Open-access Significados dos problemas mentais na infância: Quem olha? O que se olha? Como se olha?

Meanings of mental problems in childhood: Who looks? What are you looking at? How do you look at?

Resumo

Neste estudo, analisaram-se os significados dos problemas mentais na infância, segundo um grupo de profissionais de duas unidades de saúde da família (USF), destacando-se quem olha, o que se olha e como se olham esses problemas. Realizou-se pesquisa etnográfica, privilegiando-se entrevistas com roteiro semiestruturado com oito profissionais das duas USF, buscando revelar os “modelos nativos” sobre esses problemas. Os problemas mentais na infância eram identificados pelos profissionais, pais, vizinhos, professores, destacando-se o olhar de adultos. Agitação, agressividade, problemas na escola ou em casa, foram queixas classificadoras de uma criança normal ou anormal. Recorriam a profissionais especializados, outras instituições e serviços de saúde para o tratamento às crianças. Para os entrevistados, os problemas mentais na infância estão vinculados a questões familiares, principalmente como causa desses problemas. A complexidade desses problemas, envolvendo aspectos socioculturais, evidencia a importância de construção de práticas fundamentadas no conhecimento interdisciplinar, como incorporado nas políticas de saúde mental infantil e que tem contribuído ao fortalecimento e supressão de lacunas existentes na assistência às crianças, buscando abarcar a complexidade de suas experiências de sofrimento, associadas a situações de vida marcadas pela vulnerabilidade e precariedades sociais, reconhecendo-se crianças como sujeitos dessas políticas.

Palavras-Chave: Saúde mental; Criança; Estratégia Saúde da Família; Interdisciplinaridade; Pesquisa qualitativa

Abstract

This study analyzed the meanings of mental problems in childhood, according to a group of professionals from two family health units (USF), highlighting who looks at these problems, what they look at and how they look at them. Ethnographic research was carried out, focusing on interviews with a semi-structured script with eight professionals from the two USF, seeking to reveal the "native models" about these problems. The mental problems in childhood were identified by professionals, parents, neighbors, teachers, highlighting the adults' views. Agitation, aggressiveness, problems at school or at home, were complaints that classified a "normal" or "abnormal" child. They resorted to specialized professionals, other institutions, and health services for children’s treatment. For the interviewees, mental problems in childhood are linked to family issues, mainly as a cause of these problems. The complexity of these problems, involving socio-cultural aspects, highlights the importance of the construction of practices based on interdisciplinary knowledge, as incorporated in child mental health policies and that has contributed to the strengthening and suppression of existing gaps in the assistance to children, seeking to encompass the complexity of their suffering experiences, associated with life situations marked by vulnerability and social precariousness, recognising children as subjects of these policies.

Keywords: Mental health; Child; Family Health Strategy; Interdisciplinarity; Qualitative research

Introdução

Estudos recentes têm chamado a atenção para a relevância dos problemas mentais na infância. Estimativas apontam que uma entre quatro a cinco crianças e adolescentes no mundo apresenta algum transtorno mental, definido segundo duas grandes categorias: transtornos do desenvolvimento psicológico e transtornos de comportamento e emocionais. Este grupo de transtornos pode manifestar-se precocemente, durante os primeiros cinco anos de vida, podendo vir acompanhado de um déficit cognitivo, atraso específico do desenvolvimento da motricidade ou da linguagem, daí sua relevância (WHO, 2012).

Crianças e adolescentes constituem um quarto da população mundial, com 85% vivendo em países de baixa e média renda. Globalmente, os transtornos mentais são a principal causa de déficit ou atraso no desenvolvimento nessa população. A cobertura dos dados de prevalência é, entretanto, pouco precisa, referindo-se à proporção da população-alvo (idades de 5 a 17 anos) representada pelos dados disponíveis (ERSKINE et al., 2017; UNICEF, 2020).

Em uma revisão de estudos populacionais de saúde mental em crianças, em países da América Latina (DUARTE et al., 2003; KOHN, 2018; SOUZA et al., 2021), identificou-se uma porcentagem de crianças e adolescentes com problemas mentais semelhante às porcentagens encontradas em outros países desenvolvidos (15 a 20%). Os transtornos mentais e por uso de substâncias foram responsáveis por 10,5% da carga global de doenças nas Américas. Em que pese a relevância dos transtornos mentais entre crianças e adolescentes, a falta de tratamento a esses grupos nas Américas é alarmante, variando de 64% a 86%. A necessidade de abordar os serviços de saúde mental e melhorar o acesso aos cuidados para crianças tem recebido pouca atenção, a infraestrutura para cuidados de saúde mental infantil carece de recursos materiais e, em particular na atenção primária, faltam profissionais e programas de treinamento que possam identificar problemas mentais em crianças (TANAKA; RIBEIRO, 2009; TEIXEIRA; COUTO; DELGADO, 2017).

