Open-access Residência Médica e Reforma Psiquiátrica brasileira: convergências e conflitos na formação para o cuidado em saúde mental

Medical Residency and Brazilian Psychiatric Reform: Convergences and conflicts in the formation for Mental Health Care

Resumo

O estudo tem por objetivo identificar em que medida e de que forma os princípios, diretrizes e métodos propostos pela Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) estão presentes na formação dos psiquiatras em programas de Residência Médica. Trata-se de estudo qualitativo que investiga conteúdos e experiências promovidos durante a formação em programas de Residência Médica de Psiquiatria no Brasil. Foram entrevistados 16 sujeitos em quatro instituições públicas de formação, sendo dois programas centrados em hospitais-escola e outros dois em modelos integrados a serviços da Rede de Atenção Psicossocial. Os resultados do estudo permitem sustentar que, apesar de todos os programas remeterem a princípios da RPB em seus conteúdos teóricos, as oportunidades de prática dos modelos integrados dialogam mais diretamente com a experiência da RPB. Entre outros resultados relevantes, destacam-se: preocupação com o cuidado integral, não centrado apenas nos diagnósticos e sintomas, mas na singularidade e no andar a vida dos sujeitos; crítica à medicalização, seja na forma do uso abusivo de medicação, seja como interferência em demandas não especificamente médicas; importância de experiências interdisciplinares em equipes multiprofissionais e uma proposta da superação de uma cultura manicomial que vai além da institucionalidade dos serviços, mas que opera nos processos cotidianos de normalização social.

Palavras-Chave: Saúde Mental; Psiquiatria; Residência Médica; Reforma Psiquiátrica; Integralidade do Cuidado

Abstract

The study aims to identify to what extent and how the principles, guidelines and methods proposed by the Brazilian Psychiatric Reform (BPR) are present in the training of psychiatrists in medical residency programs. This is a qualitative study that investigates contents and experiences promoted during training in psychiatric medical residency programs in Brazil. A total of 16 subjects were interviewed in four public training institutions, two programs centered on school hospitals and two in models integrated with psychosocial care network services. The results of the study allow us to argue that, although all programs refer to BPR principles in their theoretical contents, the services integrated programs seems to promote a closer dialogue with the BPR experience. Among other relevant results, the following stand out: concern with comprehensive care, not focused only on diagnoses and symptoms, but on the singularity and ways of life of the subjects; criticism of medicalization, either in the form of abuse of medication, or as interference in non-specifically medical demands; relevance of interdisciplinary experiences in multidisciplinary teams and the aim to overcome a manicomial culture that goes beyond the institutionality of services, but that operates in the daily processes of social normalization.

Keywords: Mental health; Psychiatry; Medical Residency; Public Health Policies; Psychiatric Reform; Comprehensiveness of care

Introdução

A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) guarda relação com o Movimento da Reforma Sanitária Brasileira (MRS). Esse Movimento origina-se na segunda metade dos anos 1970, período da ditadura, tendo como finalidade a construção de um sistema de saúde universal, como “dever do estado e direito do cidadão”. Amarante e Nunes (2018, p. 2.068) referem que: “As políticas de saúde mental e atenção psicossocial no SUS têm relação direta com a ideia-proposta-projeto-movimento-processo da reforma sanitária e com a conjuntura de transição democrática”. Desviat (2018), comentando sobre as várias reformas em saúde mental pelo mundo, refere que o grande diferencial da RPB foi a parceria entre as organizações da sociedade civil e movimentos ligados à Saúde Coletiva.

A Reforma Psiquiátrica Brasileira guarda também estreitas relações com a reforma italiana, sendo esta: “referência fundamental do processo que virá a ser implantado na cidade de Santos [...], que se tornou o eixo da mais importante face do processo da reforma psiquiátrica brasileira” (AMARANTE, 2007, p. 56). Esse marco ocorreu em 1989, na cidade de Santos, São Paulo, quando o hospital psiquiátrico Casa de Saúde Anchieta foi interditado pela Secretaria Municipal de Saúde após denúncias de mortes de pacientes por maus-tratos – processo similar ao ocorrido na Itália, quando a lei 180 de 13 de maio de 1978 determinou que a maioria dos hospitais psiquiátricos italianos fossem fechados e o país desenvolveu uma rede alternativa aos manicômios, com base no movimento da Psiquiatria Democrática (BASAGLIA, 2005).

A invenção dos Centros de Saúde Mental na reforma italiana inspirou a criação no Brasil dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), regulamentados na lei 10.216 (BRASIL, 2001) e Portaria n. 336 (BRASIL, 2002). Esses serviços têm uma proposta de atendimento em rede que visa superar um modelo assistencial centrado nos hospitais e busca incluir outras áreas de atuação relacionadas, como habitação, cultura e circulação dos usuários pelo seu território.

