Resumo
A hepatite C (HC) é uma doença que se agrava insidiosamente por décadas e com altas taxas de recidiva e cronificação. Seu tratamento com coquetel viricida origina reações colaterais violentas que comprometem o bem-estar dos portadores, sobretudo por não saberem como lidar com esses efeitos. Estudamos as postagens de uma comunidade virtual (CV) por meio de técnicas de análise de conteúdo orientadas por nuvens de palavras (NP). A partir do destaque nas postagens dos termos MEDICAMENTO e TRATAMENTO apontadas pelas NP, a leitura e análise do material mostrou o TRATAMENTO como ameaça, risco e agressão a reduzir qualidade de sobrevida; o “imperativo sorológico” como determinante categórico e inexorável de decisões clínicas; angústia e resignação no decorrer do acompanhamento entre as recidivas e marcação do tempo constituindo “biografias sorológicas”. Concluímos que pacientes fisicamente distantes se apropriam da Web de modo gregário em CVs deixando uma rica narrativa terapêutica cuja análise representa um relevante recurso suplementar para a identificação de demandas subestimadas pelas práticas assistenciais.
Palavras-chave:
Hepatite C; portadores de doenças crônicas; comunidades virtuais; comunicação em saúde; Internet e saúde
Abstract
Hepatitis C (HC) is a disease that worsens insidiously for decades and with high recurrence and chronicity rates. Its treatment with viricidal cocktail causes violent side reactions that compromise the well-being of patients, mainly because they do not know how to deal with these effects. We study the posts of a virtual community (VC) using content analysis techniques guided by word clouds (WC). The terms MEDICINE and TREATMENT was pointed out by the WC and the reading and analysis of the material showed TREATMENT as a threat, risk and aggression to reduce quality of survival; the “serological imperative” as a categorical and inexorable determinant of clinical decisions; anguish and resignation during the follow-up between relapses; and time pacing constituting “serological biographies”. We conclude that distant patients appropriate the Web in a gregarious way in VCs, leaving a rich therapeutic narrative whose analysis represents a relevant supplementary resource for the identification of underestimated demands for care practices.
Keywords:
Hepatitis C; carriers of chronic diseases; virtual communities; health communication; Internet and health
Introdução
A hepatite C (HC) é causada por um vírus de instalação e progressão lenta (HCV) que se agrava insidiosamente por décadas e com altas taxas de recidiva e cronificação (Brasil, 2019). Não raro, sua causa é indeterminada, o que usualmente provoca reações de surpresa, revolta e pânico entre os recém diagnosticados precedendo muitas incógnitas que advirão em seu itinerário terapêutico (KUNRATH; JUNGES; LÓPEZ, 2014KUNRATH, A. A. F, JUNGES, J. R., LÓPEZ, L.C. Vulnerabilidades e subjetividades de pessoas com diagnóstico e tratamento de hepatite C. Saúde debate, Rio de Janeiro , v. 38, n. 101, p. 225-233, 2014.). Tanto na fase aguda quanto na crônica, os medicamentos utilizados (nomeadamente a aplicação do interferon peguilado injetável) levam a períodos de controle entre recidivas e originam várias reações colaterais que comprometem o bem-estar dos portadores, sobretudo por não saberem como lidar com esses efeitos (KUNRATH; JUNGES; LÓPEZ, 2014). Recidivas se desdobrarão em agravamentos incrementais que podem levar à cirrose ou ao câncer hepático. A resposta ao tratamento é desigual e, por vezes, ineficaz. Os ciclos de tratamento se arrastam por anos, criando obstáculos ao cotidiano e a necessidade de precauções com centenas de pormenores que podem levar a consequências fatais (CASTERA et al, 2006CASTERA, L. et al. Psychological impact of chronic hepatitis C: comparison with other stressful life events and chronic diseases. World Journal of Gastroenterology, Pleasanton, v. 12, n.10, p. 1545-1550, 2006.; SUBLETTE et al, 2013SUBLETTE, V.A. et al. Psychological, lifestyle and social predictors of hepatitis C treatment response: a systematic review. Liver international, Oxford, v.33, n.6, p.894-903, 2013.; Bastos, 2007BASTOS, F.I. O som do silêncio da hepatite C. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2007.). Especialmente perigosa é também a toxicidade de substâncias costumeiramente usadas sem necessidade de prescrição, como o paracetamol (Tylenol©) e a dipirona (Novalgina©), que são inofensivas sob circunstâncias normais. As incertezas sobre os graves riscos advindos de drogas corriqueiras também frequentemente revertem em ansiedade, depressão, raiva e culpa (CARTA et al, 2012CARTA, M.G. et al. Association of chronic hepatitis C with recurrent brief depression. Journal of affective disorders, Amsterdam, v.141, n. 2-3, p.361-366, 2012.; WILSON et al, 2010WILSON, M.P. et al. Hepatitis C and depressive symptoms: psychological and social factors matter more than liver injury. International journal of psychiatry in medicine, Los Angeles, v. 4, n. 2, p. 199-215, 2010.). A ausência de mecanismos de prevenção ou de práticas de atenuação das recidivas deixa os portadores à mercê das decisões médicas instruídas unicamente pelos biomarcadores sorológicos, o que os leva à busca de novos sentidos e significados para seu cotidiano. Segundo a literatura especializada (CASTERA et al, 2006; SUBLETTE et al, 2013; WILSON et al, 2010; ALVEZ et al 2012), a qualidade de vida dos portadores de HCV se baseia na percepção individual de diversos fatores em confluência, transcendendo a dimensão física e apontando para valores sociais, psíquicos e ambientais (LINAS et al 2014LINAS, B.P. et al. The hepatitis C cascade of care: identifying priorities to improve clinical outcomes. Public Library of Science - PloS ONE, San Francisco, v. 9, n.5, p.e97317, 2014.; MATHES; ANTOINE; PIEPER, 2014MATHES, T., ANTOINE, S.L., PIEPER, D. Factors influencing adherence in Hepatitis-C infected patients: a systematic review. BioMed Central infectious diseases, London, v. 14, p. 203, 2014.; SINGH,1997SINGH, N. et al. Vulnerability to psychologic distress and depression in patients with end-stage liver disease due to hepatitis C virus. Clinical transplantation, Copenhagen, v. 11, n.5, p.406-411, 1997.).
