Open-access O impacto da ausência do brincar precoce no processo do desenvolvimento psíquico do bebê

Absence of early play and its impact on the psychic development of infants

El impacto de la ausencia del juego precoz en el proceso del desarrollo psíquico del bebé

L’absence de jeux précoces et son impact dans le développement psychique des nourrissons

Resumo

A pesquisa teve como objetivo estudar o impacto da ausência do brincar precoce no desenvolvimento psíquico do bebê, quando ele se encontra privado de trocas lúdicas na relação bebê-cuidadora, no contexto das creches. A correlação dos resultados dos instrumentos IRDI, MPPE e AP3 no acompanhamento longitudinal de cinco bebês, dos 8 meses de vida aos 4 anos de idade, apontou que a ausência do brincar precoce resulta no empobrecimento do brincar simbólico e entraves no processo de subjetivação da criança.

Palavras-chave: brincar precoce do bebê; brincar simbólico; instrumento IRDI; intervenção precoce

Abstract

This study investigate the absence of early play, that is, the deprivation of playful exchanges with caregivers in the nursery environment, and its impact on the psychic development of infants. Results from a longitudinal study with five infants, from 8 months to 4 years of age, collected by the IRDI, MPPE and AP3 instruments showed that the absence of early play results in the impoverishment of further symbolic play and in obstacles to the child’s subjectivation process.

Keywords: early play of the baby; symbolic play; IRDI instrument; early intervention

Resumen

La investigación tiene como objetivo estudiar el impacto de la ausencia del juego precoz en el desarrollo psíquico en bebés, cuando estos se encuentran privados de intercambios lúdicos en la relación bebé-cuidador/a. En el ámbito de las guarderías, la correlación de los resultados de los instrumentos IRDI, MPPE y AP3 en el acompañamiento longitudinal de cinco bebés de ocho meses a cuatro años indicó que la ausencia del juego precoz provoca empobrecimiento del juego símbolo e impedimentos en el proceso de subjetividad del niños.

Palabras clave: juego precoz del bebé; juego simbólico; instrumento IRDI; intervención precoz

Résumé

Cette étude s’intéresse à l’absence de jeux précoces, c’est-à-dire à la privation d’échanges ludiques avec les soignants dans l’espace de la crèche, et à son impact dans le développement psychique des nourrissons. Les résultats d’une étude longitudinale auprès de cinq nourrissons, suivis de 8 mois à 4 ans, recueillis à l’aide des instruments IRDI, MPPE et AP3, ont montré que l’absence de jeux précoces entraîne un appauvrissement des jeux symboliques ultérieurs et des obstacles au processus de subjectivation de l’enfant.

Mots-clés: jeu précoce du bébé; jeu symbolique; instrument IRDI; intervention précoce

Introdução

As recentes pesquisas no campo da clínica dos bebês têm promovido discussões que revelam as competências precoces do bebê no que diz respeito não só aos aspectos cognitivos, mas também psíquicos, à medida que constatamos seu papel ativo no processo de acesso à intersubjetividade (Saboia, 2006). Isso implica dizer que o bebê exerce um papel primordial na construção da relação do laço com o outro, ou seja, ele deixa de ser visto como um mero coadjuvante na construção ao acesso à intersubjetividade, mas como um verdadeiro protagonista na medida em que é ele que gerencia o ritmo do encontro com o outro. Winnicott, ainda na década de 1950, já afirmava que o bebê constrói a mãe da mesma maneira que a mãe constrói o bebê, ou seja, o bebê sinalizaria o ritmo das trocas com o ambiente e com o encontro com o adulto de referência. Encontro este constitutivo para o bebê, uma vez que seria por meio dele que o bebê passa a vir a circular pelo espaço transicional, ou seja, pela zona intermediária entre seu mundo subjetivo e o mundo objetivamente percebido pelos objetos externos. Desse modo, o bebê, não apenas sinalizaria o ritmo das trocas interativas mãe-bebê, mas seria ele mesmo que tenderia a provocar o outro na busca de estabelecer um laço com o outro, graças à existência da intersubjetividade primária descrita por Trevarthen (1979) ou ainda pelo que descreve Cullere-Crespin (2004) ao apresentar o conceito de apetência simbólica, isto é, o bebê chegaria ao mundo com apetite do outro, o que nos evocaria o conceito winnicottiano de voracidade (Winnicott, 1972).

Embora o bebê tenha sua participação nesse processo, Winnicott (1956) nos lembra que um bebê por si só não existe, o que existe é um bebê na presença de uma mãe (ou substituto), o bebê só pode se tornar um sujeito quando na presença de um outro semelhante (complexo do próximo ou Nebenmensch), tal como já nos dizia Freud desde 1895 no seu artigo “L’Esquisse” (“O Projeto para uma Psicologia Científica”) (Freud, 1895/1979). A mãe, ao encontrar-se num estado de extrema identificação com seu bebê, denominado por Winnicott (1956) como “estado de preocupação materna primária”, oferece condições necessárias para que o bebê integre e elabore suas experiências com o mundo ao lhe oferecer o objeto real, ao mesmo tempo em que o bebê o alucina, o que explicaria a importância das trocas rítmicas e sincrônicas entre a dupla mãe-bebê no processo constitutivo da criança. Desse modo, o bebê, a partir da experiência de onipotência, passa a ter a ilusão de ter controle absoluto dos objetos, estado este que o levará a transitar pela zona intermediária, e a distinguir eu do não-eu, a partir do esquema paradoxal do objeto encontrado-criado (trouvée-crée). Winnicott (1975) nos fala que essa experiência de transicionalidade, responsável pela capacidade de brincar de maneira criativa e simbólica, definida como playing, é vivida graças à existência de um espaço potencial primitivo, construído a partir das trocas entre mãe-bebê, denominado por ele de playground. Ele afirma: “… o bebê começa a fruir de experiências baseada num ‘casamento’ da onipotência dos processos intrapsíquicos com o controle que tem do real. Chamo isso de playground porque a brincadeira começa aqui. O playground é um espaço potencial entre a mãe e bebê, ou que une a mãe e bebê” (Winnicott, 1975, p. 71). Vemos aqui a referência de Winnicott sobre a importância de que o bebê viva, nos primórdios de sua vida, a experiência de um estado quase fusional com sua mãe, na qual ele vivenciaria, inicialmente, a experiência de ser sustentado psiquicamente pela mãe suficientemente boa, que, ao desempenhar a função do holding, oferece ao bebê condições necessárias para que ele possa confiar no ambiente e com ele vivenciar futuramente experiências prazerosas. Sendo assim, dizemos que, para que o bebê seja capaz de “confiar” no ambiente, é essencial que as trocas desse interjogo mãe-bebê sejam regidas por um ritmo harmônico entre presença/ausência, o qual funcionará como alicerce fundamental para construção da realidade psíquica da criança.

