Resumo
A Reforma Psiquiátrica Brasileira produziu grandes transformações no cuidado em saúde mental, porém ainda é um desafio tornar as experiências pessoais o eixo central dos tratamentos. O movimento do Recovery, em que a remissão dos sintomas é descentralizada e a ênfase recai na busca de vida gratificante na comunidade, pode trazer ensinamentos. A pesquisa descreveu a experiência de adoecimento e estratégias para “tocar a vida” de pessoas com esquizofrenia no contexto da Atenção Primária à Saúde, conhecendo o que fazem para se ajudar na lida diária com os problemas gerados pelo transtorno mental. O cenário é uma Unidade Básica de Saúde no centro do Rio de Janeiro e a pesquisa, de inspiração etnográfica, realizou entrevistas narrativas com quatro pessoas com esquizofrenia com autonomia e acompanhadas exclusivamente na APS e dois familiares. Resultados sugerem que religiosidade, trabalho e renda foram relevantes para a recuperação dos entrevistados e o olhar da família reforçou o estigma. A análise exigiu superação de olhar esquemático sobre reabilitação psicossocial e o conceito de Recovery. A importância deste estudo é trazer para o centro da análise caminhos construídos pelos próprios sujeitos para a tocar a vida, além de debater o conceito de Recovery no cenário da APS.
Palavras-Chave: Recovery; Atenção Primária à Saúde; Esquizofrenia; Pesquisa qualitativa; Experiência de adoecimento
Abstract
The Brazilian Psychiatric Reform produced major transformations in mental health care, but it is still a challenge for personal experiences to become the central axis of treatments. The Recovery movement, in which the remission of symptoms is decentralized, and the emphasis of care is on the search for a fulfilling life in the community, can bring lessons. This research describes the illness experience and strategies to go on with the life of people with schizophrenia finding what they do to help themselves in their daily struggle. The study setting is a Basic Health Unit in the center of Rio de Janeiro. The research, which has ethnographic inspiration, conducted narrative interviews with people diagnosed with schizophrenia who preserved autonomy, followed exclusively in Primary Care and their relatives. The results suggest that religiosity, work, and income were relevant to the recovery of the interviewees and that family care reinforced the stigma of the disease. The analysis required overcoming the schematic view of psychosocial rehabilitation and the Recovery concept. The relevance of this study is to place paths that subjects built themselves to go on with life in the center of the analysis and to debate the concept of Recovery in Primary Care. Resumo: A Reforma Psiquiátrica Brasileira produziu grandes transformações no cuidado em saúde mental, porém ainda é um desafio tornar as experiências pessoais o eixo central dos tratamentos. O movimento do Recovery, em que a remissão dos sintomas é descentralizada e a ênfase recai na busca de vida gratificante na comunidade, pode trazer ensinamentos. A pesquisa descreveu a experiência de adoecimento e estratégias para “tocar a vida” de pessoas com esquizofrenia no contexto da Atenção Primária à Saúde, conhecendo o que fazem para se ajudar na lida diária com os problemas gerados pelo transtorno mental. O cenário é uma Unidade Básica de Saúde no centro do Rio de Janeiro e a pesquisa, de inspiração etnográfica, realizou entrevistas narrativas com quatro pessoas com esquizofrenia com autonomia e acompanhadas exclusivamente na APS e dois familiares. Resultados sugerem que religiosidade, trabalho e renda foram relevantes para a recuperação dos entrevistados e o olhar da família reforçou o estigma. A análise exigiu superação de olhar esquemático sobre reabilitação psicossocial e o conceito de Recovery. A importância deste estudo é trazer para o centro da análise caminhos construídos pelos próprios sujeitos para a tocar a vida, além de debater o conceito de Recovery no cenário da APS.
Keywords: Recovery; Primary Health Care; Schizophrenia; Qualitative research; Illness experience
Introdução
No contexto da redemocratização brasileira, o movimento de luta antimanicomial, reunindo usuários, familiares e trabalhadores, ganhou espaço nos campos político, jurídico, científico, social e cultural e produziu transformações no cuidado em saúde mental, construindo uma nova rede de serviços comunitários, em substituição ao modelo manicomial. Esse processo foi denominado reforma psiquiátrica brasileira (RPB) (Amarante, 1998).
Este movimento lutou por novos serviços de saúde mental com equipes multiprofissionais, redução de leitos e fechamento de hospitais (Onocko-Campos et al., 2017). Passados 20 anos da lei 10216/2001, um desafio, dentre outros, persiste: tornar as experiências das pessoas eixo central dos projetos de cuidado para auxiliá-las em seus processos pessoais de recuperação (Serpa et al., 2014; Onocko-Campos et al., 2017).
Experiências internacionais, como o movimento do Recovery 1 (recuperação pessoal), com trajetórias históricas diferentes, podem trazer ensinamentos para a RPB. Experiências essas, que tiveram o protagonismo de pacientes e ex-pacientes, podem oferecer pistas para o enfrentamento desse desafio. Esses vários movimentos, a despeito das diferenças entre eles, têm em comum forte defesa ao direito de escolha dos usuários, crítica à psiquiatria e ao seu modus operandi baseado no diagnóstico e na medicalização, produção de novas ferramentas clínicas e serviços como apoio de pares, estímulo ao cuidado centrado na pessoa e na tomada de decisão compartilhada, promoção de inclusão social e a autodeterminação, independentemente dos níveis de sintomas (Davidson, 2016; Onocko-Campos et al., 2017). Neste estudo, examinou-se o movimento do Recovery.