As redes de comunidades virtuais (CV) criadas por necessidades peculiares a condições crônicas têm surgido como campo privilegiado de observação das narrativas terapêuticas (MAIA, 2017MAIA, M. Grupos de entreajuda de doentes com hepatite C no ciberespaço. Forum Sociológico [Online], v. 30, 2017. Disponível em < http://journals.openedition.org/sociologico/1772>. Acesso em: 08 junho 2020.
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; VASCONCELLOS-SILVA; CARVALHO; LUCENA, 2013VASCONCELLOS-SILVA, P.R., CARVALHO, D., LUCENA, C. Word frequency and content analysis approach to identify demand patterns in a virtual community of carriers of hepatitis C. Interactive journal of medical research, Toronto, v. 2, n. 2, p.e12, 2013.; MELO; VASCONCELLOS-SILVA, 2018MELO, M.C., VASCONCELLOS-SILVA, P.R. The use of virtual communities in the support to patients with breast cancer. Ciência & saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 23, n. 10, p.3347-3356, 2018.). Nesse terreno, o desafio consiste em compreender e analisar interlocuções como ressonâncias na dimensão virtual de dinâmicas reprodutoras e capilaridades peculiares que espelham as tessituras socioculturais que as acomodam e dão fundamento. No entanto, tais estratégias demandam inovação em metodologias de coleta de dados e análises. Novos recursos tecnológicos oferecem farto material para estudo suscitando reflexões inauditas acerca de mecanismos de prospecção em terrenos até há pouco intangíveis. Postagens públicas em CVs podem ser fontes de sentidos e de questões de suma relevância, se admitidas como núcleos estruturadores e reprodutores de demandas vinculadas a necessidades objetivas ou imateriais. Nas comunidades virtuais, a reconstrução de si como portador de HCV em dado caminho terapêutico edifica-se ao longo das postagens, acompanhando marcos biográficos e influenciando narrativas sob formas de percepção existencial perante a doença. Como descreve Quinche “as questões colocadas pela doença são produzidas para si, para os outros e com os outros” (QUINCHE, 2005QUINCHE, F. Récits sur la maladie. Maladie et récits de vie. D’un paradigme narratif à un paradigme dialogique. Revue Éthique et Santé, Issy-les-Moulineaux, v. 2, n. 2, p.82-87, 2005.; p. 85). O sentimento de pertença a um grupo de portadores em associação implica indivíduos em uma rede em que todos são cuidadores e pacientes. Espera-se quebrar um triplo padecimento trazido pela doença; pelo supostamente ignorado; e pelo isolamento. Além da dimensão de suporte solidário as associações de portadores de doenças crônicas parecem se fortalecer, sobretudo, sob condições em que o apoio clínico, jurídico e psicológico é insuficiente (ADAM; HERZLICH,2002ADAM, P., Herzlich, C. Sociologie de la maladie et de la médecine. Paris: Nathan; 2002.).
Não obstante à crescente presença da doença no país, a literatura nacional acerca de narrativas que retratem tais calvários é usualmente focada sob lentes biomédicas. Mostram-se desagregadas de experiências biográficas que trazem, em si, significados relevantes na perspectiva das notórias dificuldades e escassezes de nosso sistema de saúde. Em síntese, no presente trabalho utilizamos Nuvens de Palavras (NP) e Análise de Conteúdo de centenas de postagens em uma comunidade virtual de portadores de hepatite C com o propósito de identificar necessidades, sentidos e ordenamentos subestimados pelas práticas assistenciais e pela racionalidade biomédica. As Nuvens de Palavras foram usadas como recursos de identificação primária, a fim de perceber frequências admitidas como indicadores de relevância na identificação de ordenamentos.
Métodos
A análise de conteúdo se presta a identificação dos núcleos de sentido contidos nas enunciações que constituem a comunicação e cuja presença pode fornecer material consistente para estudos de relevância temática entre grupos (BARDIN, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. 5ª ed. Lisboa: Edições 70; 2011 p.129-170.). Leituras verticais e horizontais das postagens possibilitaram transcender os proferimentos individuais pontuais por meio da organização, categorização e inferência dos conteúdos/postagens nos respectivos contextos dialógicos. Buscamos, assim, identificar núcleos de sentido, cujas similaridades foram condensadas em categorias de análise ligadas a modelos mentais e ordenamentos simbólicos partilhados.
