Resumo
O controle ambiental do vetor no interior e ao redor dos domicílios, enquanto estratégia fundamental para a prevenção de arboviroses como dengue, zika e chikungunya, demanda um envolvimento ininterrupto da população. A pandemia de Covid-19 e, consequentemente, o isolamento social necessário ao seu controle, têm reduzido a vigilância profissional nos domicílios, tornando a atuação da população ainda mais necessária. Estudos que buscam compreender o envolvimento das comunidades na execução das ações preventivas têm sido quase exclusivamente locais. O artigo relata uma pesquisa-intervenção baseada em oficinas sobre práticas preventivas realizadas antes do isolamento social, em 16 municípios das 5 regiões brasileiras, as quais envolveram um total de 379 participantes. Os resultados apresentam as ações preventivas preconizadas por campanhas que são as mais comumente compreendidas e executadas pela população; as situações que dificultam a execução; as práticas preventivas de iniciativa própria dos cidadãos; e as práticas baseadas em saberes populares. Ficou evidente que as informações fornecidas às comunidades não podem estar restritas às campanhas de massa, e que se faz necessário investir em ações educativas mais efetivas e adequadas à variedade de contextos nacionais, com vistas a construções coletivas e intersetoriais de estratégias de enfrentamento às arboviroses.
Palavras-chave:
Arboviroses; Participação da comunidade; Controle de vetores; Covid-19.
Abstract
The environmental control of the vector inside and around households, as a fundamental strategy for the prevention of arboviruses such as dengue, zika and chikungunya, demands an uninterrupted involvement of the population. The pandemic context of Covid-19, and consequently the social isolation has reduced professional surveillance in the households, making the performance of the population even more necessary. Studies that seek to understand the involvement of communities in the implementation of preventive actions have been almost exclusively local. This article reports an intervention research based on workshops on preventive practices carried out before social isolation, in 16 municipalities in the five Brazilian regions and involved 379 participants. Our results show the preventive actions recommended by campaigns that are the most commonly understood and performed by the population; situations that hinder execution; preventive practices of citizens' own initiative; and practices based on popular knowledge. It became evident that information to communities cannot be restricted to mass campaigns, and that it is necessary to invest in educational actions adequate to the variety of national contexts, seeking collective and intersectoral constructions of strategies to confront arboviruses.
Keywords:
Arboviruses; Community participation; Vector control; Covid-19.
Introdução
As arboviroses estão entre os principais problemas de saúde global, implicadas anualmente em milhares de mortes por dengue hemorrágica, em incapacidades físicas transitórias e permanentes geradas pela cronificação da chikungunya e nas graves consequências médicas e sociais da microcefalia por infecção congênita por zika vírus (WHO, 2020WORLD HEALTH ORGANIZATION. Dengue and severe dengue. Geneva: WHO, 2021.). No Brasil, segundo o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde (MS), a incidência de dengue estava em 415,9 casos por 100 mil habitantes; 23 casos por 100 mil habitantes para chikungunya; e 2,2 casos por 100 mil habitantes para zika (BRASIL, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Plantas medicinais e fitoterápicos no SUS. Brasília: MS, 2020.).
O vetor Aedes aegypti está bem adaptado aos centros urbanos e compartilha o mesmo ambiente e os horários de atividade do ser humano em seu contexto social, tornando os domicílios e os peridomicílios os principais locais de oviposição (NATAL, 2002; FORATTINI, 2003FORATTINI, O. P.; BRITO, M. de. Reservatórios domiciliares de água e controle do Aedes aegypti. Revista de Saúde Pública, v. 37, p. 676-677, 2003.; BRAGA, 2007BRAGA, I. A.; VALLE, D. Aedes aegypti: histórico do controle no Brasil. Epidemiol. Serv. Saúde, Brasília, v. 16, n. 2, p. 113-118, 2007.). Ele tem preferência por recipientes com água relativamente limpa, mas já foi detectada sua adaptação a águas mais poluídas, tornando o descarte de lixo a seu aberto ou seu armazenamento no interior dos domicílios elementos importantes para a proliferação do vetor (FORATTINI, 2003FORATTINI, O. P.; BRITO, M. de. Reservatórios domiciliares de água e controle do Aedes aegypti. Revista de Saúde Pública, v. 37, p. 676-677, 2003.; DA SILVA, 2006DA SILVA, V. C. et al. Diversidade de criadouros e tipos de imóveis frequentados por Aedes albopictus e Aedes aegypti. Revista de Saúde Pública, v. 40, n. 6, p. 1106-1111, 2006.; ROSSI, 2007ROSSI, J. C. N.; SILVA, A. M. Diversidade de criadouros frequentados por Aedes aegypti e Aedes albopictus no Estado de Santa Catarina, 1998 a 2007. Florianópolis: Secretaria de Saúde, 2007.).
Assim, o controle ambiental dentro e ao redor dos domicílios tornou-se estratégia fundamental para a prevenção dessas arboviroses. Fatores como crescimento urbano desorganizado e ausência de saneamento básico, de coleta regular de lixo e de ações de vigilância - responsabilidades dos poderes públicos - implicam maior proliferação do vetor e, consequentemente, maior incidência de casos (BARRETO, 2011BARRETO, M. et al. Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: Social and environmental context, policies, interventions, and research needs. The Lancet, n. 3771, p. 1877-89, 2011.); contudo, a importância do envolvimento das comunidades na execução das práticas de controle ambiental para uma prevenção efetiva é praticamente consensual na literatura (WERMELINGER, 2008WERMELINGER, E. D. Avaliação do acesso aos criadouros do Aedes aegypti por agentes de saúde do programa saúde da família no município do Rio de Janeiro. Revista Baiana de Saúde Pública, v. 32, n. 2, p. 151-151 2008.; ROQUE, 2017ROQUE, D. M.; ALMEIDA, F. S.; MOREIRA, V. S. Política pública de combate à dengue e os condicionantes socioeconômicos. Anais do Encontro Brasileiro de Administração Pública, João Pessoa, PB, Brasil, v. 4, 2017.).
