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Vulnerabilidade socioeconômica e microcefalia relacionada ao Zika vírus no Brasil

Resumo

Objetivo: Realizar uma análise descritiva dos gastos privados diretos domiciliares em saúde e da vulnerabilidade socioeconômica associados à condição de microcefalia, uma das manifestações mais evidentes da síndrome congênita do Zika vírus (SCZ). O surto de microcefalia e outros distúrbios neurológicos em crianças menores de um ano de idade foi associado à infecção pelo vírus Zika, durante a epidemia ocorrida no período de 2015-2016 no Brasil. Método: Noventa e seis entrevistas foram realizadas em dois centros especializados de atendimento às crianças acometidas por microcefalia nas cidades do Rio de Janeiro e Fortaleza. O questionário estruturado abrangeu características sociodemográficas, gastos com desembolso direto associados com a doença e estratégias adotadas pelas famílias para lidarem com os desafios financeiros impostos pela anomalia congênita. Resultados: Os domicílios eram majoritariamente chefiados por não-brancos e pertenciam às classes C e D-E. Os gastos com medicamentos contabilizaram 78% dos gastos médicos, enquanto as despesas com transporte representaram 46% do gasto privado não-médico. A maioria dos domicílios enfrentaram endividamento e redução do consumo doméstico, inclusive de alimentos, a fim de fazer face às despesas incorridas pela doença. Conclusão: A microcefalia parece reforçar a vulnerabilidade socioeconômica das famílias, reforçando o círculo vicioso característico da abordagem conceitual da armadilha saúde-pobreza.

Palavras-Chave:
Microcefalia; Síndrome congênita do Zika vírus; Desembolso direto com saúde; Armadilha saúde-pobreza

Abstract

Objective: To carry out a descriptive analysis of direct private household health expenditures and socioeconomic vulnerability associated with the condition of Microcephaly, one of the most evidence manifestations of Congenital Zika Syndrome (CZS). The outbreak of microcephaly and other neurological disorders in children under one year of age was linked to Zika virus infection during the 2015-2016 epidemic in Brazil. Method: Ninety-six interviews were carried out in two specialized care centers for children with microcephaly in the cities of Rio de Janeiro and Fortaleza, Brazil. The structured questionnaire covered sociodemographic characteristics, out-of-pocket expenditures associated with the disease, and strategies adopted by families to deal with the financial challenges imposed by the congenital anomaly. Results: The households were mostly headed by non-whites and belonged to classes C and D-E. Expenditures on medicines accounted for 78% of medical expenses, while transportation represented 46% of private non-medical expenses. Most households faced debt and reduced domestic consumption, including food, to meet the expenses incurred by the disease. Conclusion: Microcephaly appears to reinforce the socioeconomic vulnerability of families, reinforcing the vicious circle characteristic of the health-poverty trap conceptual approach.

Keywords:
Microcephaly; Congenital Zika syndrome; Out-of-pocket health expenditures; Health-poverty trap

Introdução

Considerada uma emergência de saúde pública de caráter nacional e internacional nos anos 2015-2016, a epidemia de Zika apresentou implicações de curto e longo prazos que aprofundaram a pobreza e as desigualdades preexistentes (Gómez et al., 2020), além de expor fragilidades dos sistemas de saúde e os desafios a serem enfrentados para o cumprimento das metas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).

O Zika vírus foi identificado em 1947, mas recebeu pouca atenção até ocorrerem surtos em humanos na Micronésia (2007) e na Polinésia Francesa (2013) (McNeil, 2016MCNEIL, D. G., JR. Zika: The emerging epidemic. New York: Norton, 2016.; WHO, 2016WORLD HEALTH ORGANIZATION. 2016. Zika situation report. Disponível em: https://www.who.int/emergencies/zika-virus/situation-report/15-september-2016/en/. Geneva: WHO, 2016.
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). Em abril de 2015, o Ministério da Saúde do Brasil identificou um surto de Zika na Região Nordeste do país e notificou a Organização Mundial da Saúde. Assim, o vírus ganhou notoriedade global. Em 2016, o surto intensificou-se e espalhou-se por outros países das Américas. Um dos grandes desafios advindos da epidemia de Zika foi a capacidade de infecção intrauterina do vírus, que levou a casos de microcefalia, anormalidades congênitas, nascimentos prematuros, problemas cognitivos e sensoriais, deficiências motoras e até a morte de fetos e bebês (CaineCAINE, E. A.; JAGGER, B. W.; DIAMOND, M. S. Animal models of Zika virus infection during pregnancy. Viruses, v. 10, n. 11, p. 598, 2018. et al., 2018). Esse conjunto de anomalias ficou caracterizado como síndrome congênita do Zika vírus (SCZ), sendo a microcefalia uma das manifestações mais evidentes da doença.