Nuvens de Palavras (NP) são habitualmente usadas como ilustrações, muito comuns na internet e úteis à identificação de tendências sobre os assuntos mais candentes. Como imagens produzidas por algoritmos representam frequências de termos presentes em um texto e apontam para relevâncias ligadas a recorrência de proferimentos e ideias embutidas em milhares de frases (BARDIN, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. 5ª ed. Lisboa: Edições 70; 2011 p.129-170.; SELLARS; SHERROD; CHAPPEL-AIKEN, 2018SELLARS, B.B., SHERROD, D.R., CHAPPEL-AIKEN, L. Using Word Clouds to Analyze Qualitative Data in Clinical Settings. Nursing management, Chicago, v.49, n.10, p.51-53, 2018.). Funcionam como uma aproximação qualitativa de uma dimensão quantitativa ligada à relevância de temáticas na totalidade do texto. No presente trabalho usamos as NP como tática de identificação primária para fornecer material (termos mais frequentes) à análise de centenas de milhares de registros coletados na comunidade virtual “Hepatite C” situada em uma plataforma de redes sociais. Todas as postagens publicadas em todos os tópicos da “Hepatite C” foram compiladas para arquivo de texto que, ao fim da coleta, agrupou 1.294.475 palavras como corpus textual a ser depurado, interpretado e condensado em categorias de análise ligadas a ordenamentos simbólicos partilhados. Desta versão textual completa foram retirados numerais, preposições, artigos e pronomes entre outros elementos gramaticais de limitado valor semântico. A partir daí uma NP foi gerada por meio de algoritmos do website Wordart.com. Os termos mais frequentes apontados pela NP como palavras independentes possuem diversidade de sentidos que requerem abordagens de interpretação para compreensão de seus núcleos de sentido por ser aglutinados em categorias. Assim, os termos mais frequentes foram localizados e analisados nos contextos dialógicos originais, remetendo a núcleos de sentido que, estudados em seus devidos contextos, conduziram a elementos de significação antes invisível.
Em síntese, o recorte e as análises do material seguiram as seguintes etapas: (i) Compilação de todas as postagens da comunidade “Hepatite C” em texto-fonte; (ii) Pré-análise do texto-fonte para depuração das unidades de valor semântico reduzido (numerais, preposições, conjunções etc.); (iii) Construção de uma nuvem de palavras a partir do texto depurado e identificação dos termos mais frequentes; (iv) Seleção dos trechos em que os termos mais frequentes aparecem e leitura em profundidade do material produzido.
Análises
É habitual que, nas interações online, os usuários da internet externos às comunidades de portadores de doenças crônicas busquem evidência e reconhecimento utilizando perfis falsos, omitindo defeitos ou ampliando virtudes de forma a edificar suas personas ou avatares. Nas CV, não é possível determinar com certeza o gênero, idade, ocupação ou sequer a nacionalidade dos membros - o que muito dificultaria análises de discurso. Uma das limitações inerente a estudos que se valem de material publicado na internet se refere à desidentificação dos participantes da pesquisa, o que compromete o entendimento das influências do lugar de fala a partir do qual estes se expressam. Por outro lado, é presumível que haja certo constrangimento dos portadores de HC em assumir dores e penúrias em momentos de acentuada necessidade de suporte solidário, padecimentos de várias ordens e escassez de conhecimentos técnicos. Nesse contexto, nos parece que a desidentificação atenua essas dificuldades, incitando a genuína expressão de sentimentos de desamparo, ignorância ou dúvida, comoção, aflição, desnorteamento e medo. Além de contornar constrangimentos ligados a temas de interdição moral, a desidentificação incita à genuína expressão de atos de fala (AUSTIN, 1990AUSTIN, J.L. Quando Dizer é Fazer - Palavras e Ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.) - como ações-falas de locutores através de enunciados postados e vinculados aos seus estados subjetivos. As enunciações vinculadas aos termos de destaque foram assim interpretadas nos contextos de suas postagens com vistas a expor núcleos de sentidos no formato de expectativas e tensões convergentes que reafirmam conceitos.
Resultados e discussão
Em grupos virtuais que repartem experiências de adoecimento, a dimensão do anonimato e a sensação de se sentir entre pares torna o verbo dos portadores mais livre e espontâneo, acrescentando a segurança de serem compreendidos em suas múltiplas necessidades. Nos parece que as trocas desidentificadas de experiências suscitaram a declaração plena de sentimentos, além de evitar o desconforto dos temas moralmente incômodos. As narrativas parecem adquirir especial sentido por serem divididas entre pares que partilham uma experiência existencial comum. Maia entrevistou 10 portadores de HCV que usavam plataformas de CV francesas como forma de sociabilidade (MAIA, 2017MAIA, M. Grupos de entreajuda de doentes com hepatite C no ciberespaço. Forum Sociológico [Online], v. 30, 2017. Disponível em < http://journals.openedition.org/sociologico/1772>. Acesso em: 08 junho 2020.
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) e identificou esse espaço como fonte de encontros, de troca de narrativas terapêuticas e experiências de “cura”. Como ilustra a autora, “ancorados nessa comunidade, os outros doentes podem contribuir para a narrativa pessoal e participar no trabalho de tecelagem dos acontecimentos numa trama com sentido e coerência” (MAIA, 2017). Essas categorias, produto de análise de discursos, também podem ser destacadas em nosso estudo, embora tenhamos optado por retratar atos de fala como mosaico de uma fala coletiva complexa a partir da qual a imagem dos termos mais frequentes saltam aos olhos (Figura 1), acrescentando outras categorias igualmente candentes e reveladoras.
As 15 palavras em maior destaque foram “TRATAMENTO” (10.154 registros), “HEPATITE”, “MEDICO”, “ANO”, “DIA”, “SEMANA”, “BOA”, “EXAME”, VIRUS”, “SEMPRE”, “HOJE”, “MESES”, “MEDICAMENTO”, “NOVO” e “HORA”(vide FIGURA 1), usadas em seus contextos textuais originais como unidades de registro para codificação, agregação de núcleos de sentido e construção das categorias. Foi interessante observar um padrão dominante de ocorrências conjuntas de “TRATAMENTO”, “EXAME” e “MEDICAMENTO” em contextos bastante específicos e recorrentes, como será descrito adiante. Outro núcleo de sentidos dominante e recorrente se referia aos termos ligados a marcação de tempo (ANO, DIA, SEMANA, SEMPRE, MESES, HOJE, HORA), como analisado a frente. Foi observado que os demais termos (HEPATITE, MEDICO, BOA, VIRUS, NOVO), embora também frequentes, se espalhavam em contextos variados que não permitiam perceber padrões ilocucionários que apontassem para núcleos de sentido evidentes.
