Open-access Itinerário terapêutico de pessoas transgênero: assistência despersonalizada e produtora de iniquidades

Therapeutic itinerary for transgender people: depersonalized care produces iniquities

Resumo

Este artigo analisa o itinerário terapêutico de pessoas transgênero em uma cidade do interior da Bahia. Os participantes foram selecionados pelo critério do método da “bola de neve” e utilizou-se entrevista semiestruturada para produção dos dados. Na análise dos itinerários terapêuticos, emergiram três categorias temáticas: 1) Lugares de busca para o cuidado em saúde: traçadores de iniquidades no SUS; 2) Abordagem profissional: reforça os estigmas e cinde a relação terapêutica; e 3) Demandas específicas por cuidado: percalços ao longo do itinerário terapêutico. Os resultados mostraram que o acesso ao serviço formal esteve permeado por barreiras simbólicas, técnicas e/ou organizacionais que, muitas vezes, transferiam para cada um/uma dos/as entrevistados/as a responsabilidade pela busca de outros percursos formais ou recomposição do cuidado por trajetórias nem sempre seguras. A busca pelo setor privado foi preponderante e, paralelamente, houve a desvalorização do SUS. O estigma institucional resultou em abandono de tratamento, retardo na busca por cuidado ou desistência de procura aos serviços. Por fim, a dificuldade de acesso no SUS produzia iniquidades e conduzia as pessoas transgênero, sobretudo as mais vulneráveis, a exposição e experimentação de procedimentos, muitas vezes, inadequados.

Palavras-chave: Pessoas transgênero; Transexualidade; Acesso aos serviços de saúde; Assistência integral à saúde.

Abstract

This article examines the therapeutic itineraries of transgender people in a city in the Bahia countryside. Participants were selected using the “snowball” method using semi-structured interviews to produce the data. In the analysis of therapeutic itineraries three thematic categories emerged: 1) Locus of seeking health care: tracers of inequities in SUS; 2) Professional approach: reinforcing stigmas and interrupting the therapeutic relationship; and 3) Specific demands for care: mishaps along the therapeutic itinerary. Results showed that access to formal services was permeated by symbolic, technical and/or organizational barriers. Those barriers frequently transferred the responsibility for the search of alternative formal paths or the restoration of care upon the interviewees, by using trajectories oftentimes unsafe. The search for the private sector was predominant and, in parallel, there was a depreciation of SUS. The institutional stigma resulted in treatment abandonment, delay in looking for care or giving up seeking services. Finally, the difficulties in accessing the SUS produced inequities leading transgender people, especially the most vulnerable, to be exposed and to experiment with often-inadequate procedures.

Keywords: Transgender people; Transsexuality; Access to health services; Comprehensive health care.

Introdução

A construção da identidade dá-se eminentemente por meio de suas relações sociais e simbólicas (MÉLLO, 2012). À medida que o Eu se constrói e percebe seu sentido no mundo, ocorre uma diferenciação do que é considerado o Outro; essa questão demonstra que é por meio dessas relações que os indivíduos percebem e constroem sua subjetividade. Assim, falar em identidade é falar em diferença que, por sua vez, se reflete na diversidade (WOODWARD, 2007).

Há várias maneiras de se reconhecer em sociedade e uma destas formas é assumindo uma identidade transgênero. Tal identidade de gênero é definida como toda pessoa que se desvia do padrão do que é ser biológica e/ou socialmente homem ou mulher (MODESTO, 2013). Sendo assim, não se reconhece com o sexo biológico ao qual foi designado/a ao nascimento (JESUS, 2012). As pessoas transgênero são aquelas que não se identificam com o sexo/gênero ao qual foram designadas ao nascimento, podendo identificar-se como homem transsexual, mulher transexual ou travesti, estando dentro ou não da binaridade de homem ou mulher (ONU, 2013; BUTLER, 2003).

A população transgênero, em algumas de suas lutas, milita em conjunto à comunidade de lésbicas, gays e bissexuais compondo o grupo LGBT (FACCHINI, 2009). Porém, existem causas particulares, como a luta por reconhecimento de sua identidade de gênero sem patologização da transexualidade, o direito de uso do nome social; o direito de uso de banheiro segundo a sua identidade e o direito de conseguirem, junto ao poder público, as modificações corporais e hormonais que necessitam/desejam para se sentirem bem consigo mesmos/as (JESUS, 2012; AGUIÃO, 2016; ALMEIDA; MURTA, 2013).

No Brasil, alguns direitos são garantidos por portarias e leis que asseguram o direito ao nome social, à hormonoterapia, à terapia psicológica, além dos processos cirúrgicos como a mastectomia, a cirurgia plástica e a cirurgia de redesignação sexual pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (LIONÇO, 2008; BRASIL, 2013). Entretanto, os processos transexualizadores não são a única necessidade de saúde das pessoas transgênero (LIONÇO, 2009). Nesta perspectiva, a pessoa transgênero também necessita do cuidado integral que, por sua vez, deve ser prestado por profissionais devidamente preparados para uma atenção à diversidade humana (ROCON et al., 2018; FREIRE et al., 2013).