Se os dados referentes à identificação e tratamento dos problemas mentais na infância nas Américas são preocupantes, como mencionado, essa é uma situação que também tem merecido a atenção de pesquisadores em alguns países desenvolvidos. Na França, por exemplo, Chee et al. (2012) afirmam que o diagnóstico e tratamento da depressão em criança estão entre as prioridades de saúde pública, embora os estudos epidemiológicos sejam escassos e não haja indicadores de prevalência de problemas mentais na população de crianças naquele país. Além dos dados de prevalência, destacam-se na literatura a importância de identificação, tratamento e cuidados aos problemas mentais na infância, bem como a avaliação de suas consequências na vida das crianças.

Nesse breve quadro sobre a situação dos problemas mentais na infância, destacam-se questões relacionadas aos contextos em que vivem as crianças. Alguns estudos apontam que o enfretamento desses problemas vai além de fatores biológicos, sendo o conhecimento do contexto sociocultural de grande importância (TANAKA; RIBEIRO, 2009; NAKAMURA; BARBARINI, 2019), pois nele podem se revelar eventos de vida estressantes associados a relações conflituosas, a aspectos ambientais, socioeconômicos e dificuldades de acesso a serviços fundamentais ao bem-estar das crianças, como a saúde e educação (SILVA et al., 2020).

Da identificação do problema às estratégias de tratamento e cuidados propostos, devem-se considerar as necessidades particulares das crianças e os vários atores envolvidos nesse processo. Nakamura e Barbarini (2019) propõem que comportamentos infantis sejam pensados para além de sua vinculação a problemas mentais na infância, questionando comportamentos problemáticos, perturbadores ou não conformes, buscando compreender quais são os conceitos relacionados às categorias classificatórias dos comportamentos infantis e apresentados como demandas de cuidado, tanto no discurso do senso comum quanto no discurso biomédico. Um exemplo dessa situação pode ser encontrado no diagnóstico do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDA/H), no qual Polanczyk et al. (2014), em uma revisão crítica dos elementos essenciais ao diagnóstico do TDAH, falam sobre os vários atores (criança, pais e professores) responsáveis pelas informações acerca dos comportamentos das crianças. Segundo os autores, as crianças geralmente têm dificuldades para expressar verbalmente o que estão sentindo, sendo primordial a informação advinda dos pais sobre o histórico do desenvolvimento dos sintomas. Em relação aos professores, os autores mencionam que podem potencializar os sintomas, caso a criança tenha um comportamento que altera ou rompe um comportamento considerado normal.

Parente e Silvério (2019) e Paula et al. (2007) ressaltam a complexidade da avaliação de crianças com problemas mentais, principalmente porque as informações sobre os comportamentos infantis são obtidas com os vários adultos (pais, profissionais da saúde e professores) e com a própria criança.

Parente e Silvério (2019) alertam para o fato de que, na identificação dos problemas mentais em crianças, aparecem desafios que estão além da constatação de um transtorno, pois não se restringem ao indivíduo/criança, mas dependem da rede de relações sociais e dos contextos socioculturais em que elas se inserem, bem como de conceitos que definem e classificam certos comportamentos infantis, que passam a demandar cuidados (NAKAMURA; BARBARINI, 2019). Nesse sentido, parte-se da ideia geral de problemas mentais na infância, como categoria classificatória de certos comportamentos infantis, buscando-se, da perspectiva antropológica, os diferentes significados atribuídos a esses problemas.

É por esse motivo que se optou, nesse trabalho, pela utilização do termo “problema mental na infância”, tomado como termo geral, mas revelador de significados que podem expressar formas variadas de sofrimento social, evitando-se termos mais comumente associados aos discursos biomédico, da psiquiatria, da psicologia ou da psicanálise, nos quais se observa, no geral, um juízo sobre a realidade ou comportamentos da criança, inserindo-os num conjunto de transtornos, síndromes e patologias. O termo “problema mental na infância” dialoga, de um lado, com a categoria antropológica de sofrimento social, definida como “uma variada gama de problemas vivenciados em decorrência da confluência de poderes políticos e econômicos e de seus danos” (RODRIGUES, 2020, p. 133). De outro lado, ao buscar os significados atribuídos a problemas mentais na infância, dialoga-se com as noções de sofrimento psíquico, emocional ou psicossocial, do campo da saúde mental, no qual as experiências de sofrimento revelam situações da vida relacionadas à vulnerabilidade e precariedade social (FARINHUK; SAVARIS; FRANCO, 2021; SOUZA; PANÚNCIO-PINTO; FIORATI, 2019). Essas noções de sofrimento convergem enquanto situações vividas em contextos particulares, as quais limitam a capacidade de ação dos sujeitos, incluindo-se as crianças, cujos comportamentos, emoções, sentimentos podem ser classificados como problemáticos, perturbadores ou não conformes, como apontado por Nakamura e Barbarini (2019).

Neste estudo pretendeu-se ampliar a compreensão sobre o que se considera problemático em relação aos comportamentos infantis, buscando analisar os significados dos problemas mentais na infância, na visão de um grupo de profissionais da atenção básica, vinculados à estratégia de saúde da família (ESF), em uma cidade do sudoeste de Minas Gerais.