De acordo com o Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública sobre Microcefalias do Ministério da Saúde, mais de dez mil casos de microcefalia foram notificados em todo o país, com 60% das crianças nascidas em municípios da região Nordeste (Brasil, 2016BRASIL. Ministério da Saúde. Sala de Apoio à Gestão Estratégica. Situação de saúde. Microcefalia e Zika. Boletim Microcefalia. Informe Epidemiológico nº 57/2016. Ministério da Saúde: Brasília, 2016. Disponível em: http://combateaedes.saude.gov.br/images/pdf/Informe-Epidemiologico-n57-SE52_2016. Acesso em: 9 ago. 2020.
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). Estudos sobre a prevalência de microcefalia no Brasil sugerem que o grupo mais suscetível à doença é composto por mães jovens, negras ou pardas e pertencentes a famílias de baixo status socioeconômico, indicando o potencial de ampliação das iniquidades sociais (Butler, 2016BUTLER, D. Brazil asks whether Zika acts alone to cause birth defects. Nature, v. 535, n. 7613, p. 475-476, 2016.; Marinho et al., 2016MARINHO, F.; ARAÚJO, V. E. M.; PORTO, D. L. et al. Microcefalia no Brasil: prevalência e caracterização dos casos a partir do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), 2000-2015. Epidemiol. Serv. Saude, v. 25, n. 4, p. 701-712, 2016.).

Diante da urgente demanda, o sistema de saúde brasileiro enfrentou desafios para garantir atenção rápida às crianças nascidas com microcefalia, emitindo diretrizes para o atendimento a especialidades e estimulação precoce. Contudo, além de demandar respostas eficazes nos níveis de governo, a doença parece apresentar repercussões dramáticas sobre várias esferas da vida dos membros da família. Particularmente, as consequências socioeconômicas no domicílio podem apresentar-se substanciais.

Choques no estoque de saúde, tais como suas influências sobre os gastos com bens e serviços de saúde, capacidade funcional e perda de renda e produtividade podem representar um fator de risco primário de empobrecimento, alterando a capacidade de geração de renda presente e futura dos indivíduos e a qualidade de vida no domicílio. Em resposta a uma determinada condição de doença, ocorrem alterações no padrão de renda e gastos, e os indivíduos podem ser levados a liquidar ativos e poupanças domiciliares ou a elevar o endividamento familiar e o nível de pobreza. Assim, há prejuízos para a formação de capital físico, financeiro e humano dos envolvidos e a consequente redução das possibilidades de consumo futuras (WHO, 2009WORLD HEALTH ORGANIZATION. Department of Health Systems Financing. Health Systems and Services. WHO Guide to Identifying the Economic Consequences of Diseases and Injury. Geneva: WHO, 2009.).

Neste sentido, entender a simultaneidade na relação entre a microcefalia e a pobreza torna-se fundamental para a elaboração e implementação de estratégias de prevenção e tratamento da doença. A geração de evidências relativas aos aspectos socioeconômicos da microcefalia, em diferentes contextos, perspectivas e dimensões, mostra-se de extrema relevância para o entendimento das variadas implicações da doença e o aperfeiçoamento das políticas públicas de enfrentamento à síndrome.

Utilizando uma abordagem descritiva e exploratória, este estudo tem como objetivo realizar uma análise dos gastos privados diretos domiciliares em saúde e da vulnerabilidade socioeconômica associados à condição de microcefalia, durante o surto da doença e de outros distúrbios neurológicos que ocorreu com a epidemia de Zika vírus no Brasil, no período de 2015-2016.

