Resumo
A construção dessa pesquisa parte da concepção decolonialista e discorre sobre a filosofia, seu ensino e a diversidade étnico-racial sob a perspectiva da Lei 10.639/03. A pesquisa é qualitativa e os resultados dados foram obtidos através da coleta documental, que teve como objeto de análise os oito livros de filosofia do PNLD/2018 e um questionário misto aplicado a 31 professores de filosofia do Ensino Médio (EM). A pesquisa apontou que nos livros analisados e nas aulas de filosofia no EM, não há a efetiva inclusão da Lei 10.639/03 em seus conteúdos. Sendo assim, é possível afirmar que a filosofia ainda tem muito a fazer em relação à temática da diversidade étnico-racial, devendo problematizar seu próprio eixo epistemológico e abrir espaço para que o fazer filosófico seja fator crucial na transformação das teorias e práticas racistas presentes dentro e fora dos muros escolares fomentando a problematização das relações sociais vigentes, de modo a promover as lutas antirracistas.
Palavras-chave
Livros de Filosofia do PNLD/2018; Lei 10.639/03; Diversidade étnico-racial; Ensino de Filosofia; Ensino Médio
Abstract
The construction of this research starts from the decolonialist conception and discusses philosophy, its teaching and ethnic-racial diversity from the perspective of Law 10.639 / 03 The research is qualitative and the data were obtained through the documentary collection, which was the 8 books of PNLD / 2018 philosophy as an object of analysis and a mixed questionnaire applied to 31 high school philosophy teachers (EM). The research pointed out that in the analyzed books and in the philosophy classes at EM, there is no effective inclusion of Law 10.639 / 03 in its contents. In this sense, it is possible to affirm that philosophy still has a lot to do in relation to the theme of ethnic-racial diversity, having to problematize its own epistemological axis and open space for the philosophical doing to be a crucial factor in the transformation of racist theories and practices present within and outside the school walls, fostering the problematization of current social relations, in order to promote anti-racist. struggles.
Keywords
PNLD/201; Books of Philosophy; Law 10.639/03; Ethnic-racial diversity; Philosophy teaching; High school
1. Introdução
O ocultamento da diversidade que o Brasil vem reproduzindo, tem cultivado, entre índios, negros, empobrecidos, o sentimento de não pertencer à sociedade.
(Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva)
As demarcações dos espaços sociais determinados a brancos e negros perfazem o contingenciamento da desigualdade social, visto que à população negra foi atribuída a “parte de baixo” da pirâmide, relegando os negros à exclusão. Conforme Moreira (2016, p. 45)Moreira, A. M. F. (2016). O processo educativo da comunidade quilombola de carrapatos da tabatinga: A afirmação identitária e a formação de sujeitos engajados mediante transmissão oral de uma memória compartilhada. [Dissertação de Mestrado, Universidade do Estado de Minas] PPGE-UEMG., “se considerarmos o contingente populacional negro e afro-brasileiro e contrapormos com os índices de vulnerabilidade e promoção social, veremos que essa população ainda permanece num lugar de marginalidade e de exclusão”.
Assim, cabe repensar as questões relativas à igualdade, no campo da educação e fora dela, pois, para desconstruir esses espaços de preconceito e discriminação “[…] não basta a lógica da razão científica que diz que biologicamente não existem raças superiores e inferiores, como não basta a moral cristã que diz que perante Deus somos todos iguais, para que as cabeças de nossos alunos possam automaticamente deixar de ser preconceituosas”. (Munanga, 2005Munanga, K. (2005). Superando o Racismo na escola (2. ed. Revisada). Unesco., p. 11).
A interação entre colonizados e colonizadores, forçada pelos (des)caminhos da colonização eurocêntrica, produziu um mosaico de corporeidades, vozes, percepções, sentimentos e pensamentos, ideais e medos e toda uma gama de elementos existenciais apresentados e vividos em vasta complexidade, gerando novos modos de ser e existir que, entre vários aspectos, foram/são (re)constituídos.
Fruto da desigualdade em vários níveis, o racismo se põe, portanto, como uma ferida social que precisa ser curada mediante a problematização do status quo e instauração de uma educação para a diversidade. A cada vez que a escola e a sociedade silenciam/mascaram a existência do racismo, muito mais eloquente se faz a violência produzida pela não aceitação das diferenças, que por isso, se tornam desigualdades.
(Re)discutir as narrativas relacionadas à questão do racismo no Brasil é criar possibilidades de abrir fendas nos diversos espaços sociais que constituem a sociedade brasileira. Destarte, pensar a trajetória do preconceito, da diáspora africana às expressões de preconceito e discriminação presentes também no século XXI, é uma busca de empreender e fomentar a existência de uma sociedade antirracista.
Assim, este artigo investiga a presença/ausência do estudo da Cultura, História e Arte da África e dos afrodescendentes, conforme as determinações da Lei 10.639/033 3 Conforme a Lei nº 10.639… (2003, n. p.) o texto que muda a LDB 9394/96, tem em sua redação as seguintes informações: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. . Os dados apurados que compõem a pesquisa dizem respeito aos oito livros de filosofia sugeridos pelo MEC no PNLD/2018, nos quais se examinou a presença/ausência da temática da diversidade étnico-racial, em especial, no que tange a relação da Filosofia e seu ensino com os temas afins à Lei 10.639/03.
O objetivo deste artigo foi apurar e analisar a presença dos conteúdos relativos à “História e Cultura Afro-brasileira” nos livros didáticos (LD) de filosofia sugeridos no PNLD/2018. A intenção, portanto, foi identificar em cada obra a presença ou ausência de elementos teóricos que contemplem a História e Cultura da África, para além da abordagem escravista. As demarcações teóricas que modulam a leitura e análise dos dados, sobre as quais as tessituras interpretativas foram urdidas, são inspiradas em Deleuze e Guattari (2010)Deleuze, G. & Guattari, F. (2010). O que é a Filosofia? (3. ed.) Editora 34., em Levinás (1997)Levinás, E. (1997) Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Vozes. e na concepção afroperspectivista/ decolonialista.
O livro didático (LD) fomenta a formação de espaços de interpretação, diálogo e compreensão da filosofia e do filosofar na Educação Básica (ED). Presente no dia a dia da docência da filosofia no EM, torna-se, portanto, imprescindível que o LD possa também proporcionar a construção de narrativas que, além de conscientizar, deveriam frear o avanço do preconceito e da violência que configuram os cenários de intolerância e discriminação que vivenciamos no país.
Destarte, no que diz respeito aos livros de filosofia do PNLD/2018, o cumprimento ou não das determinações previstas na Lei 10.639/03, se tornou um aspecto importante para a observação e análise. A indagação que direcionou a pesquisa intenta saber se as orientações/determinações da Lei 10.639/03 estão presentes nos livros de filosofia do PNLD/2018. Como complementação ao estudo, foram apresentados alguns dados referentes às práticas docentes dos professores de filosofia do EM4 4 O grupo de 31 professores de filosofia do EM investigados teve a seguinte configuração: se declararam do gênero masculino (28) e feminino (6); 17 têm entre 41 e 60 anos, 12 até 40 anos e 1 mais de 60 anos; 25 são formados em filosofia, 4 em história, 1 Ciências Sociais e 1 tem formação sacerdotal; 16 se declararam brancos, 10 pardos, 4 pretos e 1 indígena; 15 lecionavam filosofia em escolas particulares e 16 em escolas públicas. , verificando se os sujeitos de pesquisa incluem em seus planejamentos de aula os temas afins à Lei 10.639/03.
A diversidade étnico-racial se faz presente no âmbito da docência da filosofia, ao compreendermos que a disciplina e sua ensinabilidade, nas teorias filosóficas, percebem o homem, Sujeito e Objeto do conhecimento, concebido como ser-em-construção. Daí instaura-se, no centro da discussão filosófica, a busca em compreender as relações sociais estabelecidas.
