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Consumo de informações sobre alimentação saudável e dietas em páginas do Facebook: uma abordagem qualitativa no ambiente virtual

Consumption of information about healthy eating and diets on Facebook pages: a qualitative approach in the virtual environment

Resumo

Este artigo parte de uma abordagem qualitativa em páginas no Facebook (FB) para analisar sentidos do consumo de informações sobre alimentação saudável e dietas atribuídos por internautas. Foram realizadas observações com registro em diário de campo durante oito meses e entrevistas semiestruturadas com 10 internautas, norteadas por roteiro específico. As páginas refletem um mercado de emagrecimento que não é explícito para os consumidores. Todos os entrevistados acessam o FB diariamente, sendo que o consumo de informações variou entre os que buscam "o tempo todo", "às vezes" e "quando aparece na timeline". As informações são submetidas a processos de filtragem e validação mediados por experiências, por pares ou comparações em fontes diversas da Web- de modo a fazerem sentido. Internautas agenciam seus cuidados alimentares a partir de novos elementos "garimpados" na rede - as comunidades virtuais fazem parte de itinerários de autocuidado alimentar pautados no autocontrole e disciplinarização dos corpos. As análises podem contribuir para a compreensão e perspectivas de utilização das redes social por comunicadores em saúde e debates sobre o papel das mídias sociais no âmbito sanitário e sobre possibilidades de conciliação da lógica da mídia com a lógica da promoção da saúde.

Palavras-chave:
Redes sociais.Alimentação saudável.Autocuidado; Comportamento de busca de informação.

Abstract

This article starts from a qualitative approach on Facebook pages (FB) to analyze the meanings of consumption of information about healthy eating and diets attributed by Internet users. Observations were carried out with a field diary for eight months and semi-structured interviews were carried out with 10 internet users, guided by a specific script. The pages reflect a weight-loss market that is not explicit for consumers. All respondents access FB daily, and the consumption of information varied between those seeking "all the time", "sometimes" and "when it appears on the timeline". The information is subjected to filtering and validation processes mediated by experiences, pairs or comparisons in different sources on the Web - in order to make sense. Internet users organize their dietary care from new elements "mined" in the network - virtual communities are part of self-care itineraries based on self-control and discipline of bodies. The analyzes can contribute to the understanding and perspectives of the use of social networks by health communicators and debates on the role of social media in the health field and on possibilities for reconciling the logic of the media with the logic of health promotion.

Keywords:
Social networks; Healthy eating; Self-care; Information seeking behavior.

Introdução

O consumo de informações em saúde está imerso numa conjuntura sociocultural que favorece sua expansão, desempenhando papel decisivo nas relações entre os agentes sociais e suas práticas cotidianas. “Os espíritos são invadidos todos os dias um pouco mais pelos cuidados com a saúde [...] não se consomem mais apenas medicamentos, mas também transmissões, artigos de imprensa para o grande público, páginas da web, obras de divulgação, guias e enciclopédias médicas” (LIPOVETSKY, 2007LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo. São Paulo: Companhia das Letras , 2007. , p. 53). Em meio à diversidade de conteúdos produzidos e consumidos, os relacionados a alimentação saudável e dieta são objeto deste estudo.

As redes sociais vêm se configurando em novos espaços para se falar sobre comida, compartilhar receitas, histórias etc.(ROUSSEAU, 2012ROUSSEAU, S. Food and social media: you are what you tweet. Lanham: Altamira Press/Rowman & Littlefield, 2012. ). A internet e redes sociais são fenômenos indissociáveis na vida de um número crescente de pessoas, tornando-se parte central da bagagem simbólica das sociedades pós-modernas e das definições de seus estilos de vida. No Brasil, cerca de 67% das pessoas com dez anos ou mais usaram internet em 2017 - o que representa 120,7 milhões de usuários (COMITÊ..., 2018COMITÊ GESTOR DE INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros - TIC domicílios 2017. São Paulo: Comitê Gestor de Internet no Brasil, 2018. ). Atividades de comunicação são as mais realizadas, sendo que 90% dos usuários interagiram por WhatsApp, Skype ou chat do Facebook (FB) (COMITÊ..., 2018COMITÊ GESTOR DE INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros - TIC domicílios 2017. São Paulo: Comitê Gestor de Internet no Brasil, 2018. ). Sobre as atividades voltadas para busca de informação, são mais frequentes a procura sobre produtos e serviços (57%) e as relacionadas a saúde ou serviços de saúde (44%) (COMITÊ..., 2018COMITÊ GESTOR DE INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros - TIC domicílios 2017. São Paulo: Comitê Gestor de Internet no Brasil, 2018. ).

Sévil (2017)SÉVIL, J. I. A. Internet, el nuevo ingrediente en la alimentación. In: JUÁREZ, L.; MEDINA, F. X.; LÓPEZ GARCÍA, J. (Eds.). Comida y mundo virtual: Internet, redes sociales y representaciones visuales. Barcelona: Editorial UOC , 2017. p. 327-353. cita a internet como um novo ingrediente da alimentação. Juarés, Medina e Garcia (2017) salientam que a gastronomia, por exemplo, não tem sido uma exceção à penetração das redes sociais na cotidianidade, configurando a abertura de novas sociabilidades em torno da comida no mundo virtual. Nessa perspectiva, a investigação etnográfica sobre a comida começou a se preocupar com análises em espaços culinários e alimentares virtuais (ROUSSEAU, 2012ROUSSEAU, S. Food and social media: you are what you tweet. Lanham: Altamira Press/Rowman & Littlefield, 2012. ).

Torna-se pertinente questionar e analisar a relação produzida entre as representações sobre práticas alimentares nas mídias digitais e o público que as consome, com vistas a compreender como os significados são integrados (ou não) nas crenças, discursos e práticas sociais dos indivíduos (JUÁREZ; MEDINA; GARCÍA, 2017JUÁREZ, L.; MEDINA, F. X.; LÓPEZ GARCÍA, J. (Eds.). Comida y mundo virtual: Internet, redes sociales y representaciones visuales.1. ed. Barcelona: Editorial UOC, 2017. ). Entretanto, não têm sido realizados muitos trabalhos que analisem a composição de informações produzidas ou consumidas pelos usuários na granularidade das mensagens individuais (KULSHRESTHA et al., 2015KULSHRESTHA, J. et al. Characterizing Information Diets of Social Media Users. In Proceedings of International AAAI Conference on Web and Social Media (ICWSM), Oxford, UK, May 2015. ).

