Resumo
Este texto tem a intenção de mostrar a amplitude da contribuição freudiana para a compreensão do fenômeno do crime em seu enraizamento na dinâmica profunda da cultura. Tomamos como ponto de partida alguns textos freudianos de curta extensão que tratam do crime em sua especificidade. São escritos dispersos em sua vasta obra, aparentemente pouco significativos, produzidos geralmente a partir de alguma demanda jurídica. Entretanto, como nosso propósito consiste em mostrar como o crime não pode ser entendido apenas em suas manifestações mais evidentes, mas deve ser visto como um índice da inter-relação dramática entre a gênese da cultura e a estrutura da subjetividade, não nos limitamos apenas a tais textos. Ao fazer uma reconstrução sintética e crítica do argumento freudiano, recorremos a diversas outras reflexões do fundador da psicanálise a partir de duas vertentes entrelaçadas: a da metapsicologia e a da interpretação da cultura.
Palavras-chave:
crime; psiquismo; cultura; Freud
Abstract
This study intends to show the importance of Freud’s contribution for the comprehension of the phenomenon of crime in its roots as part of cultural dynamics. As a starting point, we examined a few short texts in which the author discusses the issue of crime in its specificity. These sparse, apparently insignificant writings were produced mainly by judicial demand. Nevertheless, since we aimed to argue that crime should instead be understood as an indicator of the dramatic interrelation between cultural genesis and the structure of subjectivity (rather than only in its most evident manifestations), this investigation goes beyond these texts. To synthetically reconstruct Freud’s thoughts regarding this matter, we have considered several other Freudian texts under the perspective of two interconnected aspects of psychoanalytic thought: metapsychology and the interpretation of culture.
Keywords:
crime; psyche; culture; Freud
Résumé
Ce texte a pour but de montrer l’ampleur de la contribution freudienne à la compréhension du phénomène du crime dans son enracinement dans la dynamique profonde de la culture. Nous prenons comme point de départ quelques textes courts freudiens qui traitent du crime dans sa spécificité. Ce sont des écrits apparemment insignifiants, épars dans son vaste travail, généralement produits à partir d’une demande légale. Toutefois, comme notre objectif est de montrer que le crime ne peut pas être compris seulement dans ses manifestations les plus évidentes, mais doit être considéré comme un indice de l’interdépendance dramatique entre la genèse de la culture et la structure de la subjectivité, nous ne nous limiterons pas à ces textes. En faisant une reconstruction synthétique et critique de l’argument freudien, nous aurons recouru à plusieurs autres réflexions du fondateur de la psychanalyse à partir de deux voies imbriquées : celle de la métapsychologie et celle de l’interprétation de la culture.
Mots-clés:
crime; psychisme; culture; Freud
Resumen
Este texto pretende mostrar la extensión de la contribución freudiana a la comprensión del fenómeno delictivo en su arraigo en la dinámica de la cultura. Se toma como punto de partida algunos textos freudianos de corta extensión que tratan del delito. Estos escritos aparentemente poco significativos están dispersos en su vasta obra y se utilizan en general desde alguna demanda jurídica. Sin embargo, el propósito de este trabajo consiste en mostrar que no se puede comprender el delito solo en sus manifestaciones más evidentes, sino que también debe ser visto como un índice de la interrelación dramática entre la génesis de la cultura y la estructura de la subjetividad, para esto, no nos limitamos solamente a estos textos. Al hacer una reconstrucción sintética y crítica del argumento freudiano, se consideran otras reflexiones del fundador del psicoanálisis desde dos vertientes entrelazadas: la de la metapsicología y la de la interpretación de la cultura.
Palabras clave:
delito; psiquismo; cultura; Freud
Em junho de 1906, Freud ministrou uma conferência em um seminário de jurisprudência na Universidade de Viena e reuniu as ideias ali apresentadas em artigo intitulado “A determinação judiciária dos fatos e a psicanálise”. Em nota introdutória ao texto, James Strachey, editor inglês das Obras Completas, observou quão poucos e espaçados foram os contatos de Freud com a jurisprudência, mencionando apenas o brevíssimo ensaio intitulado “Os criminosos por sentimento de culpa” (1916), que obteve certa repercussão no meio não médico. Além dessas contribuições específicas ao tema, Freud apresentou dois informes relacionados a questões criminais: o “Parecer da Faculdade no Processo Halsmann”, publicado em 1931, um comentário sobre a opinião de um perito acerca de um caso de homicídio; e um memorando de 1922 em defesa de um jovem em um caso de parricídio. Este último teria sido publicado em setembro de 1923 no jornal Neue Freie Presse, mas dele, segundo Ernest Jones na biografia de Freud, não se encontrou nenhum registro (Jones, 1989Jones, E. (1989). A vida e a obra de Sigmund Freud (vol. III). Rio de Janeiro, RJ: Imago.; Strachey, 1992Strachey, J. (1992). Nota introductoria a “La indagatoria forense y el psicoanálisis”. In S. Freud, Obras Completas (Vol. IX, pp. 83-86). Buenos Aires: Amorrortu Editores.). Pode-se mencionar ainda uma breve carta enviada a Georg Fuchs, crítico literário alemão encarcerado por “motivos políticos” e autor de um livro sobre suas experiências na prisão. Nela, nada há sobre a motivação do crime, porém está ali expresso o pessimismo de Freud acerca da civilização (Kulturmenscheit) e como o tratamento dado aos prisioneiros está em perfeita harmonia com sua rotineira brutalidade.
Percorreremos rapidamente esses pequenos textos freudianos. Como podemos enfeixá-los em uma caracterização genérica? Neles, Freud sempre adverte contra a tentativa de se fazer uma transposição direta da teoria psicanalítica para o campo jurídico. No artigo de 1906, época de seu contato inicial com Jung, ele discute o uso dos experimentos de associação como um novo procedimento de investigação capaz de levar o acusado a revelar por si mesmo sua culpa ou sua inocência. No entanto, o método da instrução judicial e o método psicanalítico devem ser diferenciados quando está em jogo a imputação de culpa. Ele propõe, então, uma analogia entre o histérico e o criminoso:
em ambos trata-se de um segredo, de algo oculto . . . no criminoso trata-se de um segredo que ele sabe e oculta dos outros [vor Ihnen verbirgt], no histérico trata-se de um segredo que ele mesmo não sabe, que se oculta a si mesmo [vor ihm selbst verbirgt]. (Freud, 1906/1999Freud, S. (1999). Tatbestandsdiagnostik und Psychoanalyse. In Gesammelte Werke (Bd. VII, pp. 3-15). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1906)., p. 8)
A associação livre dá acesso à realidade fantasmática dos desejos inconscientes para neles descobrir as razões de o neurótico reagir como se fosse culpado mesmo não o sendo. Por isso, por ser inconscientemente culpado, ele está pronto para se apropriar de qualquer imputação de culpa, diferentemente daqueles que, tendo cometido um crime, são efetivamente culpados (Freud, 1906/1999Freud, S. (1999). Tatbestandsdiagnostik und Psychoanalyse. In Gesammelte Werke (Bd. VII, pp. 3-15). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1906).). Assim, fica traçado um necessário limite entre a realidade psíquica - a ser sempre levada em conta - e a realidade social e jurídica.