Nesta perspectiva, ainda que a humanidade seja uma prerrogativa da existência do humano, independentemente de tudo o que diferencia as pessoas entre si, em especial no que se refere à cor da pele, há uma clivagem na forma como as sociedades, em geral, compreendem os diferentes indivíduos e grupos que as constituem. É nesta perspectiva que se pressupõe que os livros analisados, não contemplam a Lei 10.639/03 na construção de seus conteúdos.
Para promover ações antirracistas, tendo uma sociedade regida pelo viés da Alteridade, é necessário alterar o ponto de referência epistemológico/axiológico vigente. Tal concepção de sociedade da Alteridade, aqui apresentada, pauta-se na concepção de Levinás (1997)Levinás, E. (1997) Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Vozes. onde Eu e Outro se estabelecem numa necessária conjunção relacional. “O rosto que me olha me afirma” diz Levinás (1997, p. 63)Levinás, E. (1997) Entre nós: Ensaios sobre a alteridade. Vozes., por conseguinte, ao reconhecer o Outro produzo em mim um autorreconhecimento.
Desta forma, a relevância da pesquisa está em dar maior visibilidade à importância em discutir o racismo que perpassa os eixos identitários da sociedade brasileira. O que é e como se dá o racismo no Brasil? As aulas de filosofia podem dirimir o racismo e a desigualdade racial? O LD e os demais materiais didáticos trabalhados pelos professores de filosofia do EM trazem para a sala de aula o que é determinado pela Lei 10.639/03?
No intuito de responder às indagações apresentadas, o artigo aborda a questão da diversidade étnico-racial e suas vicissitudes no Brasil. Em seguida, são apresentadas algumas reflexões em torno da filosofia e o filosofar na perspectiva da reflexão decolonialista para, enfim, trazer os dados da pesquisa e sua análise.
2. A diversidade étnico-racial e o racismo no brasil – Reflexões acerca da Lei 10.639/03
Ainda nos falta muito para compreendermos que o fato de sermos diferentes uns dos outros é o que mais nos aproxima e o que nos torna mais iguais.
(Nilma Lino Gomes)
De acordo com Lopes (2002)Lopes, N. (2002) Racismo explicado aos meus filhos. Nova Fronteira., sendo o “maior país da América do Sul em extensão territorial, o Brasil, pela expressividade de sua população afrodescendente (sic), faz parte do conjunto de regiões que se conhece como Afro-América”. (p. 139). Essa característica, forjada pelo escravismo, inscreve-se no âmbito das raízes formadoras do povo brasileiro, engendrando os mecanismos de discriminação étnico racial frente aos negros.
Os processos ideológicos que legitimaram a diferenciação dos países colonizadores e suas colônias ordenam o campo da construção das identidades sociais e, nesse contexto, repleto de significados, são esses os elementos centrais que gestam o preconceito étnico-racial. Para Munanga (2005)Munanga, K. (2005). Superando o Racismo na escola (2. ed. Revisada). Unesco., “[…] o preconceito é produto das culturas humanas […] transformou-se em arma ideológica para legitimar e justificar a dominação de uns sobre os outros” (p. 11).
A depreciação da África (e seu povo) se traduz na inferiorização e invisibilidade da população negra expressas na teoria de vários autores. Segundo Lopes (2002)Lopes, N. (2002) Racismo explicado aos meus filhos. Nova Fronteira., a superioridade branca, alcançada sob a força econômica dos colonizadores europeus e imposta através da violência do tráfico negreiro – exteriorizada nos castigos físicos – engendrou o esvaziamento da identidade dos cativos, e se perpetua nos discursos e ações da sociedade atual, exigindo uma mudança radical na forma de conceber a questão da diversidade étnico-racial no Brasil e no mundo.
De um olhar crítico em relação a esse cenário, emerge o debate acerca da colonialidade do poder e o eurocentrismo que se instituem enquanto elementos constitutivos da formação da sociedade em suas diversas construções e elaborações, principalmente nos países da América Latina e da África.
É imperativo tirar o véu e ver a luta antirracista, o negro, o afrodescendente, seus rostos, suas expressões religiosas, suas múltiplas faces, seus variados modos de existir, problematizando a não naturalidade de ter a cor da pele como parâmetro para a discriminação e o racismo. Enfim, a visibilidade/invisibilidade da questão racial, inerente às relações sociais do Brasil desde a época colonial se apresenta com uma gama de significados, por vezes, completamente distintos que são atribuídos/impostos/aceitos, construídos e (des/re)construídos a cada dia na trama da formação da sociedade.
Por esse motivo, diante da necessidade de (re)configurar a concepção de razão para além do campo Europa/EUA, é imprescindível que a África, sua cultura, sua racionalidade e seus descendentes sejam inscritos no âmbito de uma epistemologia constituída na/pela racionalidade africana em suas diversas perspectivas.
Na construção de novos processos “indagativos”, é possível estabelecer uma (re)leitura da formação/configuração do conhecimento ocidental e, por conseguinte, da própria cultura brasileira. Cabe destacar que os parâmetros teórico-metodológicos que embasam o estabelecimento do saber científico no Brasil se ordenam pelo viés do pensamento europeu. Daí torna-se ímpar desvelar nos discursos hegemônicos do pensamento filosófico cuja matriz epistemológica é direcionada pelo viés eurocêntrico, o caráter excludente e discriminador dessa abordagem frente aos conhecimentos de outras matrizes.
Sobre esse aspecto, Nascimento (2016)Nascimento, W. F. (2016). Aproximações brasileiras às filosofias africanas: Caminhos desde uma ontologia Ubuntu. Prometeus, 9(21), 231-245. https://doi.org/10.52052/issn.2176-5960.pro.v9i21.5698
https://doi.org/10.52052/issn.2176-5960....
chama a atenção para o fato de que:
Como normalmente as universidades movem-se, prioritariamente, pelos currículos orientados pelos cânones ocidentais de pensamento, abordar conhecimentos não ocidentais ainda tem sido uma prática periférica em todo o ocidente e, também, em qualquer centro de pesquisa que se organize em moldes ocidentais. Esse movimento faz com que os estudos sobre as filosofias africanas sejam marginais – quando presentes – nos currículos de filosofia hegemônicos de todo o mundo.
(p. 233)
A afrodescendência transformada em luta se traduz, pois, em uma distinção de cor e em demarcação política. É nesse ambiente de contradições e conflitos que se instituem os movimentos sociais – espaços de conscientização, enfrentamento e (re)significação do negro e da sociedade em geral.
No campo dos embates políticos, as pautas antirracistas tomaram corpo com os movimentos sociais. Por meio das transformações sociais, principalmente a partir do final da década de 1980 e a década de 1990, a sociedade viu florescer novas formas para fomentar a valorização da diversidade étnico-racial e suas vicissitudes.
Uma das principais reivindicações dos movimentos sociais antirracistas é o acesso à educação, portanto, a Lei 10639/03 foi um avanço significativo no atendimento da pauta de luta desses grupos. Inscrita no patamar das ações afirmativas, sua homologação se deu no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no intuito de promover o debate e a ampliação acerca dos saberes advindos da África e suas implicações nos modos de ser/existir da sociedade brasileira.
Dado o viés político que envolve a questão do negro e a luta antirracista no Brasil, perceber os processos/passos que contribuíram para a formulação da Lei 10639/03 é fundamental. Ela promove, então, uma mudança na abordagem da formação/organização do país, podendo quebrar/romper a visão de homogeneização perpetuada pelo mito da democracia racial.
O debate sobre os conteúdos que são trabalhados em sala, em uma perspectiva política, deve promover o conhecimento da cultura e da história africanas, oportunizando a apreensão de novos elementos formativos. A Lei 10.639/03 trouxe o desafio de imprimir uma nova demarcação à participação/contribuição do pensamento africano na articulação dos aspectos epistêmicos constitutivos do saber estabelecido nos espaços escolares/acadêmicos e fora deles.
A questão do racismo, conforme os PCN Pluralidade Cultural de 1998, tem um complexo e multifacetado ambiente social como interface das mudanças para a construção da cidadania e da inclusão dos não iguais (aqueles que não se inscrevem nos modelos predeterminados pelos grupos majoritários hegemônicos) nas diversas esferas de existência social.