Neste sentido, a ênfase ao diálogo interdisciplinar entre a Antropologia e a Saúde Mental, visou uma compreensão mais aprofundada do processo saúde/doença na infância, privilegiando-se o aspecto sociocultural nesse campo, sem, obviamente, desvalorizar ou desconsiderar o modelo biomédico. Ao adotar essa perspectiva, o objetivo do estudo foi compreender os significados dos problemas mentais na infância, destacando-se quem olha, o que se olha e como se olham esses problemas.

Método

Para alcançar os objetivos da pesquisa foi feito um estudo etnográfico. A utilização desse método evidenciou a importância do trabalho de campo na pesquisa, conforme Malinowski (1978), pois a realidade pode ser apresentada de maneira ímpar e única, a partir da sua interpretação pelo pesquisador. A partir da aproximação com o campo, os dados coletados, obtidos por meio de entrevistas em profundidade, foram sistematizados e articulados para a elaboração de um conhecimento amplo e profundo sobre tal realidade, evidenciando experiências concretas e não ideias generalizadas (NAKAMURA; SANTOS, 2007).

Buscou-se, assim, explicar como as experiências e dinâmicas em contextos particulares constituem teias de significados, segundo a concepção de que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, sendo a cultura o contexto em que os vários acontecimentos sociais são descritos com densidade, ou seja, adquirem significados (GEERTZ, 1989).

Tomando como referencial teórico-metodológico os conceitos de cultura e significados, estreitamente vinculados, buscou-se na pesquisa realizada com os profissionais de duas unidades de saúde da família (USF) em uma cidade do sudoeste de Minas Gerais, uma delas localizada na periferia e a outra na região central da cidade, compreender as experiências particulares desses profissionais em relação aos problemas mentais na infância.

Foram efetuadas visitas às duas USF e, desde o primeiro encontro, buscou-se observar os atores sociais, em especial profissionais de saúde, nesses diferentes espaços, a fim de se aproximar dos contextos pesquisados. Em que pese a importância da observação participante no método etnográfico, para a produção de dados, privilegiou-se entrevistas com roteiro semiestruturado, realizadas com os profissionais das duas USF. As entrevistas foram consideradas fundamentais à obtenção dos significados atribuídos aos problemas mentais na infância, dado que possibilitariam “ouvir” os profissionais participantes da pesquisa, acessando suas próprias explicações ou o que os antropólogos chamam de "modelo nativo", ou ainda, segundo Malinowski (1978), o “ponto de vista do nativo”, considerado um dos princípios do trabalho de campo antropológico (NAVES, 2007, 2007). Segundo Cardoso de Oliveira (1996, p. 19), “tais explicações nativas só poderiam ser obtidas, por meio da "entrevista", portanto, de um Ouvir todo especial. Mas, para isso, há de se saber Ouvir.”

O referencial teórico-metodológico que orientou a pesquisa, a partir das contribuições da hermenêutica, possibilitou o acesso à “teia de significados” (GEERTZ, 1989) por meio de entrevistas em profundidade, as quais, no contexto da pesquisa etnográfica, pressupõem o “saber ouvir” ou um entendimento diferente, no sentido de que “os textos dos entrevistados [são] como versões relativas a alguém ou a alguma coisa” (NAVES, 2007, P. 162). As entrevistas constituem, assim, uma importante estratégia em pesquisas etnográficas, “como forma de procurar os significados que os sujeitos atribuem ao seu comportamento e não em busca do comportamento per se” (VIEIRA; VIEIRA, 2018, p. 36). A entrevista etnográfica é ressaltada por vários autores como uma situação inédita da vida social, uma prática discursiva cujos dados são construídos no encontro etnográfico de caráter dialógico entre desconhecidos (VIEIRA; VIEIRA, 2018; BEAUD, 2018; FERREIRA, 2014; PIZARRO, 2014; NAVES, 2007). Nesse sentido, “o que se conta na situação de entrevista acaba por ser sempre um conto editado pelo entrevistador, ativamente implicado na composição das narrativas que dão conta das experiências e dos sentidos” (FERREIRA, 2014, p. 985) sobre certos fenômenos ou acontecimentos da vida.

Os sujeitos da pesquisa foram profissionais da equipe (médico, enfermeiro ou técnico de enfermagem, agente de saúde) que tivessem, no mínimo, um ano de atuação no serviço. O roteiro baseou-se na compreensão de quem olha o problema mental, o que se olha e como se olha uma criança com problema mental, bem como da opinião, juízo e entendimento sobre os problemas mentais na infância, segundo os profissionais da ESF.

Por conhecer o tempo de serviço de cada profissional, a enfermeira coordenadora da ESF auxiliou na identificação dos profissionais que seriam convidados a participar da pesquisa. Dentre os profissionais contatados, aceitaram participar da pesquisa oito profissionais, sendo dois médicos, duas enfermeiras, duas técnicas de enfermagem e duas ACS, ambas com o ensino médio completo. Em cada USF, na região central e na periferia, foi entrevistado um profissional de cada categoria descrita.