No entanto, tal como enfatizam alguns autores como Green (1983), Golse (2004), Roussillon (2008) e Ciccone (2014), essa alternância se faz na realidade sob a permanência de um objeto, e não por meio de sua ausência, ou seja, o objeto exerce uma função simbolizante, o que implica considerar que a condição primeira para que a criança possa elaborar a ausência do objeto é que ela possa, fundamentalmente, integrar e simbolizar sua presença. É o que Winnicott postula, em 1956, como “a capacidade de estar só na presença do outro” (“capacity to be alone”), estádio mais desenvolvido do processo maturacional da criança, momento no qual ela brinca com a suposição de que a pessoa que lhe foi confiável está disponível e permanece ainda disponível quando “lembrada”, após mesmo ter sido “esquecida”. Isso tudo graças à experiência de um ambiente “confiável” ou suficientemente bom na qual a mãe (ou seu substituto) pode oferecer cuidados contínuos, respeitando o ritmo e as produções espontâneas do bebê.

Sobre essas primeiras produções espontâneas, podemos associá-las às próprias explorações sensoriais e autoéroticas do bebê, denominadas por Roussillon (1999) como o brincar autossubjetivo, pois, tal como nos lembra Haag (1993), será por meio dessas primeiras experiências sensoriais que o bebê constrói seu envelope corporal, base primeira do processo da construção da imagem corporal. Para Roussillon (1999), o brincar se organizaria a partir de três etapas importantes, cujo desenrolar culminaria no brincar simbólico, ou o brincar de faz de conta propriamente dito. A primeira, entre elas, é nomeada de brincar autossubejtivo, que, como mencionado anteriormente, condiz com as experiências autoéroticas e autossensoriais do bebê. A segunda etapa do brincar corresponderia ao brincar interativo (l’entre-jeu), momento no qual o bebê se engaja num brincar com o outro, na busca de estabelecer um brincar compartilhado. Golse (2008) associa o jogo interativo ao terceiro tempo pulsional freudiano, momento no qual o bebê, tendo acessado a intersubjetividade, é capaz de se oferecer como objeto pulsional do outro, tal como também preconiza Laznik (2000) ao descrever o jogo de devoração entre mãe e bebê como um típico exemplo de um jogo compartilhado entre a díade. Por exemplo, à medida que o bebê dá seu pezinho para sua mãe, na tentativa de convocá-la para um brincar compartilhado, a mãe lhe responde ao fingir “comer” seu pezinho; o bebê, por sua vez, ao se reconhecer como autor responsável por suscitar esse sentimento de júbilo na mãe, busca dar continuidade a esse jogo a dois como uma forma de experienciar o registro de um prazer compartilhado, prazer este vivenciado por meio desse brincar primordial. Laznik ainda acrescenta que a experiência do não fechamento desse terceiro tempo pulsional seria um sinalizador de risco de evolução autística, uma vez que se observou que os bebês que não acedem ao registro do terceiro tempo pulsional, não tomam uma posição ativa de convocar e provocar o adulto. Nesse sentido, dizemos que a ausência do fechamento desse terceiro tempo pulsional, que corresponderia ao movimento do bebê em provocar o adulto na busca de dar continuidade à experiência de um prazer compartilhado, seria um indicador importante de risco de sofrimento psíquico, visto que foi observado que os bebês que mostram dificuldades de se engajar no brincar a dois, são bebês que, desde cedo, mostram uma particularidade em explorar os brinquedos que estão ao seu alcance e uma pobreza na produção do brincar simbólico (Saboia, 2015; Saboia et al., 2018). Vale dizer que esse registro de um prazer a dois é o que levaria a criança a poder vir a entrar num jogo dual, ou seja, a vir a estabelecer um brincar compartilhado no qual o que está em cena na produção do brincar da criança é a busca do brincar com o outro, o que distinguiria do brincar junto com o outro, pois o brincar com implicaria a convocação e a sustentação de um brincar a dois, ou seja, subtende o registro da criança em poder estar na relação e na sustentação do laço com o outro.

Ao consideramos o brincar autossubjetivo como uma primeira manifestação do brincar, poderíamos inferir que a criança autista é capaz de brincar, ao partirmos do pressuposto de que ela, ao tocar em seu corpo, na busca de sensações ou, ainda, ao explorar de maneira sistemática e exaustiva os objetos, está vivenciando justamente esse registro mais arcaico do brincar. Sendo assim, poderíamos pensar que a própria direção do trabalho analítico com essas crianças seria vislumbrar intervenções clínicas que as levassem a vivenciar a segunda etapa do brincar, equivalente à etapa do brincar interativo (Saboia, 2019). Além disso, dependendo do grau de comprometimento patológico da criança e, ainda, do momento de seu desenvolvimento em que ela se submeteu a uma intervenção clínica, pode-se observar que muitas delas até chegam ao alcançar o brincar intrassubjetivo, que, segundo Roussillon (2008), corresponderia à última etapa do brincar, momento no qual a criança, por meio de sua produção simbólica, nos fala sobre seus conteúdos, sua realidade psíquica.

