research in Sport, Exercise and Health, 11, 589-597. doi: 10.1080/2159676X.2019.1628806
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). A análise e a interpretação dos eixos temáticos foram pautadas na literatura da área de Psicologia do Desenvolvimento, com destaque para o modelo bioecológico (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.; Martins & Szymanski, 2004Martins, E., & Szymanski, H. (2004). A abordagem ecológica de Urie Bronfenbrenner em estudos com famílias. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 4(1), 63-77. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812004000100006#:~:text=A%20abordagem%20ecol%C3%B3gica%20desenvolvida%20por,ser%20humano%20no%20contexto%20em
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) em diálogo com estudos específicos sobre mediação parental no contexto das interações digitais (Appel et al., 2012Appel, M., Holtz, P., Stiglbauer, B., & Batinic, B. (2012). Parents as a resource: communication quality affects the relationship between adolescents’ internet use and loneliness. Journal of Adolescence, 35(6), 1641-1648. doi: 10.1016/j.adolescence.2012.08.003
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; Fialho & Sousa, 2019Fialho, L. M. F., & Sousa, F. G. A. (2019). Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Exitus, 9(1), 202-231. doi: 10.24065/2237-9460.2019v9n1id721
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; Silva & Silva, 2017Silva, T. O., & Silva, L. T. G. (2017). Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, 34(103), 87-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862017000100009
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).
Resultados e discussão
A partir da análise temático-reflexiva, os resultados foram agrupados em quatro eixos construídos a posteriori, segundo sua recorrência nos relatos (maior frequência de menções) e maior significação por parte dos participantes: (1) estratégia de mediação utilizada; (2) a internet como formadora de opinião; (3) o uso excessivo de internet e a perda da sociabilidade; e (4) sentimentos dos pais diante do uso de internet pelos seus filhos adolescentes.
Estratégias de mediação utilizadas
Neste eixo temático, serão apresentadas cinco abordagens de mediação que mais se destacaram entre os participantes: regras, restrição, monitoramento, observação e comunicação aberta. Evidenciou-se diversidade de modos de se educar os filhos digitalmente e, muitas vezes, mais de uma abordagem foi utilizada, dependendo de cada contexto.
Mas, tem que ficar atento, tem que impor regra. Porque tem mãe que deixa, então o filho fica até de madrugada, mexendo na internet, jogando. Tem que ficar pegando no pé mesmo. Tem que fazer a tarefa de casa, depois você mexe na internet. (Mãe 6)
Essa fala evidencia a adoção de regras explícitas acerca do uso de internet pelos pais, que expõem de forma clara a necessidade de priorizar as atividades escolares. Em termos mais práticos, a SBP (2016Sociedade Brasileira de Pediatria. (2016). Saúde de crianças e adolescentes na era digital. São Paulo, SP: SBP.) aponta que regras e limites claros são essenciais para boa utilização da internet, como ter tempo específico para jogos por dia ou aos finais de semana.
Nesse sentido, o estabelecimento de regras no ambiente familiar é necessário para que tanto a criança quanto o adolescente tenham parâmetros para utilização da rede. Quanto tempo devo ficar? Em que momentos devo acessar? Tais questionamentos devem ser embasados a partir da experiência dos pais. Os adolescentes não necessitam de regras explícitas, pois eles têm capacidade de lidar com orientações mais sugestivas e conseguem perceber a realidade de forma crítica. Contudo, a presença de orientações é indispensável (CGI, 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.).
Eu já proibi o celular. Eu já tomei o celular. Ela ficou uns seis meses sem, por conta de nota na escola. Ela baixou a nota e aí eu confisquei o celular. (Mãe 2)
Eu vejo que ele tá vendo algum vídeo que eu acho que não é ideal pra ele, a gente fala, assim, é na base da chantagem: se mexer, eu tomo celular. (Mãe 7)
Nesses trechos, podemos notar uma postura de restrição quanto ao uso de internet, tanto limitando o acesso da rede quanto retirando o celular. Com o aumento do uso de celulares pelos adolescentes, estratégias de restrição têm sido comuns entre as medidas tomadas pelos pais (CGI, 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.). Acerca de posturas de cunho restritivo, a literatura tem apontado que o controle parental pode agravar situações de vício em internet, pois incentiva a falta de autocontrole nos filhos, tirando-lhes a capacidade para discernir conteúdos para acessar na rede. Ademais, comportamentos que vão ao encontro de uma postura de apoio afetivo e respeito à autonomia dos adolescentes têm se mostrado como fator preventivo do comportamento de vício em internet (Li, Dang, Zhang, Zhang, & Guo, 2014Li, C., Dang, J., Zhang, X., Zhang, Q., & Guo, J. (2014). Internet addiction among Chinese adolescents: the effect of parental behavior and self-control. Computers in Human Behavior, 41(1), 1-7. doi: 10.1016/j.chb.2014.09.001
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).