No campo acadêmico das ciências sociais, teorizações sobre o conceito de tratamento-medicamento como categoria são abundantes e tematizam diversos enfoques que se estendem do aspecto simbólico dos fármacos às relações de consumo que deles advêm (VANDERGEEST; WHYTE; HARDON, 1996; DESCLAUX; LEVY, 2003DESCLAUX, A., LÉVY, J. Cultures et médicaments. Ancien objet ou nouveau courant en anthropologie médicale? Anthropologie et Societés, Québec, v. 27, n.2, p.5-21, 2003.). Há renovada atenção dos estudos antropológicos por esses objetos (FLEISCHER, 2012FLEISCHER, Soraya. Uso e Circulação de Medicamentos em um Bairro Popular Urbano na Ceilândia, DF. Saúde e Sociedade. São Paulo, v.21, n.2, p.410-423, 2012.; CASTRO, 2012CASTRO, R. Antropologia dos medicamentos: uma revisão teórico-metodológica. Revista de Antropologia Social dos Alunos do PPGAS-UFSCar, São Carlos, v.4, n.1, p.146-175, 2012.) e as hipóteses que precederam à leitura em profundidade do material idealizavam a conexão desse achado a relatos de itinerários terapêuticos a descrever o significado conferido ao adoecer relacionado às experiências e vivências de cada um dos atores sociais envolvidos no processo de adoecimento. Esperávamos correlacionar TRATAMENTO-MEDICAMENTO aos modos de entender a doença, a relatos de desabastecimento na literatura (GUNDLAPALLI, 2013GUNDLAPALLI, A.V. Perspectives and concerns regarding antimicrobial agent shortages among infectious disease specialists. Diagnostic Microbiology and Infectious Disease, New York, v. 75, n.3, p.256-259, 2013.) ou a expectativas de cura e recuperação concentradas nas mãos dos profissionais de saúde - o que explicaria também a relevância do termo MEDICO (6.785 registros).
Não obstante às hipóteses, a análise das postagens nos possibilitou identificar três categorias implicadas mutuamente: (i) Medicamento/tratamento como destruição ou doença, inversão de conceitos - medicamento não como portador de cura, mas como mal em si, fraca percepção dos efeitos curativos, certeza de maleficência e indeterminação de beneficência; (ii) Imperativo sorológico - biomarcadores virais (ligados a “EXAME”) como determinantes categóricos sobre decisões e destinos, regentes das decisões terapêuticas, prolongamento incontornável e incontrolável da “sentença” dos ciclos de tratamento; (iii) Biografia sorológica - pontuação de marcos temporais como elementos constitutivos da vida como sobrevida, contexto temporal e perspectiva existencial de recidivas e recuperações imprevisíveis, Percepção de sobrevivência (anterior ao conceito de saúde) como um estado precário de equilíbrio instável.
Tratamento-medicamento como inefável destruição
O suprimento de informações para alguns parece se dar quase que exclusivamente nessas comunidades, como base solidária para paliar a doença e o tratamento. A demanda por suporte material e social permeia as dores, indeterminações, acenos e riscos farmacológicos. Nesse contexto, são nítidos os esforços de mobilização de recursos sociais (palavra AMIGO(S) - 1.507 registros) para superação dos desafios inscritos nas trajetórias que almejam à reorganização da vida sob novas prioridades e interdições causadas pelo tratamento. Dores, limitações, sofrimentos e as muitas dúvidas dos portadores se associaram claramente ao TRATAMENTO ou ao MEDICAMENTO nas postagens, sobretudo pontuando a dimensão do tempo como marcação de sobrevida - o que se reflete na frequência de SEMANAS, ANOS, DIAS, HORAS como será descrito adiante. Conforme já registrado em outros trabalhos (KUNRATH; JUNGES; LÓPEZ, 2014KUNRATH, A. A. F, JUNGES, J. R., LÓPEZ, L.C. Vulnerabilidades e subjetividades de pessoas com diagnóstico e tratamento de hepatite C. Saúde debate, Rio de Janeiro , v. 38, n. 101, p. 225-233, 2014.), percebemos que após as BIÓPSIA(S) (829 registros) e os primeiros exames de PCR (1.026 registros) há intensa procura por informações pelos que, embora assintomáticos, já se abalam pelo mal que implicará terríveis e mal conhecidas consequências. Há atos de fala que expressam a surpresa da confirmação do diagnóstico, assim como os movimentos de procura por informações por conta das muitas dúvidas insuficientemente esclarecidas. São frequentes os proferimentos enredados por uma trama complexa de conceitos biomédicos, implicando questões funcionais e obstáculos que, usualmente, se ampliam a dimensões inauditas do cotidiano.
...acalme se não se apavore rss é difícil, eu sei, também fiquei apavorada mas passou (...) o próximo passo é fazer o PCR RNA qualitativo. Ele vai determinar se o vírus está ativo no seu organismo. Caso esteja, passa-se aos próximos exames: genotipagem e BIOPSIA...
...O PCR de fim de TRATAMENTO saiu ontem, o resultado do meu PCR de X SEMANAS e graças a Deus está indetectável e tenho fé em Deus que este resultado será para sempre. Uhuuu estou muito feliz! (...) Amiga vai ser sempre assim, vai sempre ter esse resultado, parabéns...