Os CAPS têm sido serviços estratégicos, seja porque tentam desmontar o modelo centrado no médico, propondo como alternativa um trabalho em equipe interdisciplinar, seja porque, com a participação dos usuários, tenta evitar a institucionalização. A ideia é que serviços abertos e democráticos substituam o hospital psiquiátrico, em um processo de desinstitucionalização que, para Rotelli (2001, p. 35):

[...] é um trabalho homeopático que usa as energias internas da instituição para desmontá-la, é um processo dos mais importantes na Reforma Psiquiátrica para que não haja uma substituição do hospital manicomial para outro serviço com estas mesmas características as chamadas instituições totais.

Para Goffman, a instituição total é aquela em que:

[...] seu fechamento, ou seu caráter total, é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, água, florestas ou pântanos. (GOFFMAN, 2008, p. 16).

Em tais instituições, estão ausentes os projetos de vida dos internos, há limitação da sua autonomia, com forte dependência dos agentes institucionais, os dias são ordenados segundo horários ditados por exigências da organização, sem considerar a singularidade dos indivíduos (GOFFMAN, 2008).

A substituição do modelo manicomial no Brasil tem gerado novos serviços e dispositivos além dos CAPS, como: as Residências Terapêuticas (moradias para pacientes egressos de institucionalização por mais de dois anos em hospitais psiquiátricos), Unidades de Acolhimento (Unidades de moradia provisória para pacientes com dependência química associada a problemas psicossociais graves), e Centros de Convivência (serviços centrados na convivência e inclusão social, abertos não apenas para pacientes psiquiátricos). Além disso, no campo hospitalar, o Ministério da Saúde (MS) induziu o aumento de leitos psiquiátricos em hospitais gerais com assistência de uma equipe multidisciplinar (BRASIL, 2012), inclusive com incentivo financeiro, aumentando o valor de repasse por leito SUS.

No campo da atenção a problemas de álcool e outras drogas, destaca-se a política pública de redução de danos, baseada nos princípios de respeito às singularidades dos pacientes, referência para a implantação das equipes de Consultório na Rua em vários territórios no Brasil (BRASIL, 2012). A RPB retira o foco do tratamento da doença e o coloca no sujeito, na relação do sujeito-psiquiatra com o sujeito-paciente, pois, como refere Basaglia (2005, p. 101): “o problema não é tanto a doença em si (o que ela é, qual a causa, qual o prognóstico), mas somente o tipo de relação que vem a instaurar-se com o doente”.

Vannucchi e Carneiro Jr. (2012, p. 965) apontam que a maneira de organizar o cuidado na RPB vem em constante mudança e que:

Na medida em que se transforma a maneira de organizar o cuidado à saúde mental da população, também se modifica o lugar ocupado pelo psiquiatra nesse processo de trabalho. Tais mudanças exigem desse profissional uma atuação complexa, algo que não tem sido contemplado pela formação em psiquiatria.

Paradigmático desse novo modelo de cuidado é o Projeto Terapêutico Singular (PTS) realizado por equipe interdisciplinar, onde o psiquiatra se insere como um dos pares, assumindo-se a complexidade do cuidado, conforme assinalado por Roberto Tykanori (KINOCHITA, 2014, p. 12):

[...] não trabalhamos mais com um cardápio de soluções padronizadas, em que os mesmos procedimentos e ações são indicados para as pessoas sob o mesmo diagnóstico. Pelo contrário, porque o adoecimento está relacionado a uma série de fatores combinados de um certo modo na vida de cada pessoa, exigindo uma resposta igualmente complexa e diversificada de cuidado.

Os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico têm como um dos seus objetivos provocar maior interação e inclusão dos usuários nas relações de circulação nos lugares públicos das cidades, como bem refere Rotelli (2001, p. 47): “Se os espaços sanitários são habitualmente bem separados, aqui se procura cada ocasião para que sejam, ao invés disso, abertos ao bairro e atravessados pelas pessoas”.

Mas estarão os psiquiatras preparados para essas mudanças? Até que ponto e de que modo as instituições formadoras, em particular seus programas de residência médica, têm sido transformadas pela RPB?

A formação médica no Brasil sofre grande influência, a partir dos anos 40 do século passado, do Relatório Flexner (CARVALHO; CECCIM, 2012). Esse relatório, publicado em 1910 a partir da avaliação do ensino médico nos Estados Unidos, passou a ser referência para o ensino das escolas médicas em todo o mundo, com reflexos que se estendem até os dias de hoje.

A educação dos profissionais de saúde no Brasil, sob a influência desse relatório, passa a associar uma “educação de base científica” a uma base biológica que “seria orientada pela especialização e pela pesquisa experimental e estaria centrada no hospital” (CARVALHO; CECCIM, 2012, p. 141). Esta concepção de educação, de caráter bastante instrumental, com modelos de explicação baseados nas ciências naturais, também repercutiu nas propostas de formação do especialista em Psiquiatria no Brasil.

Baseada nos princípios do SUS, contudo, a RPB criou novos horizontes para a assistência em saúde mental na lógica de desinstitucionalização (ROTELLI, 2001), conforme apontado acima. Diante deste confronto com muitas ideias do modelo centrado no conhecimento biomédico (CAMARGO JR., 2005), as unidades de formação de psiquiatras, principalmente os programas de residência médica, assumem um papel fundamental. Além da atualização e transformação dos seus currículos teóricos, cabe aos programas de residência, na perspectiva da RPB, estimular a reflexão crítica sobre o conjunto de práticas desta especialidade, tendo como base uma visão integral da atenção à saúde.