Do mesmo modo, no “Parecer da Faculdade no Processo Halsmann”, Freud critica o perito da Faculdade de Medicina de Innsbruck por ter afirmado a culpa de Philipp Halsmann utilizando como argumento o complexo de Édipo. Por quê? Porque a acusação contra Philipp Halsmann de ter matado o próprio pai não tinha sido objetivamente estabelecida, e a alegação de haver discórdias entre pai e filho apenas confirmava a teoria psicanalítica segundo a qual “o complexo de Édipo tem estado presente na infância de todos os homens”. Assim, “justamente por causa de sua onipresença, o complexo de Édipo não é apropriado para concluir pela autoria (do crime)” (Freud, 1931/1999Freud, S. (1999). Das Fakultätsgutachten im Prozess Halsmann. In Gesammelte Werke (Bd XIV, pp. 541-542). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1931)., pp. 541-542).
Ao abordar a consciência de culpa como motivação para o crime, Freud formula duas perguntas: de onde provém o “obscuro sentimento de culpa” anterior ao ato (criminoso)? Seria provável esse tipo de causalidade ter grande participação no cometimento do crime? Ele descarta a segunda questão porque ultrapassa o domínio da psicanálise, pois fatores diversos e heterogêneos concorrem para a efetivação do crime, e nem sempre o sentimento de culpa está presente no ato delituoso. A primeira pergunta, porém, remete diretamente ao complexo de Édipo e às interdições relativas aos dois crimes maiores e fundadores da cultura: o incesto com a mãe e o assassinato do pai. Diante de tais crimes primordiais, o delito efetivamente cometido funciona como uma fixação do sentimento de culpa e até mesmo como um meio de alívio. Desse modo, a busca do castigo pode indicar o pano de fundo motivacional e esclarecer a psicologia do criminoso, mas o sentimento de culpa edipiano, por seu caráter obscuro e sua universalidade, não pode justificar a punição para crimes específicos (Freud, 1916/1999Freud, S. (1999). Einige Charaktertypen aus der psychoanalytischen Arbeit. In Gesammelte Werke (Bd. X, pp. 364-391). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1916).).
Todos esses textos curtos e circunstanciais têm relação direta com a questão do crime e recomendam prudência a respeito da aplicação direta da psicanálise com o objetivo de elucidar a motivação do ato criminoso ou de imputar culpa ao seu agente. O crime definido juridicamente suscita uma indagação bem mais abrangente, e as reflexões freudianas sempre apontam na direção de uma teoria crítica da subjetividade e da cultura. Como acabamos de ver no brevíssimo ensaio “Os criminosos e a consciência de culpa”, o complexo de Édipo é evocado justamente como elemento fundamental na articulação entre subjetividade e cultura. Nessa perspectiva, dividiremos nossa exposição em dois momentos: algumas notas sobre a metapsicologia do crime e seu desdobramento na teoria da cultura.
A metapsicologia do crime
Apesar de sua respeitável erudição e presença na tradição clássica, Freud não era um estudioso reconhecido da antropologia científica, da mitologia ou das obras literárias, mas suas amplas leituras foram terreno fértil para sua genial intuição clínica, e essa conjunção de fatores o levou à proposição de uma interpretação bastante original da genealogia da cultura. A razão dessa incursão antropológica é bastante óbvia: quando o psiquismo está restrito aos fenômenos conscientes, é mais fácil atribuí-los a intenções dos indivíduos, reconhecidas como tais por eles e pelos outros atores sociais; em contraste, a pressuposição do inconsciente nos impulsiona a investigar a dinâmica profunda da cultura, o seu lado obscuro e encoberto pelo verniz das relações sociais mais visíveis e formalizadas. Por isso, a difusão, a persistência e a estranheza dos atos criminosos parecem trazer à tona justamente a face sombria e ameaçadora que gostaríamos de manter oculta. Por um lado, diferentemente da agressividade defensiva e voltada para a mera sobrevivência física, assim como a encontramos entre os animais, não podemos associar o crime simplesmente a nossa natureza biológica. Por outro, os ideais morais, os ordenamentos jurídicos e a consciência comum não cessam de exorcizar o fantasma do crime ou de restringi-lo a casos patológicos e distanciados da sociedade em seu conjunto. A perspectiva é outra se associarmos o crime, tal como é circunscrito juridicamente nas ordenações legais específicas, à violência geral e renitente das sociedades. Para Freud, o delito não provém de nossas inclinações naturais ou biológicas, a serem contidas e educadas pelas instituições sociais e instâncias superiores da cultura. Ao contrário, ele irrompe de modo surpreendente no âmago da mais refinada civilização como um fenômeno extremamente perturbador para nosso empenho de idealização da ordem normativa da sociedade.
Nesse contexto, surge a questão do sentimento de culpa, no artigo “Criminosos por sentimento de culpa”. Para Freud, a cena edípica e os conflitos parentais reaparecem e são aguçados com o florescimento da puberdade. O sentimento de culpa consiste na atribuição a posteriori (nachträglich) de um novo valor ou significado a um acontecimento passado. Desse modo, a culpa inconsciente relativa aos pais ressurge com a eclosão da sexualidade na puberdade, podendo levar o jovem a cometer algum delito como via de punição. Talvez, observa Freud, essa seja uma motivação inconsciente presente no crime, embora possamos encontrar criminosos sem qualquer sentimento de culpa discernível. Aqui aparece a dificuldade, sentida pelo próprio Freud, com a expressão “sentimento inconsciente de culpa” (unbewusste Schuldgefühl), “denominação psicologicamente incorreta”, pois um sentimento, por definição, não pode ser inconsciente (Freud, 1924/1999Freud, S. (1999). Das ökonomische Problem des Masochismus. In Gesammelte Werke (Bd. XIII, pp. 371-383). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1924)., p. 379; Laplanche & Pontalis, 1975Laplanche, J., & Pontalis, J.-B. (1975). Vocabulário da psicanálise. Santos, SP: Martins Fontes. , p. 616). Essa situação paradoxal foi examinada por Freud nas brilhantes páginas do quinto capítulo de “O Eu e o Isso”, significativamente intitulado “As dependências do Eu”. Nelas, é estabelecida a inter-relação entre os afetos vividos sintomaticamente em algumas afecções psíquicas e os processos inconscientes, pois os fenômenos psicopatológicos nos oferecem de modo mais evidente o lado oculto daquilo que é correntemente vivido na dinâmica social. Acompanharemos o argumento freudiano nestas poucas páginas.