Antes delas conhecerem o histórico, eu ia no histórico do notebook. Nunca peguei nada demais, não. Você tem que observar, mas não pode proibir de tudo. (Mãe 2)
Pelo excerto, os pais utilizam o recurso de monitoramento para educar os filhos, por meio de softwares de rastreamento e da observação não consentida. O monitoramento tem demonstrado repercussões mais positivas quanto ao estilo de mediação do que outras abordagens, como a restritiva, principalmente com adolescentes, que têm maior demanda de autonomia. Nesse contexto, uma comunicação mais aberta sobre os riscos da rede também pode ser eficaz na prevenção de uso inadequado de internet (Khurana, Bleakley, Jordan, & Romer, 2015Khurana, A., Bleakley, A., Jordan, A. B., & Romer, D. (2015). The protective effects of parental monitoring and internet restriction on adolescents’ risk of online harassment. Journal of Youth and Adolescence, 44(5), 1039-1047. doi: 10.1007/s10964-014-0242-4
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).
Entretanto, ainda que o monitoramento apresente repercussões mais positivas do que a restrição, pode não ser a forma ideal de mediação para adolescentes, devido às demandas de autonomia e privacidade. Tendo isso em vista, em 2016, a SBP lançou um conjunto de medidas para orientar pais, crianças e adolescentes, professores e pediatras acerca de como lidar com o uso de internet. O documento enfatiza a importância da conversa entre pais e filhos. Esta deve acontecer proporcionalmente à idade, respeitando cada fase de desenvolvimento e a maturidade já desenvolvida, de modo a orientar como utilizar a rede de forma positiva, sem que para isso tenha que invadir o espaço e as mensagens de cada um. Entre algumas das sugestões propostas para a mediação parental está a de fazer uma lista com os sites mais recomendados e dialogar a respeito dos perigos da internet (SBP, 2016Sociedade Brasileira de Pediatria. (2016). Saúde de crianças e adolescentes na era digital. São Paulo, SP: SBP.).
Diferentemente do monitoramento, a observação diz respeito a uma postura de verificação na qual o usuário tem conhecimento, já que acontece diante de seus olhos. Nas falas a seguir, os pais relatam suas experiências de observar as atividades realizadas on-line de forma aleatória:
De vez em quando eu peço para olhar o celular para ver se ele vai deixar eu ver para ver se ele tem alguma coisa a esconder, eu ainda prefiro perguntar o que ele faz, porque eu quero alimentar nele a confiança em mim. (Mãe 1)
Na hora que eu vejo que está entretida, eu falo: “pode me dá agora. Parou, parou, me entrega”. Eu não sei quem é o outro que está do outro lado... . Ela me entrega, falo pra ela: não gostei dessa conversa. Tô excluindo você desse grupo, tô tirando, tô tirando ... eu faço isso. (Mãe 4)
Contudo, analisando essa mediação de forma mais crítica, podemos perceber que a mera observação, ou mesmo diálogos curtos a respeito do uso de internet, pode não ser eficaz. Ao contrário do esperado, alguns pais não estão mantendo uma boa comunicação a respeito do uso de internet, ou melhor, não estão sequer dialogando sobre isso. Percebe-se que os pais não têm, muitas vezes, o mínimo conhecimento sobre o que os filhos acessam on-line (Fialho & Sousa, 2019Fialho, L. M. F., & Sousa, F. G. A. (2019). Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Exitus, 9(1), 202-231. doi: 10.24065/2237-9460.2019v9n1id721
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). É interessante notar que, embora alguns responsáveis se preocupem com a falta de maturidade dos filhos para acessar a internet, destacando como as principais preocupações aliciamento para o uso de drogas, pedofilia e sequestro, não há envolvimento real com a educação digital dos filhos (Fialho & Sousa, 2019Fialho, L. M. F., & Sousa, F. G. A. (2019). Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Exitus, 9(1), 202-231. doi: 10.24065/2237-9460.2019v9n1id721
https://doi.org/10.24065/2237-9460.2019v...
). Em termos bioecológicos, esses genitores não fazem parte dos ambientes digitais dos quais os filhos adolescentes participam, podendo gerar nesses pais movimentos de insegurança em relação a um contexto desconhecido e de perda de controle dos filhos. Há que se destacar, adicionalmente, que nesses ambientes interativos, muitas vezes, esses filhos podem ocupar outros papéis, diferentemente dos conhecidos pelos pais.
Os trechos a seguir apontam para comportamentos de orientações realizados pelos pais que praticaram o diálogo a partir de uma abordagem mais aberta para que os filhos se sentissem confiantes para contatá-los em casos de risco. Essa mediação é nomeada de ativa pela literatura.