Na perspectiva de contribuir com as reflexões sobre o tema, o presente trabalho teve como objetivo analisar sentidos do consumo de informações sobre alimentação saudável e dieta atribuídos por internautas de páginas da rede social FB.

Metodologia

Empreendeu-se uma pesquisa qualitativa no ambiente virtual. Para delimitação do universo empírico, realizou-se uma abordagem exploratória para seleção de páginas do site da rede social Facebook®. A extração de dados das páginas estudadas foi feita mediante utilização do aplicativo Netvizz V1.42, sendo que para ter acesso ao aplicativo, foi criada uma conta na rede social exclusivamente para realização do estudo. A seleção das páginas foi feita no mês de outubro de 2017, utilizando-se os termos de busca “alimentação saudável” e “dieta” no Netvizz, uma vez que os mesmos revelam interfaces com o objeto em estudo.

Envolto por polissemias, não há consenso científico sobre o conceito de "alimentação saudável" (AZEVEDO, 2008AZEVEDO, E. Reflexões sobre riscos e o papel da ciência na construção do conceito de alimentação saudável. Revista de Nutrição, v. 21, n. 6, p. 717-723, dez. 2008. ). Diez Garcia (2003)DIEZ GARCIA, R. W. Reflexos da globalização na cultura alimentar: considerações sobre as mudanças na alimentação urbana. Revista de Nutrição, v. 16, n. 4, p. 483-492, dez. 2003. esclarece que a noção de “dieta” seria a que melhor traduz o enfoque atual de "alimentação saudável" baseado na "racionalidade nutricional" amparada pelos constructos científicos (VIANA et al., 2017VIANA, M. R. et al. A racionalidade nutricional e sua influência na medicalização da comida no Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v. 22, n. 2, p. 447-456, fev. 2017. ). Nessa perspectiva, utilizou-se o termo "dieta" como forma de aproximação do imaginário social sobre alimentação saudável. Noções empíricas sobre cada termo foram pautadas no processo de investigativo.

Foram identificadas 483 e 492 páginas, para os termos de busca "alimentação saudável" e "dieta", respectivamente. Dentre as páginas identificadas, foram selecionadas as 10 mais curtidas para cada descritor utilizado, configurando o universo empírico. O número geral de curtidas dos usuários é um bom proxy para o envolvimento com as páginas do FB e pode fornecer dados importantes sobre o consumo de informações, pois registra a interação do usuário com o servidor remetendo para um feedback positivo em relação ao conteúdo da postagem (SCHMIDT et al., 2017SCHMIDT, A. L. et al. Anatomy of news consumption on Facebook. Proceedings of the National Academy of Sciences, v. 114, n. 12, p. 3035-3039, 21 mar. 2017. ). Foram incluídas as páginas que estavam descritas em português e que tivessem seu conteúdo disponível para acesso público.

A conta criada para seleção das páginas foi utilizada para realização do trabalho de campo - acompanhamento das páginas selecionadas no período de maio a dezembro de 2018, com o objetivo de descrever as páginas e interações observadas. Cabe salientar que no intervalo de tempo entre a criação do perfil (setembro de 2017) e o início do trabalho de campo, foram realizadas atividades pré-campo para aproximação do universo empírico e análise das possibilidades teórico-metodológicas mais adequadas para atingir o objetivo do estudo, propondo uma abordagem inovadora e, ao mesmo tempo, mantendo o rigor metodológico.

As 20 páginas selecionadas foram curtidas e seguidas pela pesquisadora que atuou durante os quatro primeiros meses como "pesquisador silencioso ou lurker (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2016FRAGOSO, S.; RECUERO, R.; AMARAL, A. Métodos de Pesquisa para Internet. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2016. ), interagindo com internautas especialmente durante o período de recrutamento e realização de entrevistas - atuando como "pesquisador insider", com uma abordagem de inspiração etnográfica (FRAGOSO; RECUERO; AMARAL, 2016)FRAGOSO, S.; RECUERO, R.; AMARAL, A. Métodos de Pesquisa para Internet. 4. ed. Porto Alegre: Sulina, 2016. nos últimos quatro meses. As páginas selecionadas foram acompanhadas semanalmente e suas atualizações registradas em diário de campo e com o auxílio de capturas de tela.

Foram estabelecidos contatos com internautas que se manifestaram por meio de comentários nas páginas, especialmente os que estivessem on-line nos momentos do trabalho de campo - como estratégia de facilitar a interação e responsividade. Foram realizadas 10 entrevistas - atendendo a recomendações descritas na literatura para pesquisas qualitativas (ATRAN; MEDIN; ROSS, 2005ATRAN, S.; MEDIN, D. L.; ROSS, N. O. The Cultural Mind: Environmental Decision Making and Cultural Modeling Within and Across Populations. Psychological Review, v. 112, n. 4, p. 744-776, 2005. ). Todas as entrevistas foram conduzidas a partir de mensagens inbox, de acordo com a preferência dos entrevistados (foi dada a opção de uso de chamadas de áudio ou vídeo) pela plataforma do FB. O aceite para participação foi formalizado via Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) criado na ferramenta do GoogleForm® e compartilhado via hiperlink pela rede social. Os critérios de inclusão foram: idade acima de 18 anos e ser residente no Brasil, sendo que, no contexto da entrevista, também lhes foi questionado sobre o consumo de informações sobre alimentação saudável e dietas em páginas do FB.

As entrevistas semiestruturadas foram guiadas por roteiro específico, envolvendo questões relacionadas à frequência de uso da Internet e do FB; consumo de informações sobre alimentação nas páginas; possibilidades práticas das informações buscadas; risco/confiança nas informações; interações com nutricionista e/ou outros profissionais de saúde sobre as informações encontradas, além de dados sociodemográficos.