A sensibilização das comunidades e as informações para a execução dessas práticas têm sido feitas no Brasil preferencialmente por meio de campanhas publicitárias, às quais muitas críticas têm se dirigido, apontando, sobretudo, inadequabilidade à diversidade dos contextos nacionais, verticalidade das mensagens e culpabilização das vítimas (REIS, 2013REIS, C. B.; ANDRADE, S. M. O.; CUNHA, R. V. Responsabilização do outro: discursos de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família sobre ocorrência de dengue. Rev. Bras. Enferm. v. 66, n. 1, p. 74-8, 2013.; WERMELINGER; SALLES, 2018WERMELINGER, E. D.; SALLES I. C. D. M. O sujeito preventivo das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti nas campanhas publicitárias: obrigação, culpabilização e álibi para a responsabilidade do poder público. Physis Rev Saúde Coletiva, v. 28, n. 4, e280401, 2018.; ANDRADE et al., 2020ANDRADE, N. F. et al. Análise das campanhas de prevenção às arboviroses dengue, zika e chikungunya do Ministério da Saúde na perspectiva da educação e comunicação em saúde. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 126, p. 871-880, 2020.).
O contexto da pandemia de Covid-19, em concomitância às condições endêmicas dessas arboviroses, impõe novos desafios para a prevenção quando consideramos um período de mais de 14 meses com redução da atuação de agentes de saúde devido ao isolamento social, implicando a necessidade de um envolvimento ainda maior da população (VICENTE, 2021VICENTE, C. R. et al. Impact of concurrent epidemics of dengue, chikungunya, zika, and COVID-19. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 54, 2021.).
Para a readequação das campanhas, bem como para o planejamento de programas mais efetivos de educação popular, torna-se muito importante compreender como a população tem percebido e executado as ações preconizadas para o controle ambiental em seus domicílios, quais suas iniciativas próprias, qual seu nível de crença na efetividade das ações e suas principais dificuldades para executá-las. Diversos estudos têm sido realizados no Brasil para tentar compreender alguns desses aspectos, demonstrando grande variabilidade de percepções e ações (MENDONÇA, 2009MENDONÇA, A. V. M. O processo de comunicação Todos-Todos e a produção de conteúdos: desafios à Gestão do Conhecimento. Brasília: Organização Pan-Americana de Saúde, 2009.; PEREIRA, 2017PEREIRA, A. C. Discurso e sentido nas campanhas publicitárias sobre doenças tropicais transmitidas pelo Aedes aegypti. Physis, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, p. 1225-1241, 2017.). Entretanto, a maioria deles tem sido realizada em municípios específicos e não descreve uma visão mais global da percepção da população nas diversas regiões do país.
O presente estudo teve como objetivo investigar, por meio de uma pesquisa-intervenção com 379 participantes de 16 municípios nas 5 regiões do país, como a população compreende e executa, ou não, ações de controle ambiental domiciliar com vistas à prevenção de dengue, zika e chikungunya.
Material e Métodos
O presente estudo integra o Componente 3 (Educação, informação e comunicação para o controle do vetor) da pesquisa nacional intitulada “Arbovírus dengue, zika e chikungunya compartilham o mesmo inseto vetor: o mosquito Aedes aegypti - moléculas do Brasil e do mundo para o controle, novas tecnologias em saúde e gestão da informação, educação e comunicação”. Os dados aqui apresentados foram coletados com base nas oficinas sobre conhecimentos e práticas de prevenção às arboviroses, realizadas em 16 municípios das 5 regiões brasileiras. Assim, este braço da pesquisa teve também o caráter de pesquisa-intervenção, visto que, por meio de oficinas nas quais os participantes adquiriam maior domínio das práticas preventivas, também foram colhidos seus depoimentos sobre o conhecimento e a execução de tais práticas.
Os municípios selecionados tiveram como critérios de inclusão: ser de caráter urbano, intermediário adjacente e remoto segundo o IBGE; ter a classificação do Levantamento Rápido de Índices para Aedes aegypti - LIRAa em 2016 e 2017 (anos utilizados como recorte inicial para a pesquisa); conveniência em relação à localização e facilidade de deslocamento da equipe; e adesão ao Programa Saúde na Escola (PSE).
Foram excluídos os classificados como rurais, inserindo-se também capitais das regiões (BRASIL, 2013BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Levantamento Rápido de Índices para Aedes Aegypti (LIRAa) para vigilância entomológica do Aedes aegypti no Brasil: metodologia para avaliação dos índices de Breteau e Predial e tipo de recipientes. Brasília: MS , 2013.; IBGE, 2017INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA - IBGE. Conheça cidades e Estados do Brasil. Brasília: IBGE, 2021.). O quadro 1 apresenta os 16 municípios participantes, o LIRAa de 2016 e 2017 e a quantidade de oficinas realizadas.
Participaram das oficinas entre 4 e 12 membros da comunidade, maiores de 18 anos, recrutados com apoio de lideranças locais; excluíram-se membros que fossem profissionais de saúde ou trabalhassem diretamente com a prevenção. Todas as oficinas foram gravadas e posteriormente transcritas para análise de conteúdo pelo método de Bardin (BARDIN, 2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.) em abordagem qualitativa. Da análise de conteúdo emergiram as seguintes categorias: cuidados preconizados nas campanhas e realizados; cuidados realizados pela comunidade não preconizados nas campanhas; práticas de prevenção baseadas no conhecimento popular e tradicional; e dúvidas procedimentais sobre a prevenção e dificuldades para execução das ações.