Freud observa, por exemplo, como a consciência de culpa intensamente sentida pelos neuróticos obsessivos pode ter origem e significado inconscientes. Obviamente, o afeto é vivido conscientemente, mas não a sua razão de ser, havendo uma lacuna entre a culpa conscientemente sentida e a dinâmica inconsciente das representações que lhe são subjacentes. A consciência moral, em si mesma, não pode ser considerada apenas um fenômeno psicológico e inteiramente descartada, pois é uma instância legítima do comportamento moral humano, mas os afetos que muitas vezes a acompanham parecem indicar uma dimensão que ultrapassa as normas razoavelmente estabelecidas pela sociedade. Não se trata de uma culpa racionalmente assumida, como pode ser observado, por exemplo, nos neuróticos obsessivos, mas de um excesso de autopunição e controle manifestado nas “penosas e torturantes censuras da consciência moral” (Gewissen). Tal condição pode estar relacionada com a instância psíquica designada como “Ideal do Eu” (Ichideal) em sua função de estabelecer como ideal padrões razoáveis dos comportamentos exigidos pela vida social.
Por outro lado, o ideal costuma ser atravessado por um sofrimento injustificável, por uma perturbação proveniente de algum outro lugar, indicando por sua insensatez como o afeto consciente procede de uma instância mergulhada no inconsciente e designada como “Supereu” (Über-Ich). Essa instância está intimamente presente no Eu e não tem caráter de estranheza social associado a determinados comportamentos sexuais considerados moralmente condenáveis. Ao contrário, está entrelaçada na consciência moral e nos processos conscientes do Eu, ainda que o fustigue duramente como uma voz cujas palavras não foram apreendidas por um ouvir da “percepção consciente” (Hörwahrnehmung), porque sua força atesta sua origem em outra fonte: sua energia irrompe do “Isso” (das Es). Deve-se diferenciar, por conseguinte, o sentimento consciente de culpa, quando a tensão ocorre entre o Eu e o Ideal do Eu, do sentimento inconsciente de culpa, quando a tensão se dá entre o Eu e o Supereu, com suas raízes alimentadas pela obscuridade caótica do Isso.
Como frisamos anteriormente, o sentimento é sempre consciente, porém sua intensidade, desproporcional à censura razoável da consciência moral, indica sua origem pulsional, como se vê em diversas afecções psicopatológicas. Nesses casos, o Eu se submerge na culpa e anseia pelo castigo, pois ele mesmo tornou-se alvo do ódio superegoico, como no caso da neurose obsessiva, com sua forma bastante ruidosa de sentimento de culpa (Schuldgefühl überlaut), e de modo ainda mais nítido na aberta confissão de culpa do melancólico, quando o Supereu já quase se apoderou da consciência (Freud, 1923/1999Freud, S. (1999). Das Ich und das Es. In Gesammelte Werke (Bd. XIII, pp. 237-289). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1923).). Mas de onde vem tamanha culpa? A resposta mais imediata remete às vicissitudes pulsionais que determinam as duas configurações patológicas. Nada obstante, Freud formula uma hipótese mais abrangente e ousada, consistente com sua postulação da continuidade entre o normal e o patológico. Para ele, a natureza inconsciente do sentimento de culpa deve ser atribuída à íntima vinculação da origem da consciência moral (Gewissen) com o complexo de Édipo e, portanto, deve-se convir que “o homem normal não apenas é mais imoral (viel unmoralsicher) do que ele crê, mas também é mais moral (viel moralischer) do que ele sabe” (Freud, 1923/1999Freud, S. (1999). Das Ich und das Es. In Gesammelte Werke (Bd. XIII, pp. 237-289). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1923)., p. 282).
Muito antes de tecer essas considerações sutis, Freud havia utilizado em seu breve artigo intitulado “Ações obsessivas e exercícios religiosos” a surpreendente expressão “consciência inconsciente de culpa” (unbewussten Schuldbewusstsein) (Freud, 1907/1999Freud, S. (1999). Zwanghandlungen und Religionsübungen. In Gesammelte Werke (Bd. VII, p. 129-139). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1907)., p. 135). Tal uso representaria tão simplesmente uma contradição flagrante na superfície da própria formulação? Como seria possível ligar tão intimamente os termos “consciência” (Bewusstsein) e “inconsciente” (Unbewusste)?
Ora, a associação dos termos “sentimento” e “inconsciente” não pode ser considerada mera confusão conceitual, pois, conforme a teoria, não há afetos inconscientes, porque isso seria inconsistente com a concepção do recalque como separação entre a “representação” (Vorstellung) e a “quota de afeto” (Affektbetrag) e justamente essa separação é o ponto de partida para seus diferentes destinos. Desacoplada da constelação de representações da cena edípica, a quota de afeto é liberada para se fixar em outras representações. Como já se assinalou, uma das características notáveis do neurótico obsessivo é justamente sua exacerbada consciência moral, quase sempre fortemente associada às injunções culturais e às demandas do dever, da obrigação e da responsabilidade. Em sua lucidez extremada, o obsessivo oferece uma excelente caricatura da idealidade presente nas instituições sociais. Porém, estas adquirem para ele uma presença enlouquecida, como se as formas simbólicas da cultura, em sua apropriação imaginária, se transformassem em deformações fantasmagóricas absurdas e opressoras.