Outrossim, é necessário (re)pensar e construir um conceito ampliado de saúde, já que a própria visão reducionista e tradicional da biomedicina fez com que as pessoas transgênero fossem categorizadas em um padrão corpóreo de perfeição e enquadre dentro da norma cisgênero, através de procedimentos cirúrgicos (ROCON; SODRÉ; RODRIGUES, 2016; MÉLLO, 2012). Ademais, o processo transexualizador está intrinsecamente ligado a uma visão patológica (ALMEIDA; MURTA, 2013). Logo, deve-se falar em promoção de saúde e pensar políticas na inclusão social dos sujeitos transgênero na sociedade, para que possam ter acesso à saúde, educação, cultura, lazer, emprego e renda enquanto condições básicas para a liberdade e plena cidadania (MELLO; AVELAR; MAROJA, 2012; ZANOLI, 2019).

Não obstante, mesmo com direitos garantidos, tais como o nome social e a terapia de redesignação sexual, pessoas transgênero ainda sofrem com a transfobia, a violência patrimonial, o abandono familiar e a dificuldade de acesso ao SUS (LUNA, 2017; BEZERRA et al., 2019). As barreiras de acesso ao cuidado em saúde, o estigma institucional, a prostituição relacionada à falta de empregos/oportunidades, o preconceito e a discriminação que prejudicam a permanência na escola, levam essa população à vulnerabilidade social (MAGNO; DOURADO; SILVA, 2018).

Este artigo analisa o itinerário terapêutico de pessoas transgênero em uma cidade do interior da Bahia. Para tanto, discute o cuidado ofertado no SUS, retratando as experiências desta população nos atendimentos realizados por serviços formais e informais, assim como as dificuldades e os significados atribuídos à pessoa transgênero na busca pelo cuidado em saúde.

Metodologia

Trata-se de estudo qualitativo (MINAYO, 2014) engendrado a partir de itinerários terapêuticos (BELLATO et al., 2008) de pessoas transgênero residentes em Vitória da Conquista, Bahia.

Em relação ao cenário da pesquisa, Vitória da Conquista é o terceiro município mais populoso do estado, localizado na região Sudoeste da Bahia (519 km da capital, via BR 116), com uma população estimada em 338.885 habitantes (IBGE, 2018). O município é referência regional de serviços de educação e saúde para uma grande região que abarca, aproximadamente, 73 outros municípios. Na rede de atenção, em 2019, constavam 43 Unidades Básicas de Saúde (UBS), com 44 equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e sete UBS tradicionais, conformando uma cobertura populacional de 47% pelas ESF e 13,5% pelas UBS tradicionais. Em agosto de 2019, foi inaugurada a Policlínica Regional de Saúde, com a oferta de consultas em 19 especialidades e 16 tipos de exames. A rede pública de saúde do município conta, ainda, com um Centro Municipal de Atenção Especializada, um Hospital Regional do Estado, uma Maternidade Municipal, uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA), uma Central de Regulação Médica de Urgências e uma Central de Regulação de Serviços de Saúde, dentre outros serviços. Não obstante, os serviços privados constituem uma rede bastante diversificada e responsável pela atração de profissionais e de fluxos populacionais em busca de serviços por desembolso direto e/ou via seguros de saúde.

As pessoas participantes foram selecionadas pelo critério do método da “bola de neve” - snowball sampling. Trata-se de método tradicional para acesso de sujeitos de difícil aproximação que se dá por meio da escolha de uma pessoa por conveniência ou indicação e que, por sua vez, será a informante de outras pessoas que atendem às características definidas pelo pesquisador (PENROD et al., 2003).

O primeiro interlocutor eleito (seed) foi contactado por intermédio de um grupo de extensão da Universidade Federal da Bahia que atuava com a temática LGBTQIA+. Assim, um membro do grupo de extensão indicou um homem-trans. Este, por sua vez, participava de um grupo de pessoas transgênero, vinculado à Coordenação de Políticas de Promoção da Cidadania e Direitos LGBT, em Vitória da Conquista. Além disso, acumulava características adequadas ao estudo: ser transgênero, estudante universitário, tinha conhecimento teórico sobre o tema, participava ativamente de grupo de apoio a pessoas transgênero e possuía uma ampla rede de relações (social network). Tais aspectos favoreceram a continuidade de contatos necessários ao método para geração de dados.

Para produção dos dados, foram realizadas quatro entrevistas semiestruturadas, sendo três homens e uma mulher que se autodeclaram como transgêneros. As entrevistas foram realizadas nas residências dos/das participantes, com horário definido previamente. As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas, garantindo-se o sigilo por meio de codificação (pseudônimos - Ogum, Oxóssi, Oxumarê, Iansã). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal da Bahia (Parecer nº 2.692.896, em 05/06/2018).

Para análise dos itinerários terapêuticos, emergiram três categorias temáticas: 1) Lugares de busca para o cuidado em saúde: traçadores de iniquidades no SUS; 2) Abordagem profissional: reforça os estigmas e cinde a relação terapêutica; e 3) Demandas específicas por cuidado: percalços ao longo do itinerário terapêutico.