Alguns autores, como Lobosque (2009) e Ramos (2009), consideram que os serviços da rede pública de saúde mental seriam o melhor espaço para formação clínica dos psiquiatras. Em contraponto a uma visão de formação centrada em hospitais-escola ou centros de excelência, esses autores afirmam (LOBOSQUE, 2009, p. 31): “Quando trabalhamos com noção de redes de atenção, a excelência não pode estar isolada num lugar central, e sim deve permear todos os pontos de atenção da rede”.

Como estão os programas de residência médica em Psiquiatria respondendo a esta mudança de orientação? Como estão se posicionando os residentes em Psiquiatria frente a este desafio em sua formação? Buscando contribuir para a resposta a estas perguntas, o presente estudo tem como objetivo identificar em que medida e de que forma os princípios, diretrizes e métodos propostos pela Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) estão presentes na formação de psiquiatras em programas de residência médica, segundo a compreensão de residentes e preceptores.

Método

Este estudo, desenvolvido em abordagem qualitativa, busca dialogar com os sujeitos envolvidos no cotidiano dos programas de residência, explorando conteúdos e experiências, buscando compreender e problematizar as diversas significações e influências da Reforma Psiquiátrica, na formação em Psiquiatria.

Foram entrevistados 16 sujeitos em quatro instituições públicas de formação, sendo dois programas em modelos centrados em hospitais-escola e outros dois com modelos integrados, onde os residentes utilizam os serviços da RAPS (rede de atenção psicossocial) como espaços de formação.

Entrevistas em profundidade com informantes-chave buscaram o diálogo como exercício de compartilhamento, na direção da experiência hermenêutica “do nós” (GADAMER, 1997), na perspectiva da “fusão de horizontes”, de uma abertura ao outro partindo de nossas próprias pré-compreensões. Esse deslocar-se para compreender o outro, segundo Gadamer:

[...] não é nem empatia de uma individualidade na outra, nem submissão do outro sob os próprios padrões, mas significa sempre uma ascensão a uma universalidade superior, que rebaixa tanto a particularidade própria como a do outro. (GADAMER, 1997, p. 456).

Tal “fusão de horizontes”, segundo Ayres (2007, p. 58):

[...] se dá com o recurso aparentemente simples, mas pouco utilizado, de um perguntar efetivamente interessado no outro e a escuta atenta e desarmada frente à alteridade encontrada.

Todas as entrevistas foram realizadas pelo primeiro autor, gravadas e transcritas por profissional especializado. Os locais das entrevistas foram combinados com os participantes e ocorreram dentro das próprias instituições de trabalho, preservando o sigilo e privacidade, sem a presença de terceiros.

A fase de campo da pesquisa foi realizada entre os meses de maio e novembro de 2019. A escolha dos sujeitos participantes não teve como base critérios de representatividade, nos moldes da amostragem de estudos quantitativos, mas de expressividade, isto é, sujeitos cujos depoimentos possam potencializar o acesso e reflexão sobre sentidos e significados de concepções e ações privilegiadas no desenho do estudo (MARTÍNEZ-SALGADO, 2021).

Na escolha de residentes e preceptores, que também eram coordenadores dos programas, além de sua vinculação a instituições relevantes para a formação do psiquiatra, foram considerados critérios de disponibilidade e de interesse, na tentativa de estabelecer uma situação de interação favorável ao diálogo entre entrevistador e entrevistado.

Foram entrevistados três residentes e um preceptor de cada uma das quatro instituições pesquisadas. O propósito de entrevistar residentes cursando diferentes anos da residência, ou seja, R1 (primeiro ano), R2 (segundo ano) e R3 (terceiro ano), facilitou ao entrevistador reconhecer características dos programas em suas diversas fases.

O Quadro 1, a seguir, expõe o perfil dos entrevistados, com nomes fictícios, idade, posição (R1, R2, R3 ou Preceptor), gênero, tempo de formado e instituição (U1 e U2 as vinculadas às Universidades e SM1 e SM2 às Secretarias Municipais de Saúde).

Quadro 1
Perfil dos entrevistados

Os Programas escolhidos para o estudo são ligados a duas Universidades de excelência no ensino, localizadas em dois centros urbanos da região sudeste do país, e duas residências integradas ligadas a Secretarias Municipais de Saúde das mesmas cidades.

Os Programas ligados às Universidades concentram a maioria de suas atividades em Hospital Universitário, o que é de interesse para nosso objeto de pesquisa, pela situação de distanciamento da rede atenção psicossocial e de saúde em geral. As residências ligadas às Secretarias Municipais permitiram acessar atividades predominantemente baseadas nos serviços da rede pública saúde, inclusive os novos serviços introduzidos pela RPB.