As entrevistas ocorreram em espaços que propiciavam, unicamente, a presença do pesquisador e participante, sendo um espaço isolado e tranquilo para que os participantes se sentissem à vontade; e foram audiogravadas com duração média de 45 minutos, transcritas e analisadas, na perspectiva da Antropologia Interpretativa (GEERTZ, 1989).

Na análise, buscou-se identificar os significados dos problemas mentais na infância, a partir de uma leitura atenta das entrevistas, cabendo ao pesquisador interpretar a cultura como um texto, penetrando em suas emaranhadas estruturas significativas. As entrevistas foram lidas exaustivamente, depois se buscou identificar nas falas dos entrevistados aspectos que possibilitassem desvelar os sentidos atribuídos aos principais eixos de análise, para compreender quem olha, o que se olha e como se olham os problemas mentais na infância. Portanto, propôs-se, na análise, a interpretação dos significados presentes nos discursos dos profissionais das equipes de saúde, buscando compreender o que fazia sentido para eles ao olhar uma criança, identificando nela e em seu comportamento algum tipo de problema mental.

Aspectos éticos

A pesquisa seguiu as normas definidas pela Resolução 466/12 do CNS/MS, destinada a pesquisas que envolvem seres humanos. Todos os participantes foram esclarecidos a respeito da natureza da pesquisa e convidados a assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Antes do encaminhamento para o Comitê de Ética em Pesquisa, o projeto foi apresentado e explicado aos coordenadores dos serviços, para obtenção da autorização para a realização da pesquisa.

O projeto foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo (CAAE: 45807515.7.0000.5505).

Resultados

Quem olha e quem percebe o problema mental na criança

Observou-se que o olhar sobre os comportamentos infantis, no geral, vinha dos pais ou da escola, que falavam sobre suas percepções aos agentes comunitários de saúde (ACS), os quais informavam às coordenadoras (enfermeiras) de suas respectivas USF.

O modo como os ACS percebiam os problemas diferia nas equipes pesquisadas. Na região central, muitas vezes, o ACS era informado sobre esses problemas por meio de vizinhos. Segundo esse profissional, a família com criança que apresentava algum tipo de problema mental não buscava apoio na atenção básica por vergonha e por terem plano de saúde. Na região da periferia, por outro lado, os ACS buscavam entender o problema, a partir da compreensão do contexto familiar e apoiar os pais a buscarem ajuda, caso necessitassem. Essas informações eram passadas à USF, que se envolvia no entendimento de cada caso.

Na ESF da periferia outros profissionais, não apenas o ACS, buscavam entender os problemas das crianças junto às famílias em seus contextos particulares.

Quando a gente trabalha com uma população adscrita, você já conhece o histórico da família... já sabe como é o pai, como é a mãe, já sabe como que é a avó, sabe quais os medicamentos que a família usa, então você conhece o ambiente familiar. É muito mais do que a criança chegar sintomático aqui...então a gente já tem um contato prévio com o histórico...então eu acho que isso ajuda muito. Então se a gente ver que o contexto não ajuda aí a gente já pede auxílio pra essas pessoas mais especializadas pra que ajude a caminhar com aquela criança (Enfermeira da USF da periferia).

Percebeu-se, no discurso de alguns profissionais, a menção à percepção dos pais, particularmente da mãe, associada a queixas da professora sobre crianças agressivas, irritadas e nervosas. Notou-se, assim, uma diversidade de contextos e atores sociais responsáveis pela identificação dos problemas mentais na infância. Não apenas os ACS, mas outros profissionais identificavam os problemas; também os pais, vizinhos da família, a comunidade escolar, como professores, pedagogos, colegas de classe, colaboravam na percepção de certos comportamentos infantis associados a problemas mentais.

Ressalta-se que a criança e seus comportamentos eram objetos do olhar de adultos.

O que se olha

Neste eixo de análise, ressaltaram-se as razões pelas quais os familiares ou responsáveis buscaram a USF, assim como problemas identificados por outros atores sociais (profissionais da escola e da saúde), as principais queixas e demandas relacionadas aos comportamentos infantis.

Os profissionais das duas ESF referiam-se a queixas encaminhadas principalmente pela escola, ressaltando problemas de comportamento nas crianças atendidas: “problema de conduta”, “agressiva”, “inquieta”, “não tem paciência”, “sem limites”, “dando muito problema”, “com hiperatividade”. A escola, diante de um aluno com dificuldades, encaminhava-o para o serviço de saúde, onde deveria ser tratado.