Eu oriento algumas coisas que eu acho que podem aparecer pra ela e que não acho que seja adequado pra idade. E se aparecer, eu já falo: oh, eu não gostaria que você mexesse, né? E aí eu tento orientar. (Mãe 2)
Eu acho que adolescente você tem que ser amigo, você tem que conversar, você não pode chegar impondo duma vez ... porque eu já fui adolescente, então, quando você impõe alguma coisa, aí fica pior. (Mãe 10)
A pesquisa TIC Kids Online Brasil apontou que as mediações ativas foram as mais utilizadas por pais ou responsáveis em 2017. Já as mediações do tipo restritiva e de monitoramento, que envolvem respectivamente comportamentos de restrição e verificação do uso da rede, também foram adotadas, porém em menores proporções (CGI, 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.). Os adolescentes entrevistados nesta mesma pesquisa afirmaram que seus pais orientam acerca de sites bons e ruins para se navegar, dizem o que devem fazer em situações em que algo da rede passe a incomodar (73%) e que recebem ajuda dos pais quando algo na internet os chateia (70%) (CGI, 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.).
Além da mediação ativa, há outras nomenclaturas que podem ser utilizadas, como a mediação instrutiva, que diz respeito a orientações dadas pelos pais. Sobre essa abordagem de mediação, Shin e Kang (2016Shin, W., & Kang, H. (2016). Adolescents’ privacy concerns and information disclosure online: The role of parents and the Internet. Computers in Human Behavior, 54, 114-123. doi: 10.1016/j.chb.2015.07.062
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) revelam que houve resposta positiva quanto à prevenção de uso de risco por adolescentes, enquanto a utilização da mediação restritiva teve efeito contrário. Ao encontro dessas perspectivas, o estudo de Li et al. (2014Li, C., Dang, J., Zhang, X., Zhang, Q., & Guo, J. (2014). Internet addiction among Chinese adolescents: the effect of parental behavior and self-control. Computers in Human Behavior, 41(1), 1-7. doi: 10.1016/j.chb.2014.09.001
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) apontou que o respeito à autonomia, a expressão de afetividade, de oferta de apoio sincero e mediações ativas são considerados fatores de proteção contra o uso vicioso de internet.
Dessa forma, é válido retomar a ideia de que a família representa o principal microssistema de desenvolvimento do adolescente (Senna & Dessen, 2012Senna, S. R. C. M., & Dessen, M. A. (2012). Contribuições das teorias do desenvolvimento humano para a concepção contemporânea da adolescência. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 28(1), 101-108. doi: 10.1590/S0102-37722012000100013
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). É importante destacar que, apesar de alguns estilos terem mais efeitos benéficos do que outros, de acordo com a literatura (CGI, 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.; Li et al., 2014Li, C., Dang, J., Zhang, X., Zhang, Q., & Guo, J. (2014). Internet addiction among Chinese adolescents: the effect of parental behavior and self-control. Computers in Human Behavior, 41(1), 1-7. doi: 10.1016/j.chb.2014.09.001
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), é de suma importância que os pais direcionem seus olhares para esse fenômeno de modo a preservar a saúde de seus filhos. Esse cuidado requer dos pais disponibilidade interna para estar de fato com seus filhos, orientando e participando ativamente de seu desenvolvimento.
Tendo isso em vista, ao explorarmos o conceito de contexto desenvolvido por Bronfenbrenner (2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.), podemos perceber que as singularidades que permeiam as relações entre os indivíduos são importantes marcadores para a compreensão de nossos comportamentos. Nessas relações podem se formar o que os autores chamaram de “díades”. Estas são identificadas quando uma pessoa está em algum processo de desenvolvimento e o par da díade, por meio da observação ou participação na interação, pode ter o mesmo desenvolvimento. Com isso, é de suma importância que haja interações presenciais entre pais e filhos, fortalecendo os processos proximais originados dessa relação e possibilitando um desenvolvimento recíproco.
As díades podem assumir três formas. A primeira delas é a díade observacional. Nela, ocorre um olhar de cuidado para a outra pessoa; e esta, por sua vez, percebe o interesse genuíno demonstrado por aquilo que ela estava fazendo. Já a díade de atividade conjunta diz respeito a uma situação em que duas pessoas se veem fazendo juntas uma mesma atividade. A díade primária refere-se a uma situação em que, mesmo os pares da díade não estando próximos, a relação continua existindo fenomenologicamente. Nessa díade, os pares têm sentimentos fortes e recíprocos e, mesmo separados, há influência mútua (Martins & Szymanski, 2004Martins, E., & Szymanski, H. (2004). A abordagem ecológica de Urie Bronfenbrenner em estudos com famílias. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 4(1), 63-77. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812004000100006#:~:text=A%20abordagem%20ecol%C3%B3gica%20desenvolvida%20por,ser%20humano%20no%20contexto%20em
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).