... o final do TRATAMENTO é cruel mesmo mas é preciso aguentar só mais uma aplicação. Que Deus nos ajude amiga, pois esse TRATAMENTO é cruel demais...
... e dizem que os inibidores de proteases devem chegar até o fim de ANO, o pior é que de qualquer forma não se abandona a dupla sádica INTERFERON-RIBAVIRINA...
Após o diagnóstico de Hepatite C, nos estágios em que a necessidade de INTERFERON (2.211 registros) se anuncia - seja na fórmula convencional ou PEGUILADO (671 regitros) em associação com a RIBAVIRINA (1.247 registros) diversas reações tóxicas estão previstas. De forma geral, os proferimentos postados de forma mais recorrente se referem às trocas de informações sobre precauções, interdições e artifícios para superar os obstáculos apostos pela doença e pelo tratamento, o que gera atos de fala de constatação das condições de existência com esperança:
...vou esperar passar. Dizem que depois de três meses passa ... enquanto isto exorcismo e descarrego - sai INTERFERON e RIBAVIRINA, sai em dupla de mãos dadas, este corpo não te pertence mais...
... dentro de doze semanas você tem que apresentar exames de PCR quantitativo para ver quanto baixou a carga ...dentro de semanas PCR qualitativo mostrando ter negativado...
... enfim saiu o resultado do PCR, depois de meses de TRATAMENTO ainda está detectável, meu médico sugeriu que se eu quisesse poderia parar o TRATAMENTO mas achei que deveria ir até o fim...
... Não fica pensando nos efeitos, vão existir mas terão muito a ver com a sua cabeça ... o primeiro TRATAMENTO falhou porque a cabeça estava fraca mas agora estou negativíssimo... não dando chance para as reações, assumi que iria enfrentar os bichinhos...
No material analisado, também são frequentes as exteriorizações de ansiedade, desânimo, depressão, sentimentos de culpa, angústia, sentimento de inferioridade, agressividade, com proeminência da ansiedade e do desânimo. Podemos teorizar que esses últimos dois sintomas constituem o círculo vicioso da condição humana no processo de alienação do homem em relação ao homem, sintomas inerentes ao viver contemporâneo no enfoque existencialista (May, 1980MAY, R. Psicologia existencial. Porto Alegre: Globo, 1980.), conceito que não é nosso objetivo aqui desenvolver. O que se observa, no entanto, não é o sofrimento psíquico perante a “vertigem da liberdade”, como em Kierkegaard, (2010KIERKEGAARD, S. O conceito de angústia. Petrópolis: Vozes, 2010.) mas o traumatismo das indeterminações persistentes, das dúvidas inesgotáveis e da necessidade de escolhas face à penúria de opções. Assim, a comunidade manifesta plenamente sua capacidade de suporte informativo frente às tantas interrogações: qual a causa do contágio e os riscos implicados nos contatos íntimos? A alimentação adequada e os perigos dos remédios caseiros ou medicamentos tóxicos? Os exercícios ou o repouso? Quais são as técnicas de aplicação adequadas e suas posologias?
...não sei como peguei o vírus, pode ser por sangue ou relação sexual, que apesar de pequenas as chances elas existem, mas isso não importa muito agora o importante é que as pessoas de nosso convívio saibam o que fazer, alertar sempre é bom e sempre aviso meus médicos e dentista assim fico mais tranquila mesmo estando negativada não quero deixar nada ao acaso. Beijos a todos, Deus abençoe a todos desta comunidade...
... vou deixar algumas dicas que me foram muito úteis durante o TRATAMENTO e antes do TRATAMENTO. Se possível faça um acompanhamento psicológico. Ajuda muito. (...) se possível faça o TRATAMENTO nas segundas, pois no final de SEMANA você estará bem e pelo menos aproveitará este momento de lazer. Não leia notícias negativas sobre a doenca e o TRATAMENTO. Não fique especulando ou se comparando aos outros. Tenha sempre analgésicos a postos. Com o TEMPO você aprende o momento certo de toma-los...
As tensões acerca do tratamento, ou sua iminência, parecem suplantar as tensões ligadas à doença. Os efeitos colaterais são descritos como impeditivos às atividades cotidianas e são persistentes as sensações de impotência e incerteza perante a iminência de um novo ciclo de medicamentos. Muitas postagens identificam itinerários repletos de tensões entre as etapas das avaliações clínicas preliminares, o diagnóstico e o sofrido tratamento. Na análise das convergências das unidades de significado, destacamos a vulneração física e psíquica por sintomas decorrentes de um duro tratamento com prognóstico incerto. As postagens de atos de fala veridictivos parecem expressar intensa fragilidade e uma doída falta de controle frente ao início e às consequências dos ciclos de tratamento:
... estou parecendo que não tenho forças, tontura, parece que vou morrer. Tenho evitado de tomar TYLENOL mas tem vezes que não aguento mas tenho medo de fazer mal. Alguém me ajude e mais que tudo, orem por mim porque ainda tenho mais semanas pela frente pra completar...
...meu médico me proibiu de tomar dipirona porque segundo ele poderia agravar a anemia...eu tomei PARACETAMOL mas só no caso de dores insuportáveis ou febre...