O protocolo de pesquisa foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa pela Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade de Brasília (CEP/FS/UnB), sob pareceres de números 2.480.722 (projeto original) e 2.608.178 (emenda do projeto), 75119617.2.0000.0030. Todos os participantes tiveram tempo e auxílio para a leitura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), assinado antes de cada oficina.
Resultados e Discussão
Cuidados preconizados nas campanhas e realizados pelas comunidades
Entre as ações preconizadas pelas campanhas, destaca-se o cuidado com os recipientes que podem acumular água e vir a ser um potencial criadouro do Aedes aegypti. A atividade que mais apareceu entre os membros da comunidade foi a de jogar água fora, porém não ficou evidente se as pessoas lavam esses recipientes e tomam os cuidados necessários quando encontram ovos ou larvas. Podemos notar isso nas falas dos participantes:
Eu tenho cachorro em casa e sempre que estou em casa procuro os brinquedos dele, vejo se a vasilha tem alguma coisa para tirar pra não deixar espalhado... ralo do banheiro, sempre fechado. (Caldas Novas-GO).
Principalmente quando está chovendo, porque qualquer coisinha que você deixar no quintal de vacilo enche d'água. (Campina Grande-PB).
Orientações presentes nas campanhas incluem, além do descarte diário da água acumulada, a higienização com água, sabão e escova dos recipientes ao menos semanalmente, com atenção especial para plantas aquáticas e bebedouros de animais. Esse procedimento de lavagem dos recipientes não foi mencionado por nenhum dos 379 participantes. Apesar da importância de comunicar o encontro de ovos e larvas aos agentes de saúde, para que possam ser reforçadas as ações de prevenção naquele domicílio e em seu território (SANTOS, 2011SANTOS, S. L. dos; CABRAL, A. C. S. P.; AUGUSTO, L. G. S. Conhecimento, atitude e prática sobre dengue, seu vetor e ações de controle em uma comunidade urbana do Nordeste. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, p. 1319-1330, 2011.), essa foi outra medida não mencionada pelos participantes.
A principal recomendação das campanhas em relação às caixas d’água é mantê-las continuamente fechadas, mas ela não apareceu em nosso estudo como suficientemente assimilada pela população, estando ausente dos relatos das ações executadas. A menção à caixa d’água, quando apareceu, apareceu sob a forma de um relato bem particular:
Fico usando, aí quando seca, de quinze em quinze dias eu boto pra secar, uso, aí eu boto pra subir, lavar e limpar todinha (caixa d'água). (Campina Grande-PB).
Assim, não parece que as campanhas têm deixado clara a importância da higienização, onde e com qual frequência deve ser executada, podendo levar a uma interpretação equivocada por parte da população, que acaba concentrando esforços em determinadas ações que aumentam a proteção. O esvaziamento e a lavagem quinzenal das caixas d’água presas nos telhados dos domicílios produzem um gasto de energia e de tempo que podem prejudicar a execução dos procedimentos verdadeiramente eficazes, além de aumentar o risco de acidentes.
Um amplo estudo com a América Latina e a Ásia apontou que, no Brasil, a mobilização popular para enfrentamento das arboviroses urbanas perde efeito em virtude da falta de implementação de políticas públicas para saneamento básico. A ausência de abastecimento regular de água obriga a população ao armazenamento em grandes recipientes e caixas d’água, em um contexto socioeconômico no qual, por exemplo, quando as tampas das caixas se perdem ou se quebram, não há condições financeiras para pronta reposição (CLARO, 2004CLARO, L. B. L.; TOMASSINI, H. C. B.; ROSA, M. L. G. Prevenção e controle do dengue: uma revisão de estudos sobre conhecimentos, crenças e práticas da população. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 20, n. 6, p. 1447-1457, 2004. ).
Outra medida preconizada nas campanhas do Ministério da Saúde se relaciona aos cuidados no descarte do lixo, recomendando sua acomodação sempre em sacos plásticos fechados, mantendo as lixeiras também sempre fechadas e fora do alcance dos animais. Segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e ResíduosASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE EMPRESAS DE LIMPEZA PÚBLICA E RESÍDUOS - ABRELPE. Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil, 2018. , o Brasil gerou, em 2018, 79 milhões de toneladas de resíduos urbanos. Destes, 6,3 milhões de toneladas não foram recolhidos nos locais de origem. É digno de nota que em nossos resultados o cuidado com o lixo representou uma das práticas preconizadas mais assimiladas pela comunidade:
[...] a gente tem um contêiner ali pelo lado de dentro, vai juntando lá nos sacos fechados... Nosso lixo é bem zeradinho, né, só vai direto pro caminhão. (Araguaína-PA).
Se botar o lixo na sacola tem que ser amarrado. (João Pessoa-PB).
E também, quando entrou de greve (a coleta do lixo) [...] aí o pessoal da própria casa ficava colocando lixo no seu carro e levando lá para o aterro. (Goiânia-GO).
Agora eu deixo bem lá na… onde não pega chuva nada o saco, mas eu já tenho um baldinho, com tampa e tudo. (Cascavel-PR).
Entretanto, o reconhecimento das deficiências da coleta regular de resíduos pelos poderes públicos também foi uma das percepções dominantes entre os participantes, independentemente da região do país.
