Resumo
Trata-se de pesquisa avaliativa sobre a coordenação do cuidado ao câncer de colo uterino (CCU) pela Atenção Primária à Saúde. A pesquisa considerou dois níveis de análise: a gestão municipal e local, mediante análise documental, observação não participante e entrevistas com 19 informantes-chave, sendo seis gestores municipais, quatro enfermeiras, três médicas e seis usuárias. Os dados, produzidos em setembro de 2019, foram processados no software Nvivo 12, e o material empírico cotejado com situação-objetivo que orientou a construção dos resultados. Tanto a gestão municipal quanto local das EqSF alcançaram pontuação intermediária na presente avaliação. Os maiores obstáculos para a gestão municipal foram a realização de Educação Permanente em Saúde acerca da temática e a instituição de espaços de comunicação interprofissional. Para as equipes, foram a pactuação de ações e serviços com os distintos pontos de atenção, desenvolvimento de planos de cuidados e a contrarreferência. A operacionalização efetiva da coordenação do cuidado ao CCU é interdependente de constrangimentos municipais e locais. Esta pesquisa contribuiu com a elaboração de uma situação-objetivo inédita, reunindo elementos embasados em ampla revisão nacional e internacional e devidamente validados por especialistas.
Palavras-chave:
Atenção Primária à Saúde; Estratégia Saúde da Família; Neoplasias do colo do útero
Abstract
This evaluative research approaches the coordination of care for cervical cancer (CCU) by the Primary Health Care. The research considered two levels of analysis: municipal and local management, through documentary analysis, non-participant observation and interviews with 19 key informants, being six municipal managers, four nurses, three doctors and six users. The data, produced in September 2019, was processed using the Nvivo 12 software, and the empirical material was compared with the objective situation that guided the construction of the results. Both municipal and local management of the EqSF achieved an intermediate score in this evaluation. The most important obstacles for municipal management were the provision of Permanent Health Education on the topic and the establishment of spaces for interprofessional communication. For the teams, it involved agreeing actions and services with different points of care, developing care plans and counter-referral. The effective operationalization of CCU care coordination is interdependent on municipal and local constraints. This research contributed to the development of an unprecedented objective situation, bringing together elements based on a broad national and international review and duly validated by experts.
Keywords:
Primary Health Care; Family Health Strategy; Uterine Cervical Neoplasms
Introdução
Nas últimas décadas, o câncer tornou-se um problema de saúde pública de grande relevância e vem exigindo dos sistemas de saúde a integração de ações e serviços que vão da prevenção aos cuidados paliativos (Araújo; Teixeira, 2017ARAÚJO, N. L. A.; TEIXEIRA, L. A. De doença da civilização a problema de saúde pública: câncer, sociedade e medicina brasileira no século XX. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi Ciências Humanas, v. 12, n. 1, p. 173-188, jan. 2017.). Dados da International Agency for Research on Cancer (IARC, 2020) apontam cerca de 570 mil novos casos por ano no mundo, sendo o câncer de colo uterino (CCU) o quarto tipo mais prevalente e a quarta causa de morte por neoplasia entre mulheres. No Brasil, o CCU é o terceiro mais comum nas mulheres e a quarta causa de mortalidade nesse público, apresentando como projeções cerca de 17.010 novos casos para cada ano do triênio de 2023 a 2025 17.010 (INCA, 2022).
No cenário de polarização epidemiológica, no qual coexistem as doenças infecciosas, as causas externas de morbimortalidade e diversas condições crônicas não transmissíveis, são necessários cuidados coordenados como condição essencial para o alcance da integralidade da atenção à saúde. Nessa direção, autores enfatizam o papel da Atenção Primária à Saúde (APS) na coordenação do cuidado às condições crônicas, com destaque para esse atributo no ordenamento dos sistemas de saúde (Silva; Andrade, 2014SILVA, R. M. da; ANDRADE, L. de. Coordenação dos cuidados em saúde no Brasil: o desafio federal de fortalecer a atenção primária à saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 24, n. 4, p. 1207-1228, dez. 2014.).
Para este estudo, considerou-se como coordenação do cuidado o processo que visa integrar ações e serviços de saúde no mesmo ou em diferentes níveis de atenção, no qual distintos profissionais utilizam mecanismos e instrumentos específicos para planejar a assistência, adotar fluxos assistenciais, trocar informações sobre usuários e seu processo assistencial, referenciar, contrarreferenciar e monitorar pessoas com diferentes necessidades de saúde, a fim de facilitar a prestação do cuidado contínuo e integral em local e tempo oportunos (Aleluia et al., 2014).