Levando esses conceitos em consideração, podemos associar essas díades aos estilos parentais adotados para a mediação do uso de internet dos adolescentes neste estudo. A díade observacional pode ser comparada ao estilo de observação dos pais, que, na maioria das vezes, demonstraram se envolver de fato com os conteúdos acessados on-line pelos filhos. Essa modalidade de mediação nos remete a um modelo mais participativo e menos punitivo, o que nos leva a refletir sobre o potencial de crescimento desse momento educacional, ao permitir que os pais se aproximem dos filhos e estes sintam dos pais um interesse genuíno sobre seus interesses na rede. Nesse modelo, os pais podem ser convidados a conhecer e a participar dos ambientes interativos dos quais os adolescentes participam, de modo que esses contextos não funcionariam como exossistemas, apartando-os, mas justamente como microssistemas, ampliando o rol de possibilidades desenvolvimentais conjuntas e, consequentemente, mais efetivas.
A díade de atividade conjunta nos remete aos pais que utilizam internet junto dos filhos e que, nesse processo, podem aprender um com o outro as novas informações oportunizadas pela rede. Nesse caso, a internet e as redes sociais dos filhos incluem os pais, funcionamento também como microssistemas, como salientado anteriormente. Por fim, na díade primária, podemos associar o estilo de mediação da comunicação aberta, ou da mediação ativa, na qual os pais, a partir de uma postura de disponibilidade, podem construir um contexto de confiança em que o adolescente incorpora subjetivamente uma série de valores que os acompanham em todos os ambientes, independentemente da presença ou não dos pais. Esse estilo de mediação permite que os pais não necessitem de uma vigilância constante, pois suas orientações são calcadas no diálogo, em valores e na confiança.
A internet como formadora de opinião
Neste eixo temático, os pais relatam que, em muitas situações, sentem-se preocupados, pois percebem a grande influência que a rede tem na formação de caráter e na adoção de condutas pelos adolescentes. Diante disso, a importância dada aos chamados influencers digitais e aos pares tem sobressaído às orientações parentais.
Um ponto negativo que eu vejo é em relação a isso ... o adolescente pode às vezes estar seguindo alguém que vê como se fosse um ... ídolo ... tem youtubers que eu vejo que os meninos têm vinte milhões de seguidores ... são valores deturpados. Que me preocupa ... os conteúdos inadequados, porque você tá falando na formação de caráter antes de tudo, o que me preocupa mais é essas influências desses comunicadores. (Pai 1)
Antes a sua mãe falava, aquilo pra você era a única verdade, você não tinha onde buscar, ou a professora na escola. Agora não, a tua mãe fala “é azul”, você busca lá na internet, pode ir lá, tá falando que é vermelho. Então, a criança vai ter essas duas opiniões ... vai procurar em outro lugar ... encontram outros caminhos, isso eu acho que dificulta, sim. (Mãe 8)
Nesses excertos, os pais relatam o quanto a internet tem influenciado a percepção dos adolescentes acerca do papel parental e de seus próprios papéis, direcionando seus hábitos, pensamentos e até mesmo valores. Quando pensamos na formação de personalidade e estilo de ser, temos de considerar que alguns paradigmas mudaram com as novas tecnologias e, por consequência, afetaram diretamente o comportamento de seus usuários. Podemos usar como exemplo o conceito de intimidade, que vem ganhando outras faces, isto é, o adolescente pode se ver incapaz de dialogar sobre suas questões com familiares e amigos, mas não tem a menor dificuldade para se expor na rede (Couto, 2015Couto, E. S. (2015). Educação e redes sociais digitais: privacidade, intimidade inventada e incitação à visibilidade. Em Aberto, 28(94), 51-61. doi: 10.24109/2176-6673.emaberto.28i94.1668
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). Isso pode ocorrer não apenas como um marcador do adolescer nas redes sociais, mas também pelo fato de que, muitas vezes, os ambientes virtuais acabam sendo contextos desenvolvimentais mais significativos para muitos adolescentes, o que, obviamente, dependerá do modo como os demais microssistemas se apresentam.
Tendo isso em vista, é importante considerar que o desenvolvimento humano pode ser pautado em diversos fatores que influenciam os ciclos de vida. O modelo bioecológico (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.) explora as dimensões do esquema PPCT (pessoa, processo, contexto e tempo), referindo-se, respectivamente, ao fenômeno de constâncias e mudanças na vida do ser humano em desenvolvimento, às ligações entre os diferentes níveis de atividades diárias dos indivíduos, ao meio ambiente global em que eles estão inseridos e, por fim, a como ocorrem as mudanças no decorrer do tempo, devido às pressões sofridas pela pessoa em desenvolvimento.