Entende-se, aqui, por vulnerabilidade socioeconômica, uma condição de fragilidade material e social de indivíduos ou grupos diante de riscos produzidos por um dado contexto econômico-social (Monteiro, 2011MONTEIRO, S. R. R. P. O marco conceitual da vulnerabilidade social. Sociedade em Debate. Pelotas, v. 17, n. 2, p. 29-40, 2011.). Trata-se de um conceito multidimensional, que se conforma a partir da exposição a riscos de diferentes naturezas - sejam eles econômicos, sanitários, culturais ou sociais - que colocam diferentes desafios para seu enfrentamento. Nesse sentido, o termo faz alusão tanto à precarização das condições materiais de vida frente a alguma mudança ou permanência de situações indesejáveis, quanto à capacidade de resposta que os indivíduos ou grupos sociais apresentam em relação a esses desafios (Busso, 2001BUSSO, G. Vulnerabilidad social: nociones e implicancias de políticas para Latinoamérica a inicios del siglo XXI. Seminario Internacional: las diferentes expresiones de la vulnerabilidad social en América Latina y el Caribe. Santiago de Chile: CELADE, 2001.).

O entendimento das implicações da doença, considerando a perspectiva das famílias afetadas e os encargos financeiros suportados por estas, revela as estratégias de enfrentamento adotadas pelos membros do domicílio e pode sinalizar a necessidade de aprimoramento de políticas públicas voltadas a essa população.

Métodos

A armadilha saúde-pobreza e a anomalia congênita de microcefalia

Apesar de a perda de renda e agravos de saúde se reforçarem mutuamente, gerando um círculo vicioso de sofrimento e privação material, grande parte dos estudos no campo da saúde pública se concentram no papel dos elementos socioeconômicos na determinação do processo saúde-doença (Buss; Pellegrini Filho, 2007BUSS, P. M.; PELLEGRINI FILHO, A. A saúde e seus determinantes sociais. PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 77-93, 2007.; Carrapato; Correia; Garcia, 2017CARRAPATO, P.; CORREIA, P.; GARCIA, B. Determinante da saúde no Brasil: a procura da equidade na saúde. Saúde Soc. São Paulo, v. 26, n. 3, p. 676-689, 2017. DOI 10.1590/S0104-12902017170304; Marmot, 2005MARMOT, M. Social determinants of health inequalities. Lancet, v. 365, p. 1099-104, 2005.).

Os principais canais pelos quais a renda afeta a saúde passam não somente pelo atendimento às necessidades básicas de um domicílio para a sobrevivência de seus membros, mas também pela ampliação de possibilidades de escolha (Sen, 2000SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.). Pessoas com maior nível de rendimentos possuem maiores possibilidades de aquisição de bens e serviços de saúde; melhores condições nutricionais e de segurança alimentar; e melhores condições de moradia, com acesso à água potável e esgotamento sanitário. Além disso, segundo Grossman, a educação aumenta a eficiência com a qual os indivíduos investem em sua saúde, dado que o aumento do nível de informação proporciona maior reconhecimento dos benefícios de um bom estado de saúde, aumenta a capacidade de dar seguimento adequado a quaisquer tratamentos em curso e facilita a adoção de hábitos de vida saudáveis (Grossman, 1972GROSSMAN, M. On the Concept of Health Capital and the Demand for Health. Journal of Political Economy, n. 80, p. 223-255, 1972.). Por tudo isso, indivíduos na condição de pobreza possuem maiores chances de sofrer choques negativos na saúde (Sala-I-Martin, 2005SALA-I-MARTIN, X. Health and Economic Growth Findings and policy implications. In: LÓPEZ-CASANOVA, G.; RIVERA, B.; CURRAIS, L. (eds.). Health and Economic growth: findings and policy implications. Cambridge: MIT Press Direct, 2005. https://doi.org/10.7551/mitpress/3451.001.0001).

A causalidade também pode ocorrer na direção oposta, de modo que a saúde afeta o nível de renda. Segundo a teoria do capital humano, a saúde teria impactos diretos e indiretos sobre a renda. Os efeitos diretos se dão através do impacto da condição de saúde sobre a produtividade e capacidade de oferta de trabalho pelos indivíduos. Essas evidências são percebidas tanto no nível microeconômico, ao nível das esferas domiciliares, quanto em termos de renda agregada. Os efeitos indiretos referem-se aos possíveis impactos positivos da saúde sobre o outro elemento da função de capital humano – a educação. Crianças saudáveis apresentam maiores níveis de desempenho e frequência escolar, com consequências para a reprodução intergeracional da pobreza. Ao influenciar a expectativa de vida dos pais e da criança, a saúde também afeta a educação por via do maior retorno ao investimento em capital humano realizado. Assim, quanto mais anos os indivíduos esperam viver, maiores são suas expectativas em relação aos salários futuros descontados os custos de investimento em educação. A mesma lógica pode ser estabelecida em termos de acumulação de capital físico: indivíduos possuem maiores incentivos à formação de poupança, quanto maiores são as expectativas de sobrevida (Santos; Jacinto; Tejada, 2012SANTOS, A. M. A.; JACINTO, P. A.; TEJADA, C. A. O. Causalidade entre Renda e Saúde: Uma Análise Através da Abordagem de Dados em Painel com os Estados do Brasil. Est. Econ. São Paulo, v. 42, n. 2, p. 229-261, 2012.).