Nesse sentido, pensar sobre a Lei 10639/03 na escola significa refletir sobre a questão da diversidade, em sua amplitude e complexidade, bem como sua inscrição nos espaços sociais demarcados, de um lado pela ideologia da democracia racial e, de outro pelos abusos do discurso e das práticas racistas tão frequentes no país.
No campo das transformações no contexto histórico brasileiro, a instabilidade político-social promovida pós 2016, gerou a (re)organização dos movimentos sociais, e expôs a vulnerabilidade da população negra, historicamente excluída das ações dos governos liberais. Esta constatação reforça que os fatos sociais atuais são pouco favoráveis à valorização do Outro. As tensões sociais parecem chegar aos limites do (in)suportável, com o aumento da intransigência e da imposição de narrativas não democráticas (tradicionalmente determinadas pela classe dominante) frente às escolhas das minorias.
Ao analisar as conjunturas político-sociais do Brasil, é possível afirmar que, no final do Século XX, o ambiente político favoreceu a consolidação da luta e da resistência do movimento negro na homologação da Lei 10.639/03. É preciso ressaltar, entretanto, que atualmente, muitas escolas e seus docentes, ainda não trabalham/incluem a referida lei em sua prática docente (às vezes, nem mesmo os professores de História e de Artes) de modo a contribuir para que os segmentos silenciados também façam parte das narrativas existentes.
O Brasil, país que tem em seu cerne o racismo estrutural, tomando como base a sua abordagem da diversidade étnico-racial, ainda tem muito a fazer para consolidar o respeito e a equidade em suas relações sociais. À filosofia cabe um papel importante no percurso em direção à construção de relações sociais mais equânimes.
3. A filosofia, seu ensino e a lei 10.639/03 – tecendo reflexões sobre o racismo e o filosofar
A filosofia é o movimento pelo qual nos libertamos – com esforços, hesitações, sonhos e ilusões – daquilo que passa por verdadeiro, a fim de buscar outras regras do jogo.
(Foucault)
Ao indagar acerca da docência da filosofia no EM e sua relação com a diversidade étnico-racial, tem-se a perspectiva de que essa questão configura uma reflexão sobre a própria disciplina, abarcando os docentes e suas percepções relativas à mesma. Portanto, se a discussão que envolve a ensinabilidade da filosofia por si só já é uma questão desafiadora, avançar para além desse ponto e questionar sobre a contribuição da filosofia para minimizar (quiçá acabar) com o racismo na escola é uma tarefa ainda mais complexa. Vale destacar que o tema, apesar de ser frequentemente citado nos espaços educativos, ainda carece de estudos acerca de suas práticas no cotidiano escolar.
É fundamental ressignificar a África e sua diversidade, pois,
Da diversidade observável na África tem sido enfatizado o aspecto negativo. […] é necessário que se reconheça as diferenças culturais encontradas como preciosa fonte de enriquecimento da herança humana. Papel relevante compete às escolas no sentido de re-incorporação da memória cultural africana na memória cultural humana, para que crianças e jovens das Américas possam (re)conhecer a participação dos povos africanos na história da humanidade e não sejam levados a crer que essa história tenha sido construída apenas pela Europa, quando muito, auxiliada pelas Américas.
(Ribeiro, 1996Ribeiro, R. I. (1996). Alma Africana no Brasil: Os iorubas. Oduduwa., p. 17)
Apenas com essa ressignificação será possível mudar a construção do imaginário da sociedade brasileira que tem como referência a visão do negro e do continente africano sob o olhar do colonizador/escravista, que desumaniza o indivíduo e o seu espaço de existência. Desta forma, como a escola lida com o anseio de mudança premente no ser/existir de parte da sociedade que é marginalizada, oprimida, esquecida, invisibilizada pelo preconceito e suas vicissitudes? Como lidar com a diversidade sem romper com a perversa lógica do racismo?
A essas indagações (tão antigas e tão atuais) foram (e são) dadas várias respostas. A certeza da diferença indica que o caminho a trilhar deve ser aquele que proporciona a participação/inserção de todos na sociedade sob a égide da valorização da diversidade em todos os seus aspectos. A educação é o pilar de sustentação de uma sociedade democrática. As palavras de Freire (2000)Freire, P. (2000) Pedagogia da indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. Editora UNESP. ainda ecoam o chamado à mudança produzindo fendas no enrijecido tecido social que forma as (inter)relações que compõem a sociedade brasileira.
Os desafios são muitos, e por isso não se pode perder de vista que
A educação tem sentido porque o mundo não é necessariamente isto ou aquilo, porque os seres humanos são tão projetos quanto podem ter projetos para o mundo. […] A educação tem sentido porque, para serem, mulheres e homens precisam de estar sendo. Se mulheres e homens simplesmente fossem não haveria porque falar em educação […] Esta é uma das razões por que o alfabetizador progressista não pode contentar-se com o ensino da leitura e da escrita que dê as costas desdenhosamente à leitura do mundo.
(Freire, 2000Freire, P. (2000) Pedagogia da indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. Editora UNESP., p. 40-41)
Inspirados no pensamento de Freire (2000)Freire, P. (2000) Pedagogia da indignação: Cartas pedagógicas e outros escritos. Editora UNESP. é importante ressaltar que, ainda que haja muitas adversidades, a luta a favor da diversidade exige que os processos de transformação realizados pelas esferas públicas e privadas deem seus passos (ainda que trôpegos), mas constantes, rumo à criação de um ambiente social mais igualitário.
No horizonte da trajetória da filosofia na escola tem-se (ou deve-se ter) a ininterrupta procura amorosa do saber, de modo a alcançar o patamar de uma formação da cidadania e a ampliação da democracia e do acesso aos direitos fundamentais do homem. Filosofar, mais que uma atividade intelectual, é uma construção de significados e sentidos. Conhecer sob o ponto de vista da filosofia traduz-se como o contínuo indagar acerca das questões relativas ao homem e ao mundo.
Na urdidura das tramas do pensamento, as demarcações teóricas trazidas pelos clássicos da filosofia viabilizam a ampliação do questionamento e da busca do saber – esse objeto volante: que direciona, mas também se volatiliza no próprio processo de conhecer – transformado/transformador de/por realidades e circunstâncias. Concebendo a filosofia como um movimento contínuo de indagar sobre o existir em todas as suas prerrogativas, a discussão/debate acerca da relação Eu versus Outro é um dos eixos fundamentais do filosofar.
Uma abordagem que considera a diversidade e a contribuição dos diversos povos na construção do conhecimento traz consigo uma (re)visão crítica das ideias dos pensadores clássicos. Ao longo do pensamento filosófico tradicional, é possível identificar a presença de uma visão discriminatória em relação a determinados grupos sociais. Em Aristóteles, por exemplo, animais domésticos e escravos estão no mesmo patamar, haja vista a submissão de ambos ao comando do homem livre (Oliveira & Nascimento, 2016Nascimento, W. F. (2016). Aproximações brasileiras às filosofias africanas: Caminhos desde uma ontologia Ubuntu. Prometeus, 9(21), 231-245. https://doi.org/10.52052/issn.2176-5960.pro.v9i21.5698
https://doi.org/10.52052/issn.2176-5960....
).
Ao problematizar a permanência de uma visão assimétrica frente às relações humanas, Foè (2013)Foè, N. (2013). África em diálogo, África em autoquestionamento: universalismo ou provincialismo? “Acomodação de Atlanta” ou iniciativa histórica? Educar em Revista. (47), 175-228. Editora UFPR. contesta a visão aristotélica segundo a qual “é por natureza escravo aquele que é destinado a pertencer a outro e que só tem a razão em partilha na medida em que a percebe nos outros homens, mas que não a possui por si mesmo” (p. 184).
Ainda segundo o autor
Aristóteles reconhece certamente que, contrariamente à escravidão humana, os animais não percebem nem mesmo a razão, mas ele afirma que no uso concreto, existem poucas diferenças entre os escravos e os animais domésticos, dado que todos executam as mesmas tarefas físicas comandadas pelo homem livre. Sem nuanças, tal definição o inclina a excluir o escravo da humanidade comum.