Os registros em diários de campo e conteúdos das entrevistas foram alvo de análise qualitativa sob orientação teórico-metodológica da análise temática de conteúdo (BARDIN, 2007BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2007. ). No processo analítico, empreendeu-se o esforço de ultrapassar o alcance meramente descritivo na intenção de atingir interpretações mais profundas (BARDIN, 2007) a partir do diálogo com referenciais teóricos específicos.Categorias baseadas no roteiro de entrevistas foram mantidas, uma vez que se mostraram correspondentes aos principais aspectos registrados a partir do material empírico produzido.

O projeto foi aprovado por Comitê de Ética em Pesquisa, sob parecer nº2.176.145, conforme preconizado pelo Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012BRASIL. Resolução n. 466, de 12 de dezembro de 2012. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.Diário Oficial da União, Brasília, 2012. ).

Resultados e Discussão

As temáticas da alimentação saudável e dieta são profusamente pautadas nas páginas estudadas e tiveram diferentes intensidades de publicações, variando entre 0 e 572 posts extraídos ao final do período estudado (tabelas 1 e 2). A frequência na atualização das páginas influencia positivamente no engajamento de internautas (REILLY; HYNAN, 2014REILLY, A. H.; HYNAN, K. A. Corporate communication, sustainability, and social media: It’s not easy (really) being green. Business Horizons, v. 57, n. 6, p. 747-758, nov. 2014. ), repercutindo nas audiências. No período de oito meses, 13 (65%) páginas tiveram aumento expressivo de fãs, com destaque para aquelas ligadas ao termo de busca "dieta", com aumento total de 827.640 curtidas - aproximadamente 18 vezes mais que as relacionadas à "alimentação saudável", que juntas apresentaram saldo positivo de 46.393 fãs. Mais do que valores numéricos, os dados representam o contínuo interesse do público pelo tema e conteúdos publicados.

Ainda que muitas páginas a princípio pareçam um espaço de disseminação de informações despretensioso, identificou-se um mercado de emagrecimento em torno de muitas delas.Tal afirmação toma como base a diversidade de ofertas, anúncios e orientações para compra/venda de produtos para emagrecimento.

Tabela 1
Caracterização das páginas do Facebook selecionadas a partir do termo de busca "alimentação saudável", 2018
Tabela 2
Caracterização das páginas do Facebook selecionadas a partir do termo de busca "dieta", 2018

O mercado do emagrecimento nas páginas

A "indústria do emagrecimento" -"a qual pode ser entendida como os mecanismos desenvolvidos na indústria cultural responsáveis por disseminar a ideia de um corpo magro, ou de estratégias que facilitem o processo de perda de peso" (BAPTISTA, 2013BAPTISTA, T. J. R. A obesidade e a indústria do emagrecimento. ComCiência - Revista de Jornalismo Científico, v. 145, p. 1-4, 2013. , p. 2)- se apropria desse espaço à medida que manifestações sobre esse fenômeno foram observadas nas páginas analisadas - 14 delas estavam vinculadas a hiperlinks voltados para alguma modalidade de e-commerce, (transações de compra/venda realizadas por canais eletrônicos (VIRGINIA, 2015VIRGINIA, A. Glosario de Términos Relacionados al Comercio Electrónico.E-Commerce.com.do,2015. Disponível em: Disponível em: https://bit.ly/2Ltusyc . Acesso em 10 jan. 2020.
https://bit.ly/2Ltusyc...
)- de produtos ou serviços para emagrecimento (tabelas 1 e 2). De acordo com Gamboa e Gonçalves (2014)GAMBOA, A. M.; GONÇALVES, H. M. Customer loyalty through social networks: Lessons from Zara on Facebook. Business Horizons, v. 57, n. 6, p. 709-717, nov. 2014. , o FB é a plataforma de mídia social preferida para relacionamentos entre empresas e consumidores, distinguindo-se também por sua maior abrangência em termos de gênero e idade. A plataforma permite gerar informações sobre o perfil do público e facilita o direcionamento do conteúdo de forma personalizada pelo uso de algoritmos. Nas páginas em questão, a maior participação de perfis de mulheres pôde ser facilmente observada - grupo mais suscetível a ter seus corpos tornados lócus de comodificação nos discursos sobre modelos de corporeidade apresentados na mídia (FIGUEIREDO; NASCIMENTO; RODRIGUES, 2017FIGUEIREDO, D. de C.; NASCIMENTO, F. S.; RODRIGUES, M. E. Discurso, culto ao corpo e identidade: representações do corpo feminino em revistas brasileiras. Linguagem em (Dis)curso, v. 17, n. 1, p. 67-88, abr. 2017. ).

Identificou-se nos hiperlinks (tabelas 1 e 2) de websites das páginas a venda de medicamentos para emagrecimento, suplementos alimentares, produtos industrializados adjetivados como "naturais", além de "infoprodutos" (programas de emagrecimento, e-books, revistas, orientações dietéticas a partir de grupos do WhatsApp) que também estão sujeitos a estratégias de marketing para galgar consumidores. Em três delas foi identificado algum tipo de anúncio patrocinado pela indústria de alimentos, indústria farmacêutica ou de planos de saúde.

O fomento ao desejo pelo emagrecimento e valorização imagética dos corpos parece garantir a audiência das páginas. Além do consumo via audiência e de produção de dados de consumidores que podem ser monetizados por empresas, as páginas atuariam como uma "rede" para "pescar" e direcionar internautas do FB para mídias claramente voltadas à comercialização de produtos, especialmente os websites de e-commerce. A figura1 representa [info]produtos comercializados nos websites ligados às páginas direcionadas para a construção do corpo idealizado.