Ainda sobre o brincar, temos os pressupostos de Emmi Pikler (como citado em Tardos & David, 1991), que ressalta a importância do brincar livre ou espontâneo do bebê, fundamental para seu desenvolvimento psíquico. Seus trabalhos desenvolvidos no instituto de Lòczy, em Budapeste, com bebês institucionalizados (abrigos ou creches), servem como referência para muitos profissionais da saúde e da educação da primeira infância em diferentes partes do mundo, pois preconizam a importância desse brincar livre ou espontâneo do bebê no processo de construção da subjetividade da criança. Emmi Pikler observa que é através dos cuidados corporais que o bebê elabora essas experiências sensoriais, sendo necessário para isso que o bebê se beneficie de uma relação privilegiada e rica com a cuidadora, o que, num contexto de coletividade, é mais difícil, mas não impossível, se tomarmos os momentos dos cuidados corporais (troca de fralda, banho, alimentação etc.) como momentos oportunos para que a dupla bebê-educadora usufrua de uma relação única e privilegiada.

Para isso, porém, é fundamental que não só a cuidadora esteja disponível fisicamente, para suprir as necessidades básicas do bebê, mas também que ela esteja disponível psiquicamente. Parafraseando o conceito “da mãe suficientemente boa” de Winnicott (1956), diríamos que a cuidadora deveria estar “suficientemente atenta” aos ritmos e às produções pré-verbais do bebê. Dizemos “suficientemente atenta” e não “suficientemente boa”, pois não se espera que a profissional, esteja ela em creche ou abrigo, possa vir a desempenhar a função materna, visto que isto seria uma demanda da ordem do impossível, pois, como nos lembra Judit Falk (como citado em David & Appel, 2011), o bebê por si mesmo é o objeto narcísico para os pais, o que não seria o caso na relação do profissional com o bebê, uma vez que, para aquele, é o seu trabalho com o bebê que ganha o estatuto de objeto narcísico.

Esse mesmo viés é defendido por Mariotto (2009), ao afirmar: “mesmo que as gratificações afetivas imaginárias estejam presentes no desempenho do ofício, o caráter profissional enquanto meio de subsistência se destaca” (p. 136). Nesse sentido, dizemos que as cuidadoras das creches teriam a função de dar continuidade às marcas simbólicas inscritas na relação mãe-bebê, continuidade esta fundamental para que o bebê possa ter confiança no ambiente e no adulto de referência, podendo assim vivenciar a experiência da continuidade de ser (going on being), condição importante para que o bebê venha a se constituir como sujeito e capaz de estabelecer laços afetivos e sociais.

Mas, afinal de contas, os profissionais das creches que, estão nos cuidados diretos com os bebês teriam conhecimento da importância de seu papel, como atuantes fundamentais, no processo constitutivo da criança e de seu desenvolvimento psicoafetivo? Vale lembrar que esses profissionais tomam um lugar de um adulto de referência, visto que os bebês lhes são entregues sob seus cuidados - numa idade cada vez mais precoce e por um período mais longo -, já que se constata que, atualmente, grande parte das crianças da sociedade urbana e contemporânea passa mais tempo no ambiente educacional do que no ambiente familiar. Além do mais, se pensarmos que as creches, impregnadas pela sua conjuntura histórica benevolente, a qual se detinha mais a adaptá-las às necessidades das mães (oprimidas pelos seus trabalhos) do que das próprias crianças. E, mesmo ulteriormente, quando passam a ser dirigidas pelo viés educacional, suas doutrinas pedagógicas detêm-se mais nas questões associadas ao desenvolvimento cognitivo e psicomotor dos bebês, em detrimento dos aspectos relacionados ao desenvolvimento psíquico (Kupfer, Bernardino, & Mariotto, 2012, 2014). Como viabilizar que condições favoráveis para desenvolvimento psíquico se desenrolem como esperado em bebês que passam grande parte de seu dia nos ambientes coletivos e institucionalizados?

Se partirmos do pressuposto teórico de que seria graças aos cuidados corporais que os bebês dos ambientes coletivos poderiam encontrar momentos privilegiados e duais com os adultos de referência, como observar e garantir que esses momentos estejam presentes na relação bebê-cuidadora? E, ainda, se partirmos de nossa hipótese principal, segundo a qual seria via essas trocas interativas que o bebê vem experienciar trocas prazerosas e contínuas com o adulto de referência, por meio do que denominamos de brincar precoce, qual seria o impacto no desenvolvimento desses bebês que se encontram privados dos momentos duais com os cuidadores de referência?

Tendo em mente esse problema de pesquisa, optamos por realizar um estudo longitudinal de bebês na faixa de idade dos 8 meses aos 4 anos de idade, esses bebês encontravam-se inicialmente nas turmas de berçário 1 das creches envolvidas neste estudo. A escolha por companha-los até idade de 4 anos justifica-se pela necessidade de alcançarmos, com maior precisão, os aspectos associados à qualidade de seu desenvolvimento psíquico, o que vai ao encontro do objetivo principal da pesquisa, que é compreender aspectos subjetivos desses bebês que não puderam experimentar momentos de trocas lúdicas com seus cuidadores.

Para isso, incluímos em nossa pesquisa três instrumentos: 1 - Os Indicadores de Risco de Desenvolvimento Infantil (IRDIS); 2 - A Avaliação Psicanalítica aos 3 anos (AP3); e 3 - a Maleta Projetiva da Primeira Infância (MPPE), descritos a seguir. A correlação desses três instrumentos serviu como ferramentas importantes para alcançar o objetivo de nossa pesquisa.