(Foè, 2013Foè, N. (2013). África em diálogo, África em autoquestionamento: universalismo ou provincialismo? “Acomodação de Atlanta” ou iniciativa histórica? Educar em Revista. (47), 175-228. Editora UFPR., p. 184)
Essa concepção naturalizada da desigualdade entre os homens se repercute no pensamento iluminista sobre a África, e, consequentemente, sobre o negro. A concepção hegeliana de que os africanos e seus descendentes são uma raça inferior é expressa na inscrição do legado iluminista que subjuga o conhecimento construído fora dos “meandros” europeus, marginalizando todo o saber para além da Europa.
Do mesmo modo, Andrade (2017)Andrade, É. (2017) A opacidade do iluminismo: o racismo na filosofia moderna. Kriterion: Revista de Filosofia, 58(137), 291-309. https://doi.org/10.1590/0100-512X2017n13704ea
https://doi.org/10.1590/0100-512X2017n13...
afirma que a razão iluminista ao produzir um discurso unilateral de racionalidade engendra
[…] uma das faces mais cruéis do etnocentrismo: o racismo. [Assim] Os que estão na menoridade da razão têm uma cor definida e servem para mostrar que as luzes dos diversos discursos iluministas paradoxalmente deixam na sombra tudo aquilo que não for expressão da cultura europeia, especialmente, claro, o continente “negro”.
(p. 302)
Essas indagações ecoam o pensamento decolonial que propõe uma (re)leitura da filosofia, a fim de que ela seja capaz de assumir suas contradições e buscar outros pontos referenciais, deixando de lado a propagação do racismo epistêmico. O impedimento da manutenção do racismo epistêmico5 5 Para Nascimento (2016, p. 231-232) essa expressão de Ramón Grosfoguel (2007) se apresenta como “uma articulação social dos saberes que considera os conhecimentos não ocidentais como inferiores aos ocidentais e estabelecendo um critério de relevância para que apenas parte do que seja produzido no ocidente seja avaliado como sendo merecedor de pertencer às linhas modelares do cânone ocidental de conhecimentos que devem ser disseminados”. resultante do modelo civilizacional moderno/iluminista deve ser estabelecido através de uma mudança nos parâmetros que dimensionam o constructo do saber/conhecimento. Pensar a realidade e os aspectos que a constituem deve ser um exercício contínuo que indague acerca da visão de homem e mundo que fundamenta o saber da ciência e da academia.
A mudança do patamar teórico-científico fundado no modelo eurocêntrico para uma cosmovisão multiculturalista traz consigo a intenção de interpelar tanto a filosofia quanto seus eixos epistemológicos.
Os processos político-sociais atuais são constituídos nos embates gerados pela globalização e o novo internacionalismo produzido nas interfaces entre grupos majoritariamente aceitos e as minorias marginalizadas. É fundamental que haja o estranhamento a esse modelo que mantém o status quo – que desconsidera o diferente (o colonizado).
No lastro do pensamento de Marx, o pensamento de Sartre (1968)Sartre, J. (1968). Reflexões sobre o racismo (5. ed.). Difusão Europeia do Livro., em contrapartida ao olhar estigmatizante balizado pela razão iluminista, traça uma visão intersubjetiva que aponta a consciência da negritude como elemento gerador de uma identidade própria ao negro. Com a visão de que há uma simbiose na relação que produz a construção do homem/mundo, tem-se que o pensamento “sartreano” promove uma compreensão mais crítica acerca da visão do “branco” sobre o negro. Destarte, partindo desse pressuposto, é possível afirmar que o olhar direcionado ao negro encontra/engendra um sujeito dimensionado historicamente.
Diante da visão obliterada do branco em relação ao negro, o momento em que o branco se põe como objeto do olhar e da voz do negro é espaço constitutivo da inquietação do homem branco, que se sente incomodado com essa mudança no foco/direcionamento do olhar. Diz Sartre (1968)Sartre, J. (1968). Reflexões sobre o racismo (5. ed.). Difusão Europeia do Livro.
O que vocês esperavam que acontecesse quando tiraram a mordaça que tapava essas bocas negras? […] Ei-los em pé. Homens que nos olham. Ei-los em pé. Faço votos para que vocês sintam como e a comoção de ser visto. […] Pois o branco desfrutou durante três mil anos o privilégio de ver sem ser visto; era puro olhar, a luz de seus olhos subtraía todas as coisas da sombra natal, a brancura da sua pele também era um olhar, de luz condensada. […] Hoje, esses homens pretos nos miram e nosso olhar reentra em nossos olhos. Tochas negras iluminam o mundo e nossas cabeças brancas não passam de pequenas luminárias balançadas pelo vento.
(p. 89)
Ao lidar com as adversidades nocivas do racismo, a intolerância desponta como o principal mecanismo de exclusão e marginalização do diferente – aquele que não cabe na visão de mundo etnocêntrica (fundada na valorização do homem branco chamado civilizado). Diante da crise civilizacional presente na Modernidade, o (re)dimensionamento do olhar significa um (re)ordenamento dos campos relacionais e cognitivos.
Neste complexo universo de análise em que a docência da filosofia no EM assume um lugar fundamental na compreensão dos processos de filosofar na escola, se instaura a importância de os livros de filosofia terem a Lei 10.639/03 como referência na construção de seus conteúdos.
A ensinabilidade da filosofia, compreendida no campo da docência da disciplina na ED, faz com que a análise do LD seja uma forma substancial de apreender os modos como os processos dessa formação/construção de conhecimento se apresentam no cotidiano das salas de aula. É nessa perspectiva, portanto, que a pesquisa inscreve suas análises e reflexões.
4. A diversidade étnico-racial nos livros didáticos de filosofia do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD)/2018
O livro é uma fuga bloqueada: não se sabe que caminho traçará o aluno, mas sabe-se de onde ele não sairá – do exercício de sua liberdade.
(Jacques Rancière)
A pesquisa, que se caracteriza como qualitativa, foi realizada tendo os livros de filosofia do PNLD/2018 e os docentes de Filosofia do EM como unidades de análise. Em relação aos livros, foi feita uma sondagem acerca da presença/ausência de temas afins à Lei 10.639/03, sob o aspecto da vinculação dos referidos livros à temática da diversidade étnico-racial, em especial, no que tange sua relação com a Filosofia e seu ensino.
Os questionários, por sua vez, englobaram como sujeitos de pesquisa 31 professores de filosofia do EM. A escolha do questionário se deu pela possibilidade de abrangência da ferramenta. Além disso, se pretendeu obter informações sobre a inclusão das determinações da Lei 10.639/03 nos conteúdos trabalhados nas aulas de filosofia. O questionário foi aplicado aos docentes do EM de escolas particulares e públicas de Belo Horizonte e Região Metropolitana.
Enviado inicialmente por e-mail a uma amostra aleatória composta de mais de 70 professores de EM, o questionário on-line teve baixa adesão e, por isso, outros 60 questionários impressos foram entregues diretamente aos respondentes, alcançando, ao final de 9 meses, 31 respondentes no total.
Em relação ao PNLD/2018, tem-se que foi criado em 1985, através do Decreto nº 91.542/85, na esteira de ações governamentais iniciadas em 1929, quando o Governo fundou o Instituto Nacional do Livro (INL). Ao longo das últimas décadas, a estrutura do Programa foi alterada tendo ocorrido a inclusão do EM 2004, com a Resolução nº 38 do Fundo Nacional de Educação (FNDE)6 6 Este programa é uma iniciativa do Governo Federal, representado pela Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC), em cooperação com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O objetivo deste esforço conjunto foi, […], promover a aquisição de obras didáticas a serem distribuídas nas escolas públicas federais e nas que integram as redes de ensino estaduais, municipais e distrital que aderiram ao PNLD. (Ministério da Educação, 2017, p. 6) .