Como Freud bem percebeu ao aproximar os atos obsessivos e as práticas religiosas, o estudo da neurose obsessiva abre uma via bastante fecunda para a compreensão da dinâmica da cultura. Certamente, a culpa e a responsabilidade podem ser diferenciadas. A primeira resulta do esmagamento do Eu sob a dupla pressão do Isso e do Supereu a impor-lhe a exigência tirânica de realizar ideais impossíveis; e a segunda refere-se à escolha do sujeito em responder por seus desejos inconscientes e assumi-los com suas consequências (Souza, 1996Souza, N. S. (1996). Ética, clínica e psicanálise. In: França, M.I. (org.) Ética, psicanálise e sua transmissão. Petrópolis: Vozes.). De fato, em suplemento para a “Interpretação dos sonhos”, escrito em 1925, Freud discute a necessidade de se assumir responsabilidade pelo conteúdo dos sonhos e conclui, de modo surpreendente, que, embora seu conteúdo recalcado “imoral” - constituído por impulsos egoístas, sádicos, incestuosos, pervertidos - não pertença ao Eu enquanto agente moral, ele não se origina de um espírito estranho, mas “é uma parte do meu ser” (so ist er ein Stück von meinem Wesen) (Freud, 1925/1999Freud, S. (1999). Die sittliche Verantwortung für den Inhalt der Träume. In Gesammelte Werke (Bd. I, pp. 565-569). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1925)., p. 567).
Apesar do narcisismo ético do ser humano, a interpretação dos sonhos fornece uma prova clara tanto de nossa essência moral, como testemunham os sonhos de angústia e punição, quanto da “força de sua essência má” (Stärke seines bösens Wesens). Esta dura condição humana não nos exime da responsabilidade moral, mas torna sua exigência ainda mais imperativa, embora caiba aos juristas, e não aos médicos, o estabelecimento de mecanismos para assegurar a responsabilidade condizente com os fins sociais (Freud, 1925/1999Freud, S. (1999). Die sittliche Verantwortung für den Inhalt der Träume. In Gesammelte Werke (Bd. I, pp. 565-569). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1925).). Essas breves considerações contidas no texto freudiano abrem um amplo horizonte de discussão teórica, pois não apenas mostram a não coincidência entre o “meu eu” e a “minha essência ou subjetividade”, mas também ampliam o campo ético ao mostrar como os “impulsos maus” e os crimes não são fenômenos tangenciais das sociedades humanas, facilmente contornáveis por medidas jurídicas, porque estão instalados em nosso próprio ser. Afinal de contas, o estranho que me habita sou eu mesmo e tenho de me responsabilizar por ele. O sujeito não pode se furtar de se posicionar e de se responsabilizar por seu desejo.
Os fenômenos psicopatológicos, tais como os vemos nos casos de neurose obsessiva e melancolia, possibilitaram uma investigação metapsicológica de inegável alcance para a compreensão do significado do crime em nossas sociedades para além de sua demarcação jurídica. Na perspectiva metapsicológica acerca do controle pulsional, pode-se dizer que o Isso é amoral, o Eu se esforça para ser moral e o Supereu é hipermoral, tornando-se frequentemente dominador e cruel. Por isso, ao contrário da crença comum segundo a qual os ideais suprimem a agressividade, a psicanálise mostra como os seres humanos, em busca de limitar a agressividade voltada para o exterior, incrementam sua agressividade contra o seu eu. Nessa dinâmica subjetiva da moralidade, emergem “as perigosas pulsões de morte”, que não podem se manifestar livremente, mas sim ser contidas a todo custo (Freud, 1913/1999Freud, S. (1999). Totem und tabu. Einige übereinstimmungen im Seelenleben der Wilders und der Neurotiker. In Gesammelte Werke (Bd. IX, pp. 5-194). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1913)., p. 284). Podemos discutir, então, como a liberação da agressividade para o mundo externo diminui a tendência para a autoagressividade e suaviza o sentimento de culpa, viabilizando certa abdicação da responsabilidade em relação à conduta moral. Essa conclusão talvez possa parecer um tanto drástica, porém não o é se observarmos a imensa energia despendida pela sociedade no esforço de controlar o crime e como esse empenho reiteradamente fracassa sob a capa da legitimidade da violência em situações consideradas excepcionais. Nas situações explícitas de guerra, por exemplo, o Estado promove o enfraquecimento dos laços morais entre os indivíduos e entre as nações, fazendo com que os impulsos agressivos possam ser legitimamente liberados. Os exemplos são abundantes e mostram a espantosa interpenetração entre a civilização e a barbárie (Ternon, 1995Ternon, Y. (1995). El estado criminal: los genocidios en el siglo XX. Barcelona: Ediciones Península.).
Ainda no período da Primeira Guerra Mundial, em 1915, quando a Alemanha ainda estava sob a onda nacionalista, Freud escreveu algumas ácidas reflexões sobre a “desilusão da guerra”: “o Estado interditou ao indivíduo a prática da injustiça não porque quer aboli-la, mas porque quer monopolizá-la, como o sal e o tabaco”, e, assim fazendo, promove “o afrouxamento das relações morais”, pois “nossa consciência moral (Gewissen) não é o juiz inflexível que os mestres de ética querem nos fazer crer, ela em sua origem é ‘angústia social’ e nada mais” (Freud, 1915/1999Freud, S. (1999). Zeitgemässes über Krieg und Tod. In Gesammelte Werke (Bd. X, pp. 324-355). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1915)., p. 330).
Por outro lado, vimos como a consciência moral dominada pelo Supereu também é um juiz implacável e sádico. Para complicar ainda mais esse nó aparentemente aporético, poderíamos acrescentar que esse juízo implacável, ao suscitar o sentimento inconsciente de culpa, não impede que o indivíduo se torne um criminoso, podendo, ao contrário, impulsioná-lo nessa direção (Freud, 1923/1999Freud, S. (1999). Das Ich und das Es. In Gesammelte Werke (Bd. XIII, pp. 237-289). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1923).). Nem todo sentimento de culpa, porém, deve ser demonizado e visto como elemento patológico, na medida em que ele também pode atuar como obstáculo para a repetição do ato criminoso e descortinar para o sujeito o domínio transcendental do mundo ético e normativo (Martinelli, 2005Martinelli, V. (2005). Crime e ideologia: do Terceiro Reich ao assassinato de Moisés. Ágora, 8(2), 175-191. doi: 10.1590/S1516-14982005000200002
https://doi.org/10.1590/S1516-1498200500...
).