No âmbito internacional, estudos apontam que cuidados bem coordenados proporcionam menores números de internações hospitalares, atendimentos em emergência e de custos com a atenção (Leijten et al., 2018LEIJTEN F. R. M. et al. Defining good health and care from the perspective of persons with multimorbidity: results from a qualitative study of focus groups in eight European countries. BMJ Open, v. 8, n. 8, p. e021072, ago. 2018.; Plate et al., 2018PLATE, S. et al. High experienced continuity in breast cancer care is associated with high health related quality of life. BMC Health Services Research, v. 18, n. 1, p.127-134, fev. 2018.; Reddy et al., 2018REDDY, A. et al. Association between Continuity and Team-Based Care and Health Care Utilization: An Observational Study of Medicare-Eligible Veterans in VA Patient Aligned Care Team. Health Services Research, v. 11, n 53, p. 5201-5218, set. 2018.). Em pacientes oncológicas que tiveram cuidados coordenados, houve melhor qualidade de vida (Plate et al., 2018) e maior disponibilidade de informações clínicas para orientar decisões terapêuticas de profissionais da APS. Por outro lado, persistem a fragmentação do cuidado oncológico (Kukar et al., 2013KUKAR, M. et al. Fostering coordinated survivorship care in breast cancer: who is lost to follow-up? Journal of Cancer Survivorship, v. 8, n. 2, p.199-204, dez. 2013.), atrasos para iniciar o tratamento (Walton et al., 2013WALTON, L. et al. Patient perceptions of barriers to the early diagnosis of lung cancer and advice for health service improvement. Family Practice, v. 30, n. 4, p. 436-44, fev. 2013.) e problemas de compartilhamento de informações sobre o cuidado prestado a mulheres com CCU entre profissionais da atenção especializada e primária (Nazareth et al., 2008NAZARETH, I. et al. Perceived concepts of continuity of care in people with colorectal and breast cancer - a qualitative case study analysis. European Journal of Cancer Care, v. 17, n. 6, p. 569-577, set. 2008.).
No Brasil, as evidências ratificam a persistência de diferentes obstáculos para a APS coordenar o cuidado ao câncer nos sistemas municipais de saúde. Há baixa adesão dos profissionais a protocolos assistenciais (Bortolasse et al., 2016BORTOLASSE, de F. A. et al. Seguimento do câncer de colo de útero: Estudo da continuidade da assistência à paciente em uma região de saúde. Esc Anna Nery, v. 20, n. 4, p. e20160096, 2016.), e grande parte das lesões consideradas não neoplásicas de baixo grau são encaminhadas inoportunamente para a atenção especializada, enquanto uma pequena porcentagem das lesões que deveriam ser encaminhadas para especialistas é tratada no nível primário, expondo imperícias em relação ao que deveria ser desempenhado em cada nível assistencial (Silva et al., 2016SILVA, M. R. F. et al. Continuidade Assistencial a mulheres com câncer de colo de útero em redes de atenção à saúde: estudo de caso, Pernambuco. Saúde em Debate, v. 40, n. 110m p. 107-19, 2016.). Ademais, existem dificuldades para agendamentos de consultas especializadas, prejudicando o acompanhamento das usuárias, e não há contrarreferência dos demais pontos de atenção para a APS (Silva et al., 2016).
A partir da revisão de literatura empreendida para este estudo, evidenciaram-se lacunas nas abordagens teórico-metodológicas dos estudos sobre a coordenação do cuidado ao CCU pela APS. Os recortes investigativos se concentram nos aspectos locais dos serviços em detrimento dos condicionantes da gestão municipal. Assim, esta pesquisa pretendeu avaliar a coordenação do cuidado pela APS a uma das condições crônicas mais prevalentes entre mulheres no Brasil, identificando os principais obstáculos municipais e locais.
Metodologia
Trata-se de pesquisa avaliativa com abordagem qualitativa em dois níveis de análise imbricados: a gestão municipal e o âmbito local das Equipes de Saúde da Família (EqSF). Adotou-se o CCU como condição traçadora, e como estratégia de investigação, o estudo de caso único por permitir aprofundar de forma intensiva os critérios avaliativos no contexto real de organização de sistemas municipais e sua interdependência com a operacionalização local das práticas de coordenação do cuidado na APS.
A seleção do caso pesquisado foi intencional, por ser um sistema municipal de saúde sede de macrorregião, referência em serviços especializados de ginecologia para 35 municípios e com população estimada em 157.683 habitantes, ampla extensão territorial (7.538,152 km²), densidade demográfica de 17,49 hab/km² (2010), PIB per capita estimado em R$ 33.313,17 (2019), localizado a 853 km da capital baiana e 622 km da capital federal (Barreiras, 2018).
A APS municipal estava em estágio de expansão com 27 EqSF implantadas, cobertura populacional da Estratégia de Saúde da Família (ESF) de 59%, dois Núcleos Ampliados de Saúde da Família e Atenção Básica (NASF-AB) tipo I, além de um Centro de Atendimento à Mulher (CAM), referência macrorregional na oferta de consultas ambulatoriais especializadas para o diagnóstico do CCU, tendo notificado, na região de saúde, em 2018, 1.578 casos que se encontravam em seguimento (Barreiras, 2018).
No nível municipal, o estudo foi realizado na gestão da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), na coordenação do CAM e na APS através do apoio institucional das EqSF. No nível local, quatro EqSF de Unidades de Saúde da Família (USF), por atenderem aos critérios de inclusão: equipes completas, com profissionais atuando há, pelo menos, 12 meses e com usuárias diagnosticadas com lesões precursoras do CCU. As EqSF A, B e D eram urbanas periféricas e, a EqSF C, era urbana central. Destaca-se que apenas a EqSF D não possuía apoio do Núcleo Ampliado de Saúde da Família e que em todas os profissionais de enfermagem acumulavam a função tanto de assistência quanto de gerência das equipes
A produção dos dados incluiu a análise documental, observação não participante e entrevistas com informantes-chave. Os documentos analisados foram as agendas de trabalho das EqSF com a programação das atividades, marcação de consultas e exames citopatológicos, escalas de profissionais, os Planos Municipais de Saúde (PMS) de 2014-2017 e 2018-2021 e seus respectivos Relatórios Anuais de Gestão (RAG). Já as observações não participantes foram realizadas em cada USF e focaram o processo de trabalho das equipes durante o atendimento da população com perfil da condição marcadora, em especial, nas consultas médicas e de enfermagem destinadas à realização do exame citopatológico.