Com a promulgação da Lei 11.684/08, a filosofia se tornou disciplina obrigatória no EM, e sua inclusão no PNLD em 2012 se constituiu um marco expressivo na própria demarcação do espaço da disciplina no currículo escolar, a filosofia passa a fazer parte do PNLD7
7
O programa relativo à distribuição dos livros do EM recebe o nome de Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLDEM), entretanto, no próprio Guia dos Livros Didáticos – elaborado pelo MEC – a nomenclatura utilizada é apenas PNLD.
a partir de 2012. Os livros analisados foram fruto da escolha de professores de filosofia do EM e pesquisadores envolvidos com a ensinabilidade da mesma8
8
Vale destacar que: […] dos trabalhos de parametrização e seleção das coleções de Filosofia ao longo das três últimas do PNLD, consolidou-se uma tradição e uma rede institucional de discussão e avaliação do material didático a ser utilizado no EM, inaugurando assim uma atenção inédita às experiências de ensino e aprendizagem na área. Em torno dessa experiência, entrelaçaram-se as diversas concepções sobre a especificidade da Filosofia e do seu ensino, cujas raízes mais remotas tivemos oportunidade de reconstruir e percorrer […]. (Ministério da Educação, 2017, p. 11).
. No PNLD/2018, conforme Ministério da Educação (2017)Ministério da Educação. (2017). PNLD 2018: Filosofia. Secretária de Educação Básica. https://www.fnde.gov.br/index.php/centrais-de-conteudos/publicacoes/category/125-guias?download=10738:guia-pnld-2018-filosofia
https://www.fnde.gov.br/index.php/centra...
, foram selecionados os 8 livros listados abaixo:
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Filosofia e Filosofias: Existência e Sentidos
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Filosofia: Experiência do Pensamento
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Reflexões: Filosofia e Cotidiano
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Filosofia: Temas e Percursos
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Fundamentos de Filosofia
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Iniciação à Filosofia
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Filosofando: Introdução à Filosofia
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Diálogo: Primeiros Estudos em Filosofia9 9 As referências completas se encontram no final do artigo.
No decurso da análise dos livros, o primeiro passo foi observar como cada autor/obra apresentava a filosofia quanto à sua origem, significado e objetivos. Em cada livro, havia a proposição de uma reflexão em torno dos conceitos filosofia e filosofar, sendo que a caracterização desses termos se dá pelo prisma de um logos cujas matrizes de pensamento têm a racionalidade grega como espinha dorsal.
Nos livros de filosofia do PNLD/2018, a visão de uma filosofia de origem europeia é reforçada, e com relação à origem da filosofia, tem-se que para Aranha e Martins (2016)Aranha, M. L. A. & Martins, M. H. (2016) Filosofando: Introdução à filosofia (6. ed.). Moderna.:
O pensamento filosófico surgiu na Grécia, no século VI a.C., mais propriamente nas colônias gregas, com os primeiros pensadores: Tales de Mileto, Pitágoras de Samos e Heráclito de Éfeso. Embora reconheçamos a importância de outros sábios que viveram no Oriente durante o mesmo.
(p. 25)
Além das referidas autoras, é possível identificar, em outros livros, uma linearidade na apresentação da Grécia Antiga como ponto de origem do pensamento filosófico. O fragmento abaixo ilustra essa constatação:
A Filosofia e suas Origens Gregas
Entre os séculos IX a. C. e VIII a. C., os gregos se expandiram para além da península grega, estabelecendo colônias importantes, como Éfeso, Mileto […]. Foi em algumas dessas cidades que viveram os primeiros filósofos.
(Gallo, 2016Gallo, S. (2016) Filosofia: Experiência do pensamento (2. ed.) Scipione., p. 14)
À indagação sobre a origem desse pensamento vemos reiteradamente serem apresentadas respostas que validam a seguinte informação: “Na história do pensamento ocidental, a filosofia nasceu na Grécia entre os séculos VII e VI a. C., promovendo a passagem do saber mítico (alegórico) ao pensamento racional (logos). Grifo dos autores” (Cotrim & Fernandes, 2016Cotrim, G. & Fernandes, M. (2016). Fundamentos de filosofia (4. ed.) Saraiva Educação., p. 205).
Apesar de, sistematicamente, se apresentar a Grécia como origem da filosofia é possível identificar certo desapreço ao pensamento mítico que não se enquadra nos parâmetros determinados pela racionalidade grega. Esse dado pode ser observado na afirmação abaixo:
Existe então uma filosofia oriental e outra africana, ao lado da filosofia inventada pelos gregos na Antiguidade?
Se nos ativermos ao sentido amplo da filosofia, segundo o qual a filosofia é a atividade da reflexão geral, todo indivíduo que refletiu sobre as questões mais essenciais aos seres humanos praticou filosofia. […] Entretanto, em seu sentido mais especializado, a filosofia teve origem entre os gregos antigos, e no seu desenvolvimento nunca deixou de remeter à sua origem.
(Figueiredo, Bolzani Filho, Vieira Neto, Valentim, Repa, & Cuter, 2016Figueiredo, V., Bolzani Filho, R., Vieira Neto, P., Valentim, M., Repa, L., & Cuter, J. V. (2016) Filosofia: Temas e percursos. Berlendis & Vertecchia., p. 10 - Grifo meu)
Em todos os livros analisados essa abordagem acerca do significado e da “invenção” da filosofia se mantém. Em outras palavras, há uma manutenção desse olhar único, onde o espaço sui generis exclusivo do pensar filosófico, em sua origem, é a Grécia. Um dado curioso é que, além de estabelecer a Grécia como ponto originário, a concepção do que é o pensamento filosófico fica restrito aos moldes da racionalidade grega. Isto significa afirmar que apenas esse modelo de pensamento é reconhecido como filosofia.
Nesse sentido Chaui (2016)Chaui, M. (2016). Iniciação à filosofia (3. ed.) Ática. https://www.fnde.gov.br/index.php/centrais-de-conteudos/publicacoes/category/125-guias?download=10738:guia-pnld-2018-filosofia
https://www.fnde.gov.br/index.php/centra...
afirma:
[…] filosofia se constituiu quando alguns gregos, insatisfeitos com as explicações sobre a realidade dadas pela tradição por meio dos mitos, começaram a fazer perguntas e a buscar respostas para elas. Admirados e espantados com a realidade, demonstraram que os seres humanos e as coisas da natureza podem ser conhecidos pela razão humana e que a própria razão é capaz de conhecer a si mesma.
(p. 33)
O contraponto a essa visão homogênea acerca da origem da filosofia é encontrado no livro Reflexões: Filosofia e Cotidiano, de Vasconcelos (2016)Vasconcelos, J. A. (2016) Reflexões: Filosofia e cotidiano. SM.. Nesta obra, o autor fomenta a reflexão/revisão em torno dos princípios que estabelecem a origem grega à filosofia. Nas sendas das mobilizações sociais em torno da inserção das pautas étnico-raciais dentro e fora dos espaços acadêmicos, o autor destaca a importância de direcionar nossos olhares em outras direções que não apenas a perspectiva eurocêntrica. Ele pondera que:
Os debates sobre a existência e o caráter de uma Filosofia especificamente africana começam a surgir nos países da África Subsaariana somente a partir do século XX, com o processo da descolonização africana. Como esses países são de população predominantemente negra, o campo de estudos da Filosofia africana se desenvolveu relacionado a movimentos como a Diáspora Negra, a Negritude e o Pan-Africanismo, que dizem respeito a realizações culturais de afrodescendentes tanto dentro quanto fora do continente africano.
(Vasconcelos, 2016Vasconcelos, J. A. (2016) Reflexões: Filosofia e cotidiano. SM., p. 365)
É indiscutível a hegemonia do modelo eurocêntrico quanto à determinação da filosofia e seus espaços, sua estrutura epistemológica e axiológica. Conforme observado na pesquisa, os livros de filosofia do PNLD/2018 traçam uma demarcação da filosofia como um “produto”, um modo de pensar vinculado, quase exclusivamente, aos gregos. Ou seja, há a constatação nos livros didáticos de que a filosofia tem sua origem na Grécia.