Resultados e Discussão

As pessoas transgênero participantes do estudo eram adultos jovens (menores que 32 anos) e tinham bom nível de escolaridade, pois três deles possuíam ensino superior completo ou estavam em curso, sendo que uma tinha “apenas” o ensino médio completo. Em relação às suas orientações sexuais, três se reconheciam como heterossexuais e, apenas um como bissexual.

Por sua vez, os itinerários terapêuticos variaram conforme capacidade financeira, local de moradia, modo de atendimento/acolhimento em cada serviço, disponibilidade do serviço na rede pública ou privada, abordagem profissional, informações disponíveis, demanda individual, dentre outros. Desse modo, o acesso ao serviço formal (público ou privado) esteve permeado por barreiras simbólicas, técnicas e/ou organizacionais que, muitas vezes, transferiam para cada um/uma dos/as entrevistados/as a responsabilidade pela busca de outros percursos formais ou recomposição do cuidado por trajetos nem sempre seguros.

Para a construção do itinerário terapêutico da população transgênero, foi importante ouvir como ocorrem os processos pela procura de saúde, os problemas e dificuldades encontrados e as experiências adquiridas no processo do cuidado, além de ouvir como foi ser tratado/a e como é se reconhecer como transgênero em uma sociedade cis-heteronormativa. Não se buscou a saturação empírica, mas a exploração de experiências singulares que, ainda assim, apresentaram similitudes de itinerários (Figura 1).

Figura 1

Lugares de busca para o cuidado em saúde: traçadores de iniquidades no SUS

Um ponto convergente entre os/as participantes foi a busca por serviços no setor privado, especialmente a consulta com endocrinologista e as cirurgias para processo transexualizador (por exemplo, mastectomia, plástica mamária reconstrutiva, inclusive implante de silicone). Na experiência dos/as entrevistados/as, o endocrinologista do setor privado era o único especialista voltado às necessidades de pessoas transgênero, posto que não havia disponibilidade no serviço público no município de residência. Além disso, as experiências acumuladas revelaram um conjunto de consultas, exames e procedimentos que, mesmo quando ofertados no SUS, eram realizados por desembolso direto ou seguro privado de saúde, em detrimento do direito universal e da equidade.

Não tem outros endocrinologistas que aceitem esse tipo de cuidado na cidade. A gente só conseguiu esse contato com Dr. X. [...] até porque, assim, muitos dos meninos que não conseguiram esse atendimento com o Dr. X tiveram que fazer o uso do medicamento por conta própria (Ogum).

Endocrinologista só tem um que atende a todos os trans. Ele cobra a consulta, era 150 reais e agora custa 180. Ele sabe que é o único, então tá aumentando [o valor], a gente tá tentando fazer uma associação para ver se ele baixa o preço. [...] Só que não é vinculado ao poder público, ele tem uma clínica particular (Oxóssi).

Aí, se eles [clínicas particulares] tratam bem, eles atraem mais clientes, ou seja, o doutor X, que é meu endócrino, por exemplo, tem mais de 300 pacientes. [...] O médico me passou 16 exames de sangue e três USG. [...] se fosse pelo SUS, iria demorar um século e, talvez, se eu conseguisse fazer, mesmo assim iria demorar para chegar os resultados; quando chegassem não seriam mais úteis para o meu médico. Aí, pensei, poxa tenho que partir para o particular e, nessa brincadeirinha, gastei 600 reais; para uma pessoa que tem uma renda de mil e pouco, é uma facada. (Oxumarê).

Os seios, fui operada numa clínica [privada], [...] então, o ‘bumbum’ foi num método que a maioria das trans usam, que é o silicone industrial. A moça de Belo Horizonte veio e me operou em casa mesmo, vou falar pelo popular: me ‘bombou’ em casa mesmo! [...] Não tem como, ou a gente paga pra ter aquele corpo, ou não tem! Se for esperar pelo SUS, não vai conseguir nunca. Vejo gente que precisa de cirurgia [de modo geral] e fica por anos e anos para fazer; imagina a gente que é por vaidade. (Iansã).

Assim, apesar do avanço legal (Portaria n. 2803/2013), permanecem os desafios enfrentados para acessar o processo transexualizador no SUS (POPADIUK; OLIVEIRA; SIGNORELLI, 2017), em decorrência da distribuição geográfica limitada de serviços/profissionais de saúde (ROCON et al., 2019) que, por sua vez, agrava-se em sinergia com o estigma, o preconceito e a discriminação institucional (PARKER, 2013). Outrossim, há dificuldades no acesso aos serviços públicos de saúde de maneira geral pela população transgênero (ROCON et al., 2019; FREIRE et al., 2013) que, por sua vez, recorre ao setor privado (SOUSA; IRIART, 2018), com consequente mercantilização de suas demandas e iniquidade, ou a práticas informais (PINTO et al., 2017), com desfechos mais desfavoráveis em saúde quando comparados com a população em geral (MAGNO et al., 2019).

