Resumo
O artigo objetiva analisar os significados do uso da PrEP entre gays, mulheres trans e travestis no Rio de Janeiro, com base em uma pesquisa sobre a biomedicalização da resposta à Aids. A análise e interpretação dos registros de diário de campo e das entrevistas nos permitiram descrever como o uso dessa tecnologia de prevenção ao HIV se dá simultaneamente com outros recursos biomédicos, intervenções estéticas, dietéticas e exercícios físicos. Argumentamos que tais cuidados de si são conformados em função das expectativas de gênero e classe e dos ideais de saúde de seus/as usuários/as. Os resultados do estudo permitem uma discussão sobre as fronteiras entre saúde, estilo de vida e aprimoramento. Conclui-se que a PrEP parece produzir uma singularização nas formas de produção de si, via aprimoramento biomédico e estético-cosmético, em um encontro sinérgico entre diferentes tecnologias, percebido tanto na rotina de uso do medicamento como no manejo de seus efeitos. Para a maioria das pessoas entrevistadas, a PrEP se acopla a um cuidado de si prévio, o que indica a localização social de seus usuários em termos de classe e gênero e a forma reflexiva a partir da qual descrevem sua saúde e a si próprias.
Palavras-Chave: Profilaxia pré-exposição ao HIV/PrEP; Biomedicalização; Modos de subjetivação; Tecnologias de gênero; Minorias Sexuais e de Gênero
Abstract
The article has analyzed the meanings of the use of PrEP among gay man, trans women, and travestis in Rio de Janeiro, based on research on the biomedicalization of the response to AIDS. The analysis and interpretation of the field diary entries and interviews allowed us to describe how the use of this HIV prevention technology occurs simultaneously with other biomedical resources, aesthetics, dietary interventions, and physical exercises. We argue that such self-care is shaped according to the expectations of gender and class and the health ideals of their users. The results of the study allow us to discuss the boundaries between health, lifestyle, and enhancement. It is concluded that PrEP seems to produce a singularization in the forms of self-production, via biomedical and aesthetic-cosmetic enhancement, in a synergistic encounter between different technologies; perceived both in the routine use of the drug and in the management of its effects. For most of the people interviewed, PrEP is coupled with a previous self-care, which indicates the social location of its users in terms of class and gender and the reflexive way from which they describe their health and themselves.
Keywords: Prophylaxis pre-exposure to HIV (PrEP); Biomedicalization; Modes of subjectification; Gender technologies; Sexual and Gender Minorities
Introdução
Nesse período que eu tava fazendo o tratamento, eu tava malhando [...]. Aí eu malhava, tava tomando aminoácido e durante o acompanhamento me avisaram que o aminoácido, junto com o medicamento do PrEP, estava fazendo mal pro meu fígado, algumas coisas com relação ao colesterol... então, com a saúde como um todo, eu achava que o programa [de atendimento da PrEP] era bom porque também se desdobrava nessa outra questão do paciente né? Ter uma vida boa, ter saúde. [Samuel, gay, 34 anos]
Dia habitual? Acordo de manhã cedo, eu tomo a PrEP de manhã né, o medicamento, aí tomo meus hormônios, venho pra aula, tenho aula o dia inteiro, então venho pra minha aula... [...] eu tenho aquela rotina de tomar sempre que eu acordo, já faz parte da minha vida, faz parte do meu corpo, assim que eu acordo, vou no banheiro, escovo os dentes, já vou na minha mesinha, já tá lá, assim, preparada, já tem a água também que eu... e aí eu já tomo a PrEP. Aí vou faço café e tal, quando eu volto, termino o café, antes de ir pra faculdade aí tomo os hormônios..., mas nesse intervalinho de tempo assim. [Fernanda, travesti, 33 anos]
Olha, eu comecei em 2015, eu tenho certeza, porque eu já tava com o Plínio, meu companheiro e quando eu tava com ele eu já fazia uso da PrEP [pelos ensaios clínicos]. Aí eu parei ano passado, porque eu queria fazer [depilação] laser e o Truvada é fotossensível, se você tiver com o Truvada no corpo, você pode ficar com manchas... tomando sol ou fazendo laser, então eu parei por isso, fiquei mais ou menos três anos sem. (Sandra, mulher trans, 36 anos).
Os relatos acima referem-se a entrevistas com usuários/as da PrEP, acrônimo de profilaxia pré-exposição ao HIV. Trata-se de um tratamento clínico baseado no uso de medicamentos antirretrovirais para evitar que o vírus causador da Aids infecte o organismo. Tal recurso biomédico parece ser indissociável da experiência sexual dos sujeitos. Sua indicação envolve uma avaliação do profissional de saúde acerca das práticas sexuais de exposição ao HIV, do histórico de infecções sexualmente transmissíveis e do potencial de compromisso com a adesão ao medicamento por parte do/a usuário/a. No Brasil a PrEP é oferecida pelo Sistema Único de Saúde (SUS), desde dezembro de 2017, para gays e outros homens que fazem sexo com homens (HSH), mulheres trans, travestis, trabalhadores/as sexuais e membros de casais sorodiscordantes (uma pessoa infectada pelo HIV e a outra não), sendo apresentada como uma alternativa para contornar limites e inconvenientes de outros métodos preventivos. Conforme documentos oficiais, a priorização desses segmentos se justifica pelo maior risco ao HIV estimado pelas taxas de prevalência (BRASIL, 2017).1 As articulações simbólicas entre a PrEP, a sexualidade e outras dimensões da vida, permitem reflexões sobre o caráter de aprimoramento das tecnologias biomédicas contemporâneas.