A construção/interpretação das narrativas produzidas com as entrevistas está baseada no princípio hermenêutico da “aplicação” (applicatio), entendido como a motivação prática que, simultaneamente, justifica e realiza a fusão de horizontes pretendida (GADAMER, 1997). Partindo dessa motivação e de uma correspondente pré-compreensão do fenômeno estudado – totalidade de referência de que sempre parte qualquer processo interpretativo – a busca do encontro com o outro aciona o “círculo hermenêutico”, uma dialética parte-todo, na qual a totalidade compreensiva vai sendo enriquecida pela interpretação da parte estudada ao mesmo tempo em que possibilita a interpretação, elevando o conhecimento a um novo e mais rico patamar (GADAMER, 1997).

Neste processo é que se definiram as categorias preliminares do estudo (concepções sobre a Reforma Psiquiátrica Brasileira; avaliação da formação; apreciação crítica do modelo de atenção psiquiátrica; atitude frente à medicalização), que foram retraduzidas nas categorias que resultaram do trabalho de campo, expressas nas seções que organizam a apresentação dos resultados, a seguir.

A pesquisa é resultado de tese de doutorado, não contou com qualquer fonte de financiamento e não apresenta conflito de interesses. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da instituição sede do estudo, em cumprimento às normas exigidas pelo Conselho Nacional de Saúde e conformidade com a Resolução n. 466/2012.

Resultados e Discussão

Para discussão no presente artigo, selecionamos algumas categorias interpretativas que emergiram como relevantes no trabalho de campo, ilustradas por excertos dos depoimentos e cotejados com literatura julgada pertinente.

A prática do cuidado na formação do residente em psiquiatria

Apesar de relatos dos depoentes de que o cuidado prestado pelo residente é ofertado, em sua maioria, de forma médico-centrada, e ainda muito baseado no modelo das tecnociências biomédicas, há menção a várias experiências que fogem a este modelo, principalmente com atividades fora do setting clássico da sala de atendimento médico.

Há relatos de experiências de cuidado de forma ampliada, integral, ressignificando o processo de trabalho através de escuta, criatividade e empatia, fugindo do foco

em sintomas:

[...] É essa forma integral, interdisciplinar que acho que é um cuidado, pra chegar num projeto de cada pessoa, sempre visando sua autonomia do cuidado da pessoa que tá ali na sociedade, inserida na vida da comunidade, né? (Pedro, R3, SM2)

[...] E aí eu acho que a Reforma é um pouco isso, de você abrir, ampliar o cuidado. Assim como a saúde mental virou uma coisa mais ampla do que a psiquiatria, acho que a reforma teve um pouco também, de ampliar o cuidado além de só a internação e medicação, né? (Rosa, R2, U2).

Questões como promoção e prevenção em saúde são associadas ao cuidado em saúde mental não apenas pelos residentes, mas também pelos seus preceptores.

[...] vamos convencer o paciente a dar chance pra essas terapias alternativas, preventivas, então durante a semana vamos fazer uma meditação, a gente faz terapia bioenergética, vê como ele se sente, vê se diminui um pouco a ansiedade ao fazer práticas de respiração [...] (Helena, R3, SM1).

[...] Eu acho que o foco maior tem que ser dado à promoção de saúde, à prevenção de saúde mental e outras estratégias aí que possam auxiliar no cuidado de saúde mental. Eu acho que o foco tem que ser a gente discutir mais esses outros recursos que muitas vezes o próprio paciente às vezes não tem conhecimento, né? Então, por exemplo, da importância da psicoterapia, de linhas da psicoterapia ou linha de psicoterapia mais adequada, de participação de grupo, de atividades de grupo, prática de atividade física, uma alimentação saudável, práticas meditativas. Eu acho que tudo isso é algo que precisa ser mais conversado, precisa ser mais falado [...] (Arlindo, Preceptor, SM1).

Foi recorrente nas narrativas dos residentes a experiência singular do sofrimento de cada pessoa em seu adoecimento, remetendo não apenas a transtornos, mas ao que se pode chamar, com Canguilhem (2006), dos seus vários “modos de andar a vida”.

Destaca-se nas narrativas o comentário dos residentes sobre a elaboração do PTS como contribuição para a integralidade do cuidado. Ademais, a participação de residentes nas oficinas terapêuticas, sejam elas no campo do trabalho e economia solidária, sejam elas ligadas a outras práticas, como artísticas, esportivas, culinária etc., as quais colaboram para a vivência de um tipo de cuidado que é diferente do cuidado ligado ao modelo biomédico convencional, observado principalmente na modalidade de residência integrada. O estudo de Vannuchi e Carneiro (2012) corrobora essa impressão de que o projeto tecnoassistencial da RPB, além da atuação dos profissionais de saúde no território, favorece a utilização de tecnologias de saúde mental visando o cuidado integral para dar respostas mais complexas e heterogêneas às necessidades de saúde mental da população.