Na perspectiva do Recovery, as noções de cura e remissão dos sintomas são descentralizadas e a ênfase recai sobre dois eixos de igual valor: direitos dos indivíduos e busca por uma vida significativa e gratificante na comunidade, apesar da condição psiquiátrica. Elementos como esperança, propósito, autoidentidade, conexão com a comunidade, espiritualidade, superação do estigma e gerenciamento de sintomas são essenciais para esse processo, nomeado aqui também como recuperação pessoal (Deegan, 1997; Schrank; Slade, 2007). O Recovery é um processo profundamente pessoal, único, de mudança de atitudes, valores, sentimentos e objetivos. Uma maneira de viver uma vida satisfatória, esperançosa e produtiva, mesmo dentro das limitações do adoecimento (Anthony, 1993).
O processo do Recovery, todavia, envolve e não se dissocia dos contextos culturais e sociais das pessoas com transtornos mentais, suas famílias e comunidades e das variações e formas que os distúrbios mentais são entendidos, diagnosticados e tratados. Diferentes noções do que constituem resultados desejáveis de recuperação, saúde e bem-estar são e foram assim produzidas. As formas de Recovery, enraizadas nas experiências pessoais, não se produzem necessariamente nos consultórios, mas no contexto da vida cotidiana. Variam assim nas diferentes culturas e, justo por serem processos abrangentes e que envolvem aspectos individuais, sociais, além de fatores materiais (Biringer et al., 2015), alcançam diferentes expressões ao redor do mundo (Kirmayer et al., 2012).
Em razão disso, o primeiro passo para construir cuidados na perspectiva do Recovery é conhecer o que os próprios usuários fazem para ajudar a si mesmos na luta diária com os problemas gerados pelo transtorno mental (Biringer et al., 2015). Tais estratégias, que são não apenas marcas pessoais, mas também culturais e sociais do processo de lida com a experiência, podem ser pistas importantes para a construção dos caminhos do tratamento e de projetos de cuidado que sejam culturais e experiencialmente sensíveis. Como se expressariam tais estratégias no âmbito da APS?
Os serviços de saúde que atuam no nível da APS são aqueles que têm maior proximidade com a vida das pessoas e possuem forte vinculação com o território onde atuam, buscando agir de forma articulada com os demais equipamentos sociais, sejam eles públicos ou da própria comunidade. No Brasil, inclusive, incorporam pessoas da comunidade entre seus profissionais, os Agentes Comunitários de Saúde, o que amplifica a capacidade destas equipes atuarem no contexto comunitário. Além disso, a clínica da APS possui princípios coincidentes com os do Recovery. Autonomia, busca de uma vida satisfatória na comunidade a partir de um cuidado centrado na pessoa, longitudinal, construído a partir do contexto sociocultural, são eixos coincidentes do cuidado na APS e de um cuidado orientado pelo Recovery. Por estas características, um cuidado para as questões de saúde mental sob essa orientação poderia se dar também, e especialmente, nesse nível assistencial.
Lancetti (2002) afirma que a atenção à saúde mental no contexto da APS consiste na radicalização da reforma psiquiátrica. O cuidado das pessoas em casa e no âmbito comunitário é potencializador de recursos espontâneos e originais das próprias famílias. A partir desses recursos, poderiam ser construídas, com o usuário, estratégias fortalecedoras de sua autonomia e, portanto, produtoras de saúde. O risco de que a pessoa em sofrimento fosse exposta a um cuidado em saúde mental em dispositivos que desconsideram seu contexto de vida, e o empurram para a carreira de doente mental, seria minimizado.
Soma-se a isso o fato do campo teórico da Medicina de Família e Comunidade (MFC) também possuir princípios, práticas e pressupostos que dialogam com o Recovery. McWhinney (2010) define princípios desta especialidade, assinalando que os MFC são comprometidos com as pessoas e não com um conjunto de conhecimentos, doenças e procedimentos e que estão disponíveis para problemas de homens e mulheres, em qualquer idade. Além disso, estes profissionais procuram entender o contexto e a experiência com a doença (Stewart et al, 2017). O MFC, assim como outros profissionais da APS, são parte da rede comunitária de agências de apoio e de atenção à saúde. O entendimento do contexto social e cultural da doença, sua determinação social, a dimensão cultural da experiência com a doença e a autogestão são pressupostos deste cuidado (Greenhalgh, 2007).
Este artigo, fruto da dissertação de mestrado que estudou o cuidado ofertado a pessoas com diagnóstico de transtorno mental grave na APS e os caminhos para a recuperação pessoal (Recovery) de pessoas com esquizofrenia acompanhadas exclusivamente neste nível de atenção parte da pergunta: “Como pessoas com diagnóstico de esquizofrenia, moradores do território de uma Clínica da Família (CF) do município do Rio de Janeiro e acompanhados exclusivamente na APS, construíram estratégias de tocar a vida e experienciam seu adoecimento?” Metodologia qualitativa, de caráter etnográfico, foi utilizada para abordar a questão.
Observar a vida de pessoas com diagnóstico de esquizofrenia, com o objetivo de identificar suas estratégias de “tocar a vida” cotidiana e sua experiência de adoecimento pode nos dar sinais de formas nativas, expressões do contexto vivenciado pelos sujeitos, de produção de formas de viver satisfatórias em sua realidade. Pistas sobre aspectos culturais e sociais envolvidos nas estratégias desenvolvidas pelas pessoas, que contribuíssem para o desenvolvimento de modos de cuidar orientado pelo Recovery, também foram investigadas. Esta pesquisa foi aprovada por Comitê de Ética em Pesquisa, CAAE nº 78781717.5.0000.5263.