As estratégias biomédicas têm predominado no cenário da prevenção ao HIV nos últimos anos. Em grande medida, estão informadas por pesquisas clínicas sobre os efeitos dos medicamentos antirretrovirais na redução da transmissão ou infeção pelo HIV. Além da PrEP, as principais respostas ao HIV incluem o tratamento como prevenção (TcP), por meio do estímulo à testagem regular e tratamento imediato das pessoas infectadas e a PEP (profilaxia pós-exposição ao HIV).2 Em seu conjunto, sugerem mudanças na lógica que orienta o trabalho de prevenção e nos termos empregados. Segundo Granjeiro et al. (2015), a maior incorporação de tais métodos “nos diferentes momentos da cadeia de transmissão do HIV e seu uso complementar promete avanços consistentes na resposta à epidemia com impacto na redução da incidência” (p.57), especialmente no âmbito individual da prevenção. Para atingir de forma efetiva grupos tidos como mais vulneráveis e contextos sociais diversos, tais autores destacam a necessidade de se promover, no âmbito programático, um maior conhecimento, acesso e uso de estratégias preventivas diversas (e mesmo combinadas) pela população.
De fato, a PrEP integra um processo global de remedicalização (NGUYEN, 2011) ou biomedicalização das respostas à Aids (AGLETTON; PARKER, 2015), do qual participam uma ampla rede conformada por agências internacionais, pesquisadores/as da área clínica, profissionais de saúde, gestores governamentais e financiadores. Pode ser lida ainda no marco de uma economia política das inovações farmacêuticas, cuja produção, circulação, distribuição e consumo interconectam interesses financeiros e institucionais diversos, assim como necessidades coletivas e desejos individuais, sob a forma de uma complexa coalisão terapêutica (BIEHL, 2007a). Entendemos que essa profilaxia não é somente um produto desse processo, mas incide em sua instituição. Nesse sentido, age sobre as concepções especializadas de prevenção, os paradigmas em saúde pública e sobre as relações microssociais e a experiência subjetiva.
Informados pela literatura sobre biomedicalização e tecnociência (ref. CLARKE et al., 2003; CLARKE; SHIM, 2011), farmaceuticalização (BIEHL, 2007; 2008) e coprodução entre artefatos biomédicos, gênero e sexualidade (ROHDEN, 2017; MANIC; GÁLVEZ-RAMÍREZ, 2015; MONTGOMERY, 2012), neste artigo buscamos refletir sobre os sentidos da PrEP, a partir das experiências de seus usuários e usuárias. O ponto de partida foi a constatação, ao longo do trabalho de pesquisa, de como a PrEP é apresentada por homens gays, mulheres trans e travestis em meio a outros tratamentos e intervenções corporais utilizados cotidianamente. Os cuidados dietéticos, consumo de suplementos alimentares, uso de hormônios, práticas de exercícios físicos e realização de procedimentos estéticos, descritos pelos/as entrevistados/as, são recursos aos quais a PrEP vem a somar ou, eventualmente, antagonizar. A relação entre essas tecnologias e intervenções corporais pode ser tanto de complementaridade, compondo um conjunto de cuidados de si, quanto de incompatibilidade; o que levaria eventualmente à interrupção do uso regular da PrEP.
A decisão de usar a PrEP, as ponderações sobre a rotina de tratamento, sua importância e as implicações na vida social e afetiva considera que essas informações são úteis para pensar a ação do regime biopolítico contemporâneo sobre as experiências singulares dos sujeitos, seja em termos de sua normatização ou daquilo que lhe escapa. Nesse sentido, a perspectiva dos/as usuários/as oferece elementos para pensar o enraizamento social dessa estratégia de prevenção ao HIV.
As histórias referentes a essa tecnologia biomédica e a vida de seus/suas usuários/as nos informam como os cuidados mencionados vinculam preocupações com a saúde, experiência sexual e modelação corporal, frequentemente associadas ao gênero. Quer dizer, o uso da PrEP e de outros recursos biomédicos, intervenções estéticas e práticas corporais atrelam-se às suas experiências de gênero e aos modos particulares de apresentação de si e reconhecimento social. Aqui, as fronteiras entre os cuidados de saúde e o aprimoramento de si ganham contornos nem sempre precisos, como abordaremos neste artigo.
Universo da pesquisa
A análise tem como base empírica entrevistas semiestruturadas em profundidade com 10 homens autodeclarados gays ou homossexuais e 10 autodenominadas mulheres trans ou travestis usuários/as ou ex-usuários/as da PrEP. Apoia-se ainda em observações em três serviços públicos de saúde especializados, nas cidades do Rio de Janeiro, Niterói e Duque de Caxias, realizadas entre agosto e dezembro de 2019. Os dados integram uma pesquisa mais ampla, de caráter socioantropológico, sobre biomedicalização e as profilaxias de prevenção ao HIV.3 A análise e interpretação dos registros de campo e das entrevistas seguiu o método de análise de conteúdo (BARDIN, 1979). O material foi sistematizado em blocos temáticos, em função da identificação das categorias recorrentes e, em seguida, foram analisadas as relações entre as unidades identificadas. Foram privilegiadas questões relativas às gramáticas de gênero, às relações sexuais, aos cuidados de si e ao uso de tecnologias biomédicas.
A abordagem aos usuários/as foi facilitada pela mediação de profissionais dos serviços visitados, pela rede de contatos da equipe de pesquisadores/as e por indicação dos/as entrevistados/as. No caso dos homens, todos estavam inscritos em um dos três serviços de saúde visitados; quanto às mulheres trans e travestis, algumas integravam estudos clínicos sobre PrEP conduzidos em um instituto de pesquisa. Algumas entrevistas foram realizadas nos serviços de saúde e outras em local indicado pelo/a entrevistado/a (geralmente sua residência). Todas as entrevistas foram gravadas mediante autorização e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os nomes utilizados no artigo são fictícios. Os perfis detalhados dos/as entrevistados/as estão descritos nos Quadros 1 e 2.