O LD é um instrumento que tem seu significado através do uso dado pelos docentes que o utilizam. Daí a necessidade de promover uma ampliação do debate em torno da epistemologia africana e sua interlocução com a formação da identidade do povo brasileiro torna, ainda mais, imprescindível a inclusão da Lei 10639/03 nos eixos que ordenam as aulas de filosofia no EM.
Contudo, embora possamos perceber, nas últimas décadas, a (re)construção de novas narrativas sobre a África e suas contribuições efetivas na formação do pensamento e na cultura ocidentais, e haja, portanto, uma urgência em (re)significá-la e a seu povo (dentro e fora do continente africano) em suas múltiplas faces, a filosofia ainda não incorporou esse tema às suas diretrizes teórico-metodológicas.
Conforme Noguera (2014)Noguera, R. (2014). O ensino de Filosofia e a lei 10.639. Pallas.:
[…] a filosofia — aqui entendida como saber acadêmico oficialmente constituído e certificado pelas Universidades e como disciplina escolar — seria muito mais tímida do que outras grandes áreas no campo das Humanidades […] cada vez mais encontramos reflexões nesse âmbito acerca dos dispositivos legais das ações afirmativas, além de indicadores sociais e econômicos das desigualdades raciais. Entretanto, esses temas raramente integram as investigações da filosofia.
(p. 14)
No cenário educacional ainda é escassa a inclusão do que foi solicitado pela Lei 10.639/03 e a própria apresentação das questões vinculadas ao negro e à África fora do olhar marginalizante/discriminatório. Muller (2018)Muller, T. M. P. (2018). Livro didático, Educação e Relações Étnico-raciais: O estado da arte. Educar em Revista, 24(69), 77-95. http://doi.org/10.1590/0104-4060.57232
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, ao fazer um Estudo da Arte10
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Conforme o resumo do artigo que apresenta os resultados da pesquisa: “Esse estudo objetivava “sistematizar e analisar a produção acadêmica sobre educação e relações étnico-raciais entre 2003 e 2014 por meio da análise das teses e dissertações realizadas nos programas de pós-graduação stricto sensu em Educação e dos periódicos Qualis A e B na área da Educação” disponibilizadas nos bancos de dados da Capes” (Muller, 2018, p. 78).
a respeito do livro didático e as relações étnico-raciais, apresenta com um dos resultados encontrados, que:
Os autores [das teses e dissertações analisadas] observaram ainda que os livros apresentaram uma utilização mais variada dos recursos iconográficos, assim como uma ampliação do conteúdo textual relacionado à temática após a Lei nº 10.639/2003, talvez por exigência dos editais do PNLD, mas nem sempre se estabelece uma relação entre texto, imagem e legenda.
(p. 88)
Isto significa que é necessário ampliar o debate em torno da História e da Cultura da África de modo a discutir com mais ênfase a formação da identidade brasileira, para além do mito da democracia racial. Continuando nesta linha de raciocínio, Muller (2018)Muller, T. M. P. (2018). Livro didático, Educação e Relações Étnico-raciais: O estado da arte. Educar em Revista, 24(69), 77-95. http://doi.org/10.1590/0104-4060.57232
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destaca ainda que diante da forma de conceber e lidar com o racismo no Brasil atual, pois
O desafio mais crítico para aqueles que lutam contra o racismo no Brasil está justamente em convencer a opinião pública do caráter sistemático e não casual dessas desigualdades. Combater o racismo não significa lutar contra indivíduos, mas se opor às práticas e ideologias. (p. 88)
Embora a Lei 10.639/03 tenha sido incorporada à LDB/1988, a abordagem da temática da diversidade étnico-racial e os elementos vinculados a ela estão ausentes em quase todas as obras de filosofia escolhidas pelo PNLD em geral. Essa constatação também foi feita em relação à análise dos livros didáticos de filosofia do PNLD/2015.
Vale destacar que, mesmo que tenha proposto uma discussão acerca das filosofias africanas no livro “Reflexões: filosofia e cotidiano”, fato é que as questões envolvendo uma mudança na forma de conceber a participação da África e seus descendentes, para além da ambiência da arte e do exótico, carecem de maior profundidade.
É por esse motivo que Noguera (2011Noguera, R. (2011). Denegrindo a filosofia: O pensamento como coreografia de conceitos afroperspectivista. Griot: Revista de Filosofia, 2(4), 1-19. http://doi.org/10.31977/grirfi.v4i2.500
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, 2014Noguera, R. (2014). O ensino de Filosofia e a lei 10.639. Pallas., 2017)Noguera, R. (2017) Pinóquio e Kiriku: Infância(s) e educação na filosofia de Kant e Ramose. In M. V. Alencar, S. R. G. Carneiro, A. Correia & A. E. Paschoal (Eds.). Filosofar e ensinar a filosofar (pp. 106-124). ANPOF., Dantas (2016Dantas, L. T. F. (2016). A invisibilidade da filosofia africana no discurso acadêmico brasileiro. Educação e Filosofia, 30(59), 405-424., 2017)Dantas, L. T. F. (2017) A tradução do conceito: apolítica do ensino de Filosofia Africana. In M.V. Alencar, S. R. G. Carneiro, A. Correia & A. E. Paschoal (Eds.) Filosofar e ensinar a filosofar (pp. 91-105). ANPOF., Ramose (2011)Ramose, M. B. (2011, outubro). Sobre a legitimidade e o Estudo da Filosofia Africana (Trad. D. E. N. Solis, R. M. Lopes, & R. R. Cassiano). Ensaios filosóficos, 4, 6-23. e outros autores inscritos no âmbito da discussão da decolonialidade, estabelecem suas críticas à eurocentricidade como eixo base dado à filosofia, propondo a promoção de uma (re)configuração do pensamento filosófico através dos delineamentos teóricos pautados na afrocentricidade/ perspectividade que (re)definem a filosofia e suas matrizes epistemológicas.
A esse respeito Nascimento (2008)Nascimento, E. L. (Org.). (2008). A matriz africana no mundo. Selo Negro. salienta que:
Afrocentricidade, […], consiste na construção de uma perspectiva teórica não hegemônica radicada na experiência africana […] é o posicionamento africano em seu próprio centro, com o intuito de compreender o mundo por meio de referenciais próprios aos povos africanos. […] a Afrocentricidade não assume uma postura universalista nem pretende impor seu modelo mediante a subjugação de outros povos, como fez o eurocentrismo.
(p. 52)
Noguera (2011)Noguera, R. (2011). Denegrindo a filosofia: O pensamento como coreografia de conceitos afroperspectivista. Griot: Revista de Filosofia, 2(4), 1-19. http://doi.org/10.31977/grirfi.v4i2.500
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destaca a maleabilidade de significações e abordagens presentes na cultura africana e traz que “o mais importante é que os afetos, os devires e as potências sejam negras, isto é, as perspectivas são em favor da diferença num sentido radical. […] Uma imagem do pensamento que opere sempre através da diferença” (Noguera, 2011Noguera, R. (2011). Denegrindo a filosofia: O pensamento como coreografia de conceitos afroperspectivista. Griot: Revista de Filosofia, 2(4), 1-19. http://doi.org/10.31977/grirfi.v4i2.500
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, p. 5 - Grifo meu). Isto faz com que seja imprescindível a inserção da diversidade étnico-racial e suas prerrogativas nos materiais didáticos utilizados como apoio às aulas de filosofia.
Cabe à filosofia lidar com os conceitos (Deleuze & Guattari, 2010Deleuze, G. & Guattari, F. (2010). O que é a Filosofia? (3. ed.) Editora 34.). Uma vez que, na análise das obras, observei que a palavra Raça quase não aparecia, decidi fazer a contagem da frequência das palavras Negro, Raça, África e Escravo nos LD. Além da carência da temática da diversidade étnico-racial, observou-se também a ausência do uso das palavras Negro, Raça e África11 11 Essa estratégia contribuiu para uma percepção geral das obras, uma vez que os descritores podem ser elementos capazes de fomentar as discussões sobre o racismo e seus desdobramentos. A ausência do uso dos termos relacionados à África, por exemplo, parece demonstrar o quanto a questão da diversidade racial se faz pouco presente nas obras consultadas. . Nas poucas vezes em que aparecem os vocábulos Negro e África (com suas variações) a apresentação se deu sob o prisma da invisibilização do negro e sua cultura.