Metodologia
Trata-se de um estudo qualitativo, de inspiração etnográfica (Flick, 2009), composto por duas partes. No primeiro componente, que teve como objetivo conhecer o campo, as etapas foram:
a) levantamento de prontuários de pessoas com transtornos mentais graves atendidas na UBS;
b) análise da qualidade do cuidado ofertado a essas pessoas através da avaliação das variáveis: diagnóstico, acompanhamento em serviços especializados, medicações em uso, história clínica no prontuário e projetos terapêuticos;
c) percepção das equipes sobre o que compreendiam como transtornos mentais graves;
d) Discussão com os trabalhadores a partir dos dados levantados.
O segundo componente, objeto deste artigo, foi composto basicamente por entrevistas sobre a experiência de adoecimento das pessoas com transtornos mentais graves atendidas na unidade de atenção básica.
Foram realizadas 13 entrevistas narrativas com quatro pessoas com diagnóstico de esquizofrenia e dois familiares sobre a experiência do adoecimento, suas percepções sobre o transtorno mental e as formas como conduzem a vida cotidiana. As entrevistas foram audiogravadas e posteriormente transcritas. Também foi utilizado o Caderno de Campo.
Para as entrevistas narrativas, utilizou-se como critério de inclusão sujeitos com diagnóstico de esquizofrenia acompanhados exclusivamente na APS, estáveis clinicamente, com razoável grau de autonomia, capazes de conduzir a vida de forma independente em aspectos fundamentais como se alimentar, ter moradia, ser capaz de trabalhar e de interagir com a comunidade para questões objetivas. Foram escolhidos por conveniência e indicados pelos profissionais do serviço de saúde onde o estudo ocorreu. Foram selecionados dois homens e duas mulheres, sendo dois dos participantes com mais de 40 anos e os outros com até 30 anos. Apenas dois familiares desses usuários conseguiram ser contactados e participaram das entrevistas. Foram realizadas, 11 entrevistas com pessoas com esquizofrenia e duas entrevistas com familiares. Um dos participantes não realizou a terceira entrevista por incompatibilidade de datas, o que não foi considerado prejudicial ao conjunto da pesquisa.
As entrevistas das pessoas com diagnóstico de esquizofrenia tiveram, em sua totalidade, uma duração de 452 minutos e 56 segundos e as entrevistas com os familiares tiveram um total de 65 minutos e 23 segundos.
As entrevistas ocorreram na casa dos participantes o que, em conjunto com a “seção sobre o cotidiano”, possibilitou a observação do cotidiano. Foi aplicado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). O anonimato foi garantido usando-se pseudônimos na apresentação dos resultados.
Ocorreram três entrevistas com cada uma das quatro pessoas com esquizofrenia:
a) Primeira Entrevista: “Me conte tudo que você achar importante pra eu conhecer a sua história” (Charon, 2015). Com esta questão aberta optou-se por oferecer ao narrador a delimitação da relevância do que deverá ser narrado. Em contraste com uma lista de medições ou uma descrição do resultado de um experimento, não existe uma definição evidente do que é relevante ou do que é irrelevante em uma narrativa particular. A escolha do que dizer e o que omitir reside inteiramente no narrador e pode ser modificada, a seu critério, pelas questões do ouvinte (Greenhalgh; Hurwitz, 1999).
b) Segunda Entrevista: avaliou a forma como narram a experiência de adoecimento e que impacto produziu na vida. Para alcançar tais objetivos utilizou-se dois dos módulos da McGill Illness Narrative Interview – MINI, um modelo de entrevista para a pesquisa dos sentidos e dos modos de narrar a experiência do adoecimento. Usou-se a seção I (narrativa sobre a experiência inicial do adoecimento) e a seção V (impacto sobre a vida) (Leal et al., 2016).
c) Terceira Entrevista: feedback das entrevistas anteriores. O pesquisador realizou um resumo dos achados das entrevistas anteriores, sucinto e descritivo em forma de texto e leu ao entrevistado. A partir disso, foi solicitado que a pessoa complemente, refute ou corrija informações apresentadas.
d) Entrevistas com familiares: Na pesquisa qualitativa, a utilização de mais de um ponto de vista sobre o fenômeno pode contribuir para maior qualidade da análise. Estratégia semelhante foi utilizada por Noiseux et al. (2010), utilizando a perspectiva da pessoa, de um familiar e do profissional de saúde no processo de Recovery. Foram entrevistados familiares com papel importante no cotidiano do sujeito. Abordou-se a experiência e percepção do familiar sobre o adoecimento da pessoa.
e) Seção sobre o cotidiano: Com o objetivo de conhecer em detalhes a dinâmica de vida das pessoas com transtorno mental grave, na primeira, segunda e terceira entrevistas, uma seção sobre o cotidiano foi acrescida aos roteiros acima apresentados. Nessa parte da entrevista buscou-se reconstruir, em detalhes, o dia anterior ao da entrevista. Estratégia semelhante de investigação do cotidiano foi usada por Poirel e Corin (2011).
A análise das entrevistas narrativas se deu por ordenação, tipificação/categorização e análise de conteúdo, conforme as proposições de Minayo (2012).