As oficinas são uma modalidade de prática que propiciam um outro tipo de formação do psiquiatra, entendendo formação no sentido bildung (GADAMER, 1997), isto é, de um desenvolvimento de capacidades e aptidões que não se limitam à aquisição e adestramento de habilidades cognitivas e técnicas, mas que, com elas, e para além delas, implicam um senso de pertencimento e compromisso com o humano, para dentro e fora do sujeito, em um processo de contínuo devir. A experiência de interação com os usuários em práticas fora de sua área de expertise científica e o trabalho colaborativo proporcionam ao profissional em formação esse outro olhar para o adoecimento, diferente do observado apenas no atendimento dos consultórios nos serviços de saúde mental:

[...] É que eu acho que é inerente do atendimento, mais um papel de acolher, a parte também de um atendimento mais voltado pra psicoterapia, intervenções que seriam mais integrativas pra você entender o paciente em outras situações, não só no consultório. Então... O paciente é muito diferente numa oficina de culinária do que dentro do seu consultório; ele é muito diferente num grupo de caminhada, às vezes ele comenta coisas, tem comportamentos completamente diferentes do que num lugar mais restrito, que seria o consultório, e isso fica muito evidente. Assim, às vezes uma intervenção ou alguma fala que você tem fora desse ambiente mais restrito de atendimento médico tem um impacto muito grande no seu vínculo com o paciente, às vezes até no tratamento também. (Penha, R2, SM1).

A experiência desses diferentes serviços na formação é associada também com a discussão da autonomia dos sujeitos, indicando que os entrevistados estão atentos ao risco de tutela na relação psiquiatra-paciente, muito discutida por autores do campo da RPB, como na fala de um dos residentes:

[...] eu acho que passa um pouco até por aquilo que eu falei da questão de como deve ser almejado esse cuidado, né? Eu acho que é justamente essa coisa da busca pela autonomia, né? Da busca pela individualidade de cada sujeito [...] (Pedro, R3, SM2).

O segredo das pílulas mágicas: conflitos de interesses na medicalização

Com relação à discussão da medicalização, tema tido como fundamental para a formação do psiquiatra, chamou a atenção a associação predominante com o uso abusivo de medicamentos psicotrópicos, embora alguns dos entrevistados tenham ampliado essa concepção ao associá-la também à interferência em demandas não especificamente médicas:

[...] esse conceito é muito usado pra falar só de aumento da prescrição de medicamentos. Mas, pra mim, o conceito de medicalização vai para além disso. É tornar médicos problemas que talvez não fossem estritamente médicos, né?...Acho que é tornar problemas que talvez não fossem patológicos. (Pedro, R3, SM2)

E em alguns momentos, questões que seriam de cunho antropológico, assim, existencial, que serão tidas como uma resposta normal à determinada situação acabam sendo patologizadas. E aí, por ter uma patologização de alguns sintomas que em momentos anteriores poderiam ser aceitos como dentro do espectro da normalidade, acaba tendo uma medicalização, que seria medicalizar talvez reações normais da vivência... (Renata, R3, U1).

Outro aspecto que se destacou com relação a essa categoria foi a associação do processo de medicalização à própria angústia dos residentes em resolver, pelo modelo prescritivo, o sofrimento do outro. Esta angústia foi atribuída por um lado, ao processo de trabalho dos residentes, com carga horária exaustiva, por outro lado, à dificuldade em lidar com sofrimento psíquico dos pacientes e com a exigência de resolução segura e eficiente.

Tem um porquê da angústia do médico também... Caramba, eu não sei o que que vai melhorar esse paciente. Ele não tá melhorando, eu vou pôr mais remédio, eu vou aumentar essa dose. Tem essa angústia. Tem até, numa demanda mais neurótica, assim, uma demanda dos pacientes também, né? A gente vê o boom que é de benzodiazepínico. Assim, na Clínica da Família eu tinha que fazer todo o dia várias receitas porque tá todo mundo viciado, todo mundo querendo se anestesiar da vida. Mas por conta de ter mais gente hoje em dia pra gente trabalhar, às vezes acaba dando uma forçada assim, né? Que nem sempre é o que precisa, né? Da angústia dele mesmo, de ver o paciente talvez não melhorando como ele gostaria, no tempo que ele gostaria... (Jaqueline, R1, SM2).

Alguns chegam a relatar automedicação como uma prática comum entre os residentes para dar conta dessa angústia.

Eu sinto que hoje a gente medicaliza processos normais. Assim, eu vejo muito no meio médico, não só na psiquiatria, mas que a gente medicaliza tudo. Você está por exemplo numa residência fazendo quase 60 horas semanais, você ainda trabalha e você está se sentindo cansado e você não está conseguindo dormir também. Aí taca algum hipnótico, algum estimulante de manhã também pra você dar conta. Mas será que não é um processo que você está vivendo e que você tem que parar e ver o que que você está fazendo com a sua vida e não medicar”, sabe? (Penha, R2, SM1).

Essas narrativas parecem expressar, talvez de forma exacerbada, uma tendência contemporânea que não se restringe ao profissional psiquiatra: a baixa tolerância à angústia. (BIRMAN, 2014).