Foram entrevistados gestores municipais da SMS, APS e CAM, profissionais das EqSF, além de usuárias com idade > 18 anos, com resultado do exame citopatológico confirmando lesão de alto grau ou câncer de colo uterino por meio da biópsia, cadastradas e adscritas às EqSF de saúde selecionadas e em seguimento regular pela equipe. As entrevistas ocorreram individualmente e foram gravadas na íntegra para posterior transcrição. O quantitativo das entrevistas considerou o agrupamento de informações necessárias para compreender o contexto de coordenação do cuidado ao CCU, segundo os níveis analíticos da pesquisa. No total, foram entrevistados 19 informantes-chave, sendo seis gestores municipais, quatro enfermeiras, três médicas e seis usuárias.
Adotaram-se roteiros de análise documental, de observação, de entrevistas semiestruturadas e o diário de campo do pesquisador. Os dados foram produzidos em setembro de 2019. Os relatórios com as informações documentais, do diário de campo dos pesquisadores, bem como os excertos das entrevistas compuseram a base empírica do estudo e foram triangulados no software QRS Nvivo, versão 11, sendo as informações cotejadas com uma situação-objetivo elaborada pelos pesquisadores e destinada à avaliação da coordenação do cuidado ao CCU na APS (Quadro 1). A situação-objetivo foi construída a partir da revisão de artigos internacionais e protocolos nacionais, apresentando critérios avaliativos organizados nas dimensões inspiradas em Aleluia et al. (2017ALELUIA, I. R. S. et al. Coordenação do cuidado na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em município sede de macrorregião do nordeste brasileiro. Ciência e Saúde Coletiva, v. 22, n. 6, p. 1845-1856, jun. 2017.) e validada por cinco especialistas com especialização em Saúde Coletiva/Saúde da Família e/ou Atenção Básica/Atenção Primária à Saúde, atuantes na gestão e/ou atenção da APS, com experiência em saúde da mulher.
Na validação, utilizou-se a técnica de consenso “Delphi”. Assim, em rodada única e eletrônica, cada especialista atribuiu pertinência (Sim ou Não) para cada dimensão e critério de avaliação propostos na matriz de validação e, em seguida, classificaram seu grau de relevância (0 - Irrelevante; 1- Relevante, 2- Muito relevante). Ademais, era possível cada especialista adicionar comentários a cada item. A permanência/exclusão e revisão dos critérios levaram em conta a análise qualitativa dos comentários e quantitativa, considerando a moda para avaliar qual critério obteve maior consenso quanto à pertinência e relevância.
Os dados do estudo foram confrontados com a situação-objetivo segundo os níveis de análise, buscando identificar em que medida a gestão municipal e o âmbito local alcançaram (ou não) os critérios e situações classificados como “satisfatória”, “intermediária” ou “insatisfatória”, conforme uma matriz de julgamento elaborada (Quadro 2). No escore total definido, por considerar a APS como principal âmbito de operacionalização da coordenação do cuidado, conferiu-se maior peso para o nível das EqSF (65) e menor para a gestão municipal (35). O peso de cada critério e a distribuição da pontuação entre as situações-objetivo apreciaram a importância e a complexidade de alcance.
A atribuição da pontuação total (100) ponderou a seguinte classificação para o nível municipal e local: a) nível municipal - insatisfatório < 11,6 pontos; intermediário de 11,7 a 23,2 pontos; satisfatório - de 23,4 a 35 pontos. Nível local das EqSF - insatisfatório < a 21,6 pontos; intermediário de 21,7 a 43,2 pontos; e satisfatório de 43,3 a 65 pontos.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Oeste da Bahia, sob o CAAE nº 16462919.3.0000.8060 e todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados
Tanto a gestão municipal do sistema de saúde quanto a organização local das EqSF alcançaram classificação intermediária para a coordenação do cuidado ao CCU com pontuações, respectivamente, de 13,6 e variando entre 33,2 e 39,9 pontos. No nível municipal, os critérios com adoção da APS como coordenadora do cuidado na rede de atenção, nas proposições municipais e com registro e monitoramento da produção assistencial do CCU com sistema municipal informatizado. Entretanto, a realização de Educação Permanente em Saúde (EPS) sobre o CCU e a disposição de espaços para comunicação interprofissional foram os critérios mais incipientes (Tabela 1).
No nível local, todas as EqSF alcançaram pontuação intermediária (valores de 21,7 a 43,2 pontos), e os critérios com melhor avaliação foram a adoção de protocolos e diretrizes clínico-assistenciais para o CCU, listas de espera e fluxo de encaminhamento de usuárias com CCU para outros pontos de atenção. Os critérios incipientes corresponderam à pactuação de ações e serviços entre profissionais da APS e outros pontos de atenção, ao desenvolvimento de planos de cuidados e à efetivação da contrarreferência (Tabela 2).
Os resultados do artigo foram organizados segundo os níveis analíticos da pesquisa. O primeiro com evidências sobre a gestão municipal, e o segundo sobre a gerência local das EqSF na coordenação do cuidado ao CCU.