O roteiro de entrevista contém questões detalhadas acerca da identificação social do/a entrevistado/a, incluindo caracterização individual, familiar e contexto social, seguida de seções extensas sobre uso da PrEP, demais cuidados de saúde sexual e acesso aos serviços de saúde. Aborda aspectos referentes à intimidade, às experiências e visões acerca da esfera afetiva e sexual, a fim de identificar as moralidades subjacentes e como o uso da PrEP se conjugava aos valores e normas associados a essas dimensões da vida.
A análise do material empírico manteve em perspectiva uma tradição de estudos que considera o gênero e a sexualidade como temas produtivos para o exame das intrincadas relações entre processos de modernização e reprodução de lógicas tradicionais manifestados no âmbito das práticas e valores que conformam a dinâmica social (FRY, 1982; DUARTE, 1987; BOLTANSKY, 1989; HEILBORN; CABRAL; BOZON, 2006, entre outros). Estendemos essa orientação analítica para a compreensão das experiências no tocante ao uso da PrEP.
Mesmo reconhecendo o perfil diversificado dos/as entrevistados/as segundo origem familiar, escolaridade, trajetória profissional, renda, o uso de determinadas categorias de autoidentificação sexual, a menção pública dessas identificações e o entendimento da sexualidade como dimensão central para a afirmação de sua individualidade sugerem a marca de ideários igualitários nas narrativas apresentadas nas entrevistas e observações de campo. Identificamos ainda certa uniformidade entre os/as participantes quanto aos modos como concebem seus corpos e adotam cuidados de saúde e de modelação corporal, apresentando-se como empreendedores de si e da própria saúde.
A respeito dessa caracterização, cabem algumas considerações acerca do perfil de usuários(as) da PrEP identificado na pesquisa. A partir do contato com profissionais de saúde e da literatura da área clínica e epidemiológica, notamos uma recorrente preocupação de que a PrEP alcance os indivíduos mais expostos à infecção do HIV, tornando a identificação social dos usuários um aspecto para dimensionar o grau de sucesso dessa estratégia. Em sua pesquisa, Bastos (2019) argumenta que as narrativas dos especialistas sugerem que o uso da PrEP poderia promover um certo empoderamento do “sujeito vulnerável” ao HIV, por meio de um medicamento sob medida que endereçasse não apenas aspectos fisiológicos dos sujeitos, mas também questões sociais (2019, p. 118). No entanto, para a autora, tal empoderamento pressupõe um “cidadão terapêutico e farmacêutico”. Segundo Nguyen (2005), trata-se de uma cidadania biopolítica, um sistema de reivindicações e projetos éticos derivados da conjugação de fenômenos diversos, como a apropriação de conhecimentos biomédicos, a rotinização de exames clínicos, o sentido de responsabilidade sexual, a conformidade com um complexo regime de terapia medicamentosa etc. Tal tipificação não coincide, em muitos casos, com as pessoas consideradas mais vulneráveis ao HIV, sujeitas a situações de maior marginalização e exclusão social. Estudos sobre o perfil social dominante dos sujeitos que buscam a PrEP demonstram que os/as usuários/as apresentam, em geral, bons níveis de escolaridade, boa situação econômica e identificados/as majoritariamente como brancos/as, embora expostos/as a situações de discriminação sexual e de gênero (ZUCCHI et al., 2018; JALIL et al., 2018; JOHN et al., 2017).
Neste sentido, como também observado por Sanders, Owczarzak e Petroll (2019), cabe enfrentar a “questão de saber se a farmaceuticalização da sociedade é de fato desejável para combater o HIV ou se isto distrai de uma abordagem mais ampla dos fatores estruturais subjacentes à prevalência desproporcionalmente alta do HIV em comunidades urbanas empobrecidas” (p.270). Ou melhor, conjugar o enfrentamento da exclusão e desigualdade social nos sistemas de saúde e na sociedade com a utilização de recursos preventivos para o HIV que possam ser incorporados com sucesso pelos mais diversos grupos sociais e não apenas por aqueles/as que porventura se inserem em certa cidadania biopolítica (NGUYEN, 2005), especialmente marcada por classe e raça/etnia na produção da saúde.
Em nossa experiência de campo nos serviços de PrEP identificamos a presença do “cidadão terapêutico” descrito por Bastos (2019). Os profissionais relataram sua preocupação de que a maioria dos/as usuários/as não correspondia exatamente à imagem dos sujeitos mais vulneráveis ao HIV. Para tais profissionais essa vulnerabilidade se definia pela maior dificuldade de incorporar cuidados de saúde e situação material mais precária, aspectos geralmente associados à construção de um cuidado tido como menos preventivo e mais curativo, característico das denominadas classes populares, segundo Boltanski (1989). Grande parte das pessoas presentes nos serviços observados, aparentemente, se enquadraria como socialmente “empoderada”. Salvo poucas exceções, os/as entrevistados/as estavam bem-informados/as sobre prevenção, demonstravam preocupação com a saúde e avaliavam positivamente a inclusão desse recurso de prevenção no SUS.