Ademais, o direito à integralidade das ações de saúde foi, algumas vezes, tratado pelos/as próprios/as interessados/as como “vaidade” ou algo que, de fato, o sistema público não deveria priorizar. Tal percepção pode ser uma inversão de valores e uma distorção simbólica, muitas vezes gerada por experiências malsucedidas (pessoais ou de amigos), imagem negativa do SUS, compreensão reduzida da cidadania ou mesmo de sua humanidade (ROCON et al., 2019; FERREIRA et al., 2017).

Tais constatações representam traçadores importantes da iniquidade presente no SUS, pois demandas de grupos sociais vulneráveis ficam desassistidas e reforçam a necessidade de busca por assistência em espaços “alternativos” e/ou “autogestão do tratamento”: Facebook, grupo de WhatsApp e outras redes sociais, Google, automedicação, indicação de amigos/as etc. Tais tomadas de decisão, ao contrário da possível autonomia para cuidar de si, parecem representar uma naturalização da negligência das políticas públicas com diferentes segmentos da sociedade e, mais grave, culpabilização das pessoas por não estarem nas regras hegemônicas de produção do cuidado que uniformizam as formas de prestação de assistência (ALMEIDA; MURTA, 2013; RAIMONDI et al., 2019; SPIZZIRRI; ANKIER; ABDO, 2017; ROCON; SODRÉ; RODRIGUES, 2016).

Outro fator presente na fala das pessoas transgênero apontou para uma certa privatização do cuidado em saúde, de modo que para ser assistido/a por um especialista era necessário o desembolso direto. Tal constatação impacta no acesso assistencial em tempo oportuno e na continuidade necessária para lograr o tratamento requerido e seguro ao processo transexualizador (SOUSA; IRIART, 2018; POPADIUK; OLIVEIRA; SIGNORELLI, 2017).

Conforme relatos, pessoas transgênero, contraditoriamente, na procura por cuidado secundarizavam a própria saúde. Assim, no percurso terapêutico fora da “zona de segurança” dos especialistas, arriscavam-se a experimentar procedimentos (silicone industrial e binder caseiro) e automedicação (hormônios, dentre outros) na busca por conseguirem aquilo que lhes era negado ou para evitarem constrangimentos em virtude de sua forma de lidar com o corpo/aparência:

Me preocupo muito com os garotos mais novos que tão começando nisso agora e querem fazer as coisas e não têm essa condição de fazer [...] não têm esse acesso e não têm condição de comprar medicamento, condição de ir ao médico fazer os exames pra ver se tá tudo bem […] conheço vários meninos que começaram, que tiveram de interromper o medicamento, porque começou a fazer mal a outros órgãos; tiveram que interromper pra poder tratar, pra poder depois começar de novo, de outra forma, ou seja, você vai tá atrasando o que a pessoa quer, na verdade, pro futuro dela e prejudicando a saúde (Ogum).

[...] fazer a “hormonização” é por conta própria [...] vou na farmácia compro meu hormônio e tomo [sem receita]. Uma vai passando informação para outra, - ah, tomei esse hormônio e tal! Toma para você ver! [...] uma amiga toma e vai passando para outra. Fui na endocrinologista uma vez só. Ela me indicou um hormônio que me deixou ‘roliça’, gorda. Aí, parei de tomar este hormônio. [...] eu mesma faço minha automedicação. Busco [informação] em grupos [de Facebook] para pessoas trans (Iansã).

Não busco nenhum meio ilegal para fazer qualquer modificação no corpo, então, há mulheres trans que injetam a questão do silicone industrial [...]. O máximo que faço com meu corpo é a questão do seio; existem faixas próprias que outros homens trans criam. Você já ouviu falar da gael binder? [...] tem esses binders, que para usar não é nem um pouco agradável, porque aperta mesmo. Você sente dificuldade para respirar, sente dor nos seios dependendo do tamanho dos seios; ele vai deixar seu peito reto, mas, mesmo assim, tem uma margem de segurança, pois tem uns que fazem caseiramente. Tô falando isso, pois sinto as consequências disso, muitas vezes, eu sinto dor nas costas. Têm meninos que apertaram demais e tiveram problemas respiratórios complicados (Oxumarê).

Tais itinerários explicitam as marcas físicas, às vezes, fatais, decorrentes da omissão e/ou insuficiência das políticas públicas (ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009; ROCON; SODRÉ; RODRIGUES, 2016; PINTO et al., 2017) e da percepção hegemônica que os corpos transexuais são descartáveis e insignificantes (MÉLLO, 2012). Atrelada às intervenções corpóreas, há, também, uma visão sociocultural de que o sujeito transgênero precisa encontrar formas de se encaixar em uma cisnormatividade, muitas vezes, em virtude da patologização da transexualidade (ALMEIDA, MURTA, 2013; MÉLLO, 2012).

Ademais, a questão da busca pelo setor privado foi preponderante e, paralelamente, houve a desvalorização do SUS. Todavia, alguns relatos, mesmo dos/as que sinalizavam preferência e/ou única alternativa a assistência privada, reconheceram algumas experiências adequadas na rede pública. Por sua vez, causa perplexidade que tais exemplos tenham sido pontuais e, afora isso, que o setor privado tenha ocupado o vácuo de responsabilidade do Estado. Na mesma direção, os/as entrevistados/as ressaltaram que o setor privado não estava preocupado com a questão da transexualidade em si; ao contrário, percebia-se a mercantilização dos corpos, seja qual fosse a identidade de gênero. Na contramão, os serviços públicos de saúde impunham aos/as transgêneros dificuldades múltiplas que, ao final, desdobravam-se em desatenção e, contraditoriamente, adoecimento.