Contexto do estudo
A Clínica da Família localiza-se no centro do Rio de Janeiro e atende aproximadamente 30 mil pessoas. Essa região não possui nenhum Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). O único dispositivo especializado em Saúde Mental é um Hospital Psiquiátrico, com baixa articulação com os serviços de saúde do território. A UBS contava com oito equipes de Saúde da Família e não possuía Núcleos Ampliados de Saúde da Família (NASF). O pesquisador atuava como MFC em uma das equipes em que a pesquisa ocorreu. Os dados foram coletados entre janeiro e março de 2018.
Resultados
Os resultados das entrevistas serão apresentados individualmente, através de descrição que sintetiza o conteúdo apreendido pelas narrativas dos participantes. Também serão apresentadas características individuais (Tabela 1) e da história de vida dos entrevistados, permitindo ao leitor compreender seus contextos.
Homem, 25 anos, heterossexual, branco, solteiro, cristão não praticante e beneficiário do BPC (Benefício de Prestação Continuada). Possui Ensino Médio incompleto e mora com os pais. No final da adolescência, apresentou uma crise que ocasionou internação em hospital psiquiátrico. Faz acompanhamento por conta do diagnóstico de esquizofrenia desde então. Possui também uma doença oftalmológica, que tem reduzido progressivamente sua acuidade visual.
João se descreve como alguém “diferente” das outras pessoas e isso é vivenciado como uma marca pessoal. Tal característica surge ao narrar os momentos de bullying vividos na escola e também na recorrente comparação de sua vida com outras pessoas, como o pai, o irmão e colegas da escola, majoritariamente com uma conotação negativa de si. Sua relação com o mundo é marcada pelo constante enfrentamento de grandes dificuldades impostas por suas limitações:
É, eu sofri até bullying na escola, muito bullying mesmo. [...] eles não conseguiam me entender e eu não conseguia entender eles [...] tacavam bolinha… às vezes, chegavam até me chutar. Mas eu não sabia por que eles faziam isso…. eu não via nenhum outro colega da escola sofrer isso.
Narra uma de suas primeiras crises como uma sensação de estresse intenso vivido no ambiente de trabalho a qual chama de estresse pós-traumático. O que ele chama de trauma é algo complexo, associado a diversos fatores: exposição ao público, o ambiente do trabalho, a sobrecarga, o deslocamento no transporte público e a impossibilidade de manejar o estresse.
Apesar de todas as dificuldades, no momento da pesquisa, João vivenciava um momento de superação que foi promovida pelo acesso a bens, principalmente dinheiro e não por mudanças em características pessoais. A possibilidade de realizar alguns projetos como emagrecer, namorar, ter condições de pensar em ter um filho, são, neste momento, os descritores do seu processo de recuperação pessoal em curso.
Hoje eu tô numa fase bem melhor, porque o dinheiro ele ajuda as pessoas a ter uma estabilidade [...] E engordar mais não traz felicidade pra ninguém… Aí, quando eu emagreço… eu me sinto feliz. Aí, por isso que eu tô mais feliz hoje… tô com mais planos… eu até tô com uma namorada.
Sua religiosidade tem papel importante nas estratégias de lidar com os sintomas do adoecimento. As orações, aprendidas no contexto de uma família evangélica, servem-no na “neutralização” de sensações e pensamentos incômodos. Já frequentou a igreja da mãe, mas não se identifica como evangélico. Apesar disso, a fé, a oração e a religiosidade têm um lugar de conforto e alívio nos momentos de maior mal-estar, mostrando ser uma ferramenta apreendida a partir de seu contexto familiar e cultural.
Sua rotina é restrita ao ambiente doméstico, centrando-se em atividades dentro do próprio quarto, como uso do computador e longas horas de sono, vistas como hábito normal por ele e pela família, apesar de possivelmente associadas à medicação. Essa rotina é quebrada apenas quando acompanha o pai em suas atividades, como no trabalho ou assistindo futebol. Eles possuem um forte vínculo afetivo.
Sua mãe acredita em causas espirituais para a esquizofrenia e que seu filho tem alguma responsabilidade em seu adoecimento. Entende também que não haja grandes mudanças a serem produzidas, apenas a gestão cotidiana das limitações impostas pelo quadro através da adaptação a elas. Compreende que o transtorno mental é algo irreversível e incapacitante: “uma enfermidade maligna, que ninguém cura”.
Severino
Homem, 46 anos, heterossexual, negro, solteiro, cristão, aposentado por invalidez, com segundo grau completo. Mora com a mãe. Internado diversas vezes, sendo a última por quase cinco anos. Após essa internação, voltou a residir com a genitora. Faz acompanhamento na CF, utilizando diversas medicações psiquiátricas. Diabético, faz uso diário de insulina autonomamente. Apresenta bom controle glicêmico.
Narra seu adoecimento como ocasionado por múltiplos determinantes: “aporrinhação”, trabalho e estudo excessivos, sofrimento, tortura e humilhação. Um processo de esgotamento do corpo e da mente. O início é descrito a partir de alterações corporais: sensação de perda de força, da energia e sensação difusa de mal-estar, impactando suas atividades cotidianas e levando-o a alta rotatividade no trabalho. Em sua narrativa, o termo “nervoso” aparece descrevendo a experiência de crise psicótica, que também é explicada pela falta de relações sexuais.
Sua narrativa tem conotação trágica e é marcada por uma relação com o mundo permeada pela frustração com os projetos de vida não efetivados e o inconformismo frente às dificuldades enfrentadas ao longo da vida e pelo adoecimento.