Então tem muita criança em acompanhamento psicológico... muita criança com hiperatividade na escola...a escola mesmo manda pra gente...fala que a criança não presta atenção, não faz isso...sugere avaliação médica (Enfermeira da UBS da periferia)

Ressalta-se que os ACS das duas ESF destacaram-se como figuras importantes na identificação dos problemas, como já mencionado, pois muitas vezes as queixas de problemas em crianças (“nervosa”, “agitada”) estavam relacionadas a problemas familiares (“conflito familiar”):

[...] pelo meu jeito de observar, ta mais ligada a parte familiar, sabe? Acho que os conflitos familiares...acho que atinge mais a criança e às vezes o adulto nem percebe [...] (ACS da USF da periferia)

Agitação, agressividade, dificuldade de aprendizagem, ir mal na escola, ser nervoso e agitado, ter problema na casa, foram as principais queixas para uma criança ser considerada “normal” ou “anormal”, sendo essa classificação orientadora, no geral, para um diagnóstico e um tratamento especializado.

Como se olha

Identificaram-se neste eixo as práticas dos profissionais das ESF e os encaminhamentos realizados para os problemas e queixas apresentadas sobre os comportamentos problemáticos observados em crianças.

Os profissionais não médicos, no geral, ao receberem a queixa, observavam se havia ou não algum tipo de alteração, por meio de avaliação da criança. Essa avaliação era descrita em relatórios, para fundamentar a avaliação, para posterior encaminhamento a instituições ou médicos especialistas: “[...] a gente vê alguma alteração na puericultura e aí a gente pode encaminhar para APAE. A gente pode fazer esse encaminhamento para a doutora na APAE para ela avaliar e dar o seguimento.” (Enfermeira da USF da periferia)

No geral, as práticas profissionais nas duas USF reiteravam o conhecimento e a prática biomédica, indicando encaminhamentos dos problemas a especialistas, mesmo em relação à ‘falta de limites’ ou ‘desenvolvimento escolar’: “às vezes a criança não está desenvolvendo bem na escola, está dando muito problema... aí o doutor encaminha para o psicólogo.” (Técnica de Enfermagem da USF do centro)

Mesmo na USF da periferia, onde as questões familiares e do contexto das crianças pareciam ser mais valorizadas, inclusive pelo reconhecimento do papel do ACS na aproximação com as famílias, notou-se a importância atribuída aos profissionais especializados:

[...] então a gente já tem um contato prévio com o histórico, então eu acho que isso ajuda muito. Então se a gente ver que o contexto não ajuda aí a gente já pede auxílio para essas pessoas mais especializadas pra que ajude a caminhar com aquela criança. (Enfermeira da UBS da periferia)

Em relação aos encaminhamentos propostos notou-se, além da tendência dos profissionais a recorrer a profissionais especializados (psicólogos e psiquiatras), a busca a outras instituições (APAE) e serviços de saúde, como o Núcleo Ampliado de Saúde da Família (NASF), para o tratamento a crianças com problemas mentais.

As questões apontadas pelos entrevistados quanto às formas como lidavam com os problemas de saúde mental em crianças, segundo os encaminhamentos feitos a outros profissionais e serviços, levaram à reflexão sobre o modo como compreendem esses problemas.

O que são os problemas mentais na infância

Neste último eixo de análise, foram destacadas a visão dos profissionais de saúde sobre os problemas mentais na infância.

No geral, os entrevistados das duas USF destacam que os problemas mentais na infância estão estreitamente vinculados à questão familiar, principalmente como causa desses problemas.

Tem um problema importante que é a família – é daí que depende tudo. Porque se essa criança tem um pai bom e uma mãe boa essa criança não tem o porquê de ter problema. Agora, se esse pai e essa mãe que não está andando certo, pode acontecer que essa criança nasceu com algum problema..., então aí vai carregando um probleminha...então essa doença mental...eu acho que continua! (Médico da USF do centro)

Tem a parte genética... pode vir a ter. Mas eu acho que todos os problemas causados mentalmente para as crianças vêm do contexto familiar. Vem de problema familiar. Porque a criança, ela é muito sensível, é um ser muito sensível então tudo o que acontece no contexto acaba afetando a criança. (Enfermeira da USF da periferia)

Os ACS demonstram opiniões próximas a desses profissionais, afirmando que os problemas mentais advêm de algum problema familiar e que os pais não estão observando suas crianças por preocupações do trabalho, das ocupações do dia a dia.

Além das questões familiares, para esses profissionais, os problemas mentais na infância revelam preconceito, pela falta de conscientização sobre esse tipo de problemas em crianças, muitas vezes distantes, também, da atuação desses profissionais.

[...] é certo que os problemas na infância preocupam muito...deve ser uma preocupação em todas as instâncias, desde a equipe de saúde até o governo [...] Porque há um problema de cultura das famílias. Eles acham que é um problema transitório do filho e que não precisam de ajuda. E, por isso, não chegam ao médico, não chega ao PSF. Eu acho que o principal problema é esse...a família acha que é transitório, não levam ao PSF e não procuram ajuda. (Médico da USF da periferia)

Essas diferentes opiniões e concepções sobre problemas mentais revelam diferentes significados e formas de lidar com esses problemas. Abre-se assim uma grande discussão sobre a maneira de como se olha e o que se olha em relação aos problemas mentais na infância, que envolvem situações que estão dentro do contexto, do ambiente e nas interrelações da criança.