Na esfera domiciliar, a condição de doença apresenta impactos imediatos na medida em que pode levar à redução do nível normal de atividade produtiva, elevar os gastos com bens e serviços de saúde, reduzir as possibilidades de consumo de outros bens não relacionados à saúde – inclusive aqueles relacionados à subsistência – induzir a liquidação de ativos e ao endividamento, e diminuir o investimento em capital físico, humano e social (Alam; Mahal, 2014ALAM, K.; MAHAL, A. Economic impacts of health shocks on households in low and middle income countries: a review of the literature. Globalization and Health, v. 10, n. 21, 2014.; Engelgau; Karan; Mahal, 2012ENGELGAU, M. M.; KARAN, A.; MAHAL, A. The Economic impact of Non-communicable Diseases on households in India. Globalization and Health, v. 8, n. 9, 2012.). No nível macroeconômico, a doença pode impactar o crescimento do produto interno bruto (PIB), ao diminuir a produtividade no mercado de trabalho, afetar as atividades turísticas e transações comerciais, alterar a composição demográfica, e reduzir a poupança nacional e o investimento na formação de capital físico (Martelli et al., 2015MARTELLI, C. M. T. et al. Economic Impact of Dengue: Multicenter Study across Four Brazilian Regions. PLoS Negl Trop Dis., v. 9, n. 9, p. e0004042, 2015. doi:10.1371/journal.pntd.0004042
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; UNDP, 2017THE UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAMME. In partnership with the International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies - IFRC. A Socio-Economic Impact Assessment of the Zika Virus in Latin America and the Caribbean: with a focus on Brazil, Colombia and Suriname. New York: UNDP, 2017.; WHO, 2009WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO guide to identifying the economic consequences of disease and injury. Geneva: WHO Press, 2009.).

Desse modo, a experiência internacional vem mostrando a doença não somente como manifestação, mas também como causa da condição de pobreza (OECD, 2003). Como se pode ver na Figura 1, essa relação de simultaneidade faz com que baixos níveis de renda causem saúde precária que, por sua vez, reforçam a incapacidade de geração de renda, gerando um círculo vicioso chamado de armadilha saúde-pobreza.

Figura 1.
Armadilha Saúde-Pobreza

Sob essa condição, colocada pela Armadilha Saúde-Pobreza, indivíduos, domicílios e comunidades se tornam aprisionados em um estado de baixa capacidade produtiva, privação material e maiores riscos de se contrair doenças (Nyakto; Pelupessy, 2011; Thanh et al., 2013THANH, N. X. et al. Fetal Alcohol Spectrum Disorder: Poverty Trap? Popul Ther Clin Pharmacol, v. 20, n. 1, p. e63-e66; 2013.; Whitehead; Bird, 2006WHITEHEAD, M.; BIRD, P. Breaking the poor health-poverty link in the 21st century: do health systems help or hinder? Annals of Tropical Medicine Parasitology, v. 100, n. 5-6, p. 289-99, 2006.).

Além disso, determinados choques de saúde reforçam a condição de pobreza crônica, impondo uma privação multidimensional por vários anos ou até mesmo transmitida entre gerações. Pode-se identificar cinco principais armadilhas que dão sustentação à pobreza crônica. A insegurança relativa às condições de vida e moradia, com afunilamento das decisões em direção ao curto prazo ou às questões de sobrevivência; a cidadania limitada, que evidencia a falta de efetiva representação política para fazer com que os direitos e necessidades sejam atendidos; a desvantagem espacial, que aprisiona indivíduos em regiões remotas com fraca integração econômica ou espaços urbanos marginalizados com inexistente ou baixa qualidade na oferta de serviços públicos; a discriminação social, na qual as relações são perpassadas pela exploração, estigmatização e negação de direitos; e pobres oportunidades de trabalho, caracterizadas por chances limitadas de geração de renda e acúmulo de ativos ou alto grau de exploração nas atividades (CPRC, 2008).