O Imperativo Sorológico
O tratamento e seus efeitos colaterais não envolvem necessariamente escolhas e opções de recuperação da saúde. Os atos de fala expositivos sobre alimentação saudável, prática de exercícios, yoga entre outros recursos de auto equilíbrio não encontram atos veredictivos correspondentes na forma de relato de sucessos obtidos com tais práticas. As situações de saúde / doença são definidas e determinadas pela pressão do “imperativo sorológico” sobre o qual médicos e seus pacientes parecem não ter controle. O exame do PCR e dos marcadores virais aparecem nos atos de fala como determinantes categóricos sobre a decisão, como regentes maiores das decisões terapêuticas. Estes definem e determinam os momentos de melhora e recidiva, independentemente do que o corpo e os sintomas expressem ou o a avaliação clínica não sorológica aponte. A ausência de sintomas da doença frequentemente gera dúvidas sobre a efetiva negativação, posto que a lógica da cura não é alcançável pelo paciente nem pelos médicos perante o patamar de verdade/destino alcançado pela sentença do PCR. Os atos de fala veridictivos são contraditórios e os expositivos se inclinam perante a evidência-mor do PCR:
... fiz o PCR na SEMANA (...) e não negativei, fiz novamente (...) e ainda não negativei. A médica do hospital das clínicas falou que se eu não negativasse iria interromper o TRATAMENTO porque as chances de negativar são pequenas...
...Mas houve uma redução de logs em relação ao último PCR. Atualmente estou com carga viral de (...) já encontrei uma pessoa que negativou no X mês de TRATAMENTO. Alguém passou por situação parecida ou sabe de alguém? Preciso de uma referência, quero insistir em continuar mas também não sei se vale a pena...
Esse “medicamento-doença” se manifesta trazendo unicamente destruição e sofrimentos que suplantam em muito os originados pela doença no contexto das diversas fragilidades dos portadores. Além dos numerosos efeitos colaterais envolvidos no tratamento, a paliação desses para-efeitos também se coloca como transtorno suplementar, sabido que há sérios problemas associados ao uso de analgésicos. O paracetamol (Tylenol©) leva a hepatites fulminantes (36 registros) e a dipirona (37 registros) agrava problemas de sangramento. Medicamentos usados para as frequentes dores musculares podem agravar gastrites e provocar sangramentos em varizes esofágicas, comuns em pacientes com cirrose.
Alguns enunciados denunciam o completo desconhecimento dos riscos apresentados pelo paracetamol, o que talvez corresponda a lacunas na comunicação com os médicos e enfermeiros. Os atos de fala veridictivos que ostentam os efeitos positivos dessa medicação descrevem claramente as lacunas de conhecimento sobre os riscos:
...esses efeitos, febre com calafrios, dor de cabeça, boca seca, dores no corpo, enjoo etc. são normais. Se o médico receitou algum antipirético, você pode dar para ele. Eu tomava TYLENOL ou Dorflex oito horas após a aplicação do interferon, pois era esse o período em que os efeitos colaterais apareciam para mim...
...depois da BIOPSIA senti bastante dor, o que é normal. Mas nada que um TYLENOL não resolva...
...pois meu marido também tem muitos efeitos colaterais, já perdeu onze quilos, tem dores em todas as articulações, a dor de cabeça que não passa. Tem dia que ele toma TYLENOL, o estômago está destruído...
Sendo assim, diferindo de muitas outras condições nas quais se observa uma aproximação do medicamento com a simbologia de objeto de consumo (Lefèvre, 2001LEFÈVRE, F. O medicamento como mercadoria simbólica. São Paulo: Cortez, 2001.), o medicamento-tratamento aqui é referenciado como um mal derivado exercendo o papel de mal maior ou como um prolongamento incontornável da doença. No caso em questão, a indefinição de efeitos curativos, a quase certeza de sua maleficência e a indeterminação de sua beneficência superam a perspectiva de recuperação da saúde que usualmente cerca a simbologia do medicamento no “mercado da saúde”. O TRATAMENTO-MEDICAMENTO, que amiúde domina a cena, parece substituir certos aspectos usualmente ligados à doença. Nesse terreno - ao contrário da lógica da medicalização da sociedade - o propósito do medicamento não “porta cura” nem representa saúde simbolicamente (Lefèvre, 2001). Ao contrário, os atos de fala veridictivos implicam “ameaça”, “perdas funcionais” ou agressão farmacológica que subtrai qualidade de sobrevida.
Biografia Sorológica - o tempo como ordenador de esperas e recidivas
Enfoques antropológicos nos ensinam que para conhecer uma comunidade é preciso entender como ela se refere à pontuação do tempo. Seus ordenamentos temporais se aproximam de narrativas de vitórias, derrotas e interdições das marcações de dias, semanas, meses e anos (Elias, 1998ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zaar, 1998.). No caso em questão, os portadores de HCV expressam a percepção de que sua condição implica um novo posicionamento existencial sobreposto à antiga vida normal, extinta no momento do diagnóstico. Os atos de fala geram sentidos que incorporam aspectos da enfermidade e, sobretudo do tratamento, à continuidade da sobrevida, conferindo sentido e valor às suas vivências em meio a extensas limitações e pequenas conquistas. Estas últimas, irrelevantes para outros em contextos exteriores, simbolizam vitórias e potencialidades de superação que podem ser atualizadas a cada novo dia, mês ou semana. Há, portanto, núcleos de sentidos ligados à pontuação da vida no ritmo de exames e consultas, na infausta “biografia sorológica” que se institui - no compasso de recidivas e recuperações - o conceito de saúde e sobrevida, como um estado precário de equilíbrio instável, requer também marcos para seus elementos constitutivos. Na dimensão subjetiva, os sujeitos produzem simbologias, inscrevem condições existenciais em novos ordenamentos que, no caso, parecem pontuar sentidos de sobrevivência, superação e esperas sofridas que merecem um registro público. Interessante observar que há núcleos de significados constituídos por enunciados que se referem à marcação do tempo e a objetos de escrutínio ou intervenção clínica. ANO(s) (2.786 registros), MÊS(es) (2.098 registros), SEMANA(s) (3.249 registros), DIA(s) (4.265 registros), TEMPO (1.654 registros) de espera pela negativação dos marcadores biológicos entre recidivas, exames e tratamentos.