Discussão

A relevância dos problemas de saúde mental na infância é evidenciada em estudos que apontam a prevalência desses problemas em diferentes contextos. Ressalta-se, entretanto, a complexidade na identificação e tratamento desses problemas, principalmente quando se consideram aspectos relacionados aos diferentes contextos socioculturais, fundamentais à compreensão do fenômeno (THIENGO; CAVALCANTE; LOVISI, 2014; CAVALCANTE; JORGE; SANTOS, 2012), além dos vários atores sociais envolvidos em sua identificação, como evidenciado na análise das entrevistas.

A percepção de um problema de saúde mental na criança (quem olha), vem, geralmente, do olhar dos pais ou da escola, portanto de adultos. Esses olhares foram expressos por meio de desconfortos aos ACS, que os transmitiram a outros profissionais das USF, evidenciando que a classificação dos comportamentos infantis como problemáticos não é uma função exclusivamente de médicos ou profissionais da saúde, mas revela uma organização necessária das experiências entre adultos e crianças (NAKAMURA; BARBARINI, 2019).

Ao se desconsiderar os contextos nos quais esses problemas surgem, a influência das questões de geração, gênero, raça, classe social e suas consequências quanto às possibilidades de acesso a bens e serviços, pode-se incorrer numa simplificação dos fatores ligados aos problemas mentais na infância, levando a um aumento de diagnósticos e terapêuticas (GUARIDO, 2007; DALGALARRONDO, 2018), até mesmo do número de crianças medicadas precocemente.

Esses autores ressaltam a importância de aspectos relacionados a contextos particulares, indicando o diálogo necessário entre as ciências sociais e humanas e as ciências da saúde, para compreender e interpretar a saúde mental de crianças, a partir da sua relação com a sociedade, com a cultura, e não somente com a eficiência e eficácia (diagnósticos, intervenção, serviços) atribuídas ao modelo biomédico.

Em relação a “o que se olha”, notou-se que as queixas apresentadas, geralmente, pelas famílias ou pelas escolas, baseiam em percepções do que se considerada “normal” ou “anormal” em certos comportamentos infantis, sendo essa classificação um guia para um possível diagnóstico e tratamento especializado.

O sentido de levar uma criança à USF para buscar auxílio parece estar sustentado na ideia de uma infância “normal”, do que é socialmente aceito. Entende-se que olhar as crianças com problemas mentais seja algo recomendado para evitar, no mínimo, a progressão de um possível transtorno. Porém, a classificação, a avaliação e o diagnóstico devem exigir prudência por parte dos profissionais, uma vez que se podem constatar diferenças pequenas e tênues entre problemas de conduta, problemas emocionais, sociais e características da criança, em contextos particulares.

Algumas crianças têm, incontestavelmente, melhoras pela prescrição de um tratamento medicamentoso, devendo-se perguntar, também, acerca de suas trajetórias na família e em contextos particulares. Parece-nos ser uma reflexão evitada pelo modelo biomédico, mas amplamente apontada e valorizada nos discursos de vários profissionais das equipes de saúde, em especial dos ACS.

Guarido (2007) afirma que não se deve mais sujeitar o cuidado à criança com problema mental somente ao modelo biomédico e ao discurso psiquiátrico, libertando as crianças dos destinos previstos nos prognósticos médicos, pois parecem simplificar outros fatores relacionados, como o contexto sociocultural e a rede de relações sociais onde as crianças estão inseridas.

A aproximação com a perspectiva antropológica tem se mostrado fundamental à análise aprofundada de questões relacionadas aos problemas de saúde mental. Segundo Nakamura e Santos (2007), os problemas mentais na infância apresentam-se como um objeto complexo, na medida em que, mesmo nas avaliações psiquiátricas, a possibilidade de diagnóstico e tratamento, a não ser em casos específicos, não se restringe ao indivíduo/criança, mas depende da rede de relações sociais em que as crianças se inserem, sobretudo, dos adultos que as observam e que identificam algo diferente e estranho em seus comportamentos.

Uma questão que chama atenção é a discussão sobre o que vem sendo olhado nas crianças com problemas mentais – a normalidade e anormalidade dos comportamentos infantis, os estereótipos positivos ou negativos. O modelo biomédico hegemônico estabelece a normalidade da infância e, ao fazer isto, nega a infância às crianças, julgando seus modos como não-infantis, ou seja, como de uma infância errada, a ser corrigida (COHN, 2000; NAKAMURA; BARBARINI, 2019; ESPER, 2020).