Tal abertura para além de si mesmo, assim como a força do erotismo e da necessidade de amor, pode suscitar a “transformação das pulsões egoístas em sociais” e viabilizar a “aptidão para a cultura” como condições necessárias para a vida em comum (Freud, 1915/1999Freud, S. (1999). Zeitgemässes über Krieg und Tod. In Gesammelte Werke (Bd. X, pp. 324-355). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1915)., pp. 333-334). Seja como for, a idealidade normativa não pode ser confundida com o idealismo ingênuo e nos levar a acreditar na possibilidade de uma sociedade inteiramente desprovida de elementos coercitivos. A pressão externa do meio cultural não pode ser descartada na manutenção da moralidade e, por conseguinte, as sociedades em guerra externa ou mesmo cronicamente violentas deslegitimam seus estatutos legais e enfraquecem perigosamente a eficácia da pressão externa, obviando a convergência entre “a medíocre moralidade dos Estados”, considerados “guardiões das normas éticas”, e “a brutalidade dos indivíduos” participantes da “mais alta civilização humana [menschlichen Kultur]” (Freud, 1915/1999Freud, S. (1999). Zeitgemässes über Krieg und Tod. In Gesammelte Werke (Bd. X, pp. 324-355). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1915)., p. 331).
A partir de 1920, com a introdução do conceito de pulsão de morte, Freud, em carta dirigida a Einstein em que se define como pacifista, adota uma posição ainda mais contundente. Recorrendo a sua “teoria mitológica das pulsões”, ele reconhece o repúdio à guerra como a única postura compatível com o processo civilizatório, que se caracteriza por dois traços mais importantes: “o fortalecimento do intelecto”, em seu esforço de “dominar a vida pulsional”, e “a interiorização das tendências agressivas”, com suas vantagens e perigos (Freud, 1933/1999Freud, S. (1999). Warum Krieg? In Gesammelte Werke (Bd. XVI, pp. 13-27). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1933)., p. 26). Embora ele não se estenda acerca de tais perigos, sabemos o quão indomesticável é a pulsão. Por isso, o tom de sua conclusão é pessimista: “a situação ideal seria uma comunidade de homens que tivessem subjugado a sua vida pulsional à ditadura da razão [Diktatur der Vernunft]”, único meio para “a união completa e resistente dos homens . . . mas isso é com grande probabilidade uma esperança utópica” (Freud, 1933/1999Freud, S. (1999). Warum Krieg? In Gesammelte Werke (Bd. XVI, pp. 13-27). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1933)., p. 24). Ora, se, como vimos, a guerra, assim como toda violência legalizada pelo Estado, corrói todos os laços sociais, então as expectativas de eliminar a criminalidade fracassarão inexoravelmente se as medidas coercitivas externas não se apoiarem na “ditadura da razão”. Não há aqui a adoção de uma atitude derrotista ou de um pessimismo conformista, pois ele afirma com Einstein seu pacifismo comum. Há a exigência indeclinável da lucidez, sem transigir com o consolo fácil dos humanismos utópicos. A justiça como condição necessária da paz não é conquista definitiva, obtida por meio do processo linear e sempre progressivo da história. O pacto social tem sempre de ser sempre refeito e reassumido. Afinal, a lei e o crime são cooriginários e juntos estão instalados no coração da civilização.
O crime na fundação da cultura
A tese anteriormente evocada - da inter-relação entre lei e crime - foi apresentada por Freud em Totem e tabu: algumas concordâncias da vida anímica dos selvagens e dos neuróticos (1913). O pensamento de Freud acerca do “horda primeva”, da relação entre totemismo e exogamia, do banquete totêmico, enfim, do papel crucial do sistema totêmico na constituição da cultura, foi amplamente baseado em teorias antropológicas evolucionistas em voga na segunda metade do século XIX, sobretudo em “O ramo dourado”, a grande síntese feita por James Frazer.
Totem e tabu foi recebido nos meios científicos com ceticismo ou mesmo com aberta hostilidade. Entretanto, não nos interessa discutir as críticas a essa obra, mas afirmar seu papel de “mito científico”, que só pode ser avaliado no interior da grande articulação conceptual da metapsicologia.
Freud percebeu o alcance antropológico da descoberta do inconsciente ao se inspirar na peça clássica Édipo Rei, de Sófocles. A primeira menção a Édipo se deu na célebre carta a Fliess, de 15 de outubro de 1897, quando, ao analisar seu próprio caso, Freud afirmou que “o poder de atração do Oedipus Rex” residia em sua capacidade de captar “uma compulsão que todos reconhecem, pois cada um pressente a sua existência em si mesmo” (Masson, 1986Masson, J. M. (Ed.). (1986). A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess: 1897-1904. Rio de Janeiro, RJ: Imago ., p. 273). O termo reapareceu somente em 1910 em um sucinto artigo localizado na primeira parte das Contribuições à psicologia da vida amorosa, em que afirmava sua dominação na vida anímica (Freud, 1910/1999Freud, S. (1999). Beiträge zur Psychologie des Liebeslebens. I. Über einen besonderen Typus der Objektwahl beim Manne. In Gesammelte Werke (Bd. VIII, pp. 66-77). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag. (Trabalho original publicado em 1910)., p. 73).
Como a triangulação edípica articula a constituição do psiquismo da criança às suas relações originárias, sua importância é crucial não apenas como chave de leitura para o entendimento das neuroses e como núcleo estrutural do psiquismo, mas também como mito fundador da civilização. No contexto da modernidade iluminista, o mito grego foi reelaborado como “mito científico” por Freud em Totem e tabu a partir do exame das diversas explicações antropológicas acerca da origem do totemismo. Diante das contradições das teorias, ele afirma com ousadia que “a experiência psicanalítica lança um único raio de luz nessa escuridão” e em seguida ressalta a semelhança entre as relações que as crianças e os povos primitivos estabelecem com os animais (Freud, 1913/1999Freud, S. (1999). Totem und tabu. Einige übereinstimmungen im Seelenleben der Wilders und der Neurotiker. In Gesammelte Werke (Bd. IX, pp. 5-194). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1913)., p. 154). A aproximação das crianças com os “primitivos” consistiria em uma espécie de recuo imaginário para um ponto aquém da separação entre natureza e cultura. Um procedimento sutil, pois o processo civilizatório tem como um de seus mais caros ideais seu crescente distanciamento em relação ao mundo natural. Nem por isso se pretende, contudo, adotar uma visão naturalista ou simplesmente biológica do comportamento humano, e sim abrir espaço de um recurso narrativo capaz de aportar alguma inteligibilidade para a persistência da barbárie e da violência apesar das inegáveis conquistas da civilização - e, poderíamos dizer, não só “apesar”, mas também através dos próprios meios disponibilizados pela civilização. Trata-se, então, não de uma visão naturalista, mas de um desvio que utiliza a “hipótese darwiniana da horda primeva” para introduzir a ficção psicanaliticamente mediada do assassinato do pai primordial, da interdição do incesto e do parricídio e da aliança entre os irmãos. Mesmo afirmando que “este estado originário da sociedade não foi objeto de observação em parte alguma”, Freud, com alguma precaução, inicia sua exposição de modo bem significativo: “um dia os irmãos expulsos se juntaram, abateram e devoraram o pai e assim puseram um fim à horda paterna” (Freud, 1913/1999Freud, S. (1999). Totem und tabu. Einige übereinstimmungen im Seelenleben der Wilders und der Neurotiker. In Gesammelte Werke (Bd. IX, pp. 5-194). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1913)., p. 171).