Sabemos que o tempo transcorrido é percebido como peculiar gerador de vulneração, pois antes da consciência súbita da presença do VÍRUS 2.605 registros) há segmentos de vida considerados “desperdiçados” sem o devido tratamento, no silêncio da doença (KUNRATH; JUNGES; LÓPEZ, 2014KUNRATH, A. A. F, JUNGES, J. R., LÓPEZ, L.C. Vulnerabilidades e subjetividades de pessoas com diagnóstico e tratamento de hepatite C. Saúde debate, Rio de Janeiro , v. 38, n. 101, p. 225-233, 2014.). Revolta e ressentimento pelo tempo desperdiçado ou, a partir do diagnóstico, angústia e resignação no decorrer da contabilidade do tempo em paralelo às inúmeras consultas e exames de acompanhamento sorológico que precederam o sofrido tratamento. Como já descrito na literatura, aspectos perceptivos, sensoriais e afetivos produzem rupturas e traduzem ansiedades, expectativas e conflitos decorrentes de maneiras de encarar a sobrevida (CANESQUI, 2007CANESQUI, A.M. Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: Hucitec, 2007.). Após o diagnóstico, os atos de fala veridictivos explicitam tempo desperdiçado, substituído pela era das “iminências” - a espera pela dor sob o errático imperativo sorológico; a luta na iminência da quase-morte, que habilitaria o portador da doença ao transplante, libertando-o da doença e das agruras do tratamento maleficente; o acompanhamento meramente expectante e a incerteza que submete o indivíduo à impotência por incapacidade de decidir por si na reorganização da vida sob as indeterminações desse compasso de espera:
...Vou repetir o EXAME e o PCR vou fazer daqui a X MESES e DIA X de março tenho mais EXAMES e DIA X consulta... o MÉDICO disse que a fraqueza, os enjoo tudo é por causa do medicamento...
...eu tô com muito medo de daqui a dois MESES fim do tratamento não negativar. Tô fazendo esse tratamento com interferon convencional X vezes por SEMANA. Imagina em fevereiro saber que vou passar mais um ANO tomando peguilado é muito foda, já faz X MESES dentro de casa...
...já faz SEMANAS que a médica que só vê meus hemogramas SEMANAIS e nunca me vê. Suspendeu o INTERFERON só deixou as RIBAVIRINAS diárias. Tenho medo de ficar ANOS e ANOS nessa marmota...
Nos registros dos portadores sem recidivas ou sintomas há, invariavelmente, atos de fala expositivos de comoção/comemoração sobre tempo e indícios da doença. Ao longo dos ciclos de tratamento há uma espécie de contagem regressiva nos atos veridictivos na qual os momentos de dor e alívio são pontuados enfaticamente. No contexto da afecção insidiosa, de curso lento e prognóstico indeterminável, percebemos que os enunciados expositivos da CV se mostram ora resignados, ora angustiados sobre sua condição de sobrevivência, embora sempre apreensivos quanto ao destino que a doença lhes reservaria.
... ai, me deu medo ainda bem que só falta uma. DIA X acabo as Y SEMANAS ainda bem que fui bem... deu para aguentar até agora só dor de cabeça, dor nos olhos, na nuca, coceiras, cansaço...dor no corpo, irritação, os cabelos caíram, mas sobraram muitos...
... vai dar tudo certo, eu também já estou há mais de X ANOS na luta para tratamento uma HORA sai, estou correndo atrás...
... sabe que tem DIAS que fico muito confiante e noutros um fiasco, parece que vou chegar lá e o médico vai dizer que tal mais X SEMANAS? Cruel mais essa espera, fazer o que, estou contando os DIAS para de X abril esses meus médicos me torturam, mas passa...
Interessante observar como esses proferimentos são pontuados em um ritmo próprio, em paralelo à escala temporal usual sobre a qual o vírus impôs reordenamento de sobrevida em ruptura à vida que o precedeu. Nesse contexto, o escore MELD (894 registros), terminologia médica da qual os portadores de cirrose se apropriaram como estimativa de tempo de sobrevida, é frequentemente descrito pelos atos de fala veridictivos e comissivos como pêndulo definidor de destinos no que se refere à redenção pelo transplante de fígado. Apresenta-se, assim, a fina sintonia do MELD: os portadores devem ser caracterizados como graves o suficiente para a intervenção, embora gravidade excessiva comprometa seriamente a cirurgia e o prognóstico - o portador não pode ser classificado como bom demais para merecer, nem ruim demais para desfrutar.
...mas se no MELD que estava o levou à morte, para que então esse absurdo de referência que usam? Uma saúde falida e desumana...
... meu índice MELD que antes do tratamento era menos que X chegou a Y. DIA X entrei em coma, DIA Y eu transplantei. Há X MESES fiz a biópsia sem sinais de rejeição e também não tem sinal do vírus. SEMANA que vem vou fazer PCR...
... meu MELD já esteve em X há uns três MESES estava em Y. O que me assusta é que nem assim consegui entrar pra fila de transplante. Minha médica disse que não adianta porque estão só fazendo transplante em quem tem pra cima...
... lutou até o fim mas infelizmente a doença venceu. Ficou na fila de TX, ou melhor dizer, na fila da morte, por dois ANOS o MELD dele era X e a equipe que o tratava sempre falava que para ser transplantado teria que chegar a Y...