Partindo do pressuposto de que as palavras ganham importância por serem representações dos conceitos, foi feita uma busca em relação às palavras: África, Negro, Raça e Escravo. A intenção foi obter um valor aproximado da frequência desses vocábulos nos LD analisados. O Quadro 1 traz um compilado dos resultados obtidos12 12 Esse compilado foi elaborado a partir da contagem da frequência das palavras/termos, em todos os oito livros, feita através da busca digital e, também, com a leitura (dinâmica) página a página dos livros impressos. :
De modo geral, através dos dados apresentados no Quadro 1, é possível inferir a forma como os autores (e os próprios professores de filosofia que escolheram os livros) lidam com a temática da diversidade étnico-racial e o racismo, identificando a inserção (ou não) dos eixos teóricos relacionados à Lei 10.639/03, nos livros selecionados. Nesse sentido, observa-se que há, nas obras analisadas, uma carência da discussão da diversidade étnico-racial.
Um ponto intrigante observado durante a contagem da frequência das palavras selecionadas, nos Livros de filosofia do PNLD/2018, é o fato de a palavra escravo (e suas variações) ter uma frequência relativamente alta nos livros analisados. Esse aspecto se torna mais perturbador ao observarmos que a apresentação do termo não remete à questão da emancipação do negro frente à perversidade do contexto ainda estigmatizante vivido atualmente.
Embora a frequência das palavras não indique, por si só, que a Lei 10.639/03, se inscreve no fazer pedagógico realizado nas aulas de filosofia, é interessante observar que a ausência das palavras África/Raça/Negro parece indicar que o LD tangencia o racismo ou, simplesmente, invisibiliza o tema em seus conteúdos. Portanto, se torna ainda mais evidente o quanto é necessário ter mais que livros para lidar com a situação da invisibilidade do negro.
Destarte, na correlação direta das palavras: Negro, Raça e África com a palavra escravo (e suas variações) se evidencia que:
A racialização de tudo tocante à África é uma prática tão universalmente insidiosa que os próprios historiados nem a percebem mais como um elemento de violenta desumanização do ser humano africano. Sobre essas bases movediças que atentam contra o rigor científico se assentaram durante vários séculos os estudos sobre a África.
(Wedderburn 13 13 A maioria das obras desse autor traz apenas o sobrenome Moore na ficha catalográfica e não Wedderburn, como consta neste artigo de onde foi tirado esse fragmento. , 2005, p. 140)
A partir do contato com as obras, observou-se que o livro “Reflexões: Filosofia e cotidiano” se destaca como a única obra a dedicar um espaço exclusivo para tratar da filosofia africana. Ainda que não apresente uma discussão robusta acerca da diversidade étnico-racial em si, o autor traz uma reflexão sobre a demarcação da epistemologia africana e suas vicissitudes.
Ao trazer os aspectos vinculados à própria questão da colonização europeia e suas implicações nos modos de se conceber a África e seus povos, Vasconcelos (2016)Vasconcelos, J. A. (2016) Reflexões: Filosofia e cotidiano. SM. no capítulo intitulado: “As filosofias africanas e afrodescendentes”, propõe uma releitura das demarcações teóricas que estruturam a forma de pensar as contribuições do continente africano na formação da racionalidade – filosofia – presentes no Brasil e no mundo.
A quase inexistência da temática da diversidade étnico-racial nos livros de filosofia demonstra a lacuna presente nas produções editoriais e acadêmicas de obras capazes de fomentar o reposicionamento dos olhares/questionamentos /estudos sobre o negro e sua presença na sociedade brasileira. Uma vez que se pretende compreender como a filosofia e sua ensinabilidade poderão contribuir para fomentar ações e reflexões sobre a diversidade étnico-racial, é fundamental investigar como os docentes de filosofia do EM organizam seu fazer profissional.
Não foi apresentada pelos respondentes a temática da existência ou não de uma filosofia africana14 14 “Há muitos anos, os movimentos sociais de combate ao racismo têm insistido na necessidade de ressignificar as imagens difundidas das populações africanas - e de seus descendentes - como intelectualmente inferiores, trazendo elementos que desmistifiquem a presença da população negra em nosso país.” (Filosofia africana…, 2015, n. p.). Esse parece ser a principal justificativa para pensar que os LD tenham em seus conteúdos elementos teóricos explícitos relativos ao estudo da “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. , bem como quais seriam as suas características. Ao contrário, o que se pode afirmar pelos dados obtidos é que a filosofia tem uma clara demarcação europeia. Pensar em uma abordagem diferenciada da própria filosofia produz uma mudança na apresentação teórica acerca do homem, do mundo e suas relações, de modo a amplificar a luta antirracista e dirimir a invisibilidade do negro em nossa sociedade.
No que diz respeito aos professores de filosofia do EM, as respostas dadas também mostraram a carência em incluir a Lei 10.639/03, nas aulas do EM. É possível observar essa constatação nas palavras de um dos sujeitos de pesquisa que afirmou:
[Os livros didáticos trazem em seus capítulos o tema da diversidade étnico-racial?]
[…] não trazem! Principalmente os livros de filosofia…não trazem em nenhum… Provavelmente deve ter um livro só que […] fala sobre a história da África, da Cultura, dessa questão… Os que são mandados para escola, […] que eu recebi, não tem em nenhum. O do Cotrim mesmo é assim, ele não faz referência nenhuma à África… […].
(Professora V. – 2019).
A partir dos dados analisados identificou-se que os LD adotados não tratam dos temas afins à Lei 10.639/03 e que os professores, apesar de afirmarem que a Lei é muito importante, ainda não a incluíram de forma efetiva em suas aulas. A pesquisa mostrou que a questão da diversidade racial só é discutida pontualmente no dia 13 de maio e no dia 20 de novembro15 15 Os materiais complementares citados foram: filmes/textos/documentários/notícias de jornais e revistas. Nenhum professor afirmou utilizar um material sistemático para discutir o tema. .
Após a pesquisa, foi possível observar que a questão da diversidade étnico racial, sob a perspectiva da Lei 10.639/03, ainda é pouco trabalhada nas aulas de filosofia do EM. Seja porque os egressos do Ensino Superior não tiveram o tema em sua formação geral, ou ainda, pela inexistência do tema nos conteúdos dos livros didáticos utilizados pelos docentes de filosofia da ED. Fato é que a abordagem filosófica europeia tem sido apresentada como a melhor (quiçá a única) forma de pensamento filosófico válido.
5. Percepções e análises – à guisa de uma conclusão
Até que os leões inventem suas histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça.
(Provérbio Africano)
O reconhecimento das lutas político-sociais que engendraram a sanção da Lei 10.639/03 introduziu no cenário do século XXI o estímulo em promover ações educativo-pedagógicas que sejam capazes de potencializar diálogos com e entre as diferenças étnico-raciais presentes na sociedade brasileira. O caráter político do tema encarna o movimento de contestação ao silenciamento e à invisibilidade dada à diversidade étnico-racial e ao racismo, enquanto manifestação de intolerância e desrespeito ao “não branco”.
A discussão em torno da abordagem de mundo/conhecimento apresentada pelo decolonialismo e suas prerrogativas para a ressignificação da identidade dos povos latino-americanos promove a abertura e, consequentemente, trazem a provocação de mudarmos nossos arcabouços teórico-sociais em direção à criticidade do não-lugar onde são colocados os países não europeus/americanos.
A tradição filosófica (presente nos conteúdos trabalhados em sala de aula) reproduz a visão de que fora da Europa/EUA não há formação/construção de conhecimento. O que há, na visão epistemológica ocidental, de modo geral, é uma (im)possibilidade de romper com as fronteiras do conhecimento demarcadas pelo olhar etnocêntrico homogeneizante (re)produzido/(im)posto na interlocução entre saberes, cujo ponto central é o olhar colonialista dominante.