[...] tem o lugar vazio com uma carroceria velha de caminhão com muito lixo jogado e fica ali acumulando [...]. (Belo Horizonte-MG).
[...] Não existe um projeto, não existe algo que faça a recolha desses móveis usados, porque onde que é descartado?... São descartados nos terrenos baldios e jogado na rua e fica lá jogado, né. (Dois Vizinhos-RS).
Ninguém tá vendo e o mosquitinho tá ali, então eu acho que mais parte do governo, porque seria a parte dela que tem que fazer para manter a cidade limpinha. (Planaltina-DF).
Um estudo estatístico que avaliou o impacto da coleta e dos tipos de lixo sobre a incidência de dengue em Recife-PE comprovou a importância da coleta pública, sobretudo de materiais como pneus, para a redução da incidência (SOBRAL; SOBRAL, 2019SOBRAL, M. F. F.; SOBRAL, A. I. G. P. Casos de dengue e coleta de lixo urbano: um estudo na Cidade do Recife, Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v. 24, n. 3, p. 1075-82, 2019. ). Outro estudo realizado em Salvador-BA também vai ao encontro de nossos resultados ao investigar as percepções e as práticas da população e demonstrar que a população associa a maior presença do vetor à ausência de coleta regular de lixo.
Apesar do reconhecimento de que o cuidado com o lixo no interior e no entorno dos domicílios deve ser também uma responsabilidade da comunidade, os participantes da pesquisa demonstraram compreender a prática em uma perspectiva muito mais individual que coletiva. Isso parece dever-se, em grande parte, ao fato de as campanhas, elas mesmas, tratarem as práticas no âmbito das ações individuais, com pouca ou nenhuma ênfase na construção de ações coletivas, como tem sido apontado por outros estudos (WERMELINGER; SALLES, 2018WERMELINGER, E. D.; SALLES I. C. D. M. O sujeito preventivo das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti nas campanhas publicitárias: obrigação, culpabilização e álibi para a responsabilidade do poder público. Physis Rev Saúde Coletiva, v. 28, n. 4, e280401, 2018.). No mesmo sentido, a importância das articulações entre líderes comunitários e agentes de saúde, como forma de incentivar uma tomada de posição coletiva entre adultos e crianças para se tornarem verdadeiros brigadistas ambientais atuantes, tanto em espaços privados quanto em espaços públicos, também tem sido mencionada (LEDOGAR, 2017LEDOGAR, R. J. et al. Mobilising communities for Aedes aegypti control: the SEPA approach. BMC public health, v. 17, supl 1 403, 2017.).
O cuidado com as plantas no interior dos cômodos, pátios, varandas e quintais se mostrou como outra recomendação muito frequente nas campanhas nacionais e bem assimilada pelos participantes em todo o território nacional.
Tenho cuidado com as plantas pra não acumular água. (Araguaína-PA).
[...] eu brigo por causa dos meus pratos, das minhas flores, ali cheios de areia [...] mas agora eu tirei tudo, sabe? Para não ter perigo de ter. (Cascavel-PR).
As bromélias, por exemplo, acumulam água e a pessoa nem percebe. (São Bernardo do Campo-SP).
[...] ficar observando se a planta está ficando muito tempo dentro da água, dentro da casa, um vaso muito lindo, o outro chique, mas talvez ali está o ovo do inseto. (João Pessoa-PB).
Já está bem estabelecido que as plantas cultivadas nas residências são criadouros especialmente atrativos para o Aedes aegypti, uma vez que, diferentemente de outros recipientes, a larva encontra ali uma cobertura viva nos tecidos da planta que favorece naturalmente seu desenvolvimento (LOPEZ, 2009LOPEZ, L. C. S. et al. Estudo do desenvolvimento das larvas de Aedes (Stegomyia) aegypti (L.) nos microcosmos naturais da bromélia tanque Aechmeafasciata, Anais do IX Congresso de Ecologia do Brasil, 2009.).
No estudo de Lefrève et al. (2004) sobre as representações sociais de membros da comunidade sobre a relação entre vasos de plantas e desenvolvimento dos vetores, ficou demonstrado que, apesar de bem assimilada a importância do cuidado com esses recipientes, havia muitas informações equivocadas, como a ideia de que o vetor põe diretamente as larvas na água das plantas sem considerar a invisibilidade dos ovos, o que poderia retardar a troca.
Cuidados realizados pela comunidade não preconizados nas campanhas
O estudo procurou também identificar outras ações com eficácia preventiva ou não realizadas pela comunidade, que não estão recomendadas nas campanhas, mas poderiam constar em outros meios de informação ou vir de iniciativas próprias.
Eu boto todo dia inseticida na casa... não tem melhor que o SBP não [...] (Araguaína-PA).
Eu taco Baygon nas minhas plantas, queimo minhas plantas tudinho [...] (Goiânia-GO).
Eu uso veneno nas fossas, nos ralos do banheiro [...] (Vilhena-PA).
Eu boto cloro, água sanitária pelo chão, ralo, tudo. (Campina Grande-PB).
A concepção de que os inseticidas, na medida em que matam os mosquitos adultos, contribuem para a prevenção das arboviroses se mostrou bastante presente no imaginário dos participantes de nosso estudo em todas as regiões do país, chamando atenção o fato de não ter sido mencionada qualquer preocupação com a saúde ou cuidados especiais para o uso desses produtos. No entanto, está bem estabelecido que o uso cotidiano de inseticidas oferece riscos à saúde humana, dos animais e das plantas, devido à toxicidade dos piretroides, compostos químicos sintéticos similares às piretrinas naturais produzidas pelas flores e que estão presentes em praticamente todos os inseticidas industrializados. Além disso, o Aedes aegypti desenvolve rapidamente mecanismos de resistência a esses inseticidas, o que os torna ineficazes para a prevenção (APONTE, 2019APONTE, A. et al. Mechanisms of pyrethroid resistance in Aedes (Stegomyia) aegypti from Colombia. Acta Trop. n. 191, p. 146-154, 2019.).