A coordenação do cuidado ao CCU e a gestão municipal
A análise documental evidenciou que há desafios para a gestão municipal garantir a sustentabilidade de proposições que coloquem a APS como coordenadora do cuidado no sistema de saúde em seus instrumentos de planejamento. Esse fato foi ratificado pela presença de diretrizes dessa natureza em apenas um dos PMS analisados. Os instrumentos de planejamento apontaram o propósito da gestão ampliar ações de prevenção e controle do CCU nos serviços primários, mas as informações registradas nos RAG confirmam que esse propósito foi insuficiente para apoiar a coordenação do cuidado pela APS, quando, no nível municipal, inexistem protocolos com fluxos de atendimento e encaminhamentos das usuárias estabelecidos para o conjunto das EqSF.
As entrevistas com profissionais e gestores evidenciaram obstáculos para a gestão construir e implementar protocolos e diretrizes clínico-assistenciais de cuidado a mulheres com lesão de alto grau ou CCU. Em unanimidade, os profissionais ressaltam que ainda prevalecem, como referência, as diretrizes nacionais, mas com raras adaptações correspondentes às singularidades de organização dos sistemas municipais de saúde.
Tem, a gente segue o protocolo do Ministério da Saúde. O que eu utilizo é o da Saúde da Mulher - 2016. Em relação a algumas condutas, e a gente segue sim esses protocolos até porque não tem como a gente não seguir o protocolo, né? É difícil você pegar e não seguir. É claro que há algumas situações específicas que alguns médicos, alguns ginecologistas colocam pacientes por exemplo que faz tratamento em oncologia, a gente também segue, né? Conforme o médico oncologista, ele institui, a gente tenta buscar isso. (Gestor C)
A partir da análise documental, identificou-se que o registro da produção assistencial do cuidado ao CCU nas EqSF é condicionado pela velocidade dos processos de gestão referentes à informatização nas unidades de saúde. Em contextos com informatização heterogênea das unidades de saúde, como o deste estudo, os registros entre o conjunto das equipes de APS podem ocorrer por meio de prontuários eletrônicos com a coexistência de registros manuais em algumas EqSF.
Tanto as entrevistas quanto os documentos revelaram raros espaços destinados à Educação Permanente em Saúde (EPS) direcionados para as EqSF no cuidado ao CCU. Houve menção a uma única experiência, em 2018, voltada para a condição traçadora, por meio de workshop. Ademais, obstáculos relativos à implantação de tecnologias de comunicação para o registro e troca de informações favorecem a utilização de ferramentas não padronizadas e paralelas de comunicação entre profissionais e serviços de diferentes pontos de atenção ao CCU, a exemplo do WhatsApp, mensagens de texto, ligações telefônicas ou e-mail.
A gente teve um workshop, é... Se eu não me engano no ano passado, ressaltamos a questão do controle, das ações que a gente precisava fazer, é... A gente tem as metas também que devem ser cumpridas, né? Em termo de coleta de preventivo, mas não existe uma constância a respeito desse tema, tá? Tem é claro, uma vez no ano, que é voltado pro outubro rosa que a gente aqui acaba trazendo a questão do câncer do colo uterino também, a gente traz isso, né? Não focado só no câncer de mama. (Gestor A).
A oferta municipal de exames e consultas ginecológicas é limitada pela insuficiência de especialistas e condiciona uma organização do acesso em regime de “cotas” distribuídas para as EqSF por critérios meramente administrativos e sem correspondência com a vulnerabilidade dos territórios locais. Isso tende a ser mais crítico quando inexiste um serviço municipal de referência em oncologia para atenção ao CCU, dificultando o encaminhamento das mulheres para o tratamento oportuno.
Por fim, no cenário investigado, que não dispõe de informatização completa das USF, a referência e contrarreferência é conduzida mediante instrumentos manuais com baixa institucionalidade no processo de trabalho das EqSF, dificultando o encaminhamento e o seguimento das usuárias com CCU no sistema de saúde, em tempo oportuno, como apontado pelos profissionais e gestores.
Infelizmente existem falhas, porque a gente depende da consciência do profissional. Como não é um processo informatizado ainda...digo isso porque a gestão já tem investido aí cerca de cento e cinquenta mil reais mês para informatizar todo a atenção básica com prontuário eletrônico, que é uma obrigação hoje [...] estamos bem encaminhados nesse processo, mas a gente ainda não conseguiu informatizar toda a rede através de um Sistema Único, para forçar o profissional a fazer a referência, a contrarreferência [...] (Gestor D).
A coordenação do cuidado ao CCU no nível local das EqSF
No âmbito local houve unanimidade, nas entrevistas de profissionais, sobre o acolhimento das usuárias como uma atribuição de qualquer profissional e como prática importante para o estabelecimento de vínculo entre elas e o serviço de APS. Contudo, a observação do processo de trabalho das EqSF revelou que o cuidado ainda tem sido protagonizado pela enfermagem, desde o rastreio das lesões precursoras até o diagnóstico e encaminhamento aos demais serviços de referência, no entanto, sem evidências de estratificação de risco. Médicos geralmente participavam do esclarecimento de dúvidas quanto às lesões identificadas, e os Agentes Comunitários de Saúde (ACS), da busca ativa.