Posto de saúde, a última vez que fui foi para tomar medicação e não tive problema. [...] teve duas vezes que fui ao serviço X daqui. Aí, fui fazer vários exames. [...] fiquei surpreso com o atendimento. Saí de lá falando: - ‘gente, fui muito bem atendido’! Porque, nunca tinha chegado num serviço de saúde público e tinha sido muito bem atendido; reconhecido como pessoa trans (Ogum).

No serviço X, fui atendido muito bem. Os médicos e as enfermeiras me atenderam pelo nome social, me atenderem super bem (Oxóssi).

Às vezes, principalmente o serviço público, porque percebo assim, que o serviço privado se esforça para atender, pois não querem perder o cliente, porque se perderem o cliente, vão perder dinheiro [...] já no serviço público, quando a pessoa é concursada é diferente; parece que não tem preocupação (Oxumarê).

Se puder, com certeza não vou medir esforços para poder pagar um atendimento particular; porque a gente é bem recebida, é mais bem tratada. Há tempos, tive uma garganta inflamada, meu ex-namorado me levou para um serviço de urgência, aí, chegando lá, tive que passar pelo constrangimento, pois não veem o nome social na frente e me chamaram pelo nome masculino (Iansã).

Para população transgênero, diante de todas as questões inerentes a sua situação de sofrimento com familiares, dificuldades, algumas vezes, de aceitação da autoimagem e dos dilemas psicológicos e fisiológicos, necessitam, ainda, conviver em constante embate com os espaços que deveriam acolher, produzir o cuidado e minimizar o sofrimento (MÉLLO, 2012; SOUSA; IRIART, 2018; MAGNO; DOURADO; SILVA, 2018). O reconhecimento do nome social é fundamental ao acolhimento, bem como reconhecer o sujeito transgênero em sua singularidade e integralidade é a premissa básica do respeito à sua identidade, de forma que essa seja a ação ético-política nos serviços de saúde (BRASIL, 2013; BEZERRA et al., 2019).

Nesta perspectiva, parece óbvia também a necessidade de apoio terapêutico de cunho psicológico. Entretanto, quando o poder público reconhece tal necessidade ou trata-se de uma condição para início do processo transexualizador, mais uma vez deparavam-se com dificuldades de acesso à atenção à saúde mental que implicam inúmeros desvios de rota “seguras” para condução terapêutica. Ainda assim, os percalços também revelaram protagonismo e ativismo do grupo de transgênero do município que, então, fundou uma associação - Associação Trans - e criou comunidades de apoio via redes sociais.

Estou em vários grupos no Facebook, que é para transgêneros que, aí, uma vai dando dicas para outra [...] Apoio psicológico? Nunca procurei! (Iansã).

Associação, que a gente criou agora e, aí, para gente conseguir fazer esses pedidos de demandas maiores (Ogum).

Uma coisa do sistema de saúde que precisei e só pude ter depois de um tempo foi a questão do psicólogo. Precisava tanto pela questão da minha ansiedade, quanto que precisava de um laudo para o médico começar a hormonização. Aí, tentei primeiro no núcleo de psicologia da universidade [pública]. [...] depois, procurei o serviço de psicologia de outra universidade [privada], mas tinha que pagar uma taxa de 13 reais toda vez que eu fosse. Aí, eu estava sem nenhuma expectativa; foi, aí que o núcleo LGBT de Vitória da Conquista começou a funcionar com assistência jurídica e psicológica, foi então que ela [psicóloga] poderia me dar o laudo, então foi um alívio muito grande (Oxumarê).

Os itinerários terapêuticos apresentam similitudes em vários aspectos, especialmente, com relação ao sofrimento e a lógica normativa dos serviços de saúde. Mesmo assim, distinguem-se na singularidade de cada sujeito, pois estão relacionados ao modo como cada um/uma sente-se, coloca-se e percebe-se no mundo (BELLATO et al., 2008).

Abordagem profissional: reforça os estigmas e cinde a relação terapêutica

O modo de ser recebido nos serviços de saúde é uma tecnologia leve fulcral para que as pessoas estabeleçam vínculos de confiança que, por conseguinte, repercutem na forma como aderem ao cuidado (MERHY, 2014). O acolhimento na atenção à saúde é importante para que se estabeleça uma contratualidade entre profissional-usuário/a e possibilite o reconhecimento de uma fonte regular de cuidado e, simultaneamente, haja implicação dos profissionais com os/as usuários/as na sua diversidade (SANTOS; SANTOS, 2011; CAMPOS; CUNHA; FIGUEIRO, 2013).

No caso em estudo, os/as entrevistados/as foram desrespeitados/as e sofreram violência/assédio/indiferença de profissionais, que resultou em abandono de tratamento, retardo na busca por cuidado ou desistência de procura aos serviços.