A maneira “como se olham” os problemas mentais evidenciaram como os diferentes olhares se constituem, desde a formação e atuação desses profissionais. Tanaka e Ribeiro (2009) apontam que no planejamento das ações destinadas à melhoria da qualidade da assistência à saúde mental da infância na atenção básica, deve haver mudanças na formação profissional do médico, tanto na graduação como na pós-graduação, que permitam aperfeiçoar sua capacidade de fazer diagnósticos precoces, realizar intervenções pertinentes à atenção básica e encaminhamentos oportunos e com corresponsabilização. Neste sentido, Fernandes et al. (2020) ressaltam que a implementação e operacionalização da Atenção Psicossocial em diferentes dimensões exige investimentos coletivos, práticas inovadoras, envolvimento e persistência dos agentes de cuidado. As autoras questionam o quanto há, de fato, uma Atenção Psicossocial para crianças no âmbito do SUS que responda às diferentes demandas e especificidades dos sujeitos, sem contar com uma expansão real de aportes tanto na área da saúde, educação, dentre outras (FERNANDES et al., 2020).

Observou-se nas falas dos profissionais entrevistados o reconhecimento do saber biomédico, quando recorrem, no geral, aos conhecimentos de profissionais da área “psi” ou de outras áreas médicas, para lidar com os problemas mentais em crianças. Entende-se, portanto, que a psicologização e a patologização são fenômenos cada vez mais recorrentes e que precisam ser analisados e interpretados em relação ao modo “como se olham” os problemas mentais na infância.

A psicologização nos revela certa prática de buscar explicações e resoluções de todos os problemas numa perspectiva unidirecional, nem sempre se levando em conta os aspectos políticos, sociais e culturais. No geral, diz respeito à institucionalização e difusão dos chamados saberes “psi”, tal como entendidos no contexto atual, marcado pela exigência de cientificidade (ODA, 2017). Complementarmente, na patologização busca-se transformar em patologias os comportamentos infantis que se distanciam do modelo padrão/normal, imposto pela sociedade de adultos, podendo levar à medicalização de algumas crianças (NAKAMURA; BARBARINI, 2019).

Entende-se que a patologização, psicologização e medicalização são questões que podem estar ligadas ao saber-fazer dos profissionais. Não se trata de negar diagnósticos, mas compreender e considerar a dimensão sociocultural, na qual se integram conceitos, conhecimentos, práticas, pessoas (humanos) e objetos (não-humanos) voltados para reflexões dos problemas mentais na infância.

Finalmente, ao definirem “o que são problemas mentais na infância”, os profissionais entrevistados destacaram, no geral, que esses problemas estão estreitamente vinculados à questão familiar, principalmente como causa desses problemas.

Casarin (2007), Santos e Coelho (2017) advogam que os pais ou responsáveis são incumbidos pela sustentação emocional dos filhos, para que estes encontrem sucesso escolar, equilíbrio interno e orientando-os para lidar com as frustrações inerentes a todo ser humano. Um ambiente desfavorável impulsiona a agressividade, a irritabilidade e o sentimento de incapacidade e, consequentemente, o comportamento antissocial.

Assim, fica clara a necessidade de os profissionais de saúde compreender o contexto familiar, num olhar amplo e sem generalizações, respeitando as particularidades. Cavalcante, Jorge e Santos (2012), ao buscar compreender sobre o apoio matricial de crianças com problemas mentais, lançaram a questão: “onde está a criança?”, obtendo dos profissionais respostas inseguras e permeadas por muitos termos como talvez, provavelmente, tendo a nítida sensação de que fora a primeira vez que os entrevistados haviam pensado sobre o tema. Em nosso estudo, a criança também pareceu não ter visibilidade na ESF, embora sua atenção centre-se na família. Percebeu-se, assim, no discurso dos profissionais uma dicotomia entre suas práticas e discursos acerca dos problemas mentais na infância, evidenciando-se um agir técnico e voltado ao modelo biomédico, aos quais pareceram integrar elementos do saber especializado e do saber informal.

Neste trabalho, ao privilegiar-se os aspectos socioculturais, considerou-se como se constituem os significados atribuídos a problemas mentais em crianças, pois, ao observar e identificar algo estranho em suas crianças, os adultos buscam atendimento médico, nem sempre sendo considerados os aspectos socioculturais e a complexidade desses problemas. Nesse sentido, a política de cuidados não visa à correção ou eliminação de sintomas, mas trabalha para otimizar o funcionamento mental das crianças por meio de sua introdução precoce num sistema onde as categorias de certo e errado, justo e injusto, permitido e proibido são socialmente definidos (EHRENBERG, 2007; TANAKA, RIBEIRO, 2009; DALGALARRONDO, 2018; NAKAMURA, BARBARINI, 2019; ESPER, 2020).

Observou-se, na análise das entrevistas, que os olhares direcionados às crianças com problemas mentais são constructos com base nas experiências do dia a dia, na relação com outros atores sociais, que partilham conhecimentos e ideias, formais ou informais.

Destaca-se, portanto, a necessidade de reflexões sobre a intercomunicação na equipe, como apontam Nogueira e Rodrigues (2015), a fim de favorecer o trabalho coletivo, fundamental na ESF, na medida em que diferenças hierárquicas, poder e conflitos podem comprometer a qualidade do cuidado. A integração entre ACS, mais próximos das crianças e seus familiares, e os demais profissionais, parece-nos fundamental, não apenas à identificação dos problemas mentais, mas para a proposição de formas de intervenção que considerem os diferentes contextos socioculturais. É necessário que todos os profissionais da equipe participem diretamente do cuidado à criança, conhecendo seu contexto e acompanhando seu processo (ROHDE et al., 2003; PAULA et al., 2007; TANAKA; RIBEIRO, 2009; ESPER, 2020).