[...] o que é geral é acolher! Isso independente da paciente ter lesão alto grau ou câncer propriamente dito, a questão é todo mundo tem que ter ciência que tem que acolher essa mulher [...]. [...] A gente fala porque por exemplo agente comunitário não faz exame especular, tem as questões técnicas mesmo, entendeu? Mas o que é geral? É todo mundo acolher e cada uma dentro da sua responsabilidade faz aquilo que lhe compete a fazer. (Profissional A)
A coordenação do cuidado ao CCU centrada na enfermagem evidencia a fragmentação assistencial na própria APS, corroborando fragilidades no desenvolvimento de planos de cuidado compartilhados e no trabalho interprofissional e centrado nas necessidades das usuárias (Quadro 3). Ademais, a inexistência de espaços de comunicação interprofissional, no âmbito municipal, colabora para o desconhecimento de profissionais da APS sobre suas atribuições e os papéis de profissionais dos demais pontos do sistema municipal de saúde. Isto reforça um cenário local sem evidências de iniciativas de pactuação de ações entre atores de diferentes serviços de saúde.
Olha, os canais de comunicação... Existe a comunicação formal que lá é via ofício, é uma comunicação formal que é, inclusive, no âmbito da administração pública é o que é exigido que é que você tem um protocolo de recebimento e que você entregou em mãos. Nós utilizamos a ferramenta do e-mail também porque o e-mail já é uma ferramenta utilizada nas diversas organizações como ferramenta de comunicação, canal de comunicação. Os canais digitais, o WhatsApp não deixa de ser comunicação, porém não formal. (Gestor D)
A análise documental revelou que todas as EqSF analisadas utilizavam protocolos disponibilizados pelo Ministério da Saúde, o que ratifica a frequente adoção local de protocolos nacionais, no quais o conjunto das EqSF pouco inclui as singularidades do sistema municipal de saúde e das áreas abrangidas pelas equipes no processo de cuidado. O único protocolo municipal de enfermagem citado pelos profissionais apresentou pouca direcionalidade para as lesões precursoras e o CCU, abordando a neoplasia e seus cuidados de forma superficial.
As EqSF adotavam listas de espera, mas sem uma sistematização dessa rotina e adoção de critérios de gravidade/necessidade. As agendas de trabalho das EqSF revelaram uma dinâmica local de agendamentos de exames e consultas básicas com persistência de um padrão restrito a dias e horários específicos, pré-determinados pela gerência das unidades de saúde e sem uma flexibilidade organizacional para as marcações. Os agendamentos nos serviços de APS eram realizados por profissional da equipe exclusivo para essa função (marcador), e as informações sobre a data de realização eram divulgadas através de mensagens de texto ou ligação telefônica (mecanismo recorrente).
Gestores e profissionais apontaram a existência de sistema de marcação informatizado e parcialmente descentralizado (apenas para média complexidade) nas unidades de saúde, que facilitava agendamentos locais das consultas e exames especializados pelas EqSF. Todavia, constrangimentos municipais aos encaminhamentos realizados pela APS têm sido frequentes quando há dependência local da oferta de consultas ginecológicas condicionadas à autorização da gestão da Secretaria Municipal de Saúde e quando há centralização das marcações para serviços especializados.
[...] a gente faz o seguinte: como a gente tem a central de regulação, a gente manda essas vagas pra central, tem a quantidade certa de vagas que a gente manda e a central disponibiliza pros postos. Não são muitas vagas, então a gente tem aí 40 postos, então a demanda é enorme, então elas tentam dividir, né? Pelo menos duas vagas pra cada posto e aí vai de acordo com a demanda. À medida que eu vou recebendo essa demanda dos postos eu vou tentando classificar como que eu vou agendar. Tem posto que me manda 10 pacientes, mas aí tem outros postos que não manda nada. Então, eu tento colocar duas vagas pra cada posto, mas aí no final que eu vejo que eu tenho mais vaga eu vou agendar as anteriores que eu não tinha conseguido anteriormente, tá? (Gestor A).
Em cenários locais sem informatização das unidades de saúde, predominam registros manuais da produção do cuidado com a utilização de instrumentos improvisados (cadernos). A análise dos prontuários revelou que o registro de informações abarcava a identificação das mulheres, data da coleta do exame citopatológico, descrição do exame clínico e laudos citopatológicos. Vale ressaltar que, mesmo nos cenários com implantação do prontuário eletrônico (duas equipes), não se observou ruptura com a realização de registros manuais, mantendo-se as duas alternativas, em função da opção profissional por esta última e pouca familiaridade com o prontuário eletrônico.
Gestores e profissionais confirmaram a ausência de espaços regulares para a troca de informações entre profissionais da APS e entre estes e os demais âmbitos da atenção à saúde. A ausência de informatização dificulta a comunicação interprofissional e colabora para que os processos comunicativos sejam operados por meios informais, a exemplo de aplicativos de mensagens como o WhatsApp.
A análise documental e entrevistas confirmaram que o papel estabelecido para o âmbito das EqSF no cuidado ao CCU envolvia o rastreamento territorial e o encaminhamento das usuárias com suspeita de lesões precursoras para serviços laboratoriais de referência municipal. Nos casos com resultados positivos, a APS participaria do referenciamento das mulheres para serviços especializados de ginecologia, colposcopia e biópsia. Todavia, vale destacar que a ausência de um fluxo municipal estabelecido com critérios para encaminhamento das mulheres pelas EqSF tende a dificultar o papel da APS na coordenação do cuidado ao CCU.