Assim, na quarta parte de Totem e tabu, o crime é apresentado como condição de possibilidade de fundação da civilização por meio da substituição da horda primeva (Urhorde) por uma fraternidade de irmãos identificados entre si pela culpa comum do assassinato do pai tirânico. A introjeção do assassinato brutal e a culpa compartilhada garantem a perpetuação psíquica necessária para a manutenção da ordem social (Martinelli, 2005Martinelli, V. (2005). Crime e ideologia: do Terceiro Reich ao assassinato de Moisés. Ágora, 8(2), 175-191. doi: 10.1590/S1516-14982005000200002
https://doi.org/10.1590/S1516-1498200500...
). Em uma época ciosa da autoridade da ciência, o “mito científico” pode ter significativo valor heurístico e contribuir para uma compreensão mais radical do crime, a ser considerado não como um fenômeno secundário passível de ser contornado pela educação, pela ordenação jurídica e pelo controle policial. Todas essas instâncias têm seu valor e podem contribuir para a diminuição da criminalidade em nossas sociedades, embora possam suscitar um otimismo enganoso e nos levar a crer na paz superficial baseada, às vezes, em estatísticas favoráveis, cuja aparente evidência oculta a violência estrutural e simbólica que tem suas raízes mergulhadas nas profundezas de nossa subjetividade.
Poder-se-ia objetar: como poderia haver crime, transgressão da lei, antes de seu estabelecimento pela aliança dos irmãos? O problema lógico do círculo vicioso não tem relevância aqui, pois não se trata de reconstruir a gênese histórica da cultura, e sim explicitar a genealogia de suas instituições. Por que o crime antes da lei? Porque o crime não é uma falha, algo exterior à lei, o crime está inscrito na própria lei como um elemento originário e constitutivo de sua positividade. A inter-relação entre a lei e a culpa mostra o outro lado da lei, não mais concebida apenas na exterioridade de sua racionalidade jurídica, porque desde sua origem ela está marcada pela dinâmica pulsional e pelos imperativos superegoicos.
O mito freudiano atualiza, no contexto da civilização ocidental esclarecida e orgulhosa do saber científico, a ressonância de outros mitos fundadores como os de Caim e Abel e de Rômulo e Remo. A história bíblica de Caim e Abel tem um valor prototípico, pois o assassinato de Abel, o justo, por seu irmão Caim, o invejoso, como narrado no Gênesis, expõe a cisão no interior do desejo de fraternidade universal (Grelot, 2008Grelot, P. (2008). Abel. In X. Léon-Dufour (Dir.), Vocabulário de teologia bíblica (pp. 2-3). Petrópolis, RJ: Vozes.), que nasceria da vinculação a um ancestral comum. Nesse caso, essa ancestralidade vai além do parentesco de sangue para reunir todos os homens como irmãos. O fratricídio foi suscitado justamente pelo fato de Deus ter rejeitado o sacrifício de Caim e acolhido o de Abel. A discriminação do amor paterno desencadeou, portanto, a irritação e o ódio no coração de Caim, que, ao matar seu irmão, se desvencilhou do dever da fraternidade, como mostra a passagem na qual é interrogado pelo Senhor: “onde está o teu irmão?”, respondeu “Não sei . . . sou eu o guarda do meu irmão?”. Caim representa o inquietante destino da humanidade, pois, sendo o primeiro homem nascido de homem e mulher, o primeiro a cultivar o solo e a oferecer ao Senhor os frutos da terra, também se tornou o primeiro assassino ao destruir o vínculo da fraternidade (Chevalier & Gheerbrant, 1989Chevalier, A., & Gheerbrant, J. (1989). Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro, RJ: José Olympio., p. 143).
Nossa civilização resultou do encontro de duas tradições: a bíblico-cristã e a greco-romana. Na primeira, a figura de Abel encarnou a posição do justo sofredor, do sujeito cujo olhar reto guarda em si a memória do Pai. A revolta de Caim assinala a fragilidade da lei fraterna e, em termos freudianos, a precariedade da lei fundada na aliança entre os irmãos. A violência prevalece sobre a justiça porque a lei já prevê a violência em sua origem contratual, como vimos. Na segunda, a tragédia de Édipo expressou a origem da maldição e a presença indelével da “marca de Caim”, assim como a tragédia de Antígona expôs a necessidade da consciência moral exigida pela fraternidade em oposição à universalidade abstrata da lei positiva da cidade, a legitimidade da justiça inscrita no coração (ágraphos nómos) em oposição à legalidade da razão do Estado reivindicada por Creonte.
Na época moderna, essas narrativas originárias provenientes das duas tradições formadoras de nossa civilização foram reencenadas em obras romanescas que, por isso mesmo, se tornaram clássicas. Freud se interessou vivamente por elas. Basta-nos mencionar duas: Hamlet, de William Shakespeare, drama trágico escrito por volta de 1600, e Os irmãos Karamázov, o romance culminante da obra de Fiódor Dostoiévski, publicado em 1879-1880. Trata-se de obras que balizam a modernidade desde seu nascimento, do limiar do século XVII, o século da Revolução Científica, até seu zênite no século XIX, quando o entusiasmo do progresso já havia produzido os germens do niilismo, que logo se disseminaram por toda a civilização ocidental.