Metodologia

A pesquisa aqui relatada1 estava inserida em uma pesquisa maior intitulada Metodologia IRDI: uma intervenção com educadores de creche a partir da psicanálise (Kupfer et al., 2012)2, cujo principal objetivo era proporcionar, por meio da leitura do protocolo IRDI, novos dispositivos para que os profissionais das creches viessem a incorporar, em suas práticas educativas cotidianas, o acompanhamento do desenvolvimento psíquico das crianças. A pesquisa contou com 34 creches públicas do Estado de São Paulo que participaram voluntariamente da pesquisa, e, dentro desse universo das creches, constituiu-se uma amostra de 385 crianças entre 0 e 18 meses, matriculadas nas turmas dos Berçários I. Essas crianças, eram acompanhadas semanalmente pelas pesquisadoras psicólogas/psicanalistas, que se ocupavam em observar, por duas horas, por meio da leitura do protocolo IRDI, possíveis mudanças na qualidade de interação das crianças com as professoras que tinham passado pela formação IRDI. O objetivo era avaliar se, durante os nove meses em que as pesquisadoras puderam acompanhar os bebês em suas relações com as professoras, a Metodologia IRDI havia cumprido com a proposta de sensibilizar as professoras para os aspectos subjetivos da criança. Isto é, se era possível, ou não, constatar uma diferença significativa na relação cuidador/professor-aluno, representada pela passagem dos indicadores ausentes a presentes. O grupo controle da pesquisa IRDI foi constituído pelo mesmo número amostral, mas sem a aplicação dessa metodologia.

Protocolo IRDI

O protocolo IRDI é composto por 31 indicadores, no entanto, como nosso objeto centraliza-se na questão do brincar precoce, optamos por privilegiar apenas os indicadores 15 (Durante os cuidados corporais, a criança busca ativamente jogos e brincadeiras amorosas com o cuidador/professor) e 20 (A criança faz gracinha). A escolha do indicador 15 foi feita por este nos remeter aos cuidados corporais, que, como expusemos anteriormente, se configuram como fundamentais no processo constitutivo do bebê, pois é por meio deles que o bebê pode vir a usufruir de um encontro dual e privilegiado com seu cuidador/professor no ambiente coletivo da creche. Associamos também esses jogos interativos às ideias defendidas por Laznik (2000) a respeito da presença do terceiro tempo do circuito pulsional, marcado pela intencionalidade do bebê em convocar o adulto de referência. Sobre o indicador 20, pensamos que ele talvez venha ratificar o terceiro tempo do circuito pulsional, uma vez que essa convocação do outro familiar se faz de maneira mais elaborada e evidente - a criança aqui se vê mais atuante no papel de se fazer objeto de amor do outro, pois já compreende sua capacidade de seduzir e provocar, o que, a nosso ver, implica a condição necessária para que a criança venha a brincar simbolicamente.

Instrumento AP3

A Avaliação Psicanalítica da Criança aos 3 anos (AP3) configura-se como um desdobramento do protocolo IRDI. Ela é fundamentada em quatro eixos baseados nos princípios da teoria psicanalítica: (1) suposição de sujeito; (2) estabelecimento de demanda; (3) alternância presença-ausência; (4) função paterna. Partindo-se desses eixos, tomam-se como objeto de avaliação na criança os aspectos relacionados ao seu brincar, à construção de sua imagem corporal, à sua posição diante das leis e à aquisição de sua linguagem (Kupfer et al., 2009). Como a nossa pesquisa aborda a questão do brincar, detivemo-nos apenas na leitura concernente a este ponto, considerando, precisamente, dois pontos do roteiro do brincar: 1 - A criança fantasia; 2 - A criança brinca de faz de conta. Partindo da hipótese de que o brincar atua como um indicador de sofrimento psíquico (Saboia, 2015) e tendo em mente o nosso problema de pesquisa - avaliar o impacto da ausência do brincar precoce no processo constitutivo da criança -, achamos importante também considerar, em nossas análises, a síntese diagnóstica apontada pela AP3. Assim, avaliamos se as crianças dos grupos caso e controle tendiam ou não a apresentar:

  • problemas de desenvolvimento;

  • entraves para a constituição subjetiva.

Sobre esses dois itens, considera-se que os problemas de desenvolvimento estariam associados aos sintomas constitutivos da criança, que fazem parte de seu próprio processo de desenvolvimento subjetivo, enquanto sujeito inserido na cultura e na linguagem; já o item entraves para a constituição subjetiva indica comportamentos específicos da criança que sugerem comprometimento de ordem estrutural do sujeito, apontando uma possível instalação de psicopatologias em curso.

Instrumento MPPE

O teste francês Maleta Projetiva da Primeira Infância (MPPE) (Roman, 2005), situado entre os testes projetivos de corrente psicanalítica (Chabert como citado em Roman, 2004), permite sinalizar, de maneira detalhada, o processo de produção do brincar da criança entre 0-4 anos por meio de 48 indicadores distribuídos em 7 categorias: (1) HJ (hors du jeu/exploração fora do jogo), explorações de objetos fora da área do tapete do teste MPPE; (2) SM, explorações sensório-motoras; (3) RC, solicita a participação do terapeuta-observador - sobre este indicador, vale dizer que o desdobramos também em RP (relação cuidador/professor), uma vez que nosso trabalho contemplava igualmente a relação educador-criança; (4) RE, faz uso da realidade externa; (5) EI, recorre a cenas de evitamento e inibição; (6) IF, presença do brincar de faz de conta, com recursos ao imaginário e à fantasia; (7) OC, objetividade e controle. A aplicação desse teste consistia em observar o brincar espontâneo da criança, a partir da exploração do material padronizado da MPPE, sendo este composto por brinquedos cotidianos: bola, urso, boneca, Lego, panelinhas etc. A criança é convidada a brincar livremente durante 30 minutos, sem a intervenção direta do observador, e a leitura do instrumento é feita pela contagem da frequência dos indicadores presentes no decorrer na produção do jogo da criança. A análise final dos resultados nos oferece uma leitura detalhada sobre a qualidade da expressão do brincar da criança.