Para Featherstone (2010)FEATHERSTONE, M. Body, Image and Affect in Consumer Culture. Body & Society, v. 16, n. 1, p. 193-221, mar. 2010. , a cultura de consumo tem certa obsessão pelo corpo, pois é através dele que os ideais propagados pelo discurso capitalista podem ser -literal e simbolicamente- incorporados. Assim, muitos corpos são tecnologicamente fabricados e postos como objetos de desejo. Essa busca por um corpo idealizado direciona para a drenagem dos sujeitos e nos desvia de projetos de mudança mais comunitários e voltados para transformações sociais, além de gerar preocupações a saúde física e bem-estar psicológico (JUNIOR; LOBO; BUNN, 2018JUNIOR, J. M. S.; LOBO, F. A. S.; BUNN, M. C. A responsabilidade social dos produtores de imagens: corpo e consumo. Semiótica e transdisciplinaridade em revista, v. 8, n. 1, p. 24-40, 2018. ).

O corpo "real", quando usado para simbolizar "sucesso", é um corpo emagrecido (figura 1) a partir do qual a magreza é apresentada como uma conquista. Como reforço às propostas, são publicadas imagens de "antes e depois" de determinadas intervenções dietéticas, de atividades físicas, cápsulas para emagrecimento e procedimentos cirúrgicos, que são apresentadas como evidências.

A corriqueira utilização desse tipo de imagem por profissionais de saúde como ilustração da efetividade de suas condutas vem suscitando posicionamento de entidades representativas de categorias profissionais. No código de ética do nutricionista, esse tipo de publicação é considerado uma infração (CFN, 2018CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. Resolução CFN no 599, de 25 de fevereiro de 2018. Aprova o Código de Ética e de Conduta do Nutricionista e dá outras providências. Brasília, 25 fev. 2018. ). O Conselho Federal de Nutricionistas (CFN, 2018CONSELHO FEDERAL DE NUTRICIONISTAS. Resolução CFN no 599, de 25 de fevereiro de 2018. Aprova o Código de Ética e de Conduta do Nutricionista e dá outras providências. Brasília, 25 fev. 2018. ) entende que produtos, equipamentos, protocolos e tratamentos podem não apresentar o mesmo resultado para todas as pessoas e configurar riscos para a saúde, podendo gerar expectativas irreais aos clientes.

Figura1: Captura
de tela do conteúdo de hiperlink de página sobre "dieta”, 2018.

O consumo de informações

Participantes do estudo

Os participantes do estudo foram internautas que acessavam informações das páginas do Facebook enquanto usuários, sem que tivessem vínculos institucionais e/ou comerciais com as mesmas.

A idade dos colaboradores variou entre 32 e 62 anos, sendo oito participantes do sexo feminino e dois do sexo masculino. Com relação à escolaridade, quatro tinham nível superior completo, dois de nível técnico, três de nível médio e um com ensino fundamental completo. No que tange a cor/raça, três participantes se declararam pardas, três brancas e duas negras. As ocupações variaram entre aposentada, farmacêutico, auxiliar administrativo, técnica em enfermagem, técnico mecânico, dona de casa, artesã, gerente administrativa e cozinheira.

As cidades atuais dos participantes foram, principalmente, capitais da Região Sudeste do país -Rio de Janeiro-RJ (3), Belo Horizonte-MG (2),Vitória-ES (1),São Paulo-SP (1), e três do interior das regiões Sul e Sudeste. Os participantes apresentaram diversidade etária, de escolaridade e ocupação, o que contribuiu para a análise de heterogeneidades acerca do tema. Houve concentração de colaboradores das regiões Sudeste e Sul do país, o que pode estar relacionado ao contingente populacional expressivo, somado ao maior acesso à internet nesses locais (COMITÊ..., 2018)COMITÊ GESTOR DE INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros - TIC domicílios 2017. São Paulo: Comitê Gestor de Internet no Brasil, 2018. .

Perfil de acesso e busca de informações

O perfil de acesso ao FB observado na pesquisa dialoga com dados nacionais publicados pelo Comitê Gestor de Internet no Brasil (2018)COMITÊ GESTOR DE INTERNET NO BRASIL. Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros - TIC domicílios 2017. São Paulo: Comitê Gestor de Internet no Brasil, 2018. , sendo que todos os participantes referiram acessar a rede diariamente, sendo a televisão, o computador e o celular - principalmente este último - os dispositivos utilizados. Relatos remetem para a penetração da rede no cotidiano cumprindo diversas funções:

Sempre. Sempre: Facebook e zap [WhatsApp][é] a internet dos brasileiros. (E1)

[O FB] Fica aberto no celular, então em alguns momentos do dia eu dou uma olhada. (E2)

Me aposentei. Fico só a maior parte do tempo. [O FB] é o que me resta para interagir e afastar o tédio. (E3)

Os perfis de busca foram heterogêneos. Conteúdos sobre alimentação saudável e dietas foram procurados por sete dos entrevistados. Para os internautas mais engajados, as motivações para acesso vão desde a necessidade de se manter atualizado, adquirir conhecimento para ter uma alimentação mais saudável, desenhar estratégias de emagrecimento em prol da estética e da saúde. Além disso, conforme apontado por um farmacêutico, a motivação para a busca de informações seria para sua instrumentalização enquanto profissional de saúde e orientar clientes sobre o uso de suplementos e alimentos funcionais.

O cenário informativo é extensamente explorado por alguns internautas que requerem informações "o tempo todo" (E4) e que julgam ser necessário" nos mantermos informados sempre" (E5). Uma das justificativas para essa demanda informativa seria situar-se diante da dinamicidade das "verdades", e exemplifica: "o ovo: antes era vilão, hoje não" (E5), remetendo para a ideia de cacofonia alimentar já documentada na literatura como incertezas mediadas pelo conflito entre informações divulgadas sobre alimentação (GOLDENBERG, 2011GOLDENBERG, M. Cultura e gastro-anomia: psicopatologia da alimentação cotidiana. Entrevista com Claude Fischler. Horizontes Antropológicos, v. 17, n. 36, p. 235-256, dez. 2011. ).