Quando chego ao hospital ou ao posto, por mais que peça pra me atenderem pelo nome social, me atendem pelo nome de batismo; isso é constrangedor (Oxóssi).

Quando tive problema no hospital X [privado], parei de ir. No hospital Y [privado], também, tive problema de constrangimento, de pessoas se recusarem a me tratar pelo meu nome [social] (Ogum).

[...] me chamaram três vezes e não levantei, porque acho uma falta de respeito chamar um homem e levanta uma mulher (Iansã).

Me dá um pouco de medo, às vezes, acho que esse medo me barra; não dá vontade de procurar [serviço de saúde], é um sentimento de insegurança, de angústia, às vezes; principalmente, o serviço público (Oxumarê).

O uso do nome social foi uma questão convergente e apareceu de maneira recorrente ao longo de todas as entrevistas. Todos/as interlocutores/as relataram constrangimento e desistência na busca por assistência decorrente de uma relação despersonalizada e de juízo moral baseado na cisgeneridade. Por este enquadramento, o respeito ao nome social é um primeiro passo que os profissionais podem dar para minimizar as barreiras de acesso face à discriminação das identidades transgêneros (SILVA et al., 2017). Não obstante, o direito à atenção à saúde de pessoas transgênero, na perspectiva do SUS, requerer o rompimento dos processos discriminatórios institucionalizados (BEZERRA, 2019; ROCON et al., 2019; PAULINO; RASERA; TEIXEIRA, 2019).

Nesta perspectiva, o modo de atendimento do profissional reforçava os estigmas e cindia a relação terapêutica, causando insegurança e resistências mútuas. Outro aspecto explicitado foi a discriminação oriunda, também, de outros usuários do serviço. Para as pessoas transgênero, o constrangimento potencializa-se à medida que a ausência de empatia as marginaliza, e em decorrência da transfobia há julgamento moral vinculado a características pessoais, tanto físicas como comportamentais (ROMANO, 2008; MULLER; KNAUTH, 2008; FERREIRA et al., 2017).

Primeiramente sempre sou recusado, a primeira resposta que recebo é “não, não é você, não bate”. E, aí, fui atendido pelo outro médico que tava lá no consultório, mas era um consultório particular […] e, aí, ele se recusou até conversar comigo; porque ele falou que era mutilação, a mamoplastia, no meu caso, sendo que meus órgãos estavam saudáveis, as minhas mamas estavam saudáveis (Ogum).

[...] outro problema é que a maioria dos trans são virgens. Na hora lá [consulta ginecológica] eles não falam por vergonha, aí, na hora lá, machuca. É coisa de ser conversada com todo mundo, é coisa de preparo mesmo. [...] tem pacientes que se incomodam, teve uma vez mesmo que fui sentar em um lugar, estava esperando ser atendido; aí, a pessoa saiu do meu lado! (Oxóssi).

[...] sou bem tratada pelos funcionários, sim. Agora, as pessoas [usuários do serviço] veem a gente chegando com uma roupinha justa, com decote, o corpo todo desenhado, maquiada, aí ficam olhando meio torto; mas acho que, no fundo, é porque gostam; os homens, e as mulheres é com recalque; com certeza é isso! Na maioria das vezes, não são os funcionários que tratam a gente com indiferença, são os outros pacientes (Iansã).

Em relação ao atendimento dos profissionais, muitas vezes há falta de conhecimento, desinteresse ou certa propensão ideológica que impede o desenvolvimento de um atendimento humanizado que respeite as particularidades individuais e o cuidado integral (LIONÇO et al., 2018; DULLIUS; MARTINS; CESNIK, 2019; NEGREIROS et al. 2019).

Assim, o estigma institucional (HATZENBUEHLER et al., 2013) se destaca como importante obstáculo para a implementação do cuidado integral a populações sub-representadas. Materializado em atitudes e comportamentos discriminatórios, o estigma institucional determina uma atenção inadequada à saúde, ao produzir um atendimento não condizente com as necessidades e anseios de pessoas transgênero, resultando em iniquidades (FERREIRA et al., 2017; SOUSA; IRIART, 2018; POPADIUK; OLIVEIRA; SIGNORELLI, 2017).

Demandas específicas por cuidado: percalços ao longo do itinerário terapêutico

Existem demandas distintas entre uma mulher trans (PINTO et al., 2017; MAGNO et al., 2019) e um homem trans (SOUSA; IRIART, 2018), conformando uma gama de especificidades para o tratamento assistencial e as formas de lidar com seus corpos, na condução psicológica para (re)construção de identidades e nas relações interpessoais. Trata-se de possibilidades que devem ser garantidas e ofertadas para que seja assegurado o direito ao cuidado integral, equânime e resolutivo (FREIRE et al., 2013; ALMEIDA; MURTA, 2013).