A presença frequente dos nomes comerciais dos inseticidas nos relatos dos participantes sugere, fortemente, a influência das publicidades massivas veiculadas sobre esses produtos, especialmente nos períodos de maior incidência de dengue. Muitas delas, por meio de mensagens subliminares, levam a crer que seu uso seria eficiente no combate ao vetor. Isso revela tanto a falta de uma regulação publicitária mais responsável e rigorosa no Brasil quanto a ausência de mensagens objetivas nas campanhas que assumam posições contrárias ao uso frequente de inseticidas comerciais e esclareçam sua ineficácia à população.
Outras iniciativas, como a higienização frequente dos cômodos com cloro ou água sanitária, podem reduzir o tempo para a realização de ações verdadeiramente eficazes, aumentar o risco de envenenamentos acidentais de animais e crianças e provocar uma falsa sensação de segurança, reduzindo a vigilância sobre os verdadeiros possíveis focos.
Práticas de prevenção baseadas no conhecimento popular e tradicional
Esta categoria se refere às práticas preventivas fundamentadas nos saberes populares, sejam eles oriundos de comunidades tradicionais ou não. Eles se distinguem das iniciativas próprias em cuidados não preconizados da categoria anterior por não usarem produtos industrializados, terem menor toxicidade e pelo fato de alguns deles terem algum grau de eficiência comprovada em atividade larvicida ou no afastamento do vetor, ainda que não se tenha comprovado sua eficiência como medidas de prevenção.
Alguns dos relatos mais frequentes dessas medidas se dirigem à proteção do corpo, buscando afastar os mosquitos e dificultar ou impedir a picada. As práticas variam desde o uso de roupas que reduzam a superfície de exposição e cortinados em torno da cama durante a noite, até a produção de repelentes corporais caseiros.
[...] a gente também faz o óleo da citronela e adiciona em qualquer creme hidratante, não vai ter perigo nenhum, nem mosca chega perto da gente com óleo de citronela. (Fortaleza-CE).
[...] tipo assim, eu vou dar uma erva cidreira, pra você passar e esfregar no corpo [...] (Caldas Novas-GO).
[...] (repelente) É com cravinho-da-índia e álcool e um óleo, qualquer óleo... de coco [...] (Vilhena-PA).
Outras práticas buscam criar condições para manter o ambiente de convívio familiar livre de mosquitos.
Na minha garagem eu plantei citronela... Por causa do cheiro, o mosquito não vem. (São Bernardo do Campo-SP).
Uma vez eu vi que você pegar canela e ponha de molho, mata o mosquito. (Vilhena-PA).
Eu espanto, desço a escada com os panos molhados com mato perfumado, quando chego lá embaixo se tem algum mosquitinho ele sai. (Cascavel-PR).
A minha mãe botava a casca de laranja. Ela pegava as cascas e botava assim em cima da brasa num vaso [...] (Caldas Novas-GO).
E a própolis é repelente natural de passar e de beber. (João Pessoa-PB).
Costa et al. (2005COSTA, J. G. M. et al. Estudo químico-biológico dos óleos essenciais de Hyptis martiusii, Lippia sidoides e Syzigium aromaticum frente às larvas do Aedes aegypti. Revista Brasileira de Farmacognosia, v. 15, n. 4, p. 304-309, 2005. ) afirmam que, em virtude de o Aedes aegypti ser uma espécie distribuída em todo o território nacional, pesquisas que buscam identificar atividade larvicida de extratos e óleos essenciais de plantas e vegetais utilizados pelas medicinas popular e tradicional são também muito frequentes no país. O estudo desses autores demonstrou que a exposição das larvas a diversas concentrações de óleos essenciais de duas das plantas citadas pelos participantes de nosso estudo, cravo-da-índia e cidreira, tem potencial para mortalidade de até 100% das larvas expostas. Souza (2019SOUZA, M. M. F. Plantas Medicinais: método alternativo de prevenir a dengue. Revista Extensão & Sociedade, v. X, 2019.) afirma que o cultivo de algumas plantas aromáticas, tais como cidreira, citronela e manjericão, dentro ou fora das residências, se mostrou capaz de manter os mosquitos afastados em um perímetro de até 50 metros do local de cultivo.
Importante ter em conta que esses achados não implicam, necessariamente, eficácia na prevenção da doença. O sítio web da Fundação Oswaldo Cruz já emitiu nota para esclarecer a comunidade científica e a sociedade de que até o momento nenhum estudo foi capaz de demonstrar eficácia de própolis ou quaisquer outros repelentes corporais ou de ambiente chamados “naturais” em repelir o Aedes aegypti e reduzir riscos (FIOCRUZ, 2017FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Fiocruz esclarece boato nas redes sociais sobre o uso de própolis para o combate ao Aedes. Rio de Janeiro: Fiocruz , 2017. ).
Por um lado, são pertinentes também as preocupações de que esses procedimentos possam provocar falsa sensação de proteção e relaxamento de medidas comprovadamente eficazes. Por outro, uma vez que o cultivo de plantas medicinais simboliza a cultura e a identidade de diversas comunidades no Brasil, dada a baixa toxicidade para humanos das plantas mais utilizadas, a articulação das práticas preventivas convencionais com algumas práticas próprias do saber popular pode ser estratégia interessante para criar empatia com as comunidades e aumentar a adesão às recomendações das campanhas e dos agentes de saúde.