O consumo de informações também é relacionado à necessidade de elaborar adequações dietéticas a partir dos novos informes, em um processo característico da "modernização reflexiva" (GIDDENS; BECK; LASH, 1997GIDDENS, A.; BECK, U.; LASH, S. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora UNESP, 1997. ), no qual os sujeitos são demandados a fazer escolhas para a gestão cotidiana de riscos- cenário no qual o conhecimento "técnico-científico" respalda a atribuição de sentidos a decisões outrora reificadas por tradições alimentares.

Apesar da plausibilidade do interesse dos internautas em buscar elementos que fundamentem suas práticas cotidianas, autores advertem para "precariedades do excesso" (CASTIEL; VASCONCELLOS-SILVA, 2006CASTIEL, L. D.; VASCONCELLOS-SILVA, P. R. Precariedades do excesso: informação e comunicação em saúde coletiva. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fiocruz, 2006. ) no consumo de informações e salientam reflexos da sociedade da informação para indivíduos engajados na mesma. Uma das categorias relacionadas a tais exageros são os cybercondríacos - remetendo aos efeitos psicológicos negativos do consumismo de informação sobre saúde na internet (CASTIEL; VASCONCELLOS-SILVA, 2002CASTIEL, L. D.; VASCONCELLOS-SILVA, P. R. Internet e o autocuidado em saúde: como juntar os trapinhos? História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 9, n. 2, ago. 2002. ).

Duas entrevistadas apresentaram perfis de buscas mais brandos- uma delas por considerar que há "muita ostentação" nas páginas, uma vez que as mesmas divulgam, principalmente, sucesso no seguimento de dietas e conquistas de redução de medidas corporais. A outra reduziu o consumo de informações e práticas dietéticas relacionadas em função de contingências pessoais que a condicionam à "subversão" alimentar; ela esclarece:

Agora está complicado porque tenho que fazer comidas fortes (polenta com pés de frango, mocotó, carnes gordas)para ele [familiar com tuberculose sob cuidados da entrevistada]. Aí imagina que não vou comer (kkk). [...] Ele está chegando no objetivo de ganhar peso, mas eu também (kkk). (E6)

No caso supracitado, o fato de a entrevistada precisar elaborar preparações consideradas "fortes" e calóricas dificulta a efetivação de escolhas alimentares tidas como saudáveis, situação que ela interpreta como uma subversão a uma certa "ordem dietética" necessária para a almejada perda de peso.

Três entrevistados referiram não buscar informações. Uma delas afirma não se interessar por alimentação. Todo modo, conforme sua narrativa, isso não necessariamente inviabiliza o consumo de informações: "Buscar eu não busco, mas sempre vejo. Paro para ver. Normalmente vejo mais informações sobre dietas e exercícios" (E7). Esse também seria o perfil de consumo de outro entrevistado que "lê quando aparece" na sua timeline e salienta: "fico impressionado com tantas ervas de emagrecimento" - das quais inclusive já fez uso (E1). Outra entrevistada, por sua vez, explica que não busca informações porque considera sua alimentação e peso adequados; ela resume: "Vejo as dicas, se precisar, as uso" (E8).

O consumo de informações não depende apenas da busca. Considerando a arquitetura da plataforma do FB, quando o indivíduo tem uma "rede" que consome determinado tipo de informação, esse conteúdo passa a permear sua "dieta de informações" (KULSHRESTHA etal., 2017). Esses autores remetem para "a distribuição tópica de um conjunto de itens de informação",1 1 Tradução própria de: " which is the topical distribution of a given set of information items" (KULSHRESTHA et al., 2015, p. 1) o que, apesar da diversidade de perspectivas disponíveis na rede, contribui para certa restrição (desequilíbrio de acesso) nas perspectivas possíveis sobre determinados temas.

Páginas do Facebook e profissionais de saúde como fontes de informação

No contexto das entrevistas, os participantes foram questionados sobre suas fontes de informação em saúde, alimentação e nutrição, e se, quando buscavam informações nas páginas do FB, as mesmas eram alvo de reflexões junto a profissionais de saúde, por exemplo.

Dentre os profissionais de saúde, médicos (endocrinologista e obstetra) e especialmente nutricionistas foram citados como referência para informações sobre alimentação. Este último é o principal agente do campo da Alimentação e Nutrição; de todo modo, vários outros profissionais operam nessa área eminentemente multidisciplinar (KAC; PROENÇA; PRADO, 2011KAC, G.; PROENÇA, R. P. C.; PRADO, S. D. A criação da área “nutrição” na Capes. Rev. nutr, v. 24, n. 6, p. 905-916, dez. 2011. ).

Quatro entrevistadas referiram contato com nutricionistas, uma informou ter tido sua alimentação elogiada pela profissional - que não teria proposto alterações. Outras três esclareceram que suas experiências não foram tão exitosas:

Já tentei com ajuda de nutricionista, mas achei que ela não ouviu quando perguntou o que eu gostava, então não fluiu. (E9)

Hummm (kkk). Muito complicado. Tabelas e tabelas... Aff! Valores calóricos, etc. Muito cansativo. Nem tentei [colocar em prática]. (E3)

Gostei, mas só depois de um tempo. [...] eu ia sem vontade, mas depois de algumas consultas passei a seguir certinho. [...]Sou ansiosa e por isso perco o foco fácil. Prefiro saber o que posso e tentar incluir do meu jeito e nos meus horários;quando fica algo muito fora da minha realidade já não consigo fazer. A página tem coisas que acho interessante. Dá pra extrair algumas coisas, sim. E incluir no dia a dia. Tem posts, fotos, matérias... (E2)

Os relatos denotam dessintonia entre as lógicas dos profissionais de saúde e seus clientes. Os trechos remetem a impasses na qualificação da escuta, adequação da linguagem e da proposta dietética à realidade e gostos dos sujeitos. Sobre isso, Feitas e colaboradores (2011)FREITAS, M. do C. S.; MINAYO, M. C. S.; FONTES, G. A. V. Sobre o campo da Alimentação e Nutrição na perspectiva das teorias compreensivas. Ciênc. Saúde Colet, v. 16, n. 1, p. 31-38, jan. 2011. esclarecem que no contexto acadêmico [ambiente de formação profissional] há fortes tensões entre a valorização do saber científico-nutricional e saberes populares -geralmente menosprezados. Esse fato limita relações nutricionista-paciente mais humanizadas mediadas pela articulação de saberes (DEMÉTRIO et al., 2011DEMÉTRIO, F. et al. A nutrição clínica ampliada e a humanização da relação nutricionista-paciente: contribuições para reflexão. Revista de Nutrição, v. 24, n. 5, p. 743-763, out. 2011. ). Para Lefèvre e Lefèvre (2004)LEFÈVRE, F.; LEFEVRE, A. M. C. Promoção de saúde: a negação da negação. 1. ed. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2004. , a prática de profissionais de saúde tem sido, principalmente, prescritiva e comportamental, sem que as informações sejam significativas e façam sentido para as tomadas de decisão no exercício da autonomia cotidiana.