O processo de referenciamento das usuárias com lesão de alto grau para serviços de referência tende a ser operado de forma manual (fichas de referência), quando não há um sistema informatizado para atender a esse processo. Isso também ocasionava uma constante falta de contrarreferência em todos os cenários avaliados, contribuindo para que a busca de informações sobre as usuárias referenciadas fosse realizada por outros meios, tais como e-mails e ligações telefônicas, ou centrada na demanda-dependente das mulheres referenciadas.
[...] é uma falha muito grande que acontece. A referência tem que ter, porque o paciente se chegar lá sem a referência não é atendido, mas a gente não recebe a contrarreferência, não recebe, o que a gente recebe é a solicitação do médico para tal procedimento para retorno, mas pra dizer o que aconteceu o que deixou de acontecer, não. E o resultado, por exemplo, paciente que vai com alteração no colo uterino, faz a colposcopia, que é obrigatório, né? Então, vai vir o resultado pra mim da colposcopia, porque a paciente vai trazer pra mim esse resultado, mas como resultado de um procedimento. Não foi o resultado de um retorno do profissional daquilo que foi feito ou que deixou de fazer. Então, a contrarreferência, isso não existe realmente, é uma falha muito grande. (Profissional C)
Identificou-se incipiência nos processos comunicativos entre as EqSF e a central de marcação/regulação municipal. As iniciativas de comunicação limitavam-se a solicitações de exames citopatológicos sem discussão e pactuação de critérios e fluxos de encaminhamentos para outros serviços de referência no cuidado ao CCU.
Usuárias e profissionais afirmaram que o seguimento das pessoas encaminhadas, no sistema municipal de saúde, não ocorria efetivamente, pois inexistiam instrumentos e mecanismos locais para realizar esse seguimento, somado à fragmentação assistencial pela ausência de um serviço oncológico para atenção à condição traçadora do estudo na rede municipal, o que impedia as EqSF de monitorarem as mulheres em tratamento no serviço de referência situado a mais de 800 km dos territórios, isto é, na capital do estado.
A gente tem o CAM e o ginecologista que estão atendendo lá. A gente tem um carcinoma in situ, entendeu? No carcinoma in situ, a histerectomia acontece aqui no município... Pega aquela peça, encaminha para a biópsia, o patologista dá o retorno e pronto. Vê a necessidade de encaminhar para o terciário em Salvador... É porque a gente não tem, né? Os carcinomas que são intraepiteliais, são referenciados para Salvador, o Aristides Maltez. (Profissional B).
Relatos das usuárias permitiram identificar que o monitoramento comunitário delas era desempenhado apenas pelos ACS, por meio da busca ativa das mulheres nas microáreas adscritas, revelando a baixa participação dos demais profissionais das EqSF nesse processo. Todavia, este achado variou entre as EqSF, onde a busca ativa não ocorria regularmente e o seguimento das usuárias obedecia a uma lógica de demanda espontânea.
Assim, eu recebi visita só uma vez da agente comunitária, mas ela não está por dentro desse caso não. (Usuária 1)
Discussão
A APS tem papel fundamental na coordenação do cuidado às condições crônicas, pois corresponde ao locus de cuidado mais próximo das famílias e do território (Silva; Andrade, 2014SILVA, R. M. da; ANDRADE, L. de. Coordenação dos cuidados em saúde no Brasil: o desafio federal de fortalecer a atenção primária à saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 24, n. 4, p. 1207-1228, dez. 2014.). Todavia, esse não é um atributo simples, pois envolve a coordenação de fluxos assistenciais, seja no âmbito da APS ou ao longo dos distintos pontos da Rede de Atenção à Saúde, além da mobilização de variados mecanismos e instrumentos para comunicação entre serviços de natureza e densidades tecnológicas diversas (Aleluia et al., 2017ALELUIA, I. R. S. et al. Coordenação do cuidado na atenção primária à saúde: estudo avaliativo em município sede de macrorregião do nordeste brasileiro. Ciência e Saúde Coletiva, v. 22, n. 6, p. 1845-1856, jun. 2017.).
Embora situadas em diferentes localizações e, consequentemente, possuírem singularidades do território adscrito, as EqSF avaliadas apresentaram padrões semelhantes referentes aos obstáculos para coordenar o cuidado. Esse achado ratifica que o papel de coordenar o cuidado pela APS é condicionado pela organização dos sistemas municipais de saúde, havendo, portanto, constrangimentos organizacionais aos cenários locais, a exemplo da insuficiente oferta de atenção especializada e ausência de fluxos estabelecidos para o referenciamento de usuárias com lesões precursoras ou diagnóstico de CCU, relativizando o alcance de cuidados bem coordenados e integrados.
A análise dos instrumentos de planejamento revelou como as proposições municipais ainda não adotaram a APS como central na coordenação do cuidado a mulheres com lesões precursoras ou diagnóstico de CCU, o que parece denotar propósitos de planejamento pouco focados na consolidação da atenção APS como coordenadora do cuidado e ordenadora da rede de atenção. Em consonância com esse achado, pesquisas internacionais e nacionais reafirmam que secundarizar os cuidados primários no planejamento em saúde pode fragilizar o potencial desse âmbito de atenção no ordenamento dos sistemas de saúde (Ballestero et al., 2014BALLESTERO, J. G. de A. et al. Multidrug-resistant tuberculosis: integral healthcare from the discourse analysis perspective. Esc Anna Nery, v. 18, n. 3, p. 515-521. 2014.; Bousquat et al., 2017BOUSQUAT, A. et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc. saúde coletiva, v. 22, n. 4, p. 1141-1154, abr. 2017.).