Trabalhei muito, estudei muito, fiquei maluco… Tanto trabalho, tanto estudo… tanto sofrimento… só apurrinhação na minha cabeça… Só apurrinhação, Só sofrimento… Tortura, sofrimento, apurrinhação… Humilhação… o que eu passei nessa vida, não foi brincadeira não… Humilhação, tortura… Doença [...] Agora tô com tremedeira. Eu sei lá, eu não consigo ser feliz. Só te falo isso, eu não consigo ser feliz. Outra apurrinhação, outra doença… Só te falo isso, eu sofro pra caramba.
A religiosidade compõe o arcabouço explicativo das suas crises e tem funções diversas, fazendo parte dos fundamentos que dão sustentação às suas elaborações delirantes e sendo uma ferramenta que o ajuda a suportar o sofrimento associado à esquizofrenia.
Severino tece cotidianamente diversas redes no território: a oficina de motos onde conversa “coisas de homem” e atualiza seus conhecimentos sobre mecânica (algo que possui muito interesse), o bar onde ingere bebidas alcoólicas e conversa sobre política e história e várias outras relações que possui no bairro. Outro elemento interessante são as estratégias diárias de organização da vida e da rotina. Além de usar de anotações para lembrar seus compromissos, diariamente, no início da manhã, ele “passa na cabeça” todo o dia, seus compromissos e tarefas. Assim consegue manter uma rotina organizada. Descobriu também o prazer de ouvir músicas da década de 80, hábito diário que tem a função de o reconectar ao passado, às lembranças da juventude. Além disso, faz consumo de substâncias psicoativas em seu dia a dia. As funções das drogas em seu cotidiano, maconha e álcool, são relaxamento e indução do apetite (maconha). Utiliza a cocaína, normalmente, como estimulante, visando melhor desempenho em algumas atividades, como nos estudos. Ao que parece, a cocaína serve para contrabalancear o efeito sedativo das medicações.
Joana
Mulher, 54 anos, indígena, umbandista, casada, mãe de dois filhos. Catadora, possui o ensino fundamental incompleto. Mora com o esposo e os dois filhos. Após o diagnóstico de esquizofrenia, iniciou tratamento psiquiátrico ambulatorial. Realiza acompanhamento apenas na CF. Nunca foi internada em Hospital Psiquiátrico.
Em seu adoecimento, o que se percebe é que seus sintomas psicóticos se mesclam às suas vivências religiosas. Dentro de sua religião, algumas experiências se manifestam corporalmente, como as incorporações. Elas são vivenciadas por alguns membros reconhecidos como médiuns. Estes possuem, entre outras habilidades e funções, a capacidade de incorporar. Joana é médium. Sua narrativa sugere que essa dimensão religiosa englobou o conjunto de experiências do adoecimento, sintomas psicóticos, dando a eles um enredo único, organizado a partir da questão espiritual. Ou seja, todos os sintomas psicóticos são interpretados e narrados como causados por sua função religiosa. É interessante perceber que ser médium é uma função reconhecida dentro de sua religião e consequentemente, essa narrativa, que incorpora os sintomas da esquizofrenia dentro desse arcabouço religioso, atribui valor positivo às suas experiências psicóticas.
Por isso, Joana tem uma relação ambígua com os sintomas psicóticos. Essas experiências corporais são relatadas, em muitos momentos, como geradoras de sofrimento. Vivenciar essas percepções corporais é desagradável fisicamente e assim são descritos. Entretanto, ser médium é uma posição que lhe dá um lugar de valor na religião e ela tem prazer de assumir. Nos meses anteriores à pesquisa, ela não estava frequentando o centro religioso e não vinha sentindo esses sintomas e entendeu que tal diminuição relacionava-se a esse afastamento. Apesar de associar os sintomas à frequência ao centro e descrevê-los como desagradáveis, Joana fazia planos para voltar a frequentá-lo. Essa aparente ambiguidade chama a atenção: sentir sintomas é desagradável e está relacionado à atuação religiosa, mas tal atuação, que inevitavelmente gerará sofrimento (os sintomas) é algo desejado. Percebe-se que o controle dos sintomas não é a questão central para ela e é secundarizada frente ao papel assumido na religião. Esse papel lhe atribui valor diante de si e dos outros.
- Doutor, olha só, eu acho que eu não tô escutando mais vozes dentro de casa, por quê? Porque eu acho que eu não tô mais frequentando a macumba [...] sabe por que acontece isso contigo? [...] Porque você é médium. [...] Você precisa pôr roupa, [...] roupa branca… pra você poder fazer o desenvolvimento dos seus guia, dos seus guia descer em terra. [...] Bom… gostar, eu não gosto [...] Mas… se eu nasci assim… O que será, doutor? Porque, a… quantas pessoas viram pra mim e falam assim: você já tem isso de berço! [...]