Essa teoria esclarece que o que vivenciamos no ciclo vital tem influência direta do contexto e das relações que estabelecemos nele. E aqui podemos destacar o uso da rede como um fator de influência no desenvolvimento e, consequentemente, nas posturas adotadas pelos adolescentes. Embora a internet, de maneira ampla, possa ser analisada como um macrossistema, compreendemos que o modo como o adolescente participa desse ambiente deve ser interpretado a partir do conceito de microssistema. Assim, a internet e as redes sociais passam a ser ambientes virtuais com a presença contínua do adolescente, compondo um contexto significativo para o desenvolvimento.
Além da dimensão contexto, o conceito de bidirecionalidade apresenta contribuições importantes para a compreensão do uso de internet pelos adolescentes (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.). Os autores apontam que tanto o ambiente influencia a pessoa quanto esta tem força sobre ele. Esse conceito não se restringe apenas às relações interpessoais, mas envolve também a interação que ocorre entre pessoa, objetos e símbolos. Nesse sentido, tendo em vista o contexto virtual no qual os adolescentes estão inseridos, notamos claramente que, a partir de suas preferências, eles vão criando seu próprio mundo digital que os influencia, e que é também influenciado por eles, o que vai compondo naturalmente parte de sua personalidade e modos de agir.
Na adolescência, além das repercussões das instabilidades e estabilidades vivenciadas, também podemos notar a influência de transformações histórico-culturais, sociais, políticas e econômicas (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.), entre elas a internet. Não há como pensarmos o desenvolvimento humano na contemporaneidade sem considerarmos o uso cada vez mais frequente e onipresente da rede. Com o crescimento do uso de internet, principalmente por adolescentes, os comportamentos de risco também aumentaram. Entre as temáticas recorrentes, podemos encontrar o acesso a conteúdos de incentivo à magreza extrema, incentivo ao autodano, estímulo ao suicídio e ao uso de drogas, por exemplo. Além disso, há também a exposição a conteúdos de natureza sexual. Em 2017, 23% dos usuários de 15 a 17 anos declararam ter visto imagens ou vídeos de conteúdo sexual na internet (CGI, 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.).
Além da repercussão direta dos conteúdos produzidos na internet na vida do adolescente, os pares também ocupam um lugar de grande influência para comporem seus hábitos, diferentemente do que ocorre em relação aos pais. O ambiente virtual e os parceiros interativos desse ambiente, portanto, exercem um papel cada vez mais significativo no desenvolvimento do adolescente. Diante disso, há necessidade de ação conjunta entre pais, escola e políticas públicas para que a educação digital seja mais eficaz. A mediação parental sozinha não é suficiente para proteger os filhos dos riscos online (Shin & Lwin, 2017Shin, W., & Lwin, M. O. (2017). How does “talking about the Internet with others” affect teenagers’ experience of online risks? The role of active mediation by parents, peers, and school teachers. New Media & Society, 19(7), 1109-1126. doi: 10.1177/1461444815626612
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).
As políticas públicas têm evoluído em relação à proteção do público menor de idade, promovendo subsídios para que os usuários possam acessar a rede com criticidade, podendo eles mesmos contornarem os riscos em vez de simplesmente a rede controlar o que os usuários acessam (SBP, 2016Sociedade Brasileira de Pediatria. (2016). Saúde de crianças e adolescentes na era digital. São Paulo, SP: SBP.). É importante salientar que mesmo diante da dificuldade de os pais acessarem os filhos nessa fase, o trabalho de educação deve começar anteriormente, tendo como um dos pilares o exercício de se tornarem modelos de comportamento para os filhos. Os exemplos parentais são imprescindíveis para a formação da identidade dos filhos. Com relação à educação digital não é diferente, visto que os valores e ensinamentos transmitidos pelos pais poderão interferir nos comportamentos dos filhos nesses ambientes interativos contemporâneos (Silva & Silva, 2017Silva, T. O., & Silva, L. T. G. (2017). Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, 34(103), 87-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862017000100009
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).
O uso excessivo de internet e a perda da sociabilidade
Neste eixo temático, os pais entrevistados relatam a urgente temática a respeito do uso desmedido de internet pelos adolescentes, evidenciando a falta de controle dos pais diante dessa situação e o quanto esse tipo de comportamento pode ser prejudicial em níveis social, cognitivo e emocional. Com a ascensão acelerada do uso exclusivo do celular para acessar a rede, o controle do tempo se torna um desafio.