Estas relações ainda são perpassadas por características socioculturais, com impactos ainda mais significativos nas populações mais vulneráveis, como a desigualdade dos papéis de gênero na distribuição do trabalho doméstico, no cuidado da família e na capacidade produtiva no mercado de trabalho.

Evidências sugerem que este parece representar o círculo vicioso no qual se encontram as famílias com crianças afetadas pela microcefalia no Brasil. Enquanto os custos de curto-prazo nos dois primeiros anos da epidemia de Zika correspondem a um valor estimado entre US$ 7-18 bilhões, os custos de longo-prazo podem chegar a US$ 39 bilhões e estão associados à perda de rendimentos futuros das pessoas que não serão aptas a se juntarem à força de trabalho devido à microcefalia e à síndrome de Guillain-Barré. O impacto é desproporcionalmente maior nas regiões mais pobres, sobretudo nos subgrupos populacionais mais vulneráveis, especialmente mulheres pobres e não-brancas moradoras de centros periféricos urbanos. Nessas localidades, os domicílios enfrentam persistentes disparidades no acesso a serviços de saúde e saneamento, piores inserções no mercado de trabalho e menor poder de barganha e pressão política para a garantia de direitos e assistência social (UNDP, 2017).

Desenho do estudo

O estudo transversal, de caráter descritivo e exploratório, baseou-se na coleta de dados primários, através de um questionário estruturado. As crianças incluídas no estudo receberam atendimento clínico em dois pontos especializados de atendimento nas cidades de Fortaleza e Rio de Janeiro. Estes locais abrigam uma série de serviços às crianças com microcefalia vindas de diferentes partes das respectivas Unidades da Federação. O primeiro refere-se ao Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, responsável pelo atendimento de uma coorte de 26 crianças diagnosticadas com a doença. O segundo ponto de coleta refere-se à organização não-governamental Instituto Caviver, localizada no município de Fortaleza, que atende 120 crianças diagnosticadas com microcefalia, a partir de equipes multiprofissionais. Todos os pacientes de ambas as coortes foram recrutados para participar do estudo.

As aplicações do questionário ocorreram nos meses de julho de 2017 e janeiro 2018 e foram realizadas por cinco estudantes de pós-graduação que receberam treinamento para o trabalho de campo. Em ambos os pontos de atendimento, os inquéritos foram feitos de modo presencial e imediatamente após a consulta com o médico pediatra ou com algum profissional da equipe multidisciplinar. O instrumento foi aplicado ao familiar responsável pelo acompanhamento do paciente no atendimento médico e que residia no mesmo domicílio que a criança. De um total de 96 entrevistas, 80 ocorreram no município de Fortaleza. No município do Rio de Janeiro, aceitaram participar do estudo apenas 16 dos 26 responsáveis acompanhantes das crianças seguidas pela coorte.

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (número de referência 2.180.892) em 20 de julho de 2017 e seguiu todos os padrões éticos de pesquisa conforme a legislação brasileira. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e foram informados sobre a garantia de confiabilidade e privacidade das informações. O respondente teve liberdade de se recusar a responder qualquer uma das perguntas do questionário, se assim o preferisse. Além disso, foi informado aos participantes que o material seria armazenado em local seguro e mantido pelos pesquisadores por pelo menos cinco anos após a aplicação do questionário.

Coleta de dados

O instrumento de coleta de dados foi composto por três blocos de questões e foi elaborado pelos pesquisadores a exemplo dos inquéritos domiciliares realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No primeiro bloco, incluíram-se perguntas sobre as características demográficas e socioeconômicas do respondente e do domicílio. Quanto às informações do respondente e do chefe do domicílio, a exemplo das questões da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD/IBGE), incluíram-se variáveis de escolaridade, sexo, cor/raça, idade, estado civil, posse de plano de saúde, rendimento mensal, além da situação e posição na ocupação no mercado de trabalho. No que se refere à caracterização da criança acometida com microcefalia, pesquisaram-se informações sobre idade, idade no diagnóstico, cor/raça e posse de plano de saúde. Quanto às condições do domicílio, foram incluídas variáveis sobre as despesas totais, rendimento mensal domiciliar e os gastos dos membros com moradia e alimentação, que refletem a condição de reprodução social da família. Também foi estimado o estrato socioeconômico a que pertence o domicílio, medido em termos do Critério Brasil (ABEP, 2018). Desenvolvida com base na Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF/IBGE), a metodologia de desenvolvimento do Critério Brasil classifica as famílias em seis estratos socioeconômicos a partir de itens de bens e serviços de consumo, condição de abastecimento de água e pavimentação do logradouro, e o grau de instrução do chefe da família.