Biomedicalização e o uso da PrEP: aprimoramento e saudicização
Segundo Clarke et al. (2011), a biomedicalização representa um importante giro histórico com relação aos eventos relativos à medicalização da sociedade. Enquanto a medicalização indica à expansão da medicina e de sua racionalidade sobre domínios diversos da vida social, reconstruindo-os e redefinindo-os; as práticas e os eventos relativos à biomedicalização, por extensão, aponta para as transformações que os recursos tecnocientíficos operam sobre os próprios fenômenos médicos, como as doenças, as disfunções, a saúde e as capacidades corporais. Essa nova configuração diz respeito a processos de medicalização cada vez mais complexos, multissituados e difusos que se estendem atualmente em contextos sociais intensamente condicionados pela produção científica e tecnológica. As intervenções prometem não somente o tratamento das doenças, mas o aprimoramento e a otimização das capacidades físicas e cognitivas.4
No mundo da Aids, esse giro tem sido identificado com a proposição das chamadas novas tecnologias de prevenção ao HIV. Segundo Nguyen et al. (2011), estas indicam “uma impressionante remedicalização da abordagem da epidemia de HIV e um retorno a uma visão do início dos anos 80, quando era tida como um problema médico mais bem abordado por soluções biomédicas puramente técnicas, cujo gerenciamento deve ser deixado para profissionais e cientistas biomédicos” (p. 291). A PrEP e as demais tecnologias biomédicas nos desafiam a entender a maneira como elas incidem sobre as respostas à epidemia, reordenando as prioridades das intervenções sanitárias, o sentido da prevenção e do cuidado, além da posição dos diferentes atores políticos no mundo da Aids. Impõe ainda um olhar cuidadoso sobre os modos como interatuam com os sujeitos, modificando-os e sendo ressignificadas quanto aos sentidos e usos previstos inicialmente.
Embora sejam pensadas para agir sobre processos fisiológicos considerados universais, as inovações biomédicas se definem em função de fenômenos que não constituem um dado ontológico. A saúde, a doença e os corpos humanos estão sempre abertos à significação social. Constituem-se em função dos sistemas normativos e das hierarquias e convenções sociais e históricas. A produção e o uso crescente de recursos biomédicos igualmente incidem sobre as definições dessas entidades, articulando-se de forma plural aos processos de diferenciação e desigualdade sociais. Importa indagar seu lugar nas disputas éticas e políticas. As reflexões sobre aprimoramento e saudicização permitem avançar nessa discussão.
Ao analisar o consumo de medicamentos para o desempenho sexual e cirurgias estéticas, Rohden (2017) assinala que novas formas de subjetivação, centradas no investimento em transformações corporais, ganharam importância, assim como o consumo de artefatos biomédicos considerados inovadores. Seu argumento sobre os investimentos no uso de fármacos e procedimentos cirúrgicos para melhorar o desempenho sexual evidenciam que não é a doença que está em primeiro plano, mas sim a possibilidade de uma construção subjetiva singular.
Ao mesmo tempo, o sentido de aprimoramento expresso nas experiências com a PrEP é acompanhado por um ideal de saúde perfeita, presente na construção dos sujeitos contemporâneos e descrita por meio do conceito de saudicização [helthicization/helthism] (CONRAD, 2007; CAMARGO JR, 2013; CRAWFORD, 1980; ROHDEN, 2017). Tal produção da saúde se faz a partir da singularização e percepção de si como um sujeito não apenas responsável por sua saúde, mas como potencializador de seu estatuto de saudável. Nesta produção maximizada do saudável, lança-se mão de recursos e tecnologias que compõem um espectro de cuidados, como do âmbito cosmético-estético. Os processos de saudicização e aprimoramento têm em comum a localização da saúde/doença no corpo e uma ação prescritiva, preventiva ou potencializadora sobre este. Crawford (1980) define o processo de saudicização [healthism] como a “preocupação com a saúde pessoal como foco primário - geralmente o principal - para a conquista do bem-estar; um objetivo a ser atingido principalmente por meio da modificação de estilos de vida, com ou sem ajuda terapêutica” (1980, p. 368). Esta saudicização diria da saúde pessoal e de uma responsabilidade de cuidado e cura situados no sujeito; processo inscrito em uma conscientização da saúde focada em sua promoção a partir do estabelecimento de estilo de vida e hábitos tidos como saudáveis. Importa aqui refletir como essas dimensões se expressam na experiência dos usuários e usuárias de PrEP.
Durante as entrevistas, ao descrever um dia habitual na vida, os relatos traziam um conteúdo recorrente: o uso da PrEP associado a outros cuidados de saúde e/ou estético-cosméticos.
[...] eu acordo pela manhã e a primeira coisa que faço é tomar a PrEP, depois eu tomo café da manhã, sigo para o trabalho, almoço, volto a trabalhar. No final da tarde eu faço algum exercício físico, academia ou corrida, mas nem sempre, na verdade menos do que eu gostaria... em média umas duas vezes por semana. (Maurício, 32 anos).
Minha rotina? Bom, acordo, pego meus telefones pra descobrir se eu já tenho algum trabalho [como garota de programa com anúncio em site], [...] Se tiver trabalho, eu já levanto, se não, eu dou mais uma enrolada e o meu dia é trabalhar o máximo possível, de preferência o quanto antes pra ficar livre, porque eu estipulo uma meta de trabalho pra conseguir ter tempo pra mim, porque o trabalho suga, se você deixar e as vezes eu faço aeróbico na praia, leio, vejo séries, vou pro shopping com minhas amigas... nada muito específico. (Thaísa, 28 anos).
ENT: E pra você tomar o remédio todo dia, era tranquilo?
EGO: A PEP eu lembrava todos os dias sim [usuário já havia feito uso da PEP antes de iniciar a PrEP]. Eu tomava já um remédio pra cabelo, aí eu colocava já num frasquinho, com os dias, sempre colocava tudo ali... então eu tinha que tomar o do cabelo, as vezes lembrava só do cabelo e tava a PEP ali. A PrEP era a mesma coisa, no início, eu esquecia, eu não tava acostumado a tomar; aí fiz a mesma coisa, coloco no celular também, aí sempre tomei, um dia que eu...