Para Gadamer (2006), o recurso ao método como garantia de certezas, ou ao menos de controle das incertezas, foi substituindo a busca humanística mais ampla de procura de verdades, nas ciências e fora delas – e que está na base da ideia de bildung, acima tratada. As práticas baseadas em evidências produzidas pelos métodos empírico-analíticos das ciências de caráter nomotético, não obstante seus inegáveis méritos anti-fundamentalistas e anti-obscurantistas, podem levar-nos a buscar o “controle”, a “dominação pelo saber tecno-científico” onde estes não podem (e não devem) ter esse poder (o plano da razão prática, da ética, da moral, da política). Tal conflito parece estar na base da angústia e na dificuldade de lidar com ela expressa nas narrativas dos residentes.

Outro aspecto observado foi a associação da medicalização ao excesso de diagnóstico. Diversos residentes fizeram críticas à rapidez com que se rotula os sujeitos com diagnósticos psiquiátricos.

[...] tem algumas pessoas que eu atendo, que eu falo: “Ó, essa pessoa eu não acho que tem transtorno mental, a rigor, assim: “Meu Deus!” Ela está passando por um problema, por uma dificuldade. Talvez ela precise de ajuda mesmo, mas eu preciso dar um diagnóstico pra ela? Nesse momento não. Então, você pensa duas vezes, e está sempre repensando... se você dá um diagnóstico, repensando esse diagnóstico. “É isso mesmo?”, sabe? Prestando muita atenção... (Roberta, R1, U1).

Tudo pode ser medicalizado, tudo pode ser diagnosticado, coisa que foi ampliando ao longo dos anos. É curiosíssimo você ver essa evolução dos conceitos diagnósticos o quanto vai ampliando, né? E ampliando, e de certa forma começando a fazer nuances de cada situação, incluindo da cada vez mais e mais pessoas dentro da... Então acho perigoso isso, né? (Antonieta, Preceptora, SM2).

Caponi (2014) associa esse excesso à estrutura “segurança-prevenção-risco” que caracteriza as sociedades modernas e contemporâneas, definida por essa autora como eixo articulador da “biopolítica” das populações nos estados liberais e neoliberais. O conceito da biopolítica como uma estratégia de poder, parte dos estudos de Foucault (2005) e se articula com os dispositivos de governabilidade neoliberal (FOUCAULT, 2008).

Os residentes também demonstram preocupação com a influência da indústria farmacêutica em seus processos de formação médica.

Eu participei do Congresso agora. Praticamente é todo bancado pela indústria farmacêutica, né? Então acho que tem aqueles que não se influenciam, né? Aqueles profissionais que tem essa ideia, de não medicar em todos os casos, só em alguns casos. Mas também tem aqueles profissionais que já acabam sendo mais influenciados, digamos assim, a medicar qualquer queixa do paciente, né? – qualquer sofrimento... (Simone, R2, SM2).

Essa preocupação é corroborada por autores influentes na produção acadêmica ligada à RPB, como Freitas e Amarante (2015) e Frances (2016). Rose (2010) também alerta sobre um programa realizado nos EUA, no qual, pessoas que foram “diagnosticadas como em risco” recebiam tratamento preventivo com drogas psiquiátricas, sendo este financiado em parte pelas indústrias farmacêuticas.

A Reforma Psiquiátrica brasileira na formação dos residentes de Psiquiatria: mudou algo na prática e/ou na teoria?

A relação entre a formação dos residentes e o processo social mais amplo da RPB mostrou passar também pela atenção em saúde comunitária, dentro de uma lógica da atenção psicossocial em rede, cuidado em liberdade e ações no território. Observamos que os residentes dos programas integrados falaram ativamente de um tipo de cuidado mais alinhado aos princípios da Reforma Psiquiátrica e do SUS. Isso ocorre, possivelmente, por terem um tempo maior de passagem nos serviços da RAPS/SUS, nos quais concentram mais suas atividades.

[...] eu entendo é que a reforma psiquiátrica promove a lógica de cuidado, baseada nessa lógica da atenção psicossocial, do cuidado mais voltado pra atenção comunitária, territorial, claro que lançando mão de outros recursos, mas com esse norte operador. (Pedro, R3, SM2).

Eu acho que a nossa residência, da rede, a gente acaba rodando por muitos serviços diferentes e muitos serviços que são do SUS, então principalmente os CAPS, tanto o CAPS Adulto, o AD ou Infantil. E a UBS, que a gente atende também lá, e, claro, os hospitais também. Então a gente consegue ver o paciente em vários momentos do tratamento, desde que o que está em remissão na UBS ou que saiu de uma internação e está num CAPS. Isso faz você enxergar várias formas de ver o cuidado do paciente, né? (Penha, R2, SM1).

Lima e Passos (2019) reforçam a importância das residências com foco na RAPS do SUS em contraste com os programas centrados em um hospital-escola ou hospital universitário.

Os residentes ligados ao modelo hospital-escola chegam a ironizar a situação excepcional que vivem em sua formação, pois os hospitais-escola têm recursos bem diversos dos serviços da rede pública.

[...] Acho que a gente tem pouco contato fora. Tipo, a nossa residência é, talvez, 90% nesse U1, nas enfermarias daqui, nos ambulatórios daqui. Acho que a gente fica um pouco viciado. Eu vivo numa “ilhazinha da fantasia” dentro do sistema de saúde do Brasil [...]. Então sairia um pouco daqui. A gente, por exemplo, não passa em CAPS, o que acaba sendo um espaço importante de saúde mental no SUS, de abordagem dessas pessoas. (Roberta, R1, U1).