Entre as demandas comuns do grupo, os/as entrevistados/as relataram precisar de cuidado continuado com o médico endocrinologista para avaliar questões hormonais e a orientação de outras questões para controle do colesterol, vigilância sobre o ganho de peso, funcionalidade dos órgãos em geral e possíveis efeitos colaterais da terapia hormonal. Outros problemas comuns tiveram relação com a necessidade de acompanhamento psicológico, jurídico, assistência social e reposição/bloqueio hormonal. Tais demandas, quando não observadas, acabam por fragmentar o cuidado e colocam pessoas transgêneros em situações de exposição à utilização de produtos, procedimentos e/ou condutas inadequados que, frequentemente, causam danos à saúde e à integridade física e mental (PINTO et al., 2017; ROMANO, 2008).

Tenho esta necessidade de procurar o endocrinologista [...] e já estou com 6 meses de tratamento hormonal. Inicialmente, fui com ele de 2 em 2 meses, o que gerou muitos custos e tive que fazer os exames de sangue. Então, tive que estar sempre investindo e agora com 6 meses que ele viu que a minha taxa hormonal estava normal para um homem da minha idade, de 19 anos, e que tava tudo ok. Só a questão do colesterol que aumentou, mas ele deu uma folgada, disse que posso voltar lá daqui a 4-5 meses. (Oxumarê).

Tanto que a coordenação [LGBT] tá tentando vê se a gente consegue um médico, porque na questão do endocrinologista, a gente só tem um médico, que atende a todos os trans e ele cobra a consulta [clínica privada]. (Oxóssi).

[...] todos os meninos estavam usando “Deposteron®” [hormônio testosterona] e a gente teve que mudar todo mundo pra “Durateston®” [hormônio testosterona], porque ficou em falta na cidade, [...] atrasou o ciclo de todo mundo, teve gente que voltou a menstruar, teve gente que teve perda da taxa de testosterona e vários problemas podem ocasionar a partir disso. A gente precisava do medicamento. O que seria melhor pra gente era tomar “Nebido®”, que é um medicamento que o nível dele não sobe e desce, não fica tendo picos, é mais tranquilo. Pra gente, seria o ideal, mas é muito caro, é 300 reais e o governo não fornece. (Ogum).

As narrativas revelaram as fragilidades de todo o processo de transexualização e os percalços ao longo do itinerário terapêutico. Houve, também, a busca por suporte terapêutico em medicamentos nem sempre disponíveis e/ou nem sempre com os medicamentos que apresentam os melhores resultados entre os já disponíveis no mercado. A questão financeira permeou todas as falas e a ausência, muitas vezes, do suporte adequado das políticas públicas colocavam os/as entrevistados/as em situação de vulnerabilidade. Neste sentido, há necessidade de reconhecimento da pluralidade de gênero pelo Estado e, por sua vez, a ampliação dos direitos, inclusive da integralidade à saúde, de corpos que rompem com a normalidade cisgênera e binária para superação da vulnerabilidade de pessoas trangênero (GOMES et al., 2018; ARÁN; MURTA; LIONÇO, 2009).

Percebeu-se ausência de articulação em rede e uma oferta de serviço segmentada, sendo que cada pessoa é responsável por compor sua linha de cuidado, dentro do possível e a partir de sua percepção, ou seja, uma assistência despersonalizada e amplamente produtora de iniquidade; quando não, até mesmo, iatrogênica. Em nenhum dos casos, por exemplo, houve entrada via Atenção Primária à Saúde (APS) ou mesmo ouviram-se relatos de mecanismos de referência e contrarreferência; portanto, os itinerários são reveladores, também, do lugar periférico da APS ou do desprestígio do SUS nas narrativas dos/as entrevistados/as.

[...] já recusaram, várias vezes, me atender [por conta do nome na identidade não corresponder ao fenótipo idealizado], tive que explicar toda a situação. Até situação de emergência mesmo; de eu chegar desacordado e não quererem me atender (Ogum).

Em relação às singularidades internas ao grupo de pessoas transgênero, os relatos dos/as entrevistados/as destacam demandas específicas que distinguem os homens trans, em especial os cuidados relacionado à questão ginecológica, e todos os desdobramentos que as dissidências sexuais e de gênero produzem na relação profissional-usuário/a. Neste sentido, homens transgênero carecem frequentemente da remoção das mamas e de um ginecologista, pois, ainda que alguns deles optem pela histerectomia, ainda assim, necessitarão do acompanhamento e exame ginecológico por diversas questões relacionadas à anatomia, às práticas sexuais e às orientações indispensáveis para o cuidado decorrente das alterações induzidas pela hormonioterapia (SOUSA; IRIART, 2018). Por sua vez, mulheres transgênero requerem o implante de próteses de silicone nas mamas e em outras áreas do corpo, a fim de reproduzirem as curvaturas e proporções mais relacionadas às mulheres (ROCON et al., 2018).

Vou sempre ao ginecologista, porque esta questão do tratamento hormonal, muda tudo por dentro, tem que ter este acompanhamento, porque a menstruação corta, aí, tem que tá acompanhando. [...] a dificuldade maior que tenho percebido é a questão do ginecologista, porque é um espaço para mulheres; aí, chega um rapaz e as mulheres dizem - “O que um rapaz está fazendo aqui? - e, muitas vezes, a médica/o não sabe lidar com a situação, [...] por exemplo, sou um homem, mas meu corpo é feminino, a gente vai precisar frequentar esses lugares e tem muitos trans que desistem de ter este cuidado à saúde justamente, por causa do constrangimento que é muito, aquele local cheio de mulher (Oxóssi).