ENT: / mas você continua tomando o do cabelo?
EGO: Tem que usar, meu querido! [rindo] ah, tem que usar se não já era, fica carequinha. (Gilberto, 27 anos).
Ainda que tais relatos pudessem ser enviesados, por inserirem-se numa entrevista sobre PrEP entre usuários/as com boa adesão ao medicamento e aos serviços, foi possível perceber uma incorporação da PrEP a partir de seu acoplamento a outros cuidados relacionados ao corpo e à saúde. Neste sentido, as/os entrevistadas/os se mostravam previamente preocupadas com saúde, aparência e bem-estar, de modo que a PrEP parecia inserir-se em um esforço mais amplo de produção de si segundo certo “paradigma da saúde perfeita, baseado na crença de que é possível evitar e controlar ao máximo os danos de que o corpo padece” (ORTEGA; ZORZANELLI, 2010, p. 74).
A descrição das práticas cotidianas das/os entrevistadas/os indicava a existência de outros cuidados, de modo combinado à PrEP, compondo uma gama de intervenções relativas ao estilo de vida. No caso da PrEP, seu uso se relaciona com especificidades da vida sexual de suas/seus usuárias/os e contribuem para afastar preocupações que as/os afetam na vida pessoal ou profissional, no caso do trabalho sexual. O uso combinado da PrEP com essas tecnologias potencializa seu significado como um “medicamento de estilo de vida”. Conforme sintetiza Nucci (2012):
Essas drogas têm o objetivo de tratar condições que não seriam consideradas patológicas (um risco à vida e à saúde), mas sim problemas que poderiam limitar/ dificultar a vida das pessoas, como a calvície, a falta de atenção e a disfunção erétil, por exemplo. Com isso, as “drogas de estilo de vida” prometem tornar a vida mais confortável e mais agradável. O objetivo, desta forma, é o aperfeiçoamento e o aprimoramento da vida, ... (NUCCI, 2012, p. 128, grifos no original).
A ideia da PrEP como uma tecnologia que promove a referida vida “mais do que boa” pode ser identificada a partir dos diferentes acoplamentos com outros cuidados cosmético-estéticos. Nas histórias relatadas, chama a atenção a dedicação das/os entrevistados/as aos cuidados corporais que remetem ao cuidado de saúde stricto sensu. como afirma Bruno, de 29 anos, “Eu sempre ia no dermatologista, cuidar da pele, fazer checkup, ir no clínico geral”. Todavia, há expressivas referências de práticas de modelação corporal, que integram um ethos e/ou imaginário social característico da forma como as camadas médias urbanas performam certa imagem de si. Tal qual enfatiza Fabiana, de 31 anos, “Então eu gosto dessa coisa, eu gosto de treinar, de fazer musculação e gosto de ter um corpo bacana, é mais pro meu estilo de vida mesmo”.
Esse ethos, referido como um ideal, é marcado pela manipulação voluntarista do corpo como um capital social, produzido a partir de uma imagem encarnada de si e da distinção social que seus resultados venham a promover. Está em jogo um projeto que comporta o consumo e a manipulação de tecnologias do campo biomédico, conforme assinalado por Bruno, bem como a prática de exercícios físicos, citada por Fabiana como parte da rotina.
As/os entrevistadas/os mencionaram ainda cuidados nutricionais vinculados a preocupações com o corpo, como os suplementos sintéticos alimentares – os quais muitas vezes borram as fronteiras de seu estatuto de alimento ou medicamento – e um controle cuidadoso da dieta. O relato destaca as articulações entre esses diferentes recursos e procedimentos:
Faço, faço, [acompanhamento nutricional], por conta da musculação e tal, agora, chegando aos 40 né? ficando velho, tenho que me cuidar [rindo]. (Lucas, 39 anos).
EGO: Por exemplo, eu dei uma parada agora nos suplementos, em alguns suplementos, porque eu acho que não tava me fazendo bem, entende? Os exames em si tavam até normais, mas eu escuto o meu corpo também, o que ele tá dizendo, então assim, se a ciência ta aí, os elementos tão aí, eu vou usar, entendeu? Agora, com ciência, eu não tomo alguma coisa porque o amigo da academia recomendou, porque alguém disse, porque saiu na internet, não, eu procuro pessoas que tem algum saber, que eu tenha confiança, porque pode ter saber, mas eu não ter confiança né? E vou me orientando e escutando meu corpo também, entendeu? (Wallace, 54 anos).
Entendemos que as práticas de autocuidado são centrais nos modos de subjetivação, contribuindo para a construção de estilo de vida biomedicalizado. Não queremos afirmar que a PrEP possua o mesmo status dos recursos cosmético-estéticos, como suplementos alimentares, exercícios físicos, entre outros. Porém, na vida cotidiana essas tecnologias e recursos parecem, em geral, se acoplar perfeitamente bem. No ordinário da vida e na imagem total que se constrói para si, a PrEP transcende o status stricto sensu de um medicamento-tratamento. A prevenção e o estatuto de “saudável” não deixam de ser um “aprimoramento” mais amplo de si e de suas potencialidades corporais, visando a conquista de algo tido como “qualidade de vida” (AZIZE, 2006). As entrevistas nos mostram como se dá a produção da vida aprimorada em torno da prevenção ao HIV. Ao sugerir a possibilidade de uma “vida mais do que boa”, o uso da PrEP remete às tensões, limites e fronteiras entre a construção de uma “vida saudável” e uma “vida aprimorada” (ROHDEN, 2017).