Os internautas que nunca tiveram contato com profissionais de saúde para falar sobre alimentação esclareceram motivos como: falta de recursos financeiros para pagamento da consulta, falta de tempo e falta de interesse. Apesar disso, quatro destes consideram possíveis benesses proporcionadas pelo contato com profissionais de nutrição e vantagens em relação às informações disponíveis na rede; e esclarecem:

A tecnologia está tão avançada que acabamos buscando informações com amigos e através da internet, revistas, jornais, manchetes; [...] e largando de ir ao médico. [...] Internet te ajuda a buscar convencimento e conhecimento, nutricionista te faz avaliação antes de te passar o que deve comer e beber - diferença grande. (E1)

Conheço uma nutricionista espetacular [...] creio que me ajudaria mentalmente em disciplina e, claro, criando uma reeducação alimentar. Mas tenho algum conhecimento e posso aplicar, com menos eficácia, mas viável. Essa nutricionista tem um consultório muito longe [...] desse fator surgiu minha ideia de consulta por teleconferência. Eu poderia me consultar com ela à distância. (E4)

Um entrevistado faz elucubrações sobre possibilidades de vencer a falta de tempo e a distância, e a virtualidade é pautada como alternativa ao contato presencial com a nutricionista. Na maioria dos casos, o contato com profissionais é alvo de interesse, mas refém de limitações. As informações da Internet são situadas como coadjuvantes ou compensatórias no processo de cuidado que seria protagonizado por profissionais em prol de um cuidado aludido como "mais completo", individualizado e longitudinal ("com acompanhamento" [E1]).

Observam-se, entretanto, indícios da mudança de paradigmas orientados por especialistas clássicos que já não estariam no centro da produção de conhecimentos; evidenciando "heterarquias fluidas" (BRUNS, 2008BRUNS, A. Blogs, Wikipedia, Second life, and Beyond: from production to produsage. New York: Peter Lang, 2008. ) no cenário on-line. Para alguns autores, a internet fomenta "culto do amador" (KEEN, 2009KEEN, A. O culto do amador: como blogs, MySpace, YouTube e a pirataria digital estão destruindo nossa economia, cultura e valores. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2009. ) em meio ao "surfe informativo",2 2 Tradução nossa para "surfeo informativo". que designa um consumo de informações rápido, distraído e superficial, refletindo o modo de pensamento apressado e disperso, característico da contemporaneidade (JUÁREZ; MEDINA; GARCÍA, 2017JUÁREZ, L.; MEDINA, F. X.; LÓPEZ GARCÍA, J. (Eds.). Comida y mundo virtual: Internet, redes sociales y representaciones visuales.1. ed. Barcelona: Editorial UOC, 2017. ).

Aplicações práticas das informações consumidas: o agenciamento dos internautas

Na sua abordagem sobre teoria da ação, Bourdieu (2008a)BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus, 2008a. aborda as práticas sociais sob uma perspectiva complexa, entendendo-a como parte de uma estrutura que não opera isoladamente de acordo com a intencionalidade dos agentes. Os entrevistados reconhecem que o acesso às informações não implica práticas alimentares correlatas, mas é importante. Essa ideia é evidenciada em alguns relatos, bem como o agenciamento dos internautas nos processos de interpretação, avaliação e contextualização das informações consumidas na sua realidade, implicando em experiências diversas.

Quatro entrevistados consideram "tranquilo" implementar as orientações provenientes das páginas no seu dia a dia.Exitosas mudanças nas dimensões corporais e/ou nas práticas alimentares são relatadas como confirmação das possibilidades de melhoria na alimentação, galgadas a partir de informações disponíveis em páginas do FB:

Sou exemplo. Desinchei com gengibre, água com beringela, tomei bastante água. Poucas verduras contêm carboidratos. [Foi necessário] comer mais frutas, procurar ficar saciado. Comecei a usar minhas roupas G (usava GG). [Aumentei a] autoestima, todos falando.(E1)

Aqui não entram refrigerantes, condimentos. Substituo muitas coisas. Farinhas refinadas por integrais; diminuímos o glúten, raramente comemos lanches; sempre que possível compro orgânicos; diminuímos a carne - principalmente a vermelha. [...] Frutas, verduras, legumes - todos os dias. (E10)

Cinco entrevistados implementam parcialmente suas adequações alimentares, por motivos relacionado a demandas do trabalho, auto(in)disciplina, sobrecargas da vida doméstica que refletem impactos de questões de gênero e, a mais citada - a ansiedade, exemplificada abaixo:

Tenho uma boa alimentação, só exagero nos doces quando estou ansiosa. [...] Eu achei o jejum maravilhoso, só estou com problemas mesmo por causa da insônia. Passo as noites acordada, aí acabo comendo [...]. Eu pretendo continuar porque acho ótimo e uma libertação dessa história de comer de 3/3 horas. Mas já perdi 9 quilos (em 40 dias). Faltam 9 kg para chegar no objetivo, meu IMC ainda está em 28,5. (E9)

O parâmetro utilizado pela entrevistada para definir suas metas, o IMC (índice de massa corporal), reflete como, no cotidiano, o senso comum se apropria de diversas teorias, dentre elas as científicas, que são ressignificadas em meio à liberdade interpretativa (KLOTZ-SILVA; PRADO; SEIXAS, 2016KLOTZ-SILVA, J.; PRADO, S. D.; SEIXAS, C. M. Comportamento alimentar no campo da Alimentação e Nutrição: do que estamos falando? Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 1103-1123, dez. 2016. ).