No segundo bloco do instrumento, também à semelhança da POF/IBGE, levantaram-se informações sobre os gastos privados domiciliares com saúde e com os pagamentos de despesas de saúde e cuidado associadas à condição da doença da criança. O bloco também abarcou questões ligadas às estratégias de enfrentamento das famílias, como a tomada de empréstimos e outros sacrifícios financeiros. No terceiro e último bloco, buscou-se investigar sobre a saúde do respondente – através de questões de saúde autoavaliada, diagnóstico de ansiedade e/ou depressão e capacidade de realizar atividades habituais, além do acesso à assistência social.

Ambos os campos de pesquisa, Recife e Rio de Janeiro, utilizaram o mesmo instrumento de coleta de dados. O pré-teste do questionário estruturado foi realizado com um familiar responsável por uma das crianças com microcefalia da coorte do Rio de Janeiro.

Estimativa dos gastos privados domiciliares associados à doença

O levantamento das despesas ocorreu sob a ótica do domicílio onde reside a criança acometida por microcefalia. Estimam-se os desembolsos feitos por pagamentos das famílias, abrangendo todas as despesas privadas pagas diretamente pelos consumidores aos prestadores de cuidados de saúde, ou seja, consideram-se os bens e serviços de saúde que não são cobertos por seguro privado de saúde ou por outro terceiro pagador.

Para o cálculo dos gastos privados associados à doença, utiliza-se a técnica de microcusteio. Comum em análises de custo-efetividade, esta técnica permite alto grau de detalhamento na medida em que considera cada um dos componentes que tenham contribuído para a atenção médica (WHO, 2009). Na primeira etapa, identificaram-se os procedimentos de atenção à saúde a partir da orientação de especialistas quanto às necessidades de cuidado. Os procedimentos identificados como prioritários no cuidado às crianças diagnosticadas com a microcefalia foram as consultas de fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia, outras consultas médicas, medicamentos, exames laboratoriais e radiológicos, dispositivos e outros itens de consumo.

Na segunda etapa, mensura-se o valor da atenção a partir do produto das quantidades de uso de recursos e da aferição direta de pagamentos e remunerações realizados (Drummond et al., 2005DRUMMOND, M. E.; SCULPHER, M. J.; TORRANCE, G. W. et al. Methods for the economic evaluation of health care programmes. Oxford University Press: Oxford, UK, 2005.). Assim, estimam-se custos médicos e não-médicos, sendo os primeiros associados diretamente à assistência médica – como por exemplo, consultas, medicamentos e aparelhos – e os últimos relacionados aos custos complementares ao cuidado em saúde, tais como gastos com alimentação, transporte, hospedagem e contratação de cuidador para a criança (Drummond et al., 2005DRUMMOND, M. E.; SCULPHER, M. J.; TORRANCE, G. W. et al. Methods for the economic evaluation of health care programmes. Oxford University Press: Oxford, UK, 2005.).

Como mais de 80% das crianças do estudo tinham entre um e dois anos de idade no momento do estudo, foram levantados os pagamentos realizados no primeiro ano de vida da criança. Portanto, a estimação dos gastos foi computada sob essa perspectiva temporal.

O fato de se utilizar a técnica de microcusteio permite maior flexibilidade na escolha da perspectiva temporal de análise, haja vista que a aferição de valor parte das quantidades e pagamentos realizados no período definido no estudo. Por outro lado, quanto maior a distância entre a resposta ao inquérito e a ocorrência do uso do serviço ou compra do bem, maior a possibilidade de viés de memória nas respostas. Acredita-se, contudo, que esse problema foi minimizado pela identificação prévia, junto aos especialistas, dos principais procedimentos no cuidado às crianças diagnosticadas com microcefalia e uma ideia sobre a frequência média de ocorrência de cada uso no primeiro ano de atenção. Além disso, o viés de memória tende a ser maior para os inquéritos de famílias com crianças acima de dois anos de idade, que representam apenas 13,5% da amostra.