A partir da leitura do banco de dados do grupo caso da pesquisa Metodologia IRDI, constituímos os grupos caso e controle de nossa pesquisa, vale dizer que, para nossa amostra, utilizamos apenas as oito primeiras aplicações dos IRDIs, realizadas com as 385 incluídas na pesquisa. Nosso grupo controle respeitou o critério de ter, pelo menos, duas avaliações válidas para os indicadores 15 e 20, ou seja, ambos os indicadores deveriam se manter presentes em, pelo menos, duas avaliações, entre as oito avaliações escolhidas. Já o grupo caso foi composto por crianças que apresentaram os indicadores 15 e 20 ausentes, em todas as aplicações, durante os nove meses de observação, ou seja, mesmo com o acompanhamento e com as intervenções das pesquisadoras ao longo da pesquisa, não se constatou a presentificação desses indicadores. Foram, assim, definidas 11 crianças para o grupo caso, num universo de 6 creches diferentes; entre esses casos, 3 foram perdidos ao longo da pesquisa, restringindo nosso estudo a apenas 8 crianças. O grupo controle se constituiu de 133 crianças num universo de 28 creches. Assim, a fim de fazer um estudo comparativo entre o grupo caso e o controle, limitamos nosso grupo controle a apenas 8 crianças, que frequentavam as mesmas creches do grupo caso, a fim de evitar que novas variáveis relacionadas às práticas adotadas de cada creche pudessem influenciar nossas análises. O pareamento dos grupos também levou em conta alguns critérios tais como: o mesmo nível socioeconômico e a mesma idade das crianças

As crianças que compunham os grupos caso e controle foram reavaliadas aos 2 anos de idade, por meio da aplicação do instrumento MPPE, com o objetivo de verificar a qualidade do brincar de cada uma delas e a maneira como elas investiam na produção do jogo simbólico, visto que é por meio do brincar que acessamos seu mundo interno e podemos, assim, ter uma compreensão do seu desenvolvimento psíquico. As aplicações da MPPE eram realizadas em um único encontro de vinte minutos com cada criança estudada. Optou-se por um período de apenas 20 minutos de avaliação, dada a pouca disponibilidade dos professores de se retirarem da sala de aula com a criança, já que a aplicação da MPPE acontecia em uma sala isolada da creche, com pouca presença de estímulos, com a presença da professora de referência (profissional com que a criança se mostrava mais próxima), juntamente com a presença da pesquisadora. É importante ressaltar que a observação da MPPE se dava apenas após a devida autorização da família e da creche, obtida através da assinatura de um termo de consentimento aprovado3.

Em uma segunda etapa da pesquisa4, propusemos fazer um estudo longitudinal dessas crianças analisadas, a fim de melhor compreender o impacto da ausência dessas trocas lúdicas e prazerosas entre bebês-cuidadoras/professoras, no processo de seu desenvolvimento psíquico. Recorremos, assim, à análise dos resultados da AP3 dessas crianças, privilegiando, precisamente, os aspectos associados à análise do brincar.

Levando em conta o fato de que, nesse período associado à Primeira Infância, que abrange a idade de 0 aos 3 anos, a organização da realidade psíquica da criança pequena encontra-se em pleno processo de construção - daí a importância de deixar a diagnóstico clinico em “aberto”, visto que certos fenômenos comportamentais podem desdobrar-se em diferentes organizações psíquicas no decorrer de seu desenvolvimento psicomaturacional -, optamos por abranger nosso estudo até a idade de 4 anos, com o intuito de um maior aprofundamento da organização psíquica da criança. Assim, neste segundo momento da pesquisa, recontactamos as famílias das crianças estudadas, uma vez que, estas últimas nessa faixa etária, já estavam desligadas das creches vinculadas à nossa pesquisa. Constatamos que algumas seguiram para as EMEIs (Escolas Municipais de Educação Infantil) enquanto outras se encontravam em escolas particulares, sendo que três entre elas se perderam ao longo da pesquisa, o que nos limitou a um grupo de apenas 5 crianças das oito iniciais.

Repassamos o instrumento MPPE seguindo o mesmo procedimento metodológico da aplicação realizada aos 2 anos, no entanto, tivemos de lidar com uma possível limitação de nosso estudo, uma vez que nos deparamos com novas contingências de variáveis, associadas a dois universos amostrais (escolas públicas e particulares), com novas variáveis, tais como: número de professores por aluno, propostas pedagógicas diferenciadas e o tempo de permanência da criança no ambiente escolar. Outra limitação surgida no decorrer da pesquisa foi a impossibilidade de aplicar os testes exatamente com a idade inicialmente planejada, pois há variações de até 4 meses de idade de uma criança para outra, em decorrência da dificuldade de um agendamento com as instituições e famílias.

Resultados

Pensando na importância de inscrever nossa pesquisa na corrente atual de pesquisas científicas, cujos critérios exigem, com cada vez mais frequência, análises estatísticas e numéricas, propusemos articular nossa leitura clínica a dados quantitativos. No entanto, vale frisar que essa tentativa de articular o método estatístico com o método de observação clínica, ou dados objetivos e subjetivos, tem como princípio tornar os dados estatísticos numa espécie de simples norteadores de nossa leitura clínica, bem como para efeitos de comunicação com as comunidades científicas em geral. Não se pretende, entretanto, por meio das análises quantitativas, reduzir nosso olhar clínico e subjetivo das crianças avaliadas a meros dados numéricos e, sim, de correlacionar a leitura dos nossos resultados quantitativos aos resultados qualitativos, a fim de melhor conceitualizar e mesmo difundir os resultados encontrados.