Tecnologias de prevenção, subjetividade e gênero
Como argumentamos, o caráter ambíguo da PrEP se deve ao fato dela se situar em região imprecisa entre a prevenção ao HIV e o ideal de saudicização, por um lado, e as possibilidades para a dimensão sexual da vida dos sujeitos e a construção de si, por outro. Essa experiência comporta ainda questionamentos por parte dos sujeitos. Conforme expresso por Maurício:
Na verdade, quando tomei a decisão de tomar a PrEP, a barganha interna que fiz: “pô, de fato, vou passar a vida inteira tomando um remédio, todos os dias, como quem tem uma doença crônica, pra uma doença que de fato não tenho?”. Eu não tenho a doença, não sou soropositivo, então será que vale a pena todos os dias tomar remédio por causa de um medo paranóico de se contaminar com HIV... e aí, o que pensei foi que esse medo e essa paranoia estão tão incrustrados na maneira como me entendo, como eu penso hoje, que vale a pena sim, não arrisco não (Maurício, 32 anos).
Na reflexão de Maurício, embora o “medo paranoico de se contaminar com HIV” apareça de forma evidente; não está em primeiro plano, dado que o medo está “incrustrado” na maneira como ele se entende, compondo-se com o que entende ser a vida de um jovem gay urbano.
Acerca desta produção de si, cabe observar que as formas de coprodução e apropriação dos recursos biomédicos são marcadas por regras de gênero e, simultaneamente, implicam a reinscrição das diferenças de gênero nos corpos (MONTGOMERY, 2012; MANICA; RAMÍREZ-GALVEZ, 2015; ROHDEN, 2017), prometendo instaurar ou acentuar características tidas como femininas ou masculinas. No caso, da PrEP, esta parece acoplar-se bem a outras tecnologias produtoras e constitutivas deste sujeito, em especial as tecnologias de gênero.
Lauretis (1994) conceitua como tecnologia de gênero o dispositivo e/ou aparatos diversos constitutivos de si, nos quais a produção social do gênero se faz “como produto e processo de um certo número de tecnologias sociais ou aparatos biomédicos” (1994, p. 208), que visam inscrever sujeitos generificados na vida social. Este processo se daria através dos mais diversos discursos (ex. cinema, mídia) e das práticas sociais e biomédicas, encontradas em nossas entrevistas, como a prática regular de exercícios físicos, uso de suplementos alimentares, alimentação balanceada ou a manipulação de hormônios, em especial no caso das mulheres trans e travestis.
Ademais, tais cuidados se associam a promessas de distinção e reconhecimento social. A experiência dos sujeitos com as biotecnologias tem se tornado cada vez mais publicizada, sendo os relatos construídos por meio de categorias como “autoestima”, “confiança”, “realização” e “qualidade de vida” (ROHDEN, 2017; AZIZE, 2006; DEPPE, 2001). Os ordenamentos de gênero quando se intersecionam com os de classe dão um contorno particular aos processos de subjetivação mencionados.
Diferentes estudos têm demonstrado os modos como a adesão de homens e mulheres às intervenções biomédicas implicam uma modelação físico-moral. Ademais, evidenciam as complexas operações de tradução de intervenções do campo cosmético-estético para o idioma da saúde e vice-versa, como os trabalhos de Naidin (2016), sobre o projeto de ascensão social via cirurgias estéticas e/ou uso de hormônios anabolizantes em contextos populares; de Edmonds (2010) e Jarrín (2017) acerca da transformação das cirurgias plásticas em “direito à saúde” e capital social no Brasil; de Tramontano (2018) sobre o uso recreativo de testosterona por homens gays das camadas médias na busca por certa “virilização empoderadora”; de Silva Junior (2018) acerca da construção da noção de feminilidade e sua consequente exigência materializada na face de travestis e mulheres transexuais; de Pereira e Ayrosa (2012) sobre a construção do corpo “gay carioca”, moldado a partir de exercícios físico exibido em praias da zona sul do Rio de Janeiro.
Segundo essa literatura, a manipulação do corpo, por meio de intervenções cirúrgicas, exercícios físicos e/ou drogas farmacológicas, busca construir determinada imagem encarnada de si, ressaltando atributos valorizados pelo grupo social, como juventude, feminilidade, masculinidade, beleza. Tais constructos aparecerão como exigência moral porque são percebidos e construídos como algo que faz parte do ethos desses coletivos, muitas vezes naturalizados, indissociáveis da corporalidade e única forma possível de subjetivação.
A categoria belo-saudável poderia ser vista como uma construção físico-moral recorrente do estilo de vida das camadas médias. Se a PrEP pode ser um medicamento associado ao “estilo de vida”, cabe analisar como um corpo saudável-belo se constrói de modo conjugado a tal medicamento. A primeira observação é a coincidência do perfil corporal das camadas médias com o perfil socioeconômico de usuários/as da PrEP na pesquisa,5 aspecto já assinalado em outros estudos (HOAGLAND et al., 2017; MAGNO et al., 2019).
Mais do que o uso de determinada droga com um fim específico, nota-se entre os/as usuários/as da PrEP o manejo de um saber reflexivo sobre o corpo, que será maior quanto mais alta for a classe social e escolaridade (BOLTANSKI, 2004). Neste sentido, merece destaque o uso de hormônios pelas entrevistadas trans e travestis e de investimentos estéticos não invasivos (cuidados com pele, unhas e cabelos) relacionados à construção da feminilidade. Ambos seguem um ideal de corpo feminino das camadas médias, marcado por “traços corporais percebidos como não “exagerados” e/ou “proporcionais” (SILVA JUNIOR, 2016; EDMONDS, 2010). O investimento neste tipo de feminilidade visaria inserir mulheres transexuais e travestis nas feminilidades moralmente tidas como nobilitadas das camadas médias. Esse modelo corporal “proporcional” se contrapõe aos modelos de travestis de gerações anteriores, associados ao imaginário social de certa marginalidade do passado. Esse ideário muitas vezes é naturalizado, como reiterou Fabíola, 25 anos: “vaidade normal das meninas, sempre me maquiei, sempre fiz minhas unhas né... [...] agora que eu tô indo mais no salão. Mas sempre me cuidei né, fiz minha sobrancelha, enfim... vaidade normal de uma menina”.