Freud aproxima as duas tragédias - a grega e a moderna; Édipo e Hamlet -, indicando seu enraizamento num mesmo solo. O material comum recebe, porém, tratamento diverso, pois a vida psíquica não é fixa e interage com as transformações culturais ocorridas entre as duas épocas tão distantes no tempo. Entre elas, se deu “o progresso secular do recalque na vida espiritual da humanidade”, como disse Freud, e, por isso, no Édipo, “a fantasia de desejo infantil subterrânea é trazida à luz e realizada”, enquanto “em Hamlet ela permanece recalcada e nós somente a experienciamos por seus efeitos inibitórios” (Freud, 1900/1999Freud, S. (1999). Die Traumdeutung. In Gesammelte Werke (Bd. II/III, pp. 1-626). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1900)., p. 271). O tema do filho empenhado em vingar o pai assassinado por seu tio expressa em forma inversa o próprio desejo infantil recalcado do filho e deve, por isso mesmo, permanecer inconsciente. Já a alma hamletiana, povoada por pensamentos enfermiços, obsedantes, dubitativos e inibidos, não pode executar a vingança reivindicada pelo espectro do seu pai (Freud, 1900/1999Freud, S. (1999). Die Traumdeutung. In Gesammelte Werke (Bd. II/III, pp. 1-626). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1900).).
Em breve artigo escrito poucos anos depois de sua obra magna e publicado postumamente, Freud situa o conflito da tragédia grega no domínio religioso e social, no confronto de caracteres de grande envergadura, enquanto no drama moderno, cuja primeira manifestação é justamente Hamlet, observa que o conflito se desloca para a esfera psicológica na forma do choque entre uma moção consciente e uma recalcada. (Freud, 1905-1906/1999Freud, S. (1999). Psychopathische Personen auf der Bühne. In Gesammelte Werke: Nachtragsband: Texte aus den Jahren 1885-1938 (pp. 655-661). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1905-1906).). Clamando por vingança, o espectro do pai atormenta a consciência dilacerada do filho, incapaz de realizar o ato de reparação tanto de seu assassinato quanto da usurpação do trono. Hamlet é retratado como um neurótico obsessivo, afecção típica do homem moderno inibido e irresoluto (Entschlusslähmung), e dominado pela compulsão e pela dúvida. Ele sucumbe à paralisia difusa: não pode matar Cláudio e nem amar Ofélia (Freud, 1909/1999Freud, S. (1999). Bemerkungen über einen Fall von Zwangsneurose. In Gesammelte Werke (Bd. VII, pp. 381-468). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1909).).
Em ensaio instigante, Slavoj Zizek diverge da leitura linear proposta por Freud, segundo a qual Hamlet é uma distorção posterior do mito edípico, para propor, baseado em Lacan, uma leitura inversa: Hamlet ilumina a posteriori, conforme “o mecanismo do deslocamento inconsciente”, o sentido de Édipo e a inter-relação entre ato e saber. “Como estão relacionados, então, ato e saber em uma constelação trágica?” - pergunta Zizek. Ora, observa ele, “a oposição básica é entre Édipo e Hamlet: Édipo realiza o ato (de matar o pai) porque não sabe o que faz; em contraste com Édipo, Hamlet sabe e, exatamente por essa razão, não é capaz de passar ao ato [de se vingar pela morte do pai]” (Zizek, 2012Zizek, S. (2012). O amor impiedoso (ou: sobre a crença). Belo Horizonte, MG: Autêntica., pp. 19-20).
Isso quer dizer que o crime que sustenta a lei em sua positividade permanece oculto para apenas se manifestar no espaço da interioridade como dilaceramento e sentimento de culpa. A consciência hamletiana atesta o impasse da lei na moderna sociedade secularizada na qual o pai morto converte-se em figura espectral impotente para sustentar sua consistência e atualizar seu fundamento, sua força simbólica. O saber moderno cai enredado na ilusão do progresso e de sua autojustificação e, ao se desvincular do ato evocativo do crime, remete-o para lugar recôndito do inconsciente. No fim do último ato, o príncipe agonizante sucumbe a sua impotência, mas preocupa-se com seu nome que “ficará manchado . . . se tudo o que ocorreu continuar ignorado”. Porém, cabe questionar, o que deve ser lembrado? O que resta da memória? O príncipe se despede da vida dizendo que a morte é repouso (rest) “e o resto [rest] é silêncio” (Shakespeare, 2017Shakespeare, W. (2017). Hamlet. In L. C. Leão (Org.), Grandes obras de Shakespeare (B. Heliodora, trad., pp. 148-332). Rio de janeiro, RJ: Nova Fronteira., pp. 192-193). Afinal, apesar do “saber excessivo” de Hamlet e do espectro do seu pai, nada acontece e as aparências devem ser mantidas a qualquer custo.
Em seu ensaio, Zizek acrescenta uma terceira alternativa àquelas representadas por Édipo (“ele não sabe, embora o faça”) e por Hamlet (“ele sabe e, portanto, não pode fazê-lo”). Esta pode ser resumida na seguinte proposição, em que saber e ato convergem: “ele sabe muito bem o que está fazendo e, ainda assim, ele o faz” (Zizek, 2012Zizek, S. (2012). O amor impiedoso (ou: sobre a crença). Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 21). Essa seria a posição do “herói moderno tardio - contemporâneo” (Zizek, 2012Zizek, S. (2012). O amor impiedoso (ou: sobre a crença). Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 21), encarnando simultaneamente uma atitude cínica e trágica: o progresso racional pode levar a consequências catastróficas e, embora todos saibam de suas consequências, nada pode ser feito para evitá-las. Não há desconhecimento, e nem há alternativa, pois não se trata de um equívoco a ser corrigido, mas de uma lógica inexorável imposta pelos acontecimentos, como explicitado na frase de Benjamin: “que as coisas sigam seu curso, eis a catástrofe” (Benjamin citado por Valadier, 2003Valadier, P. (2003). Moral em desordem: um discurso em defesa do ser humano. São Paulo, SP: Edições Loyola., p. 13).