Eu acho que as crianças nem têm mais infância, não têm adolescência. O meu filho deixa de sair de casa, principalmente comigo, quando é um almoço, um jantar, um evento de família, pra justamente ficar no computador. (Mãe 3)
Ela é totalmente dependente da internet ... é um vício, ela não consegue, ela não tem o autocontrole, entendeu? Ela não consegue ficar sem o celular, você tira o celular dela, ela pega o meu, tira o meu, pega o do pai dela, ela vai pro computador, você tira o computador, ela vai pra televisão, ela não consegue ficar sem, ela fica louca. Ela fica totalmente alienada, ela não presta atenção em nada, ela vive naquele mundo ali, é, não é real, né? Não presta atenção no irmão, na família, não presta atenção em nada. (Mãe 11)
O tempo tem se tornado um fator extremamente importante nas discussões a respeito de uso de internet entre adolescentes. O aumento do uso de celulares facilitou a permanência constante do uso da rede. O consumo de internet mais de uma vez no dia, por adolescentes entre 15 e 17 anos, já chega a 78% (CGI, 2018Comitê Gestor da Internet no Brasil. (2018). Pesquisa sobre o uso da internet por crianças e adolescentes no Brasil: TIC kids online Brasil 2017. São Paulo, SP: CGI.). Além disso, o fato de a internet se tornar um instrumento cada vez mais versátil e presente nos aparelhos utilizados em casa torna quase impossível a tarefa de desconectar os filhos da rede. Na fala expressa pela Mãe 11 isso se torna claro.
A forma como essas tecnologias digitais foram inseridas no contexto familiar vem alterando o modo como a família se reúne, evidenciando que o diálogo e a participação na vida dos adolescentes são muito importantes (Silva & Silva, 2017Silva, T. O., & Silva, L. T. G. (2017). Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, 34(103), 87-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862017000100009
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). O uso excessivo de internet chama os pais a um desafio, pois pode causar uma cisão na comunicação de pais e filhos, separando esses indivíduos em mundos totalmente diferentes. Nesse processo, o convívio familiar é modificado e podem surgir lacunas nessa relação (Silva & Silva, 2017Silva, T. O., & Silva, L. T. G. (2017). Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, 34(103), 87-97. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-84862017000100009
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).
Tendo em vista a importância de uma relação de proximidade entre pais e filhos, faz-se necessário retomar o conceito de processo proximal. É primordial que pais e filhos possam compartilhar do ambiente virtual, preservando a privacidade e singularidade de cada um. Esse conhecimento é necessário para que o produto final do acesso à rede pelos adolescentes não seja o isolamento, situação que iria na direção contrária ao desenvolvimento.
Já sabemos que a internet não é um instrumento de comunicação utilizado esporadicamente pelos usuários, podemos mencionar como exemplos as redes sociais, que se tornaram espaços de lazer, de encontros, de debates e de conhecimento. No entanto, esse universo também pode cultivar comportamentos danosos às relações concretas, uma vez que possibilita o isolamento físico e, em alguns casos, a dependência (Fialho & Sousa, 2019Fialho, L. M. F., & Sousa, F. G. A. (2019). Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Exitus, 9(1), 202-231. doi: 10.24065/2237-9460.2019v9n1id721
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).
Lévy (2009Lévy, P. (2009). O que é o virtual? São Paulo, SP: Editora 34.) faz algumas reflexões acerca do processo de migração para as interações virtuais em detrimento das que fazem parte do contexto diário dos adolescentes. O autor denomina esse processo de “desterritorialização”, no qual a presença física se faz desnecessária. Há, ainda, o sentimento de não pertencimento geográfico ao contexto em que se está inserido. Essa leitura também reforça a necessidade de contemplarmos a internet e as redes sociais como ambientes ecológicos, no modelo bioecológico, tal como desenvolvido neste estudo.
Tendo em vista esse processo de “desterritorialização” vivenciado pelos adolescentes, na abordagem bioecológica, a relação que a pessoa estabelece com seu contexto é primordial para o desenvolvimento. Nesse processo, há algumas características que parecem ser importantes para auxiliar na compreensão do porquê alguns adolescentes se isolam quando utilizam internet e outros não. Essas características fazem parte da dimensão pessoa, conceito que compõe o modelo PPCT apresentado anteriormente.
Uma das características é a demanda, a capacidade que temos de nos voltar para o outro, de ser curiosos, de interagir, de modo que, a partir do contato com o outro, o processo proximal possa acontecer e, consequentemente, o desenvolvimento ocorra de forma recíproca. Dependendo do modo de interação originado por essas demandas, a pessoa pode se tornar mais ou menos introspectiva, confiante ou tímida (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.).
Com isso, os pais necessitam estar atentos às demandas expressas ou não pelos adolescentes. Eles são capazes ou mesmo têm motivação para querer conhecer algo novo para além da internet? Têm curiosidades ou socializam fora da rede? O uso contínuo de internet pode ocasionar perda do interesse pelas relações do mundo real, impedindo que as trocas aconteçam, além de possivelmente proporcionar uma generalização da falta de interesse para outros contextos que não o familiar. Tais conjunturas podem acarretar sérios prejuízos ao desenvolvimento pela impossibilidade de os processos proximais ocorrerem fora do ambiente virtual.