Os resultados de nossos estudos nos apontam que os bebês que não faziam jogos amorosos durante os cuidados corporais (indicador 15 ausente) com as cuidadoras de referência e não faziam gracinha (indicador 20 ausente) apresentavam, aos 2 anos, um brincar pobre simbolicamente, segundo dados fornecidos pela MPPE - resultado este consideravelmente confirmado pela ausência do brincar de Faz de Conta e da Fantasia apontada pela AP3, aos 3 anos de idade, e reforçado, mais tarde, pelos resultados obtidos com a reaplicação da MPPE aos 4 anos de idade. Esses comportamentos já são perceptíveis em certos casos aos 2 anos de idade, quando se observa uma discrepância entre o escore referente aos indicadores HJ (explorações de objetos fora da área do tapete do teste) e SM (explorações sensório-motoras) entre os grupos caso e controle (média estimada de 6 para o grupo caso e 1 para o grupo controle (HJ) e média estimada de 12,5 para o grupo caso e de 3,1 para o grupo controle (SM) (ver tabela I - Anexo).

Esses dados poderiam ser traduzidos pela dificuldade da criança em investir no material do jogo em detrimento de interesses aleatórios do material disponível fora da aérea do jogo. Além disso, vale dizer que há uma queda significativa nesses dois indicadores (HJ e SM) na segunda aplicação da MPPE, quando as crianças estavam com aproximadamente 4 anos: esse dado, contudo, era esperado, pois o brincar das crianças neste momento de seu desenvolvimento psicoafetivo deixa de ser marcado por um brincar mais primitivo e rudimentar para dar lugar a explorações mais elaboradas. No entanto, constata-se que, paradoxalmente, essa queda mostra-se mais significativa para o grupo caso, pois as explorações e brincadeiras das crianças deste grupo, na primeira aplicação, eram tipicamente da ordem sensorial, com momentos de recusa e retraimento, comportamentos estes apontados pelo indicador HJ: a média de 6 (1ª aplicação da MPPE) cai para 3,2 (2ª aplicação), o que justificaria a queda representativa desse indicador na segunda aplicação da MPPE. O contrário se observava no grupo controle (média do indicador HJ vai de um escore de 0,66 para 0,83), uma vez que as crianças deste grupo apresentavam, desde a primeira aplicação da MPPE, um brincar mais rico e elaborado, tal como apontam os indicadores IF (recurso ao imaginário e à fantasia: média estimada passa de 3,83 [1ª aplicação] para 5,50 [2ª aplicação]); e RE (recurso à realidade externa: média estimada passa de 6,0 [1ª aplicação] para 6,33 [2ª aplicação], ao passo que, para o grupo caso, tem-se um escore menos expressivo: IF de 0 [1ª aplicação] e 0,6 [2ª aplicação]; e RE de 1,8 sem variação para a segunda aplicação da MPPE) (ver Tabela 1).

Tabela 1
Comparação dos escores das aplicações da MPPE entre os grupos caso e controle

Observa-se, por exemplo, que as crianças do grupo controle já costumavam pegar as panelinhas e faziam menção de preparar algo para comer ao mexer com a colherzinha. Pegavam também, frequentemente, a mamadeira para oferecer à boneca, brincadeiras que eram raramente vistas aos 2 anos no grupo caso. Notamos também uma leve evolução no brincar das crianças do grupo caso, pois há uma queda nas explorações do tipo contato e do tipo manipulação para este grupo (contato: média estimada passa de 2 [1ª aplicação] para 1 [2ª aplicação]; manipulação: média estimada passa de 4 [1ª aplicação] para 1,75 [2ª aplicação]), bem como há uma queda significativa do escore EI (evitamento e inibição), cuja média passa de 3 para 2 entre as duas aplicações da MPPE. No entanto, é preciso enfatizar que, apesar dessa aparente evolução na qualidade do brincar das crianças do grupo caso, ainda fica evidente a pobreza simbólica do seu brincar, quando comparado ao do grupo controle. Esse resultado é apontado, por exemplo, pela baixa de produção de jogos do tipo Faz de Conta pelas crianças do grupo caso, cuja média apresentada é 0,4 (1ª e 2ª aplicações), em comparação com uma média de 4,5 (para a 1ª aplicação) e de 6 (para a 2ª aplicação) no segundo grupo (ver Tabela 1).

Essa discrepância entre os dois grupos estudados também é evidenciada pela maneira como a criança explora os objetos do jogo, ou seja, se ela nomeia os objetos ao pegá-los, se ela tende a ordená-los, ou ainda se tende a guardá-los nas mãos durante a aplicação da MPPE - tais aspectos são avaliados pelo indicador OC (objetividade e controle) do teste da MPPE: no grupo caso - média de 2,4 (para a 1ª aplicação) e 4,0 (2ª aplicação); no grupo controle -média de 6,0 (1ª aplicação) e 5,0 (2ª aplicação) (ver Tabela 1). Observou-se, assim, que as crianças do grupo controle apresentavam uma maior frequência nas duas aplicações da MPPE, quando comparadas com as do grupo caso, no entanto, foi verificada uma queda desse indicador na segunda aplicação da MPPE, pois as crianças do grupo controle já não apenas nomeavam os objetos, mas também se engajavam numa brincadeira com enredo e narração, o que explicaria o aumento dos indicadores associados à presença dos recursos IF (recurso ao imaginário e à fantasia) e RE (recurso à realidade externa), tal como explicitado anteriormente.