A tragédia anunciada no limiar da modernidade pelo gênio de Shakespeare encontrou clareza e explicitação na obra de Dostoiévski. Para Freud, Os irmãos Karamázov, último romance publicado pelo autor russo, poderiam estar ao lado de Édipo Rei, de Sófocles, e de Hamlet, de Shakespeare, como “as três obras mestras da literatura de todos os tempos” e, significativamente, as três tratam do mesmo tema: o parricídio (Freud, 1928/1999Freud, S. (1999). Dostojewski und die Vatertötung. In Gesammelte Werke (Bd. XIV, pp. 399-418). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1928)., p. 412). Ao abordar a maior obra do grande escritor russo, procurou mostrar como sua “reação epilética” deveria ser compreendida no quadro de uma neurose grave iniciada desde cedo, porém intensificada com o traumático assassinato do pai. Ele se depara na realidade externa com a realização de seu desejo inconsciente, e a culpa então desencadeada produz aqueles “ataques de morte” (Todesanfälle) como forma de punição, de “autocastigo por ter desejado a morte do pai odiado” (Freud, 1928/1999Freud, S. (1999). Dostojewski und die Vatertötung. In Gesammelte Werke (Bd. XIV, pp. 399-418). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1928)., p. 406). Desse modo,
o sintoma precoce dos “ataques de morte” pode assim ser compreendido como uma identificação ao pai do eu consentido como modo de castigo pelo supereu. Tu quiseste matar o pai, para ser você mesmo o pai. Agora você é o pai, mas o pai morto; mecanismo habitual dos sintomas histéricos . . . ambos, eu e supereu, continuam desempenhando o papel do pai. (Freud, 1928/1999Freud, S. (1999). Dostojewski und die Vatertötung. In Gesammelte Werke (Bd. XIV, pp. 399-418). Frankfurt am Main: Fischer Taschenbuch Verlag . (Trabalho original publicado em 1928)., p. 409)
Essa análise psicológica desvela o vínculo inconsciente do autor do romance com o tema do parricídio retratado em sua trama ficcional. Não foi, todavia, uma transposição direta e de caráter autobiográfico. O criador dessa obra projetou uma constelação de motivos inconscientes em personagens que alcançam grande envergadura dramática e, assim, trouxe à tona o fundo trágico da modernidade tardia como antes o fizeram as tragédias de Édipo e de Hamlet em relação, respectivamente, ao momento grego e inaugural de nossa civilização e ao limiar da época moderna.
No romance, o pai odiado - Fiódor Pávlovitch Karamázov - era homem devasso, violento, bufão, porém astuto e sarcástico. Dos seus dois casamentos, teve três filhos: Dimítri Fiódorovitch (Mítia), o mais velho, impulsivo e emocionalmente exaltado, figura especular do pai, com quem disputa a mesma mulher; Ivan Fiódorovitch, de inteligência invulgar, orgulhoso e dissimulado; e Alieksiêi (Aliócha), filho caçula, consumido por seu amor aos seres humanos e fascinado pelo monge (stárietz) Zossima. Além deles, havia um quarto filho, bastardo, criado de seu pai e por ele chamado Smerdiákov por causa do nome de sua mãe (Smierdiáchaia). Submisso, rancoroso, amedrontado, abjeto em sua contínua humilhação, esse filho bastardo é quem mata o pai, encobrindo o crime com um ataque de epilepsia. Sua mão, entretanto, foi guiada por seu mentor intelectual, Ivan, que construíra o argumento segundo o qual após a morte de Deus tudo passara a ser possível. O ato de Smerdiákov, o assassinato do pai, só se tornou possível em decorrência do saber de Ivan ao proclamar a morte de Deus. A torturada conversa entre Smerdiákov e Ivan na quarta e última parte do romance dá a textura dramática da convergência entre o saber e o ato. Ivan procura se desvencilhar da responsabilidade pela morte do pai e Smerdiákov lhe diz: “por isso nesta noite quero provar na sua cara que o senhor é o principal e único assassino em toda essa história, enquanto eu não passo de um colaborador secundário, mesmo tendo sido eu quem o matou. Já o senhor é o mais legítimo assassino! . . . com sua anuência deu-me permissão tácita para agir” (Dostoiévski, 2012Dostoiévski, F. (2012). Os irmãos Karamázov. São Paulo, SP: Editora 34. (Trabalho original publicado em 1879-1880)., pp. 811-812).
Ivan, representante da racionalidade pós-iluminista e do niilismo, sabia do ato e o justificara previamente, mas queria manter sua consciência limpa, embora se encaixasse naquela terceira figura cínica e trágica do herói tardo-moderno: “ele sabe muito bem o que está fazendo e, ainda assim, ele o faz”. Ainda encoberto pelo silêncio, mas guiado pela consciência moderna, racional e crítica, Ivan realiza o resto da dúvida hamletiana e, pela intermediação de Smerdiákov, passa ao ato.
Considerações finais
Esta exposição partiu da leitura de alguns textos freudianos diretamente vinculados à questão do crime. Ainda que sejam poucos trabalhos, de curta extensão, escritos em diversos momentos de elaboração de sua obra, quisemos mostrar que a contribuição freudiana não se restringe a tais escritos, pois o crime pode ser visto como sintoma da própria dinâmica da cultura. Para enfatizar esse contexto abrangente e estrutural do fenômeno, procuramos reconstruir as contribuições freudianas em duas vertentes: a da metapsicologia e a da interpretação da cultura.
Cumpre sublinhar, finalmente, que não há em Freud nostalgia do passado perdido e considerado uma época dourada de harmonia e felicidade humana. Como pensador ilustrado, ele rejeita as ilusões do conservadorismo romântico. Não se trata de estigmatizar a modernidade, porém definir como não menos ilusórias são suas esperanças de reconciliação do homem consigo mesmo. O futuro não redime a dor do passado, e a luz da razão não cessa de engendrar suas próprias sombras e horrores, suscitando um pesadelo inesperado para o avanço triunfalista das luzes em que se mesclam a civilização e a barbárie (Drawin, 2008Drawin, C. R. (2008). A razão ensombrecida: conjecturas filosóficas acerca do progresso do saber. In C. A. L. Brandão (Org.), A república dos saberes: arte, ciência, universidade e outras fronteiras (pp. 45-66). Belo Horizonte, MG: Editora UFMG.). Em comentário ao quadro Angelus Novus, de Paul Klee, Walter Benjamin ressalta como o anjo da história se afasta de costas para o futuro, olhando com horror para o rastro de ruínas deixado para trás: “a tempestade o empurra irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o acúmulo de ruínas cresce até o céu. O que nós denominamos de progresso é esta tempestade” (Benjamin, 1986Benjamin, W. (1986). Sobre o conceito da história. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura (Obras escolhidas, Vol. 1, pp. 222-232). São Paulo, SP: Brasiliense., p. 226). No momento em que se deposita na ordenação e intervenção jurídica uma expectativa de redenção social, não é inútil relembrar, com Freud, o fato de que o crime não é exterior à lei, mas pertence a sua determinação originária, e sempre se pode auscultar no coração da civilização o rumor da violência e da barbárie.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Set 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
27 Abr 2019 -
Aceito
29 Jun 2022