As análises dos dados ocorreram em 2018. Por isso, os valores reportados pelos participantes do estudo foram ajustados a preços de 2018, pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA/IBGE). A correção se deu a partir do deflator correspondente ao ano dos pagamentos reportados pelo respondente, que variou a depender da idade da criança no momento do inquérito.

Empobrecimento e vulnerabilidade financeira

Diante dos possíveis custos associados à microcefalia, estima-se a proporção de domicílios cujo rendimento domiciliar per capita, após a dedução dos gastos privados diretos com a doença, seja equivalente ou inferior às linhas de extrema pobreza e pobreza internacionais adotadas pelo Banco Mundial. Essas linhas equivalem a US$1,90 e US$5,50 por dia, correspondentes aos respectivos valores em reais mensais de R$146,00 e R$420,00, em 2018. Nesse sentido, estes valores são adotados como referências de renda mínima requerida para a manutenção da subsistência e de um padrão material mínimo de vida, de modo que são considerados extremamente pobres e pobres os domicílios com rendimentos inferiores a estes respectivos níveis (Engelgau; Karan; Mahal, 2012; World Bank, 2018WORLD BANK. International Bank for Reconstruction and Development. 2018. DOI: 10.1596/978-1-4648-1330-6.).

Na medida em que estes limiares são aplicados uniformemente em todas as regiões do país, sem considerar a inflação e as diferenças regionais de custo de vida, adota-se uma segunda metodologia de corte, desenvolvida pela economista Sonia Rocha, pesquisadora do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets). A abordagem estabelece 25 linhas de pobreza indexadas a valores de cestas de consumo observadas regionalmente e foram corrigidos a preços de 2018 pelo IPCA (Rocha, 1997ROCHA, S. Do consumo observado à linha de pobreza. Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, v. 7, n. 2, p. 313-352, 1997.; Rocha, 2015ROCHA, S. Indicadores de pobreza, segundo unidades de federação, regiões e estratos de residência - 2014. Rio de Janeiro: Iets, 2015. Disponível em: http://iets.org.br/spip.php?article406. Acesso em: 11 jun. 2019.
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). As linhas de extrema pobreza e pobreza são equivalentes a R$121,06 e R$315,39; e a R$162,38 e R$470,17 para as respectivas regiões de Fortaleza e Rio de Janeiro.

Além do empobrecimento, calculam-se também as proporções de domicílios que apresentam as seguintes estratégias de enfrentamento diante da vulnerabilidade financeira imposta pela doença: i) diminuição dos gastos com alimentação; ii) diminuição dos gastos com outros itens de consumo; iii) endividamento com familiares, amigos, instituições de crédito e bancos comerciais; iv) venda de bens ou ativos financeiros; e v) retirada de recursos de poupança.

Todos os dados foram codificados em planilha Microsoft Excel e as análises são realizadas através do software Stata 15.0.

Análise e discussão dos resultados

A Tabela 1 mostra as características dos domicílios incluídos no estudo. Quase 60% das famílias entrevistadas residiam em imóvel próprio ou cedido, enquanto 40% pagavam aluguel. A maioria dos domicílios contava com abastecimento de água pela rede geral (74%), coleta de lixo (88,6%) e esgotamento sanitário pela rede coletora ou fossa séptica (91,6%). Os chefes de família eram majoritariamente pretos ou pardos (71,9%) e metade deles não concluiu o ensino médio. De fato, as famílias afligidas pela microcefalia estavam distribuídas na base da pirâmide social. Estas pertenciam majoritariamente às classes C e D-E, sem representação na classe A (mais rica), que se refere ao limiar de renda média domiciliar equivalente a R$ 23.345,11, segundo informações da POF/IBGE. Apenas 13,5% dos domicílios possuíam rendimento mensal superior a 3 salários-mínimos.