Vale ressaltar que, tanto residentes como preceptores em programas de universidades, apontam para a possibilidade de abri-los para campos de formação com maior tempo na RAPS da rede pública como um todo, e não apenas centrar a formação no hospital-escola.

Por outro lado, residentes e preceptores ligados às residências integradas apontam outros tipos de dificuldades, com relação ao deslocamento geográfico entre os serviços, principalmente em grandes centros urbanos, menor uniformidade na organização da formação, principalmente com relação ao controle de rendimento das atividades, precariedade de recursos dos serviços da RAPS e baixa qualidade de preceptoria, muitas vezes lidando com trabalhadores não preparados e/ou dispostos para esta função.

Outra dificuldade é a complexidade da gestão dos programas Integrados, como ressalta um preceptor:

Então são diversos acordos: termos de cooperação, contratos, equipamentos envolvidos, administrações envolvidas, administração direta, O.S.S, instituições parceiras, capacitação desses preceptores que estão na rede, adequação na rotina do SUS, as demandas do SUS, da assistência de saúde mental como um ambiente de aprendizado, de ensino, né? [...] Acho que todos esses são desafios grandes. E para uma uniformização de ensino, de conteúdo programático. Tudo isso a gente tem desenvolvido na residência, é um trabalho grande desenvolvido pela equipe, mas tem sido um desafio grande, e constante, né? Acho que isso é uma coisa a ser considerada também sobre as residências médicas integradas – as residências em rede. A complexidade da organização de uma residência médica integrada. (Arlindo, Preceptor, SM1).

Outro aspecto que chamou a atenção em algumas narrativas foram as novas formas de institucionalização nos serviços abertos da RAPS. Narrativas que associam, por exemplo, os CAPS a uma “creche”, ou críticas ao longo tempo de permanência nesses serviços, aparecem nas falas dos residentes. Falta de um PTS que possa constantemente se atualizar e programas específicos para pacientes ditos como “crônicos” são outras questões levantadas pelos residentes com relação ao modelo de funcionamento desses serviços.

[...] apesar de todo esse movimento ainda estar muito em voga, e de muitos levantarem essa bandeira, a gente vai pra muitos serviços em que a gente vê uma posição manicomial em relação aos pacientes. Então pacientes de CAPS que ficam lá e, que não recebem alta, que não tem nenhum programa de ressocialização, principalmente psicóticos crônicos que ficam lá... parece uma creche, né? Eles vão lá pra passar o dia, fazer algumas atividades ali, mas não chega nem a ser um PTS, e ficam lá anos e anos. (Penha, R2, SM1).

Basaglia (2005), Desviat (2018), Pande e Amarante (2011) alertam para novas formas de institucionalização e cronicidades nos serviços de saúde mental, defendendo a importância das práticas no território para a desinstitucionalização dos novos serviços de saúde mental, corroborando as críticas dos residentes.

Outro aspecto emergente sobre a formação dos psiquiatras no contexto da RPB é a relação dos médicos com a visão interdisciplinar. Parece que o trabalho interprofissional de construção de projetos terapêuticos traz certo conforto para os residentes, que referem “dividir o peso” da responsabilidade no cuidado compartilhado, possibilitando também uma atitude diferenciada com relação ao modelo médico-centrado.

[...] essa vivência que a gente tem, de entender os outros profissionais – quando eu for profissional mesmo, pós-residência, eu acredito que eu vou saber melhor indicar um projeto terapêutico pro paciente. Isso me ajuda a entender que sozinha também eu não vou solucionar todos os problemas. Saber que não depende só de mim e também não me sentir tão frustrada quanto a não conseguir obter sucesso no tratamento do paciente. Acho que dá um conforto também. [...] a gente tenta fazer de tudo pro paciente, e entender que pelo menos na psiquiatria nem tudo depende só do médico. Então dividir isso com outras pessoas, ou até mesmo entender que depende do paciente também o processo de melhora, tira um pouco esse peso das costas, de achar que eu tenho que resolver o problema de todo mundo. (Gabriela, R1, SM1).

Alguns relatos, entretanto, descrevem tratamento preconceituoso por parte de outros profissionais. Essa percepção vem associada a críticas recebidas com relação ao tempo de consulta e à relação médico-paciente, tempo de internação, medicalização e desconhecimento do histórico e modelo da RPB.

[...] Então às vezes eu acho que tem pessoas que veem só uma parte da reforma e acabam, não sei, idealizando umas coisas ou simplificando outras coisas, mas que botam o psiquiatra como um monstro, tipo assim: “Não! Tem que acabar com a psiquiatria.” Um certo preconceito? É, um certo preconceito sim. E não é só o preconceito, porque a gente tenta conversar e tirar o preconceito, mas é quase que uma coisa doutrinada mesmo, sabe? (Rosa, R2, U2).