Tenho muito problema com isso, ginecologistas. Nossa é muito difícil, como vim da minha cidade, lá eu já tinha uma ginecologista específica. Aí, todo o meu tratamento nessas questões, fiz com ela. [...] Teve alguns meninos que conseguiram, aqui na cidade, a primeira mamoplastia, a retirada (dos seios). Eles conseguiram através do Hospital Y [privado] (Ogum).

Por causa do tratamento [hormonal], agora precisei ir ao ginecologista, porque tem toda uma questão de atrofia do útero. [...] às vezes, sinto algumas dores assim, no útero ou no ovário, porque ainda não fiz a histerectomia e, ainda, não procurei o ginecologista para fazer os exames que o médico pediu. [...] não procurei, ainda, pela questão financeira (Oxumarê).

Para colocar meus seios foi particular, não foi nada pelo SUS ou de graça. Então, de qualquer forma a gente tem que pagar é tanto que muitas [trans] não é “realizada”; que a gente fala assim, “realizada” é porque tem peito, muitas não é “realizada”, porque não têm como pagar, fazer a cirurgia, aí, acabam usando bojo. (Iansã).

Um ponto importante que o itinerário revelou foi a busca pelo reconhecimento enquanto sujeito transgênero em uma sociedade transfóbica (MÉLLO, 2012; LIONÇO et al., 2018). Neste sentido, o direito ao cuidado integral (BRASIL, 2013) é mitigado no cotidiano dos serviços de saúde (BEZERRA, 2019) e legitima-se o estigma institucional (HATZENBUEHLER et al., 2013). Além disso, a dificuldade de acesso no SUS produz iniquidades e conduz pessoas transgênero, sobretudo as mais vulneráveis, a exposição e experimentação de procedimentos muitas vezes inadequados (PINTO et al., 2017).

Considerações finais

Os itinerários de pessoas transgênero têm forte marcador de exclusão por estigma e discriminação, além de violência e assédio. No SUS, muitas vezes, as dificuldades comuns ao conjunto da população por acesso em tempo oportuno, especialmente, aos serviços de diagnóstico/tratamento podem opacificar os percalços peculiares à população transgênero.

Entretanto, neste artigo, constatam-se que, nas diferentes experiências, a interseccionalidade (transgênero + pobre + baixa escolaridade, dentre outras características socioeconômicas) impacta negativamente as chances de um cuidado seguro e respeitoso. Além disso, tratava-se de pessoas que residiam no interior do Nordeste, ou seja, implicava, também, a ausência de serviços especializados para acompanhamento de demandas inerentes ao processo transexualizador, inclusive para redesignação de gênero (pré ou pós-cirúrgico).

Os diferentes momentos de busca aos serviços públicos escancaram o estigma institucional que rompe com o princípio do direito universal à saúde. Ademais, os gestores e os profissionais, ao negligenciarem o cuidado integral às pessoas transgênero, contribuem para que essa população busque assistência na iniciativa privada, seja formal ou por vias alternativas (nem sempre com profissionais habilitados). O efeito adverso é o uso abusivo de hormônios, muitas vezes sem acompanhamento de profissional de saúde, ou abandono de tratamentos, com consequentes resultados piores de saúde que a população em geral.

A despeito disso, o sistema privado absorve para si as demandas das pessoas transgênero, muitas vezes num processo de mercantilização de seus corpos, valendo-se, também, da própria patologização da transexualidade. Neste sentido, a precificação dos procedimentos torna as pessoas transgênero vulneráveis a procedimentos desnecessários e/ou, ao contrário, as tornam reféns de procedimentos ofertados por vias paralelas, nem sempre seguras.

As pessoas transgênero e suas diferentes identidades não precisam da autorização para sua existência. Contudo, numa sociedade cis-heteronormativa e violenta, o Estado necessita fortalecer as políticas sociais que permitam o trânsito livre de pessoas transgênero nos serviços de saúde e impeçam a violação dos direitos humanos. Outrossim, os gestores precisam viabilizar a existência de serviços específicos à transexualidade, sem requisitos abusivos, e fomentar que profissionais sejam formados permanentemente numa perspectiva da integralidade do cuidado, contemplando a identidade e expressão de gênero.1

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    P. H. L. de Oliveira: trabalho de campo, concepção, interpretação dos dados e redação do manuscrito. J. R. Galvão e K. S. Rocha: interpretação dos dados, redação do manuscrito e aprovação da versão final. A. M. dos Santos: concepção, interpretação dos dados, redação do manuscrito e aprovação da versão final. O artigo faz parte do projeto financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Edital CNPq/MS-DIAHV nº 11/2018 - Eixo 3 - Análise de gestão de serviços - Processo: 404011/2018-7).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    24 Maio 2020
  • Revisado
    20 Abr 2021
  • Aceito
    09 Jul 2021
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