Ademais, apesar de este estudo apresentar perspectivas de mães preocupadas com o uso excessivo de internet pelos filhos, há casos em que os pais não percebem esse comportamento e podem subestimar o acesso à internet pelos filhos a conteúdos que não são apropriados, além de superestimar as orientações que repassam (Liau, Khoo, & Ang, 2008Liau, A. K., Khoo, A., & Ang, P. H. (2008). Parental awareness and monitoring of adolescent Internet use. Current Psychology, 27, 217-233. doi: 10.1007/s12144-008-9038-6
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). A pesquisa TIC Kids 2018 realizada com adolescentes de 15 a 19 anos revelou que apenas 36% dos pais estavam a par do que os filhos faziam. Ainda, no que diz respeito à percepção dos pais sobre o uso da rede com segurança, 70% afirmaram acreditar que esse uso é consciente.
Na pesquisa de Fialho e Sousa (2019Fialho, L. M. F., & Sousa, F. G. A. (2019). Juventudes e redes sociais: interações e orientações educacionais. Exitus, 9(1), 202-231. doi: 10.24065/2237-9460.2019v9n1id721
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), ficou evidente que os modelos de mediação adotados pelos pais não estão sendo efetivos. Os adolescentes da pesquisa revelaram que os pais ofereceram orientações breves e superficiais. Desse modo, notamos uma contradição entre as falas de pais e filhos - enquanto aqueles acreditam estarem fazendo um bom trabalho de mediação, estes afirmam que os pais quase nada sabem sobre sua vida virtual.
Sentimentos dos pais diante do uso de internet por seus filhos adolescentes
Neste eixo temático, serão apresentados sentimentos dos pais relacionados ao seu desempenho parental relativo à educação digital dos filhos. Percebe-se que há um afastamento entre as gerações, e os pais acabam se sentindo reféns das tecnologias, sem perceberem que há uma nova realidade a que eles precisam se adaptar.
Ao mesmo tempo em que, assim, eu fico angustiada, eu fico, assim, com medo ... Você fala e ninguém tá te escutando. (Mãe 3)
Ah, meio angustiada. E você tenta colocar o limite e você não consegue e você fica mais frustrada ainda. Aí os outros falam assim: mas você é mãe, você tem que bater o pé, você tem que fazer e acontecer. Mas vai indo e parece que o cansaço vai te vencendo, sabe? É uma coisa que é muito frustrante. A internet tem uma força muito grande ... que parece que supera a força da autoridade dos pais. (Mãe 6)
Como podemos perceber por meio das falas das mães, há uma grande angústia por não conseguirem contornar o uso de internet dos filhos, prevalecendo um sentimento de fracasso. Nesse sentido, a realidade por trás do uso de internet dos filhos pode ser bastante preocupante. O uso excessivo pode ocasionar estados constantes de estresse, adoecimento psíquico, isolamento, depressão e insatisfação (Appel et al., 2012Appel, M., Holtz, P., Stiglbauer, B., & Batinic, B. (2012). Parents as a resource: communication quality affects the relationship between adolescents’ internet use and loneliness. Journal of Adolescence, 35(6), 1641-1648. doi: 10.1016/j.adolescence.2012.08.003
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). Não há como pensar nessa situação sem envolver os sentimentos dos pais, que se sentem angustiados quando não sabem como lidar com o uso de internet dos filhos.
Diante da necessidade de os pais apresentarem certa destreza para mediar o acesso à internet por parte de seus filhos, percebe-se a existência da “fragilização das funções parentais”. Esse fenômeno abarca pais que sentem culpa, dúvida e insegurança em relação à forma como se posicionam diante do que podem, devem ou não fazer com os filhos (Zanetti & Gomes, 2011Zanetti, S. A. S., & Gomes, I. C. (2011). A “fragilização das funções parentais” na família contemporânea: determinantes e consequências. Temas em Psicologia, 19(2), 491-502. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2011000200012
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
). Uma pesquisa constatou que pais que sentiam culpa e eram permissivos tinham filhos agressivos e mais inseguros (Casas, 2002Casas, J. F. (2002). Early parenting and children’s use of relational aggression in preschool (Tese de doutorado, Universidade de Minnesota, Minneapolis). Recuperado de https://www.proquest.com/openview/bb63e79c79526a806abc1aec3092866a/1?pq-origsite=gscholar&cbl=18750&diss=y
https://www.proquest.com/openview/bb63e7...