Ao fim da pesquisa, foi possível identificar que há uma grande lacuna nos livros de filosofia do PNLD/2018 quanto à presença da Lei 10.639/03 na construção/apresentação de seus conteúdos. Na análise dos livros de filosofia da PNLD/2018, foi observado que em sete dos oito livros pouco ou quase nada se diz da África e do negro fora da matriz epistemológica eurocêntrica.
O livro Reflexões: Filosofia e Cotidiano do autor Vasconcelos (2016)Vasconcelos, J. A. (2016) Reflexões: Filosofia e cotidiano. SM., conforme constatado na pesquisa, é o único que traz uma abordagem da temática proposta pela Lei 10.639/03, apresentando uma visão geral do pensamento africano e apontando alguns dos filósofos africanos e suas teorias, saindo do parâmetro hegemônico que, ao tratar do pensamento filosófico e suas variabilidades, cita apenas a epistemologia eurocêntrica.
Ainda que não seja exigida a inclusão explícita da questão da diversidade racial, conforme a Lei 10.639/03, nos conteúdos que compõem os LD de filosofia é importante que esta lei se faça presente neles, visto que isso contribuiria para promover uma maior regularidade na presença do tema no plano de ensino dos professores de filosofia no EM e uma sistematização do fazer pedagógico do docente de filosofia neste nível de ensino. Se a filosofia é a “mãe” de todas as outras “matérias” escolares, deveria ter sido ela a primeira a percorrer as sendas das lutas antirracistas.
Destarte, uma vez que o LD é um importante aliado nos processos de ensinar, em especial, na ED, ter livros com conteúdos que contemplem a Lei 10.639/03 pode significar uma contribuição efetiva para trazer os temas para o centro da escola e, consequentemente, fomentar o debate acerca da questão da diversidade étnico-racial contribuindo, portanto, para formar sujeitos mais autônomos e éticos.
Ainda há, portanto, um caminho longo a ser percorrido pela filosofia e sua docência no EM. Se o material didático – o LD – tiver o compromisso em apresentar novas perspectivas, há uma maior possibilidade de que se produzam novas narrativas acerca da diversidade étnico-racial no Brasil e, consequentemente, com isso fomentar a construção de novas demarcações identitárias em relação à diversidade étnico-racial.
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Normalização, preparação e revisão textual: Andreza Silva (Tikinet) - andrezassilvas@gmail.com
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Conforme a Lei nº 10.639… (2003, n. p.)Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. (2003). Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/2003/L10.639.htm
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEI... o texto que muda a LDB 9394/96, tem em sua redação as seguintes informações: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira”. -
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O grupo de 31 professores de filosofia do EM investigados teve a seguinte configuração: se declararam do gênero masculino (28) e feminino (6); 17 têm entre 41 e 60 anos, 12 até 40 anos e 1 mais de 60 anos; 25 são formados em filosofia, 4 em história, 1 Ciências Sociais e 1 tem formação sacerdotal; 16 se declararam brancos, 10 pardos, 4 pretos e 1 indígena; 15 lecionavam filosofia em escolas particulares e 16 em escolas públicas.
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Para Nascimento (2016, p. 231-232)Nascimento, W. F. (2016). Aproximações brasileiras às filosofias africanas: Caminhos desde uma ontologia Ubuntu. Prometeus, 9(21), 231-245. https://doi.org/10.52052/issn.2176-5960.pro.v9i21.5698
https://doi.org/10.52052/issn.2176-5960.... essa expressão de Ramón Grosfoguel (2007) se apresenta como “uma articulação social dos saberes que considera os conhecimentos não ocidentais como inferiores aos ocidentais e estabelecendo um critério de relevância para que apenas parte do que seja produzido no ocidente seja avaliado como sendo merecedor de pertencer às linhas modelares do cânone ocidental de conhecimentos que devem ser disseminados”. -
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Este programa é uma iniciativa do Governo Federal, representado pela Secretaria de Educação Básica (SEB) do Ministério da Educação (MEC), em cooperação com a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e com o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O objetivo deste esforço conjunto foi, […], promover a aquisição de obras didáticas a serem distribuídas nas escolas públicas federais e nas que integram as redes de ensino estaduais, municipais e distrital que aderiram ao PNLD. (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). PNLD 2018: Filosofia. Secretária de Educação Básica. https://www.fnde.gov.br/index.php/centrais-de-conteudos/publicacoes/category/125-guias?download=10738:guia-pnld-2018-filosofia
https://www.fnde.gov.br/index.php/centra... , p. 6) -
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O programa relativo à distribuição dos livros do EM recebe o nome de Programa Nacional do Livro para o Ensino Médio (PNLDEM), entretanto, no próprio Guia dos Livros Didáticos – elaborado pelo MEC – a nomenclatura utilizada é apenas PNLD.
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Vale destacar que: […] dos trabalhos de parametrização e seleção das coleções de Filosofia ao longo das três últimas do PNLD, consolidou-se uma tradição e uma rede institucional de discussão e avaliação do material didático a ser utilizado no EM, inaugurando assim uma atenção inédita às experiências de ensino e aprendizagem na área. Em torno dessa experiência, entrelaçaram-se as diversas concepções sobre a especificidade da Filosofia e do seu ensino, cujas raízes mais remotas tivemos oportunidade de reconstruir e percorrer […]. (Ministério da Educação, 2017Ministério da Educação. (2017). PNLD 2018: Filosofia. Secretária de Educação Básica. https://www.fnde.gov.br/index.php/centrais-de-conteudos/publicacoes/category/125-guias?download=10738:guia-pnld-2018-filosofia
https://www.fnde.gov.br/index.php/centra... , p. 11). -
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As referências completas se encontram no final do artigo.
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Conforme o resumo do artigo que apresenta os resultados da pesquisa: “Esse estudo objetivava “sistematizar e analisar a produção acadêmica sobre educação e relações étnico-raciais entre 2003 e 2014 por meio da análise das teses e dissertações realizadas nos programas de pós-graduação stricto sensu em Educação e dos periódicos Qualis A e B na área da Educação” disponibilizadas nos bancos de dados da Capes” (Muller, 2018Muller, T. M. P. (2018). Livro didático, Educação e Relações Étnico-raciais: O estado da arte. Educar em Revista, 24(69), 77-95. http://doi.org/10.1590/0104-4060.57232
https://doi.org/10.1590/0104-4060.57232... , p. 78). -
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Essa estratégia contribuiu para uma percepção geral das obras, uma vez que os descritores podem ser elementos capazes de fomentar as discussões sobre o racismo e seus desdobramentos. A ausência do uso dos termos relacionados à África, por exemplo, parece demonstrar o quanto a questão da diversidade racial se faz pouco presente nas obras consultadas.
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Esse compilado foi elaborado a partir da contagem da frequência das palavras/termos, em todos os oito livros, feita através da busca digital e, também, com a leitura (dinâmica) página a página dos livros impressos.
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A maioria das obras desse autor traz apenas o sobrenome Moore na ficha catalográfica e não Wedderburn, como consta neste artigo de onde foi tirado esse fragmento.
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“Há muitos anos, os movimentos sociais de combate ao racismo têm insistido na necessidade de ressignificar as imagens difundidas das populações africanas - e de seus descendentes - como intelectualmente inferiores, trazendo elementos que desmistifiquem a presença da população negra em nosso país.” (Filosofia africana…, 2015FILOSOFIA africana. 2015. https://filosofia-africana.weebly.com/#:~:text=H%C3%A1%20muitos%20anos%2C%20os%20movimentos,popula%C3%A7%C3%A3o%20negra%20em%20nosso%20pa%C3%ADs
https://filosofia-africana.weebly.com/#:... , n. p.). Esse parece ser a principal justificativa para pensar que os LD tenham em seus conteúdos elementos teóricos explícitos relativos ao estudo da “História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. -
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Os materiais complementares citados foram: filmes/textos/documentários/notícias de jornais e revistas. Nenhum professor afirmou utilizar um material sistemático para discutir o tema.
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1Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
28 Mar 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
06 Nov 2019 -
Revisado
29 Maio 2020 -
Aceito
11 Jun 2020