Aí eu falo assim: “mas o que que é isso?”. “Des… de berço, quando você era pequenininha…. - Quer dizer que você gosta? (Pesquisador)
- Gosto! [...] Aí, dia de festa, dá comida, a gente come e tudo [...] me sinto muito bem. Mas só, que eu tô falando com o senhor, porque esse negócio de tremedeira, desde que eu não tô indo mais lá, não tô mais sentindo tremedeira…
Um aspecto interessante, também presente nas narrativas de outros participantes, é a percepção inicial dos sintomas do adoecimento. Estes são relatados como sintomas corporais, mais especificamente desmaios. Não há nenhuma descrição que se aproxime de delírios ou alucinações. Todo o mal-estar é descrito a partir de sensações físicas, corporais. Joana não delimita bem as experiências de adoecimento, não conseguindo responder questões associadas ao início dos sintomas, não descreve situações de crise para além dos “desmaios”, nega impacto do adoecimento sobre a vida e sobre a forma como as pessoas a veem. Descreve a realização de tratamento ambulatorial, mas não caracteriza os motivos. Relata o uso da medicação psiquiátrica como vacina. Em momento algum descreve as vivências como algum problema de saúde mental.
É uma mulher completamente autônoma e independente. Possui trabalho (catadora de materiais recicláveis) com o qual adquire alguma renda, é capaz de administrar todas as necessidades de sua vida, como resolver questões burocráticas referentes ao acesso a benefícios sociais no Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) do bairro, além de tomar a iniciativa de se rematricular na Escola para qualificar sua leitura. Nas relações familiares, lhe é imposto a responsabilidade por todas as tarefas domésticas. Ao mesmo tempo, nota-se o uso de parte significativa de seu dia no cuidado de animais de estimação (gato e cachorro), os quais descreve com grande afeto.
Camila
Mulher, 30 anos, solteira, parda, evangélica, estudante. Mãe de um filho. Possui ensino médio incompleto. Mora com a avó e o filho. Recebe o BPC. Teve a primeira internação psiquiátrica na adolescência. Iniciou tratamento para esquizofrenia após essa crise. Viveu em situação de rua por aproximadamente um ano, período em que engravidou. Tentou suicídio há cerca de um ano, após uma crise. Atualmente realiza acompanhamento apenas na CF.
Em sua experiência de adoecimento, há um limite claro do início do adoecimento e nota-se que os sintomas foram se conformando em características próprias, se amalgamando à sua personalidade, sua forma de estar no mundo.
No início do adoecimento, os sintomas são descritos tipicamente como experiências psicóticas: vozes, delírios e sensação de estar sendo perseguida.
Na época, eu tava aqui deitada na minha cama, [...] aí eu comecei a escutar vozes... aí a voz conversava comigo aí daqui a pouco eu falei «vó deixe eu dormir com a senhora» aí ela falou assim “por quê?”, eu falei “porque eu tô escutando um ‘chicão’ falar comigo” aí ela falou assim “é?” aí eu falei “tá na minha janela, eu tô escutando com meu consciente... subconsciente, aí ela falou “é?” aí ela falou pra eu dormir lá com ela. Aí, eu comecei a falar o nome do chefão dos cara que... aí ela me batia e me levou pro hospital.
A narrativa é infantilizada e sua relação com o mundo marcada pela tutela da avó e pela passividade. Possui uma relação consigo mesma também marcada por hábitos infantilizados e por prejuízo da autoimagem, que além de “ter um problema de cabeça”, pesa questões físicas, principalmente a obesidade.
O bullying na escola é descrito como uma das causas do processo de adoecimento. A fragilização da autoimagem corporal pela agressão dos colegas é apontada como fator desencadeante da primeira crise. Além dos impactos ocasionados pelo adoecimento, o tratamento medicamentoso também ocasionou efeitos adversos que a impactaram fisicamente, gerando ganho de peso e sonolência.
Camila associa a melhora dos sintomas a três fatores: o nascimento do filho, o uso das medicações e a realização de atividades manuais (bijuterias). A religiosidade também aparece como relevante na lida com o adoecimento. Junto com familiares, têm o hábito de frequentar uma igreja evangélica e avalia que a religião contribuiu na melhora do mal-estar associado ao transtorno mental.
Sua avó explica a esquizofrenia incorporando parcialmente o discurso biomédico. Afirma ser uma doença do cérebro, de causalidade genética, herdada do pai. Também expõe explicações contextuais para o início dos sintomas, como o abandono do pai, a menarca e conflitos entre facções no território.
Sua vida é restrita ao lar e a quase totalidade de suas atividades são domésticas: tirar o lixo, passar o pano no chão, lavar os pratos. Diverte-se normalmente dentro do próprio quarto, assistindo DVDs, escutando rádio e reproduzindo coreografias de cantores famosos. A única rotina externa ao domicílio é buscar o filho na escola, atividade que não vinha desempenhando regularmente nos últimos meses e foi assumida pela avó.
Discussão
As histórias apresentam caminhos singulares construídos para “tocar a vida” e formas idiossincráticas de adoecimento. Ao mesmo tempo, as experiências vividas estão localizadas em uma comunidade que compartilha valores, linguagem e modos de organizar a vida e o sofrimento, frutos de determinado contexto socioeconômico e histórico (Kirmayer, 2015) Por isso, tais trajetórias trazem também indicações de como é adoecer e viver com esquizofrenia neste cenário.
Em clássico estudo realizado em Montreal, Corin e Lauzon (1992) pesquisaram pessoas diagnosticadas com esquizofrenia e analisaram suas participações na comunidade, buscando entender as estratégias de reabilitação e as formas específicas de estar no mundo e suas capacidades de permanecer na comunidade. Os dados indicaram que a não reinternação em serviços psiquiátricos esteve associada a uma postura de “retraimento positivo” que se caracteriza por uma posição de certo distanciamento dos papéis e das relações sociais, combinada com várias estratégias de manutenção de vínculos mais tênues com o ambiente social. Faz sentido associar a realidade de João aos resultados deste estudo e sua maior restrição ao ambiente doméstico. Afinal, se expor foi algo que gerou bastante sofrimento, como na escola e no trabalho como atendente, onde diz ter sofrido bullying e sofrido a primeira crise. Há também uma clara experiência de diferença (e inferioridade) em relação às outras pessoas. Tais fatos sugerem que esta forma protegida de viver e uma rotina articulada à do pai, são estratégias de manter vínculos protegidos com o ambiente social.