Contrapondo-se à perspectiva voltada ao cuidado especializado, Duarte (2013) ressalta como um aspecto importante da ESF a possibilidade valiosa de identificar crianças com problemas mentais e realizar intervenções básicas, especialmente em casos mais leves, através dos ACS, que atendem um número específico de famílias em microáreas. A atuação localizada permite ao ACS estabelecer relações de cuidado e atenção a essa população e “isso, em termos de acesso, não tem preço” (DUARTE, 2013, p. 7). Por outro lado, o trabalho em rede com o NASF, como evidenciado na análise, é fundamental.

Na aproximação de concepções biomédica e cultural, de uma perspectiva antropológica, é importante que os profissionais considerem nos processos de saúde e doença suas experiências pessoal e grupal, crenças, percepções e práticas, social e historicamente constituídas (AMADIGI, 2009; ESPER, 2020).

Os cuidados à saúde correspondem a ações situadas e organizadas de acordo com julgamento sobre o desenvolvimento humano, o processo saúde e doença, e o contexto sociocultural onde os sujeitos estão inseridos (PEGORARO; CALDANA, 2008). Aponta-se, assim, a complexidade dos problemas mentais na infância, enquanto fenômenos construídos na vida cotidiana, na conexão entre o meio social e cultural, a serem considerados nas práticas profissionais. Além disso, ressalta-se, segundo Menezes (2013) e Esper (2020), que a saúde mental de crianças merece atenção pela necessidade de prevenção, promoção e ações a essas crianças. Esse conjunto de ações inclui, no entanto, a necessidade urgente de se repensar os programas de intervenção, inserindo nas políticas públicas ações de prevenção e mudanças culturais, que olhem as crianças como atores e protagonistas no seu processo de desenvolvimento e crescimento, não unicamente dependentes do olhar de adultos.

Em que pesem as questões apontadas, alguns avanços são observados no campo da saúde mental infantil, segundo Braga e D’Oliveira (2019), com destaque para a criação e expansão dos serviços voltados a essa população, garantidos por meio de leis, mobilizações sociais e políticas a fim de garantir a escuta e a voz de crianças com problemas mentais. A constituição de políticas públicas e de modos de atenção à saúde mental infantil mostra-se como um processo contínuo de promoção, construção e efetivação de direitos (BRAGA; D’OLIVEIRA, 2019). Os avanços dessas políticas têm contribuído ao fortalecimento e supressão de lacunas existentes na assistência às crianças, identificadas pelo saber biomédico como crianças com problemas mentais, abarcando, de uma perspectiva psicossocial, a complexidade de suas experiências de sofrimento, associadas a situações de vida, relações sociais e contextos, marcados pela vulnerabilidade e precariedades sociais.

Considerações finais

Este estudo buscou compreender os significados dos problemas mentais na infância, segundo os discursos e as práticas de profissionais da ESF. Para isto, três perguntas alicerçaram os objetivos desse trabalho: quem olha, o que se olha e como se olham os problemas mentais na infância.

Observou-se a participação da família e da escola na vida da criança, num fluxo que marca a trajetória da criança, iniciando-se na escola, que pede para os pais observarem os comportamentos infantis, os quais, por sua vez, pedem auxílio aos profissionais da saúde, que encaminham a criança preferencialmente aos profissionais especialistas.

Esse fluxo, no entanto, não é linear, pois a criança com problema mental tem várias necessidades, exigindo uma atenção especial. Ela precisa ser notada e reconhecida como um sujeito singular, que tem direitos, necessidades sociais e culturais. Por isso, entende-se ser inevitável a ampliação dos olhares dos profissionais às crianças, tanto na perspectiva do diálogo interdisciplinar, como ressaltado, como na proposta interprofissional do trabalho em rede.

Dada a complexidade dos problemas mentais na infância, envolvendo aspectos socioculturais de quem olha, o que se olha e como se olham esses problemas, espera-se que os resultados apresentados neste trabalho corroborem para construção de práticas fundamentadas no conhecimento interdisciplinar, em especial no diálogo entre as Ciências Sociais e Humanas e a área da Saúde Mental.

Vivemos num tempo em que não se acredita mais somente em conjecturas ou teorias, como nos passados tempos do Iluminismo. As pessoas não buscam somente ideias abstratas, mas experiências vivenciadas. Por esse motivo, novos estudos sobre políticas públicas de saúde mental para crianças compreendem um amplo campo de aprendizagem e conhecimento, sobretudo considerando-as de fato como sujeitos dessas políticas.

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  • Editor responsável: Rossano Lima

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2022
  • Aceito
    02 Set 2022
  • Revisado
    23 Jul 2022
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