A ausente institucionalização de protocolos e diretrizes próprios do município revela-se como um importante obstáculo para os gestores municipais definirem fluxos assistenciais que, por um lado, conservem as boas práticas instituídas nos protocolos internacionais e nacionais, mas que não negligenciem as singularidades de organização dos serviços locais que, porventura, possam se constituir como constrangimentos a esses fluxos. A literatura destaca que a padronização de condutas mediante uso de protocolos clínico-assistenciais é um componente fundamental para garantir cuidados bem coordenados pela APS (Tasca et al., 2020TASCA, R. et al. Recomendações para o fortalecimento da atenção primária à saúde no Brasil. Revista Panamericana de Salud Pública, v. 6, p. 44-1, jan. 2020.).
Ainda que o planejamento assistencial seja um componente estratégico para cuidados coordenados, as fragilidades evidenciadas neste estudo apontam para desafios na consolidação de uma assistência compartilhada entre os profissionais das EqSF, desde o acolhimento ao segmento das mulheres, achado semelhante ao de outro estudo realizado na Bahia (Fernandes et al., 2019FERNANDES, N. F. S. et al. Acesso ao exame citológico do colo do útero em região de saúde: mulheres invisíveis e corpos vulneráveis. Cadernos de Saúde Pública, v. 35, n. 10, 2019.). Há, desse modo, necessidade de as gestões municipais instituírem estratégias que promovam o compartilhamento das atribuições e práticas dos profissionais da APS, sobretudo relacionadas ao planejamento da assistência a mulheres com suspeita ou diagnóstico de CCU.
A manutenção de agendas de marcação e atendimento em dias e horários específicos coaduna-se com a reprodução de desigualdades no acesso de mulheres cuja disponibilidade de comparecer ao serviço de APS não se enquadra no modelo organizacional definido pela gerência das unidades de saúde. Esse fato é semelhante ao de outras pesquisas, nos quais as autorias destacam que se trata de um obstáculo importante da coordenação do cuidado, uma vez que pode condicionar a procura por outros serviços como primeiro contato, em função do maior tempo de espera e da frustração causada pelo não agendamento de atendimento no mesmo dia em que buscou os serviços primários (Bousquat et al., 2017BOUSQUAT, A. et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc. saúde coletiva, v. 22, n. 4, p. 1141-1154, abr. 2017.; Rocha; Bocchi; Godoy, 2016ROCHA, S. A.; BOCCHI, S. C. M.; GODOY, M. F. de. Acesso aos cuidados primários de saúde: revisão integrativa. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v. 26, n. 1, p. 87-111, mar. 2016.).
O modelo de distribuição de vagas para consultas e exames especializados em regime de “cotas” administrativas evidencia contradições entre as necessidades gerenciais do nível municipal e as necessidades locais das EqSF, reproduzindo iniquidades de oferta especializada e demandas territoriais reprimidas. Por se configurar como município de referência macrorregional, o cenário deste estudo revela desafios para os sistemas de saúde que sediam regiões de saúde e necessitam organizar a oferta da atenção especializada para o seu território e para os demais municípios limítrofes, de modo que a concorrência entre demandas referenciadas pela APS de diferentes cidades é um desafio importante para adequação da oferta necessária à garantia de cuidados bem coordenados ao CCU. Esta situação tem sido ratificada em outros sistemas municipais, sede de macrorregião na Bahia e São Paulo (Bousquat et al., 2017BOUSQUAT, A. et al. Atenção primária à saúde e coordenação do cuidado nas regiões de saúde: perspectiva de gestores e usuários. Ciênc. saúde coletiva, v. 22, n. 4, p. 1141-1154, abr. 2017.; Almeida et al., 2015ALMEIDA, P. F.; SANTOS, A. M.; SOUZA, M. K. B. Atenção Primária à Saúde na coordenação do cuidado em Regiões de Saúde. Salvador: EdUFBa, 2015.).
Este estudo identificou a baixa institucionalidade da contrarreferência operada por meio de instrumentos manuais, e pesquisas, em outros sistemas municipais de saúde do Brasil, também confirmaram esse achado (Bortolasse et al., 2016BORTOLASSE, de F. A. et al. Seguimento do câncer de colo de útero: Estudo da continuidade da assistência à paciente em uma região de saúde. Esc Anna Nery, v. 20, n. 4, p. e20160096, 2016.; Santos; Giovanella, 2016SANTOS, A. M. dos.; GIOVANELLA, L. Estratégia Saúde da Família na coordenação do cuidado em região de saúde na Bahia. Saúde em Debate, v. 40, n. 108, p. 48-63, mar. 2016.). Isso revela que a não implementação de alternativas municipais informatizadas para integrar informações no sistema de saúde, colabora para a fragmentação comunicacional entre os profissionais e serviços ou sua ocorrência de maneira informal, limitando, assim, a capacidade da APS receber informações sobre as usuárias referenciadas e garantir seu seguimento de forma mais efetiva.