Já a narrativa de Severino reflete outras questões. Sua vida é marcada por um conjunto de dificuldades que experimenta como determinantes para seu adoecimento. Descreve também frustrações e lamentos, não tendo alcançado projetos relevantes como ter um filho, se casar e cursar o ensino superior. Ao mesmo tempo, possui uma vida dinâmica e autônoma. Mantém uma rede social diversa na comunidade, possuindo pessoas com as quais conversa sobre interesses intelectuais, como história e política, frequenta regularmente uma oficina mecânica, onde se atualiza sobre o ofício de mecânico, além de conversar amenidades. Circula pela cidade, principalmente por bibliotecas, onde estuda temas de seu interesse. Realiza o tratamento medicamentoso para a esquizofrenia e para diabetes de forma disciplinada, tendo bom controle dos níveis glicêmicos. Em suma, observando seu quadro apenas a partir de critérios clínicos objetivos temos uma pessoa com bons resultados. Entretanto, a sua narrativa mostra alguém frustrado, insatisfeito e sem esperança. A recuperação clínica alega oferecer uma medida de resultado que é invariável entre os indivíduos e contextos sociais. No entanto, a ideia de saúde e bem-estar varia significativamente em diferentes culturas e entre os indivíduos. Autonomia, independência e resultados clínicos, apesar de relevantes, são muitas vezes insuficientes para uma vida satisfatória (Adeponle; Whitlley; Kirmayer, 2012). Ao mesmo tempo é relevante notar que, apesar de toda frustração e lamento, seu corpo traz um enredo marcado pela autonomia e Severino segue buscando seus projetos de vida e desejos. Mesmo que em uma vida insatisfatória, a capacidade de buscar autonomamente projetos significativos deve ser considerada uma dimensão relevante para um cuidado orientado pelo Recovery.
Além disso, as narrativas de João e Severino têm uma coisa em comum: por sinais trocados, contradizem a visão do observador sobre a sua situação. No caso de João, percebemos alguém isolado, com atividades sociais restritas, ou seja, com parâmetros clínicos que podem ser considerados ruins, afirmando viver um dos melhores momentos de sua vida. Do outro, alguém completamente autônomo, capaz de criar redes sociais, circular pela cidade, gerir sua renda, fazer de forma eficaz o seu complexo tratamento com insulina, afirmando ter uma vida completamente infeliz. Ao que parece, João não estava bem, apesar de ele afirmar o contrário e Severino estava muito bem, apesar de afirmar estar totalmente insatisfeito com a sua vida. Isso ocorreu porque o olhar se direcionou centralmente para aspectos funcionais da vida do sujeito, para parâmetros objetivos, como normalmente as avaliações são feitas. E por esses parâmetros, as narrativas dos sujeitos não eram condizentes com o que era avaliado objetivamente. Tais práticas caracterizam-se por orientações normativas, que pré-determinam os objetivos a serem alcançados, e por uma abordagem externa à pessoa, centrada em aspectos funcionais da reabilitação (Corin; Lauzon, 1994).
Já a história de Camila mostra uma mulher que vivenciou os primeiros sintomas de esquizofrenia no início da adolescência e como experiências tipicamente psicóticas: delírios e alucinações auditivas. Esse adoecimento foi interpretado como sendo fruto do bullying no ambiente escolar e do abandono dos pais. Camila viveu situações muito graves por consequência de suas crises. Permaneceu por aproximadamente um ano em situação de rua, quando engravidou. Em outra crise, tentou se matar, tendo tido lesões importantes pelo corpo. Essas situações extremas, produziram uma preocupação excessiva de sua avó com o seu cuidado, restringindo consideravelmente a sua rotina e controlando-a completamente. De certa forma, a marca das crises sobre sua vida, foi a destituição da sua possibilidade de autodeterminar-se e a restrição de sua rotina ao ambiente doméstico e ao controle da avó. Isso gerou uma infantilização de Camila: não pode sair sozinha, não pode decidir por si. E suas possibilidades de vida se restringiram ao ambiente doméstico e é dentro desse ambiente que ela ensaia suas coreografias e produz suas bijuterias. Neste contexto, é decisivo questionar como produzir um cuidado orientado pelo Recovery com alguém que não decide por si, em que outra pessoa decide por ela? Estratégias que abordem a família e sua experiência com o adoecimento de um familiar próximo é fundamental nessas situações.
As experiências psicóticas de Joana, que carregam alguma semelhança corporal com as experiências religiosas de incorporação, foram ressignificadas a partir desta dimensão. Desenvolver um significado satisfatório para o adoecimento, produzindo uma narrativa que dê sentido aos sintomas, de modo a visualizá-los como uma parte de sua experiência de vida é parte fundamental do processo de recuperação pessoal (Corin, 2007). Esta forma de construção narrativa pode ter várias estradas e só pode ser construída a partir da experiência de adoecimento da pessoa e das suas construções explicativas neste processo (Slade, 2011). No caso de Joana, tal construção articulou os sintomas a um papel social valorizado dentro da religião, o que fez com que suportá-los tivesse um sentido nobre.