Esses resultados parecem ser confirmados quando analisamos os dados fornecidos pela AP3, pois foi observado que as crianças do grupo caso tendiam a apresentar uma ausência do brincar de Faz de conta e de Fantasia, sugerindo, uma associação entre os instrumentos AP3 e MPPE. Pôde-se observar, por exemplo, que quanto maior os indicadores HJ (exploração sensório-motora) e EI (evitamento e inibição) aos 2 anos, menor a presença do brincar do tipo Faz de conta e Imaginação no AP3 ao 3 anos, bem como é maior a presença da variável entraves para a constituição subjetiva (r = 0,862) (p = 0,001) (ver Tabela 2). Essa correlação é representada quando pudemos constatar que as crianças que tinham um brincar mais marcado por explorações do tipo Contato e Manipulação aos 2 anos, apresentavam, aos 3 anos, ausência de um brincar de Faz de conta e de Fantasia pela AP3, como nos indicam as correlações negativas entre a variáveis Contato e Fantasia da AP3 (r = -0,683) e (p = 0,007) e Contato e Faz de conta (r = -0,580) (p = 0,030) 5. Também se constata a correlação negativa entre os indicadores HJ (exploração fora do jogo) e Fantasia e Faz de conta na segunda aplicação da MPPE (r = -0,653) (p = 0,011) e (r = -0,637) (p = 0,014), respectivamente (ver Tabela 3). Nessa mesma perspectiva, temos os indicadores EI (Evitamento e Inibição) e Fantasia (r = -0,694/p = 0,006), o que nos sinaliza que, quanto maior a dificuldade da criança de se engajar na exploração do jogo, menor a probabilidade de apresentar um jogo rico de elementos simbólicos. Por outro lado, contatamos uma correlação positiva entre as variáveis RE (recurso à realidade externa) com os indicadores Faz de conta e Fantasia (r = 0,618) (p = 0,018), ou seja, as crianças que já apresentavam um brincar imitativo também apresentavam um brincar mais rico em fantasias. Esses dados persistiam na maioria das crianças do grupo caso até aos 4 anos de idade, ao correlacionarmos a MPPE aplicada nessa idade com a AP3.

Tabela 2
Correlação entre as variáveis da primeira aplicação da MPPE e a AP3
Tabela 3
Correlação entre as variáveis da segunda aplicação da MPPE e a AP3

Desse modo, pudemos constatar que as crianças do grupo caso (privadas de trocas lúdicas com profissionais de referência) mostravam uma tendência maior a apresentar entraves para a constituição psíquica (25% para o grupo caso e 0% para o grupo controle), bem como para problemas de desenvolvimento, quando comparados com o grupo controle (75% para o grupo caso e 50% para o grupo controle). Pudemos ainda constatar que esses bebês que não apresentavam a produção do brincar precoce demonstraram, ulteriormente, menor porcentagem de produção da fantasia (40% do grupo caso e 100% do grupo controle).

Discussão

Os resultados finais de nossa pesquisa apontaram sobre a importância de que os bebês tenham experiências de trocas lúdicas e prazerosas com um adulto de referência, para que se tornem ativos em suas explorações e brincadeiras, acessando assim o campo do simbólico e da linguagem. Constatamos, desse modo, que os bebês que vivenciam experiências precoces de um brincar a dois (brincar intersubjetivo) vão gradativamente internalizando a presença do prazer compartilhado, vivenciado pelo encontro com o outro, garantindo-lhes, no après coup, a possibilidade de um brincar sozinho na presença do outro (capacity to be alone). Os dados apresentados pelo instrumento IRDI ilustram essas hipóteses teóricas à medida que constatamos que os bebês que apresentavam o indicador 15 ausente aos 8 meses, tendiam, aos 12 meses, a apresentar sinais que evidenciavam desvitalização psíquica, expressada, por exemplo, pela sua posição passiva quando se encontravam diante da presença do adulto (indicador 20). Constatou-se, por exemplo, que essas crianças não mostravam intencionalidade em estabelecer, de modo espontâneo, laços com o adulto por meio de jogos, como o de “fazer gracinhas”, gestos estes tão corriqueiros nas crianças dessa faixa dos 12 meses de idade.

Observamos também que essas mesmas crianças, ao serem avaliadas por volta dos 2 anos de idade, por meio da aplicação do teste da Maleta Projetiva da Primeira Infância (MPPE), já sinalizavam comprometimento em termos de qualidade da produção do brincar simbólico em comparação com as crianças do grupo controle. Por exemplo, elas tendiam a mostrar desinteresse em explorar os brinquedos disponíveis no tapete do jogo, não porque parecessem constrangidas pela situação não familiar do teste - como aconteceu com algumas crianças que, ao se sentirem seguras, passavam naturalmente a explorar os brinquedos -, mas por uma provável incapacidade de se deixar levar pela curiosidade e interesse em explorar os objetos. Além disso, observou-se que, quando elas se lançavam na exploração, após intervenções da observadora, seu brincar era marcado por explorações sensoriais, como pegar a massinha e manipulá-la sem fazer uso de um brincar simbólico, como o de fazer comidinha, cena que víamos tão recorrentemente no grupo controle. Essas mesmas crianças, quando brincavam de Lego, mostravam dificuldade em encaixar as peças, montá-las ou desmontá-las, não por um problema de ordem psicomotora, mas, sobretudo, por uma ausência de uma intencionalidade em explorar ativamente os objetos, o que sinalizava possíveis falhas na qualidade de seus investimentos pulsionais e levava suas explorações a serem marcadas por movimentos lentos e descontínuos.

Os resultados da APE 3 revelaram ainda que essas explorações pobres e limitadas pareciam desdobrar-se, nesta faixa etária de vida da criança, em um brincar ainda pouco expressivo simbolicamente. Por exemplo, era possível constatar que essas crianças do grupo caso, ao brincarem com jogos de panelinha ou com os bonecos da família, expressavam um brincar que correspondia mais a um jogo imitativo ou associativo do que de fato a um jogo de “faz de conta”, com a presença de enredo e fantasia.