). Com isso, percebeu-se que os comportamentos dos filhos poderiam ter uma influência considerável do comportamento dos pais (Zanetti & Gomes, 2011Zanetti, S. A. S., & Gomes, I. C. (2011). A “fragilização das funções parentais” na família contemporânea: determinantes e consequências. Temas em Psicologia, 19(2), 491-502. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-389X2011000200012
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).
Ademais, não podemos analisar a tecnologia e a internet como instrumentos que só atingem o mundo infantojuvenil, como se pais e filhos fossem duas gerações que não compartilhassem desse universo. Essa realidade vem se tornando cada vez mais comum, são as chamadas famílias tecnológicas em rede. No entanto, mesmo compartilhando esse acesso, reservadas as devidas singularidades do uso por parte de cada geração, são os pais os responsáveis por mediar e controlar o uso de internet de seus filhos (Almeida, Alves, & Delicado, 2011Almeida, A. N., Alves, N. A., & Delicado, A. (2011). As crianças e a internet em Portugal: perfis de uso. Sociologia, Problemas e Práticas, (65), 9-30. Recuperado de https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstream/10071/2950/1/n65a1.pdf
https://repositorio.iscte-iul.pt/bitstre...
).
O tempo é um fator essencial para compreendermos o desenvolvimento. A partir dele, podemos identificar diversos marcadores que influenciam a maneira como os processos proximais acontecem. Mudanças políticas, econômicas e culturais podem ser utilizadas como exemplos (Bronfenbrenner, 2011Bronfenbrenner, U. (2011). Bioecologia do desenvolvimento humano: tornando os seres humanos mais humanos (A. Carvalho-Barreto, trad.). Porto Alegre, RS: Artmed.). Assim, a internet pode ser vista como uma transformação que redimensionou o macrossistema, afetando diretamente os processos proximais entre pais e filhos. É necessário compreender que toda transformação em larga escala, como o caso da popularização da internet, exige adaptações da sociedade para que se possa lidar com as demandas atuais da maneira mais saudável possível. Na contemporaneidade, o uso de internet se tornou uma realidade incontornável e que demanda constante adaptação, o que repercute também na experiência da parentalidade. Aprender a lidar com esses marcadores contemporâneos é um desafio em curso.
Considerações finais
Este estudo teve por objetivo compreender quais são as percepções e experiências de pais e mães de adolescentes brasileiros acerca do uso da internet por parte dos seus filhos. Percebeu-se que há diversos modos de se realizar a mediação parental, sendo que os que mais se destacaram envolvem regras, restrições, monitoramento, observação e comunicação aberta. Este último foi considerado como a mediação mais eficaz por proporcionar um modo mais saudável de os pais promoverem as interações necessárias com os filhos e com o contexto que os cerca.
Para além das mediações utilizadas, os pais expressaram preocupação quanto às influências da internet e das redes sociais na construção de valores, hábitos e personalidade dos filhos adolescentes. O uso excessivo de internet também foi apontado pelos pais como uma realidade alarmante. Os pais relatam que os adolescentes têm ficado mais tempo na rede e apresentado problemas de interação social. Isso acaba levando o jovem a preferir o mundo virtual e a ver as relações no mundo real como obsoletas. Essa prática pode expor os adolescentes a vulnerabilidades, havendo necessidade de acompanhamento parental constante do uso de internet.
Nesse sentido, atuar na prevenção do uso problemático de internet é fundamental. A mediação recai essencialmente sobre as figuras parentais, o que pode gerar sentimentos de angústia e fracasso tanto diante do desconhecimento acerca de um mundo em rede que vem se transformando rapidamente quanto em relação ao exercício da parentalidade, que exige adoção de novos comportamentos para responder aos novos desafios das atuais gerações de adolescentes. Apesar da angústia identificada nos pais, é importante considerar que orientações superficiais não contribuem para boa mediação e, consequentemente, para a prevenção do uso problemático de internet. Isso promove mudanças no modo como a parentalidade será experienciada, demandando que pais e mães conheçam e participem desses novos ambientes interativos dos filhos, favorecendo uma mediação adequada.
Ao fim deste estudo, evidencia-se a necessidade de cotejar analiticamente as possíveis influências socioeconômicas na mediação parental, além da importância de produzir estudos que incluam pontos de vista paternos, haja vista que este estudo recuperou, sobremaneira, a perspectiva de mães. Aprofundar o diálogo com o modelo bioecológico pode ser um norteador no sentido de lidar com a complexidade da temática. Continuar esse debate em um contexto pós-pandêmico pode contribuir para a construção de importantes inteligibilidades sobre família, socialização, mediação parental e o próprio comportamento de adolescentes na internet, vértices centrais na contemporaneidade.
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Este estudo recebeu o apoio financeiro da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), por meio de bolsa de demanda social à primeira autora.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
02 Mar 2021 -
Aceito
31 Ago 2021