Dúvidas procedimentais sobre a prevenção e dificuldades para execução das ações
A demonstração de insegurança em relação aos procedimentos para controle ambiental do vetor e dúvidas a respeito da transmissibilidade das arboviroses emergiram nas oficinas em todas as regiões. Esses achados podem ajudar a levantar questões sobre de que forma as mensagens oficiais transmitidas pelas campanhas ou por agentes de saúde estão chegando às populações e sendo assimiladas por elas.
Eu não sabia que era o mesmo mosquito que causava as três doenças. (Araguaína-PA).
[...] mais informação da zika, porque a zika que é o negócio da microcefalia... hoje eu me sinto muito perdida nesse assunto [...] (Fortaleza-CE).
Caso ache as larvas, qual é o correto? Dispensar no esgoto, colocar algum produto? (Planaltina-GO).
Achados como os nossos foram também apontados há mais de 15 anos por Lefèvre et al. (2004LEFÈVRE, F. et al. Representações sociais sobre relações entre vasos de plantas e o vetor da dengue. Revista Saúde Pública, São Paulo, v. 38, n. 3, p. 405-414, 2004. ), que encontraram um grau significativamente alto de desinformação relacionada a diversos fatores envolvidos no adoecimento e na prevenção, entre os quais formas de transmissibilidade, doenças transmitidas, relação da água com a oviposição do vetor etc., e que, segundo eles, prejudicam a adesão ao cumprimento dos procedimentos preventivos, bem como sua boa execução. Desde aquela época, os autores já atribuíam parte do problema às estratégias de comunicação e informação usadas pelas autoridades sanitárias.
Santos (2011SANTOS, S. L. dos; CABRAL, A. C. S. P.; AUGUSTO, L. G. S. Conhecimento, atitude e prática sobre dengue, seu vetor e ações de controle em uma comunidade urbana do Nordeste. Ciência & Saúde Coletiva, v. 16, p. 1319-1330, 2011.) destacou como tem sido pouco informada à população a necessidade de comunicar à unidade de saúde de seu bairro ou ao agente de saúde o encontro de ovos e larvas no interior ou nos arredores do domicílio, para que possam ser reforçadas as ações de prevenção e combate naquele território.
Já o estudo de Souza (2018SOUZA, K. R. Saberes e práticas sobre controle do Aedes aegypti por diferentes sujeitos sociais na cidade de Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, v. 34, n. 5, e00078017, 2018.) com membros de comunidades, agentes comunitários de saúde e agentes de combate a endemias foi capaz de demonstrar grandes incertezas nos moradores sobre riscos e formas de contágio, bem como agentes de saúde insatisfeitos com a qualificação da formação recebida e com muita insegurança sobre se estão bem preparados para esclarecer as dúvidas da população. A autora reivindica regularidade em ações educativas de caráter dialógico e sensibilizador, e adequadas à diversidade das formas de vida cotidianas, o que seria impossível através de campanhas nacionais.
No que se refere às dificuldades relatadas pelos participantes para execução dos procedimentos de controle ambiental preconizados nas campanhas, surpreendeu-nos a pequena quantidade de relatos obtidos nas oficinas. Nossa hipótese para a causa disso é o fato de ter sido muito frequente entre os participantes a culpabilização da própria comunidade pelo insucesso da prevenção, expresso, em geral, por meio de uma espécie de arquétipo do vizinho que não cumpre os procedimentos preventivos e desperdiça os esforços de toda a rua. Esse resultado da presente pesquisa foi objeto de outra comunicação científica do grupo, já submetida a avaliação para publicação. Ainda assim, foi possível colher alguns relatos bastante interessantes.
[...] assim, às vezes tem aquela geladeira que junta um pouquinho de água atrás, naquela caçambinha. Todo mês eu me viro e seco [...] (João Pessoa-PB).
O problema é a caixa d’água! Como é que eu posso ficar subindo? (Gramado-RS).
[...] agora água da calha... é alto... o agente quando vem sobe, mas eu mesma não posso. (Anápolis-GO).
Faço todo sábado, dia de semana saio cedo e volto tarde [...] (Governador Valadares-MG).
O constrangimento de indivíduos em falar diante da comunidade sobre seus limites para executar algum procedimento de controle ambiental ou pedir ajuda para executá-lo pode ter relação com um problema levantado por Wermelinger e Salles (2018WERMELINGER, E. D.; SALLES I. C. D. M. O sujeito preventivo das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti nas campanhas publicitárias: obrigação, culpabilização e álibi para a responsabilidade do poder público. Physis Rev Saúde Coletiva, v. 28, n. 4, e280401, 2018.) sobre o conteúdo das comunicações oficiais: de que os procedimentos preventivos de controle ambiental são práticas eminentemente individuais, tratadas como responsabilidade isolada de cada família em sua casa. Além disso, o tipo de mensagem não estimula a organização de ações comunitárias, potencialmente muito mais eficientes que a soma simples de ações individuais.
É consensual que uma prevenção minimamente eficiente só é possível por meio de uma atuação conjunta entre poderes públicos e comunidades, inclusive porque já está bem demonstrado que fatores infraestruturais, como grandes territórios sem saneamento básico, ausência de planejamento para o crescimento urbano e falta de coleta regular de lixo, estão entre os principais obstáculos a uma prevenção efetiva (BARRETO et al., 2011BARRETO, M. et al. Successes and failures in the control of infectious diseases in Brazil: Social and environmental context, policies, interventions, and research needs. The Lancet, n. 3771, p. 1877-89, 2011.).