Quanto ao aspecto associado às Fantasias apontadas tanto pelo teste MPPE quanto pela AP3, observamos uma diferença significativa entre os grupos caso e controle. Embora tenham sido observadas certas diferenças quanto à capacidade de fantasiar entre as crianças do grupo controle, todas elas fantasiavam e brincavam de faz de conta, isto porque aquelas que não verbalizavam espontaneamente acabavam se enlaçando num enredo quando a observadora intervinha, perguntando algo sobre sua brincadeira: as crianças respondiam, por exemplo, que estavam construindo uma torre ou um castelo com os Legos, ou que estavam cozinhando uma sopa gostosa com as panelinhas para oferecer à boneca ou, ainda, montavam cenas com os bonecos da família. Essa espontaneidade era pouco observada nas crianças do grupo caso, pois a grande maioria, mesmo quando interrogada, tinha grandes dificuldades de se engajar numa brincadeira simbólica, restringindo-se apenas a um brincar mais do tipo brincar associativo e imitativo. As crianças eram capazes, por exemplo, de montar as peças do Lego, ou mesmo de colocar a massinha dentro da panela ou do prato, num ato que sugeria uma imitação de cenas do cotidiano (RE) vistas por elas, porém não eram capazes de fantasiar ou de construir uma brincadeira com enredo, na qual pudéssemos identificar uma sequência com início, meio e fim em seu brincar.

Constamos também que o indicador EI (Evitamento e Inibição) da MPPE nos fornece resultados importantes para se pensar sobre a diferença entre retraimento relacional e timidez, pois observamos que as crianças que não se engajavam na brincadeira, apesar das intervenções da observadora que as convoca, apresentavam uma dificuldade que ia além da mera timidez, pois se esquivavam da situação da observação, evidenciando uma incapacidade de investir nas explorações dos objetos e mesmo de estabelecer um laço com a observador (Saboia, 2018b) Vale dizer que, muitas vezes, esse retraimento era considerado pelas educadoras como uma mera timidez, o que colocava em evidência seu desconhecimento no que diz respeito aos aspetos associados ao desenvolvimento psíquico da criança. Notamos também a dificuldade dessas educadoras de observarem e respeitarem o ritmo do brincar dessas crianças visto que, muitas vezes, elas intervinham de maneira atravessada, com o intuito de verificar o “saber” e o conhecimento da criança, ao questioná-las sobre o nome das cores e dos objetos. Cena que vem desvelar o fato de quanto às instituições de educação infantil têm privilegiado a aprendizagem e a hiperestimulação de competências do bebê sem, contudo, oferecer-lhe as condições necessárias para seu desenvolvimento psicoafetivo.

Observamos que, no grupo caso, as crianças que pareciam ter mais recursos psíquicos - pois conseguiam, por vezes, apresentar um brincar de faz de conta, embora com pobreza simbólica - eram aquelas que apresentavam problemas de desenvolvimento, mas não entraves para a constituição subjetiva, segundo a síntese diagnóstica da AP3. Esses problemas de desenvolvimento eram sugeridos por sintomas como dificuldades na fala, passividade diante da proposta do jogo, pobreza simbólica, permanência com o mesmo objeto do jogo, o que, além de dificuldade de separação, indica problemas de adaptação. Já as crianças que apresentavam sintomas mais importantes, que sugeriam entraves para a constituição subjetiva, mostravam uma recusa de se lançar na brincadeira, ausência de fala, ausência de produção simbólica em suas brincadeiras e ausência de fantasias. Além disso, havia uma pobreza importante no que concerne à expressão verbal, pois as crianças tendiam igualmente a recusar o convite da brincadeira, preferindo muitas vezes explorar o ambiente e objetos da sala aos brinquedos propostos no tapete do jogo. Essas evidências ainda se fizeram presentes quando essas crianças foram novamente reavaliadas aos 4 anos de idade pela MPPE, momento no qual pudemos observar, em algumas delas, a presença de traços que sinalizam uma possível organização autística em curso.

Conclusão

A partir dos dados analisados, pudemos constatar que bebês que não encontravam, nas creches, um interlocutor capaz de dar continuidade ao estabelecimento dos jogos primordiais do bebê (playground) e, com ele, a garantia da instalação do registro do terceiro tempo pulsional (Laznik, 2013) (indicador 15), apresentavam, ainda no primeiro ano de vida, ausência de comportamentos associados a sua capacidade de “seduzir” e convocar o adulto para o estabelecimento de uma brincadeira a dois (indicador 20). Estes mesmos bebês, que integravam o grupo caso de nosso estudo, apresentaram, aos 2 anos de idade, uma defasagem importante no que diz respeito a sua capacidade de se engajar na produção do jogo simbólico: a análise dos resultados da MPPE apontou uma predominância de um brincar imitativo e estereotipado, em detrimento de um brincar de faz de conta. Essa pobreza simbólica do brincar pôde ainda ser mais bem constatada entre os 3 e 4 anos de idade, tal como apontam os resultados de nosso estudo longitudinal, levando assim a inferir que a ausência do brincar precoce do bebê, o qual implica as experiências de um brincar compartilhado nas trocas inicias entre o bebê e o adulto de referência, pode trazer impacto importante no processo da construção da subjetividade da criança.

Por fim, podemos concluir quanto à importância de sensibilizar o papel do educador como agente promotor de saúde mental, vez que, como foi possível constatar, é necessário que os educadores incorporem, em suas práticas cotidianas, estratégias que privilegiem não apenas o desenvolvimento cognitivo, mas, sobretudo, o psíquico, pois, para que a criança possa se colocar como um sujeito do saber, é necessário, primeiramente, que ela se coloque como um sujeito desejante.

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  • 1
    Pesquisa de pós-doutorado financiada com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), 2012/51774-3.
  • 2
    Pesquisa financiada pela Fapesp (2012/50156-4).
  • 3
    Esta pesquisa foi aprovada pelo Comité de Ética em Pesquisa do Departamento de Pediatria da Universidade de São Paulo (USP) (número 516/11).
  • 4
    Essa etapa da pesquisa também recebeu financiamento da Fapesp.
  • 5
    Correlação de Pearson: *p<0,05; **p<0,01.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    08 Set 2023
  • Aceito
    15 Set 2023
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