Entre as mulheres trans e travestis entrevistadas, a construção físico-moral da feminilidade está fortemente apoiada no conhecimento e uso de hormônios, também identificado em contextos de classes populares, especialmente nas novas gerações (MONTEIRO; BRIGEIRO, 2019). A maioria das trans entrevistadas revelou um saber ainda mais refinado: a manipulação de hormônios conjugada à PrEP, tendo em vista eventuais efeitos colaterais. O caso de Fabíola, de 25 anos é ilustrativo.
EGO: Eu tomei... Cicloprimogyna, Espironolactona, a princípio, eu tô no processo do ‘Coorte Trans’ né, eu já fiz a inclusão recentemente e a minha consulta agora de retorno pra falar com o endocrinologista agora dia 29, então esse período todo eu não peguei numa receita hormonal, eu tenho me medicado sozinha, porque eu estudei muito sobre a questão de dosagem hormonal, então tô tomando Espironolactona com Acetato de Ciproterona e Climene, que é uma droga tomada de 12 em 12 horas, somente isso... Já apliquei duas vezes a Perlutan, porém prefiro excluir a Perlutan da minha vida, porque... é um... anticoncepcional nocivo pra minha saúde (Fabíola, 25 anos).
Outras entrevistadas afirmaram diversos tipos de modificação corporal: Sandra, 36 anos, afirmou: “coloquei prótese no seio, fiz nariz e raspagem do pomo de adão. Aí as outras coisas de transição né, cabelo, tintura, enfim, você vai fazendo tudo isso, mas especificamente de mudança corporal, foi isso”. Thaísa, 28 anos disse: “fiz uma coisinha no nariz assim... como que chama? [se referindo à amiga] é uma bioplastia, mas é reversível, é um enxerto que fazem com seringa”. Ao serem indagadas sobre outras modificações no corpo, elas referiam tratamentos capilares, maquiagem e outros mais invasivos, como uso de próteses de silicone e/ou silicone líquido industrial. Há uma grande incorporação dos recursos e ideário biomédico-farmacológico na constituição de si por este grupo de usuárias.
A maioria das entrevistadas referiam uma preocupação inicial sobre a incompatibilidade da PrEP com o uso de hormônio e buscavam se informar a respeito. Jéssica, 24 anos, no início tinha receio de “fazer mal, mas não vai me deixar pegar HIV”. Quando “disseram que não dava interferência” ela se tranquilizou e continuou a usar ambas as tecnologias. O uso continuado da PrEP parece ser maior quando se afasta dos riscos de incompatibilidade com o uso de hormônios. No caso das usuárias que faziam o tratamento em centros de pesquisa, tal preocupação encontrava respaldo na própria instituição, que oferecia acompanhamento profissional regular para o desejado uso de hormônios.
Diante da preocupação em compatibilizar a PrEP com os cuidados de si e as tecnologias de gênero, 2 gays e 2 travestis interromperem a profilaxia, exemplificado pelo relato de Sandra, 36 anos:
EGO: [...] eu parei ano passado, porque queria fazer laser e o Truvada é fotossensível, se você tiver com o Truvada no corpo, você pode ficar com manchas... tomando sol ou fazendo laser, então parei por isso; mas fiquei mais ou menos uns três anos usando.
No caso de Samuel, o abandono da PrEP se deu a partir de uma elaborada análise sobre os riscos do uso do medicamento para o seu corpo e do tipo de controle sanitário envolvido:
[...] eu achava que era mais uma forma de prevenção, entendeu?..., mas aí depois ... Eu comecei a fazer uma crítica a mim mesmo... comecei a refletir, ... “será que preciso mesmo usar a PrEP, se eu uso preservativo? ” Tudo bem, é mais um reforço né, mas eu tava vendo também a questão do, ... o que meu corpo tava demandando de mim, então foi um pouco também a minha deixada da PrEP né...[...] é um produto muito novo, a gente não tem um estudo de um período, é.... muito longo, como tem do anticoncepcional e tudo mais, de hoje em dia a gente vê vários estudos problematizando sobre o uso. Então, eu também fiquei um pouco receoso com relação a isso, de eu estar dentro, envolvido dentro de uma biopolítica e... E o que vem depois disso, de 10 anos? O que esperar do meu corpo? Será que vai ficar deformado, não vai deformar? (Samuel, 34 anos).
Se os hormônios são uma das tecnologias de gênero preponderantes na construção dos corpos de travestis e mulheres trans, no caso dos homens gays destaca-se a recorrência à malhação. Ainda que tais usos possam ganhar sentidos distintos, queremos salientar que em ambos os casos a tecnologia utilizada se insere na produção generificada daquele corpo segundo um ideal normativo de beleza e saúde bastante marcado por classe. Mesmo que os perfis dos gays entrevistados fossem diversos, predominava entre eles um perfil modelar, marcado por uma performance de gênero viril, corpos malhados e vestimentas e acessórios estéticos associados a determinado universo gay das camadas médias (FRANÇA, 2012; PEREIRA; AYROSA, 2012).