Por fim, vale ressaltar, na fala de alguns residentes, a crítica a uma “cultura manicomial estrutural”, que estaria introjetada nos profissionais de saúde e na sociedade em geral. Aponta-se que, apesar do funcionamento de alguns serviços na rede de saúde mental terem tido avanços no modelo institucional, é preciso estar atento a outra forma de manicômio que estaria “dentro de nós, dentro das pessoas” e não apenas na instituição:

A reforma psiquiátrica aconteceu, eles tiraram esses manicômios de quatro paredes, só que esses manicômios continuaram presentes na sociedade, assim, continuaram presentes na nossa realidade, porque o manicômio não é só aquela instituição [...] algumas coisas não mudaram. Foi feito, agora está tentando se incluir esses pacientes na saúde mental como um todo, com a equipe multiprofissional, só que ainda existe essa exclusão. Os manicômios estão dentro de nós, dentro das pessoas, não é só aquela instituição. Foram fechados alguns manicômios, mas os manicômios continuam existindo. (Helena, R3, SM1).

Tal elaboração está em linha com a defesa por Venturini (2003), Rotelli (2001), Desviat (2018) e Pelbart (1993), de um conceito de desinstitucionalização mais amplo, não apenas ligado ao fim das instituições manicomiais, mas construtor de uma perspectiva de maior inclusão social dos usuários em suas comunidades e territórios.

Também Nikolas Rose, em recente entrevista sobre o futuro da psiquiatria, (CARVALHO, RESENDE et al., 2020), considera que os psiquiatras podem usar seu poder para defender uma “outra psiquiatria” que ajudaria a abrir as portas para a valorização do conhecimento vindo das experiências vivenciadas pelos usuários dos serviços de saúde mental, valorizando a “análise de evidência” dessas experiências dentro de suas comunidades.

Conclusão

Ficou evidente que as residências com modelo centrado no hospital-escola tenderam a ter suas atividades restritas a este ambiente, sendo a experiência prática na rede pública de saúde mental restrita a atividades optativas, principalmente a partir do terceiro ano de residência.

Quanto às características do cuidado exercido pelos residentes, apesar de relatos dos entrevistados indicarem, em ambos os tipos de programa, um modelo médico-centrado, houve relatos de várias experiências com atividades que fogem a este modelo, principalmente fora do setting clássico da sala de atendimento médico. Há relatos de experiências de cuidado de forma ampliada, integral, ressignificando o processo de trabalho através de escuta, criatividade e empatia, fugindo de um cuidado centrado em sintomas.

Identificou-se uma percepção, principalmente entre os residentes dos programas de residência integrada, de que os serviços abertos, principalmente os CAPS e residências terapêuticas, têm proporcionado uma maior autonomia para os usuários desses serviços.

A relação dos princípios teóricos, técnicos e éticos da RPB com a formação do psiquiatra mostrou também estar mais forte e diretamente presente na atenção em saúde comunitária, dentro de uma lógica da atenção psicossocial em rede, cuidado em liberdade e com ações no território. Isso ocorre, possivelmente, por terem um tempo maior de passagem nos serviços da RAPS/SUS, nos quais concentram mais suas atividades do que os que se formam no modelo hospital-escola. Além disso, o fato de atuarem em vários serviços da RAPS possibilita maior intercâmbio interprofissional e os prepara melhor para atuar em realidades diferentes, principalmente nos cenários do SUS. Possivelmente o tipo de prática propiciada por esses diversos cenários de aprendizagem e de interação com outros profissionais e usuários, mostre-se mais potente como experiência formadora, no sentido lato e atualizado de bildung, tal como recuperado por Gadamer.

Por fim, vale ressaltar, da fala de alguns residentes, a crítica a uma “cultura manicomial estrutural” que estaria introjetada nos profissionais de saúde e na sociedade em geral: é preciso estar atento a outra forma de manicômio que estaria “dentro de nós, dentro das pessoas” e não apenas na instituição.

Diante desses resultados, parece-nos existir a necessidade de enfatizar ações na formação dos residentes a partir dos recursos e realidades de cada território, entendendo território como espaço não apenas geográfico, mas de intervenções criativas, a partir de uma realidade e culturas específicas para participação e inclusão social dos usuários em suas comunidades.

Novos modelos de formação, como o modelo da residência integrada, ou reformulações programáticas nos programas vinculados a serviços universitários, buscando como campo de formação o conjunto da rede pública de saúde mental e serviços construídos a partir das diretrizes da RPB, apesar das limitações e problemas já discutidos nesse estudo, sugerem ter uma maior convergência com práticas formativas mais sensíveis aos princípios da RPB.

Nesse sentido, ressalta-se a importância de seguir incorporando de forma positiva os psiquiatras como parceiros fundamentais do longo e complexo processo global de consolidação do movimento de Reforma Psiquiátrica e, no caso do Brasil, reconstruindo conceitos e práticas consoantes às diversas necessidades e potências encontradas nos diferentes territórios do SUS.

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  • Editor responsável: Martinho Silva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Maio 2021
  • Aceito
    03 Jun 2022
  • Revisado
    19 Fev 2022
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