Os novos elementos interpretativos da realidade parecem instrumentalizar o exercício do poder disciplinar para autocontrole dos corpos para "ficar lindo" (E1), por "questão de estética e também de saúde" (E9) - que "não gosta de ser gorda", dentre outros.Há evidências do vislumbre do corpo magro como distinção estética e "capital simbólico" (BOURDIEU, 2008bBOURDIEU, P. A distinção crítica social do julgamento. São Paulo; Porto Alegre: EDUSP Zouk, 2008b. ) "adquirido" como proxy para "capital social" (BOURDIEU, 2008b). A aprovação social estimula a contínua "saga disciplinar". São conquistas que demandam sacrifícios e, muitas vezes, parecem produzir "mal-estar" (FREUD, 2010FREUD, S. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos: (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. ) cotidiano permeado por "fugas programadas" da norma, aos finais de semana:

Como frutas e verduras, exagero nas carnes, como [hot] dog aos finais de semana. (E6)

Sempre saudável. E abro exceção aos sábados e domingos (kkk)... devagar... Faço sempre, porém, quando vejo na balança que passei da minha meta volto para a dieta (kkk) - ovo, filé de frango. Fico nessa a vida toda. Sempre na balança pra lá e pra cá. Ainda estou fora do peso normal.(E1)

Simbolizando uma liberdade circunscrita, os finais de semana podem ser interpretados como carnavais à maneira bakhtiniana, citada por Bauman (2008, p. 98)BAUMAN, Z. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar, 2008. enquanto "breves intervalos animados entre sucessíveis episódios de cotidianidade enfadonha [em que] aspectos mais angustiantes da realidade [...] tipos de conduta proibidos ou considerados vergonhosos na vida ‘normal’ são ostensivamente praticados e exibidos."

Também foram relatadas situações de mais dificuldades na efetivação de ideais de mudança. As condições materiais impostas e conflitos característicos do cotidiano dificultam a prática da alimentação saudável e transcendem a vontade dos sujeitos:

Sou bariátrica e mãe, então já viu, né? Bem complicado. Minha filha ainda está pequena e exige tempo. Tento cuidar, claro que com muitas limitações. Tento me policiar. Tento balancear a alimentação do meu marido e filha. e a minha acaba ficando pra traz. Fico em cima do muro entre o que é saudável e comer besteira [...]. Evito certas coisas no decorrer do dia, mas à noite acabo comendo. (E2)

Ainda assim, há ressalvas sobre a possibilidade de ter uma alimentação saudável mediante condições financeiras favoráveis e exercício da disciplina:

É muito possível comer de forma saudável e sentir prazer com sabor. O problema é pagar o preço financeiro e de tempo. Não é fácil, exige disciplina e conhecimento. Se houvesse uma preparação na educação de base facilitaria muito. Se houvesse projetos públicos e até privados com a intenção de criar essa mentalidade nas pessoas desde muito cedo, viabilizaria. (E4)

O internauta traz uma visão mais ampla do comer saudável, incluindo dimensões do sabor e prazer; além da perspectiva sistêmica do problema, envolvendo instituições sociais. Ainda assim, a mudança a ser promovida seria na "mentalidade das pessoas", mantendo o foco disciplinar e aniquilando reflexões mais profundas sobre a multidimensionalidade das práticas alimentares que instrumentalizem os sujeitos a refletir sobre a realidade e possibilidades de transformação. Para Klotz-Silva e col. (2016)KLOTZ-SILVA, J.; PRADO, S. D.; SEIXAS, C. M. Comportamento alimentar no campo da Alimentação e Nutrição: do que estamos falando? Physis. Rio de Janeiro, v. 26, n. 4, p. 1103-1123, dez. 2016. , tanto textos científicos como ações e políticas do campo da Alimentação e Nutrição se mantêm orientados pela lógica reducionista, alheios ao paradigma da complexidade.

De acordo com Lupton (2018)LUPTON, D. Digital health: critical and cross-disciplinary perspectives. London; New York: Routledge, Taylor & Francis Group, 2018. ,o caráter disciplinar dos corpos como argumento de promoção da saúde tende a progredir e ser institucionalizado de forma mais incisiva por meio dos recursos tecnológicos como o uso de aplicativos que geram fluxos contínuos de dados digitais sobre corpos humanos. Conceitos como o paciente engajado digitalmente e o cidadão saudável responsável tendem a transferir a responsabilidade pelo cuidado clínico para o paciente, que administraria sua saúde de maneiras tradicionalmente vistas como incumbência dos profissionais de saúde (LUPTON, 2018LUPTON, D. Digital health: critical and cross-disciplinary perspectives. London; New York: Routledge, Taylor & Francis Group, 2018. ). Nesse cenário, a gestão de riscos à saúde passa a ser uma atividade cotidiana em meio a qual a qualidade das informações seria alvo de análise.

A gestão das informações também é uma prática dos(as) entrevistados(as) neste estudo. Mesmo reconhecendo a relevância das informações nas páginas do FB, as mesmas são contestáveis e submetidas a estratégias de "filtragem" e validações. A superabundância proporciona novas formas filtrar a imensidade de informações e estudos apontam para a tendência de uso de contatos da rede como recurso para essa filtragem, podendo repercutir em distorções na mensagem (JUÁREZ; MEDINA; GARCÍA, 2017JUÁREZ, L.; MEDINA, F. X.; LÓPEZ GARCÍA, J. (Eds.). Comida y mundo virtual: Internet, redes sociales y representaciones visuales.1. ed. Barcelona: Editorial UOC, 2017. ).