No que se refere ao papel das comunidades, é preciso entender que os procedimentos de controle ambiental prescritos interagem em um contexto muito variado em relação às formas cotidianas de vida determinadas pelas condições socioeconômicas e culturais das famílias.
Uma estrutura familiar ainda muito frequente, sobretudo no interior do país, é aquela em que os homens têm trabalho no espaço social e as mulheres, no espaço doméstico. A verificação de locais de difícil acesso - como as calhas, que acumulam água de chuva nas bordas dos telhados, e as caixas d’água nos tetos das residências - ou ainda cuidados que impliquem remoção de objetos e móveis pesados, como geladeiras, são mais difíceis de ser executados por uma mulher sozinha em casa, muitas vezes cercada por crianças.
Nas capitais e nos grandes centros urbanos, onde é mais comum as mulheres trabalharem também no espaço social, o deslocamento de casa aos locais de trabalho costuma tomar muitas horas dos trabalhadores, que, em geral, moram nas periferias. Se considerarmos ainda a dupla jornada de trabalho ao qual, socioculturalmente, a maioria das mulheres ainda está submetida, podemos entender a duração de um mês para limpar “a caçambinha” de trás da geladeira ou a troca de água parada apenas aos sábados, como surgiu nos relatos de nossos participantes.
Rodrigues e Grisotti (2019RODRIGUES, R. R. N.; GRISOTTI, M. Comunicando sobre Zika: recomendações de prevenção em contextos de incertezas. Interface, Botucatu, v. 23, e190140, 2019. ) identificaram as fragilidades da comunicação de risco em relação às arboviroses e reivindicaram a reformulação das informações passadas à população e aos agentes de saúde de forma coerente com as características e os contextos das populações atingidas, repensando-se formas de estabelecer as articulações necessárias entre a produção de conhecimento científico, políticas de saúde e estratégias de comunicação. Contudo, as melhores estimativas de eficiência e efetividade no controle do Aedes aegypti só podem surgir por meio de uma participação mais ativa da comunidade, deixando esta de ser mera espectadora de informações veiculadas por mídias de massa (MENDOZA-CANO et al., 2017MENDOZA-CANO, O. et al. Cost-Effectiveness of the Strategies to Reduce the Incidence of Dengue in Colima, México. Int. J. Environ. Res. Public Health, v. 14, n. 8, p. 890, 2017.).
Wermelinger e Salles (2018WERMELINGER, E. D.; SALLES I. C. D. M. O sujeito preventivo das doenças transmitidas pelo Aedes aegypti nas campanhas publicitárias: obrigação, culpabilização e álibi para a responsabilidade do poder público. Physis Rev Saúde Coletiva, v. 28, n. 4, e280401, 2018.) afirmam que os conteúdos presentes nas comunicações das autoridades sanitárias, sejam campanhas, notícias ou discursos oficiais, portam, subliminarmente, uma mensagem de culpabilização das vítimas, o que tem sido muito assimilado pela população em geral. Esse julgamento aparece também frequentemente nas representações sociais dos profissionais da saúde, como demonstrou o estudo de Reis et al. (2013REIS, C. B.; ANDRADE, S. M. O.; CUNHA, R. V. Responsabilização do outro: discursos de enfermeiros da Estratégia Saúde da Família sobre ocorrência de dengue. Rev. Bras. Enferm. v. 66, n. 1, p. 74-8, 2013.) com enfermeiros das unidades de saúde da família, os quais replicavam a concepção de que a população tende ao comodismo do assistencialismo pelos poderes públicos, culpabilizando-a pelo insucesso da prevenção.
Andrade et al. (2020ANDRADE, N. F. et al. Análise das campanhas de prevenção às arboviroses dengue, zika e chikungunya do Ministério da Saúde na perspectiva da educação e comunicação em saúde. Saúde em debate, Rio de Janeiro, v. 44, n. 126, p. 871-880, 2020.) concordam com o aspecto de culpabilização, apontando sua presença nos cartazes produzidos para distribuição nacional e destacando também que, sobretudo depois do crescimento de casos de zika, houve transformações no caráter das mensagens, as quais passaram a se concentrar nas consequências e sequelas das doenças, negligenciando os processos de educação para a promoção da saúde. A angústia de uma das participantes da oficina de Fortaleza, em busca de mais informação sobre a zika, ilustra bastante esse aspecto identificado pelos autores.
Gonçalves (2015)GONCALVES, R. P. et al. Contribuições recentes sobre conhecimentos, atitudes e práticas da população brasileira acerca da dengue. Saúde e Sociedade, v. 24, n. 2, p. 578-593 2015. conclui que os métodos verticais de intervenção dos poderes públicos colocam a população no lugar de meros espectadores, dependentes das prescrições oficiais, e defende o fortalecimento da participação ativa da comunidade nos programas de prevenção, a utilização da rede de ensino como meio de manutenção e ampliação das atividades educativas, além da articulação das práticas preventivas oficiais com os saberes populares acumulados acerca do controle.
Nossa pesquisa foi realizada antes de estarmos vivendo o atual contexto de pandemia de Covid-19. Esse novo contexto impõe novos e grandes desafios também para o controle de outras doenças endêmicas no país. Existem ainda poucos estudos que examinam as consequências da concomitância das arboviroses urbanas endêmicas e da pandemia de Covid-19. O estudo ecológico conduzido por Vicente et al. (2021VICENTE, C. R. et al. Impact of concurrent epidemics of dengue, chikungunya, zika, and COVID-19. Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, v. 54, 2021.) no Espírito Santo demonstrou como a simultaneidade das epidemias, juntamente às perdas socioeconômicas da população, potencializou mortes em muitos municípios e reduziu, de forma significativa, a capacidade de resposta do sistema de saúde. Os autores também consideram que o confinamento das famílias nos domicílios contribuirá para o aumento da incidência das arboviroses, pelo fato de haver uma exposição mais prolongada aos possíveis focos intra e peridomiciliares.