O trabalho e a renda surgem nas narrativas como uma dimensão muito relevante. O trabalho aparece como central na afirmação da autonomia e a oportunidade de trabalhar é algo significativo para pessoas com diagnóstico de transtorno mental grave, melhorando a autoimagem e o senso de controle sobre a vida, além de maior pertencimento comunitário. E a renda, vinda do trabalho ou de algum benefício social, possibilita senso de independência, autonomia e capacidade de desenvolver habilidades para planejar e controlar o orçamento (Topor; Ljungqvist, 2017; Panczak; Pietkiewicz, 2016). O trabalho e/ou a renda parecem ter uma dimensão central no Recovery das pessoas no contexto da pesquisa. A possibilidade de garantir materialmente a própria existência permite desfazer amarras da tutela, possibilitando a afirmação do sujeito e seus projetos de vida.
Nas entrevistas com os familiares, os entendimentos sobre as causas do adoecimento possuem dois tipos de explicação: uma que atribui o quadro a fatores sobrenaturais e religiosos e outra que acredita que o transtorno tenha uma dimensão hereditária. Como se observa, nas duas narrativas, as explicações do adoecimento se fundamentam em fatores externos à vida dos sujeitos, imutáveis e inalcançáveis. Imposições do destino, seja por decisão de Deus ou pelo acaso da genética. Nos dois casos, o teor irreversível das explicações sobre o adoecimento pode produzir uma posição de paralisia em relação a construção de caminhos de cuidado que superem as dificuldades impostas pelo adoecimento. Isso se observa no entendimento sobre o prognóstico da esquizofrenia como um transtorno definitivo e incapacitante e se reflete num conformismo paralisante, que não acredita em caminhos a serem produzidos que não a gestão cotidiana das limitações impostas pelo adoecimento. Tal leitura fortalece uma posição de tutela sobre o sujeito e amplia o peso do estigma sobre a sua trajetória de vida. O conformismo surge com muita força e novamente mostra-se uma posição de pouca confiança na possibilidade de se construir caminhos de autonomia.
Em todas as narrativas, a religião possui algum papel de suporte à experiência do adoecimento. Mesmo em pessoas que não possuem vínculo com nenhuma instituição religiosa, a fé, a oração e a religiosidade têm lugar de conforto e alívio nos momentos de maior mal-estar, mostrando ser uma ferramenta apreendida a partir do contexto cultural (Fallot, 2001; Koenig, 2007). A religiosidade aparece com funções diversas ao longo das narrativas. Seus papéis podem ser sistematizados em quatro formas: orações como forma de controle de sintomas e relaxamento; a religiosidade como forma de minimizar o sofrimento; a religião como parte da elaboração delirante; a religião dando sentido às experiências de adoecimento.
A religiosidade tem forte presença entre os setores populares brasileiros (Reis; Manduca, 2018) o que explica sua presença constante nas narrativas estudadas. É possível afirmar que majoritariamente assume funções positivas que, de forma diversas, contribuem no enfrentamento às dificuldades associadas ao adoecimento.
Considerações finais
Esta pesquisa observou, pela perspectiva do Recovery, a experiência de adoecimento e as estratégias para “tocar a vida” de pessoas com esquizofrenia no contexto da APS. A importância desse estudo está no fato de trazer o debate do Recovery para o campo da APS, refletindo sobre as estratégias para o cuidado de pessoas com transtorno mental grave neste nível de atenção.
A análise exigiu a superação de um olhar esquemático e normalizador sobre a reabilitação psicossocial e o conceito de Recovery, olhar este que busca enquadrar as experiências singulares dentro de pressupostos estabelecidos, induzindo, por vezes, a análise. Apoiar o Recovery exige a mudança do foco de um cuidado centrado na doença, para um olhar orientado para a experiência da pessoa e as suas prioridades e interesses. A perspectiva de diagnóstico-redução de sintomas precisa ser superada para um modelo que incorpora o componente existencial como central no cuidado. Neste contexto, os profissionais de saúde devem ter como foco os valores existenciais, praticando tomada de decisão compartilhada, ajustando as intervenções às necessidades existenciais da pessoa (Van Os et al, 2019).
Outro aspecto relevante deste estudo está nos resultados que sugerem que a religiosidade, das mais diversas matrizes e por variados caminhos é um parâmetro relevante para o processo de Recovery no contexto do estudo. Mostra também que o trabalho e a renda contribuem para a melhora da autoimagem, senso de controle sobre a vida e pertencimento comunitário de pessoas com diagnóstico de esquizofrenia. Evidencia também que o olhar da família pode ter papel reforçador do estigma.
O estudo em questão mostra a necessidade de mais pesquisas nos campos da Saúde Mental e da Saúde Coletiva que investiguem as formas produzidas por pessoas com diagnóstico de transtorno mental grave para “tocar a vida” e enfrentar os desafios do adoecimento. Elas ajudarão a guiar a atuação dos profissionais de saúde para um cuidado orientado pelo Recovery no contexto das grandes cidades brasileiras. Além disso, é necessário a produção de mais experiências concretas e pesquisas sobre estratégias de cuidado para este público na Atenção Primária à Saúde.
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Editor responsável: Rossano Lima
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
22 Abr 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
19 Jul 2022 -
Aceito
31 Jul 2023 -
Revisado
07 Abr 2023