Os obstáculos de comunicação entre profissionais e serviços refletem a incipiência de processos de gestão voltados à criação de estratégias para estabelecer espaços de comunicação e meios/instrumentos informatizados destinados a integrar os diferentes pontos de atenção dos sistemas municipais de saúde. De acordo com alguns autores, a desarticulação comunicacional entre APS e demais serviços de saúde compromete o atributo da coordenação do cuidado, de modo que, quando os processos de trabalho ocorrem fragmentados, expõem barreiras administrativas que comprometem a continuidade dos serviços prestados (Santos; Giovanella, 2016SANTOS, A. M. dos.; GIOVANELLA, L. Estratégia Saúde da Família na coordenação do cuidado em região de saúde na Bahia. Saúde em Debate, v. 40, n. 108, p. 48-63, mar. 2016.; Almeida et al., 2013ALMEIDA, P. F. et al. Estratégias de integração entre atenção primária à saúde e atenção especializada: paralelos entre Brasil e Espanha. Saúde em Debate, v. 37, n. 98, p. 400-415, set. 2013.).
As evidências deste estudo apontaram que o componente “seguimento das usuárias” se apresenta como um dos menos desenvolvidos nas práticas de coordenação do cuidado pela APS, bem como reafirmam que tanto a gestão municipal quanto local pouco têm instituído inovações necessárias para o seguimento, seja no âmbito comunitário ou do sistema de saúde. Destacam-se, neste estudo, os ACS, que por meio das visitas domiciliares possibilitavam, em alguma medida, o seguimento comunitário das usuárias, revelando seu papel estratégico na garantia da continuidade do cuidado nas EqSF. Nessa direção, autores recomendam o seguimento regular de usuárias para o alcance do atributo da coordenação do cuidado pela APS (Silva et al., 2016SILVA, M. R. F. et al. Continuidade Assistencial a mulheres com câncer de colo de útero em redes de atenção à saúde: estudo de caso, Pernambuco. Saúde em Debate, v. 40, n. 110m p. 107-19, 2016.; Soares et al., 2011SOARES, M. C. et al. Câncer de colo uterino: atenção integral à mulher nos serviços de saúde. Revista Gaúcha de Enfermagem, v. 32, n. 3, p. 502-8, set. 2011.).
Ademais, a constituição de espaços para troca de informações assistenciais é fundamental no apoio ao monitoramento do cuidado, a fim de que esse não se torne dependente apenas do retorno das mulheres ao serviço primário de saúde (Dias; Giovanella, 2013DIAS, M. P.; GIOVANELLA, L. Prontuário eletrônico: uma estratégia de coordenação entre a atenção primária e secundária à saúde no Município de Belo Horizonte. R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde, v. 7, n. 2, p. 1-17, ago. 2013.).
Em suma, esta pesquisa permitiu identificar os principais obstáculos municipais e locais para a APS coordenar o cuidado ao câncer de colo uterino em territórios de referência macrorregional. Seus resultados ratificam a difícil tarefa das EqSF cumprirem esse atributo nas condições crônicas, sobretudo quando há constrangimentos municipais que abarcam componentes relativos à padronização de condutas, à comunicação e ao sistema de referência e contrarreferência.
Os obstáculos aqui identificados justificam a implantação de estratégias de reordenamento dos sistemas municipais de saúde e reorganização do processo de trabalho da APS, de modo a criar condições para cuidados mais coordenados ao CCU, sobretudo aquelas relacionadas com os critérios avaliativos de menor desempenho, tais como a realização de Educações Permanentes, instituição de espaços para comunicação interprofissional, pactuação de ações e serviços entre os distintos pontos de atenção, desenvolvimento de planos de cuidados compartilhados, adoção de sistema de referência e contrarreferência informatizado e seguimento regular das usuárias.
As lacunas da literatura evidenciam a necessidade de novos estudos avaliativos em sistemas municipais de saúde do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, comparando equipes com diferentes localizações - urbana (central e periférica) e rurais.
Como contribuição da pesquisa, destaca-se a avaliação centrada em dois níveis analíticos e proposição de critérios avaliativos concernentes aos condicionantes locais e municipais da coordenação cuidado. Ademais, a elaboração de uma situação-objetivo inédita para avaliação da coordenação do cuidado ao CCU foi capaz de apoiar a análise de um dos atributos mais importantes da APS, podendo ser utilizada em futuros estudos. As dimensões e os critérios da situação-objetivo reuniram elementos embasados em ampla revisão nacional e internacional, devidamente validados por especialistas.1 1 A. S. de Jesus e I. R. S. Aleluia: redação do projeto, coleta e análise dos dados, redação do artigo e revisão crítica do conteúdo. M. L. T. de Sousa: coleta e análise dos dados, redação do artigo e revisão crítica do conteúdo. M. N. Aragão: coleta e análise dos dados, redação do artigo e revisão crítica do conteúdo.
Referências
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A. S. de Jesus e I. R. S. Aleluia: redação do projeto, coleta e análise dos dados, redação do artigo e revisão crítica do conteúdo. M. L. T. de Sousa: coleta e análise dos dados, redação do artigo e revisão crítica do conteúdo. M. N. Aragão: coleta e análise dos dados, redação do artigo e revisão crítica do conteúdo.
Editado por
Editora responsável:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
01 Jul 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
29 Jun 2023 -
Revisado
27 Out 2023 -
Aceito
16 Nov 2023