Dantés et al. (2020DANTÉS, H. G. et al. Prevenção e controle das infecções transmitidas por Aedes no cenário pós-pandêmico da COVID-19: desafios e oportunidades para a região das Américas. Memórias do Instituto Oswaldo Cruz, v. 115, 2020.) acrescentam que, além de haver uma redução de visitas domiciliares por agentes de saúde, muitas famílias passam a ter receio de abrir sua casa aos agentes, causando prejuízos ao funcionamento do programa de vigilância e controle dos vetores. Essa situação demandaria maior estímulo à participação da comunidade, juntamente à incorporação de inovações estruturais que favoreçam o controle de ambas as epidemias, implicando um novo planejamento para execução de ações e desenvolvimento de estratégias de comunicação intersetoriais com instituições públicas e privadas, escolas e mídias em geral.
Ao final das oficinas, os participantes referiam ter apreendido mais informações úteis sobre as práticas preventivas e a necessidade de adequá-las à realidade local e a suas formas próprias de vida cotidiana, estando mais cientes da importância de uma atuação coletiva da comunidade e mais fortalecidos para cobrar dos poderes públicos suas responsabilidades para a proteção das comunidades.
Considerações finais
Apesar de muitos dos nossos achados já terem sido, em menor ou maior escala, apresentados por outros estudos, acreditamos, com base nas revisões de literatura do projeto, que esta é a primeira vez que achados dessa natureza são reunidos em um estudo qualitativo de escala nacional, envolvendo tantos municípios de todas as regiões do país.
Os 379 participantes das oficinas em todos os 16 municípios demonstraram levar a sério os riscos das arboviroses e a necessidade de combate ao Aedes aegypti. É necessário reconhecer, entretanto, que metodologias participativas em geral conseguem recrutar exatamente aqueles membros da comunidade mais motivados para o enfrentamento do problema, o que pode constituir um dos limites do estudo.
Ainda assim, foi possível concluir que em todas as regiões do país houve pouco conhecimento dos participantes sobre os critérios para identificação do mosquito e sobre suas fases de reprodução, sobre as doenças que transmitem, sobre o que fazer quando larvas são encontradas no domicílio e sobre a segurança e eficiência de inseticidas e repelentes, suas formas de utilização, sua eficácia e segurança.
Apesar de a natureza do nosso estudo não permitir generalizações, os frequentes relatos de execução de práticas não preconizadas nas campanhas ou não orientadas por agentes de saúde, bem como de práticas baseadas no conhecimento popular, demonstram haver esforço e compromisso de parte da população para combater as arboviroses, o que poderia ser mais bem aproveitado para ações conjuntas entre poderes públicos e população.
Serão necessários inquéritos de amplo alcance e com um número de participantes estatisticamente representativo da população brasileira para que se possa conhecer, com maior precisão, o nível de mobilização popular para as práticas preventivas, suas reivindicações às autoridades, suas facilidades e dificuldades para execução dos procedimentos preconizados e suas práticas de autocuidado. Estudos qualitativos de amplitude nacional, como o nosso, também contribuem para levantar questões visando a inquéritos como esse.
Entretanto, podemos afirmar que a aquisição de conhecimentos básicos capazes de induzir as comunidades à mudança de hábitos na direção de um controle vetorial mais eficiente não pode ficar restrita às campanhas de massa. Fazem-se necessárias ações educativas mais adequadas e efetivas, que possam esclarecer e orientar a população por meio de uma perspectiva que reconheça a variedade das formas de vida cotidianas e estejam adequadas aos contextos socioeconômicos e culturais de cada localidade.
Para isso, parece fundamental a construção de ações intersetoriais por meio de articulações entre unidades básicas de saúde, associações comunitárias, empresas e serviços públicos ou privados, escolas, lideranças locais e a comunidade em geral, no sentido de uma construção mais coletiva do enfrentamento das arboviroses, que reivindique também aquelas ações que são de responsabilidade evidente dos poderes públicos. Isso se tornou ainda mais presente neste contexto de simultaneidade de pandemia de Covid-19 e arboviroses endêmicas urbanas.1 1 J. A. Alves: processamento e análise dos dados, concepção, escrita e formatação do manuscrito. N. F. Andrade: planejamento e coleta de dados, processamento e análise dos dados, escrita e formatação do manuscrito. C. Lorenzo: planejamento da pesquisa, processamento e análise dos dados, concepção, escrita e formatação do manuscrito. A. V. M. Mendonça: concepção e planejamento da pesquisa, planejamento e coleta de dados, redação e formatação final do manuscrito. M. F. Sousa: concepção e planejamento da pesquisa, redação e formatação final do manuscrito.
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J. A. Alves: processamento e análise dos dados, concepção, escrita e formatação do manuscrito. N. F. Andrade: planejamento e coleta de dados, processamento e análise dos dados, escrita e formatação do manuscrito. C. Lorenzo: planejamento da pesquisa, processamento e análise dos dados, concepção, escrita e formatação do manuscrito. A. V. M. Mendonça: concepção e planejamento da pesquisa, planejamento e coleta de dados, redação e formatação final do manuscrito. M. F. Sousa: concepção e planejamento da pesquisa, redação e formatação final do manuscrito.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Out 2022 -
Data do Fascículo
2022
Histórico
-
Recebido
03 Maio 2021 -
Revisado
03 Maio 2021 -
Aceito
12 Nov 2021