As frustrações no decorrer dos longos períodos transcorridos são geradores de vulneração e a leitura dos atos expositivos, veridictivos e exercitivos descrevem a longa espera na contabilidade das semanas, meses ou anos considerados perdidos (ou por ser reiniciada do marco zero, à mercê dos protocolos de tratamento). Aqui a contabilidade do tempo traduz os esforços envidados pelos portadores para se situarem no interior desse fluxo no contexto da transposição da dor silente da doença pela expiação do tratamento e das esperas.
Em resumo, os atos veridictivos tornam evidentes os esforços de reorganização da vida perante a condição de ameaça existencial dos portadores. No entanto, não se explicitam nas postagens os elementos essenciais à estruturação assistencial que poderiam paliar iniquidades programaticamente instituídas, admitidas como “o grau e a qualidade do compromisso dos serviços assistenciais... e, especialmente, sua permeabilidade a estímulos de participação e autonomia dos sujeitos sociais no diagnóstico da situação e nos caminhos para superação” (Ayres, 2003AYRES, J.R.C.M. O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In: CZERESNIA, D., FREITAS, C.M. de (Orgs.) Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003, p.117-139.). As postagens descrevem o escopo da responsabilidade institucional se limitando ao diagnóstico-tratamento e não alcançando outras formas de suporte às condições necessárias à reorganização da vida. No interior da dimensão temporal sobreposta, os próprios sujeitos determinam o posicionamento de suas gravidades, medem seus interstícios de sofrimento e a duração de suas esperas no compasso dos ritmos das mudanças sorológicas.
Conclusões
Comunidades virtuais podem ser fontes de sentidos na medida em que registram aspectos de superação de pesos existenciais por meio de interação e colaboração. Questões de suma relevância são genuinamente discutidas, o que as posiciona como núcleos estruturadores e reprodutores de demandas vinculadas a necessidades objetivas ou imateriais. Usuários se valem de sua condição de semianonimato para externar de forma espontânea - por vezes catártica - questões e inquietações, não raro em momentos de aguda necessidade. No campo dos cuidados aos portadores de HC usualmente dispensados pelo modelo Biomédico, percebemos aqui o registro do escasso investimento na atenção a questões de ampla pluralidade que transcendem desígnios clínicos, além indícios de indiferença institucional em relação aos recursos comunicativos atualmente acessíveis, como já descrito na literatura (SOUSA; CRUVINEL, 2008SOUSA, V. V.; CRUVINEL, K. P. S. Ser portador de hepatite C: sentimentos e expectativas. Texto contexto - enfermagem, Florianópolis, vol.17, n.4, p. 689-695, 2008.). Percebemos que nesses espaços os indivíduos expõem francamente seus anseios e frustrações, constroem representações orientadoras de práticas e reelaboram conceitos. Há mensagens ressignificadas diariamente por capilaridades plurais que as reproduzem ao sabor de percepções de urgências e iminências que merecem ser descritas e analisadas no contexto de demandas por suporte social frente às adversidades.
Acreditamos que o estudo do registro de interlocuções na convergência das comunidades virtuais oferece matéria à construção de interessantes sistemas de categorias. Apresenta-se, assim, o desafio de explorar novas estratégias de análises úteis à construção de modelos teóricos reveladores de ordens subjacentes nos recém instituídos terrenos das comunidades virtuais. Como fonte de novos sentidos, as CV de portadores de hepatite C podem ser úteis à reestruturação de serviços ao redor de necessidades talvez não tão evidentes no decorrer das consultas ambulatoriais. Estas teriam a oferecer um rico manancial de ordens, valores e sentidos inaparentes, essenciais aos profissionais e gestores de sistemas de saúde sensíveis às demandas de segmentos sociais de escassa visibilidade. Nesse cenário, como produzir uma articulação entre intervenções de diferentes naturezas para que se possa dar conta das multidimensionalidades do ser humano? Como apreender os modos como as pessoas estimam suas condições de saúde e doença? Com base nisso, como lidam com a situação, de que efetivamente precisam? Que itinerário terapêutico percorrem em busca da cura e/ou equilíbrio? Em paralelo ao contexto biomédico das intervenções, existe uma dimensão sociocultural que, muitas vezes, é esquecida, composta por significados sobre o adoecimento e a cura, vivência de estigmas e barreiras, possíveis perdas ou ganhos que acompanham a confirmação do adoecer e as interpretações sobre os itinerários terapêuticos. Assim, em uma dimensão mais abrangente, nosso projeto maior inclui a validação dos presentes resultados por membros de uma das muitas associações de pacientes portadores de hepatite.
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Errata
-
No artigo “MEDICAMENTO COMO DOENÇA E BIOGRAFIA SOROLÓGICA EM COMUNIDADES VIRTUAIS DE PORTADORES DE HEPATITE C”, com número de DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312021310418 publicado no periódico Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 31, n. 4, e310418, na página 1, erro de qualificação do autor:ONDE SE LÊ:1Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro-RJ, Brasil (bioeticaunirio@yahoo.com.br). ORCID: 0000-0003-4646-35802Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro-RJ, Brasil (tiagocoutinho80@gmail.com). ORCID: 0000-0002-0545-94573Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro-RJ, Brasil (taniaaj@ioc.fiocruz.br). ORCID: 0000-0002-8233-5845LEIA-SE:1Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos-LITEB, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro-RJ, Brasil (bioeticaunirio@yahoo.com.br). ORCID: 0000-0003-4646-35802Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro-RJ, Brasil (tiagocoutinho80@gmail.com). ORCID: 0000-0002-0545-94573Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos-LITEB, Instituto Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz. Rio de Janeiro-RJ, Brasil (taniaaj@ioc. fiocruz.br). ORCID: 0000-0002-8233-5845
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Dez 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
-
Recebido
01 Set 2020 -
Aceito
15 Mar 2021 -
Revisado
18 Out 2021