A maioria dos internautas fazem ressalvas ante riscos do consumo aleatório de informações e alguns efeitos adversos experimentados são citados e fundamentam a incredibilidade:

Tenho amigos que fazem dietas malucas e depois adoecem. Eu não abro mão do meu arroz e feijão. [...] As páginas têm coisas boas e ruins. Muito fake. Tem que questionar, analisar, filtrar. Mas a partir do momento que você filtra, pode ajudar a melhorar a alimentação. (E5)

[As páginas] ensinam exercícios que nem sempre dão resultados. Comecei a fazer, mas deu ruim para a coluna. (E6)

Observam-se alguns efeitos iatrogênicos do "autocuidado" (que remete à ideia de ter cuidado consigo mesmo, com a sua saúde e aparência (FERREIRA, 1999 apudCASTIEL; VASCONCELLOS-SILVA, 2002CASTIEL, L. D.; VASCONCELLOS-SILVA, P. R. Internet e o autocuidado em saúde: como juntar os trapinhos? História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 9, n. 2, ago. 2002. ), veiculando "uma conotação ditada por aspectos cognitivos, conscientes e, sobretudo, volitivos" (CASTIEL; VASCONCELLOS-SILVA, 2002 p. 296CASTIEL, L. D.; VASCONCELLOS-SILVA, P. R. Internet e o autocuidado em saúde: como juntar os trapinhos? História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 9, n. 2, ago. 2002. ). Em um dos relatos supracitados, uma entrevistada remete para a segurança da tradição quando afirma não abrir mão do "seu arroz e feijão". As informações são analisadas a partir de critérios próprios e parecem contribuir para a formação de conhecimentos juntamente com o que é experimentado no cotidiano.

Outro entrevistado cita um processo de validação realizado a partir de recursos da própria rede, comparando opiniões:

Filtro buscando várias opiniões. Tem muita informação de qualidade. [...] poderiam ajudar as pessoas socialmente em economia, em aproveitar melhor o alimento. Informação é tudo, por isso é tão manipulada com mentiras, propaganda errada, deturpações, omissões. (E4)

A narrativa remete para a diversidade de interesses que atravessam a disseminação de informações. Sobre isso, Bauman e Mauro (2016, p. 65)BAUMAN, Z.; MAURO, E. Babel: entre a incerteza e a esperança. 1. ed. [s.l.] Zahar, 2016. esclarecem que tudo o que está disponível na mídia foi previamente selecionado e "pré-interpretado", tomando isso como base para seu processo de filtragem e validação das informações. Em um processo que se assemelha à "saúde baseada em evidências" (CASTIEL; VASCONCELLOS-SILVA, 2002CASTIEL, L. D.; VASCONCELLOS-SILVA, P. R. Internet e o autocuidado em saúde: como juntar os trapinhos? História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 9, n. 2, ago. 2002. ), o entrevistado se certifica da veracidade das informações provenientes da internet comparando a diversidade de opiniões a partir das quais ele tira suas conclusões.

Considerações finais

De modo geral, as informações das páginas são tidas como contributivas para a melhoria da alimentação das pessoas na perspectiva de acesso a informações e produção de conhecimento. A rede social é referida enquanto um espaço pertinente para a construção de possibilidades alimentares as quais, em meio à grande diversidade de informações, lhes permite adequar a suas diferentes realidades e objetivos. A rede se apresenta como espaço social no qual as negociações intersubjetivas podem mediar saberes e práticas sobre alimentação de seus membros e suas interfaces com ideais de "autocuidado".

A praticidade no acesso às informações, a qualquer horário, sobre diversos temas, sem dispêndio econômico, são fatores que estimulam a utilização das páginas como guia para escolhas alimentares num contínuo processo de tentativas e reinvenções. Os consumidores buscam elementos para elaborar suas próprias regras dietéticas e as páginas passam a fazer parte dos itinerários de cuidado alimentar. Para a maioria, o "universo não conspira" a favor de uma alimentação saudável, mas ela é considerada possível.

Muitos internautas se mostram dispostos e ávidos por mudanças, inclusive mediante ações tidas como sacrifícios. As condições materiais impostas pela organização da sociedade dificultam a prática da alimentação saudável. A complexidade das dificuldades para realização de uma alimentação adequada parecer ter sua "verdadeira" natureza ocultada, de modo a serem naturalizadas como reféns de um "descontrole de si".

Os usos e a disponibilidade de informações direcionam para compreensões cada vez mais complexas sobre o fenômeno alimentar. A abordagem de inspiração etnográfica foi considerada útil, contribuindo para a exploração e compreensão do tema no ambiente virtual, de forma inovadora. As entrevistas semiestruturadas foram pertinentes, permitindo ir além das aparências dos conteúdos explicitados nas páginas. As análises podem contribuir para a compreensão e perspectivas de utilização das redes social por comunicadores em saúde. Novos estudos sobre a participação de internautas no cenário informativo das redes sociais devem ser encorajados diante da incipiência de estudos no cenário nacional e progressivo uso das redes sociais virtuais no Brasil. Debates sobre o papel das mídias sociais na promoção da saúde e possibilidades de conciliação da lógica da mídia com a lógica da promoção da saúde se fazem necessários.3 3 J. A. Passos: elaboração do manuscrito, concepção do desenho de estudo, interpretação e análises de dados e revisão final. P. R. Vasconcellos-Silva: concepção do desenho de estudo do manuscrito, análise crítica e revisão final. L. A. da S. Santos: análise crítica e revisão final do manuscrito.

Agradecimento

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pela concessão de bolsa de doutorado.

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  • 1
    Tradução própria de: " which is the topical distribution of a given set of information items" (KULSHRESTHA et al., 2015, p. 1)
  • 2
    Tradução nossa para "surfeo informativo".
  • 3
    J. A. Passos: elaboração do manuscrito, concepção do desenho de estudo, interpretação e análises de dados e revisão final. P. R. Vasconcellos-Silva: concepção do desenho de estudo do manuscrito, análise crítica e revisão final. L. A. da S. Santos: análise crítica e revisão final do manuscrito.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Abr 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    25 Fev 2020
  • Revisado
    14 Jul 2020
  • Aceito
    13 Maio 2021
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