Ressaltamos que as entrevistas foram feitas por um pesquisador gay cisgênero (AL). Para as mulheres trans e travestis, o pesquisador era visto como alguém que supostamente poderia desconhecer tal tema e para quem tais informações pudessem ser relevantes. Para os homens gays, o processo de construção corporal e de gênero se supunha mais “naturalizado” entre pares ou evidente de certo modo de subjetivação gay e que, portanto, deveria ser subentendido pelo pesquisador.
Embora nosso argumento enquadre essas construções corporais em uma matriz comum de aprimoramento, medicalização e saudicização, o sentido de saúde e aprimoramento nem sempre são óbvias para os sujeitos. Certamente o mundo dos hormônios é mais relacionado à construção de gênero que o uso de suplementos alimentares e academia.
Seja pelo uso de hormônios e malhação pelas mulheres trans e travestis, seja pela malhação, medicamentos e outros suplementos pelos homens gays, há a construção de um corpo belo-saudável modelado por várias tecnologias biomédicas. Isto diz de uma afirmação de si, bem como pode se contrapor ao estigma relacionado à homossexualidade e à transgeneridade. O relato de Jéssica sobre como evitava ser discriminada socialmente, é exemplar: “Eu fiz a minha transição, eu quero ser mais feminina... infelizmente, quanto mais feminina você é, mais passável você é, menos discriminação você vai sofrer. Então acho que é mais isso que aconteça comigo” [Jéssica, 24 anos].
O que parece estar sendo produzido é a singularização dos sujeitos (ROHDEN, 2017), no que se refere ao uso das tecnologias biomédicas. A conjugação destas com as tecnologias de gênero implica um modo particular de construção de si. Nela, integram-se como princípios morais uma preocupação com sua própria saúde (e as modalidades de suas práticas sexuais), a manipulação biomédica e estética de seus corpos e a construção de uma imagem de si bela. É neste sentido que entendemos como as concepções e práticas de saúde dos usuários e usuárias de PrEP se mostram enquadradas na relação gênero-classe que a possibilita.
Considerações finais
As narrativas dos/as usuários/as entrevistados/as sugere que o uso da PrEP está associado a modos de subjetivação e práticas de cuidado particulares. Os motivos que justificam sua procura, as ponderações sobre a rotina de tratamento e as implicações e importância em suas vidas social e afetiva são úteis para pensar os efeitos do regime fármaco-biomedicalizado nas experiências singulares de gays, travestis e mulheres trans.
Esta singularização nas formas de produção de si, via aprimoramento biomédico e estético-cosmético, abre a possibilidade de a PrEP ser uma tecnologia mais facilmente incorporada por estes/as usuários/as consumidores/as. Nesse sentido, a PrEP parece ter encontrado sua “casa” num corpo embodiment saudável, em um encontro sinérgico entre estas tecnologias; desde a rotina de uso do medicamento até seus efeitos e processo de subjetivação mais geral. Para a grande maioria das pessoas entrevistadas, a PrEP se acopla a um cuidado de si prévio, o que indica a localização social de seus/as usuários/as em termos de classe e a forma reflexiva a partir da qual percebem sua saúde.
Em suma, buscamos mostrar como o perfil dos/as usuários/as de PrEP era composto majoritariamente por pessoas que dominam a gramática cada vez mais biomedicalizada da prevenção ao HIV (FERRARI, 2018). E que acabam sendo as mesmas pessoas passíveis de encarnar (embodiment) mais facilmente este recurso como um cuidado em saúde e um recurso a mais para uma vida melhorada.
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Desde 2008, com o iPrEx – primeiro ensaio clínico de PrEP com humanos -, o Instituto Nacional de Infectologia (INI) da Fiocruz, e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) vinham desenvolvendo estudos, com s centros de pesquisa internacionais, sobre eficiência e eficácia da PrEP junto a esses segmentos populacionais. O Brasil foi o primeiro país latino-americano a incorporá-la
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A PEP consiste no uso de medicamentos antirretrovirais para impossibilitar a infecção nas situações de exposição recente ao vírus (até 72 horas), tendo sido disponibilizada no SUS há mais de 10 anos. Inicialmente era preconizada para casos de acidentes com material biológico, decorrente da atuação ocupacional ou de violência sexual. Posteriormente, passou a ser oferecida para todos os casos de exposição sexual ao vírus (relações sexuais consentidas sem uso do preservativo).
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Trata-se do estudo “Biomedicalização da resposta à Aids: o acesso de gays, mulheres trans/travestis e prostitutas às profilaxias pré e pós exposição na região metropolitana do Rio de Janeiro”. Orientada pelos estudos sociais da ciência e da tecnologia, a pesquisa analisa a implementação da PrEP e da PEP nos serviços de saúde e as experiências de uso, focalizando as moralidades de gênero, sexuais e de classe implicadas na proposição das mesmas. O trabalho de campo foi realizado entre janeiro de 2019 e fevereiro de 2020 e envolveu pesquisa documental, observação nos serviços, entrevistas com usuários gays/homossexuais, mulheres trans/travestis, mulheres cis trabalhadoras sexuais, gestores, profissionais de saúde e lideranças comunitárias. Apoio: INOVA geração do conhecimento/Fiocruz. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (CAAE 16076619.2.0000.5248) e seguiu os procedimentos éticos previstos
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Esta e as próximas citações de originais em inglês serão traduções livres.
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No Quadro 1, há três usuários gays com renda inferior aos demais (entre R$900,00 e R$1.500,00), mas como viviam com suas famílias, a renda pessoal era complementada pelo núcleo familiar. Ademais, o denominado ethos das camadas médias urbanas não se restringe à renda; implica valores e modos de subjetivação marcados pela classe social.
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Editora responsável: Rozeli Porto
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
15 Dez 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
11 Nov 2021 -
Aceito
16 Mar 2023 -
Revisado
08 Set 2022