Tabela 1
Características socioeconômicas dos domicílios das crianças com microcefalia. Rio de Janeiro e Fortaleza, em valores de 2018. (N=96)

Estes achados estão em consonância com a caracterização geral dos casos de microcefalia ao nascer realizada por Marinho et al. (2016MARINHO, F.; ARAÚJO, V. E. M.; PORTO, D. L. et al. Microcefalia no Brasil: prevalência e caracterização dos casos a partir do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), 2000-2015. Epidemiol. Serv. Saude, v. 25, n. 4, p. 701-712, 2016.), a partir dos dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC). Os autores encontraram maior prevalência da anomalia em bebês cujas mães se declararam pretas ou pardas, com menor nível de escolaridade e que não realizaram seis ou mais consultas de pré-natal. Perfil similar foi encontrado no estudo de Gonçalves, Tenório e Ferraz (2018GONÇALVES, A. E.; TENÓRIO, S. D. B.; FERRAZ, P. C. S. Aspectos socioeconômicos dos genitores de crianças com microcefalia relacionada ao Zika Vírus. Rev Pesq Fisio., v. 8, n. 2, p. 155-166, 2018. doi: 10.17267/2238-2704rpf.v8i2.1865
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), que buscava caracterizar o perfil socioeconômico dos responsáveis por crianças com diagnóstico de microcefalia relacionado ao Zika vírus na Região Metropolitana de Salvador. Através de um questionário estruturado, os autores encontraram elevada frequência de mães pretas ou pardas e de pais desempregados, apresentando rendimento mensal de até um salário-mínimo.

Em estimativas dos impactos socioeconômicos do Zika vírus nos países da América Latina e Caribe, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento também encontrou um impacto desproporcional da doença sobre grupos populacionais mais pobres e vulneráveis, principalmente mulheres negras de periferias urbanas (UNDP, 2017).

A Tabela 2 mostra as médias dos gastos diretos privados incorridos pelas famílias devido a microcefalia, no primeiro ano de vida da criança. As despesas totais em decorrência da doença representaram, em média, cerca de quase 13% do rendimento domiciliar. Este, por sua vez, apresentou um valor médio de R$ 23.139,38 anuais (R$1.948,58 mensais) e variou entre zero e R$ 240.000,00 anuais (R$ 20.000,00 mensais). Em se tratando das classes de renda mais baixas, a maioria dos procedimentos médicos eram realizados através do sistema público de saúde. Neste sentido, os gastos não-médicos associados à anomalia foram superiores às despesas médicas. Os domicílios gastaram, em média, cerca de R$ 1.506,53 anuais em despesas com transporte (46%), alimentação (33%) e contratação de cuidadores (21%); e R$ 1.201,45 anuais em despesas médicas, principalmente com a compra de medicamentos (78%).

Tabela 2
Média dos gastos privados domiciliares devido a microcefalia e proporção dos gastos privados com relação ao rendimento domiciliar - Rio de Janeiro e Fortaleza, valores a preços de 2018. (N=96)

Esses achados corroboram outros estudos que mostram que o principal item de gasto de saúde por desembolso direto no país é a despesa com medicamentos, sobretudo entre as famílias mais pobres (Boing et al., 2014BOING, A. C.; BERTOLDI, A. D.; BARROS, A. J. D.; et al. Desigualdade socioeconômica nos gastos catastróficos em saúde no Brasil. Rev. Saúde Pública, v. 48, n. 4, p. 632- 641, 2014.; Luiza et al., 2016LUIZA, V.; TAVARES, N.; OLIVEIRA, M. et al. Gasto catastrófico com medicamento no Brasil. Revista de Saúde Pública. v.50, supl. 2, 2016. DOI:10.1590/S1518-8787.2016050006172). Um estudo mostrou que para os 10% mais pobres da população brasileira, os medicamentos representavam mais de 80% dos gastos com saúde, evidenciando falhas na política de distribuição gratuita de medicamentos pelo SUS (Campino, 2011CAMPINO, A. Gastos catastróficos, iniquidade e proposta de reformulação do sistema de saúde. In: BACHA, E.; SCHWARTMAN, S., Eds. Brasil: A nova agenda social. LCT: Rio de Janeiro, p.104-8, 2011.). As elevadas proporções de gastos diretos não médicos com transporte e alimentação, evidenciadas neste estudo, também podem refletir problemas na rede de atenção à saúde no nível municipal, que se responsabiliza pelo transporte das crianças aos respectivos serviços de saúde.

A Tabela 3 mostra que a estratégia mais utilizada pelos domicílios no enfrentamento da vulnerabilidade socioeconômica imposta pela microcefalia foi o endividamento. Dos 96 domicílios do estudo, apenas um participante declarou não saber a informação e 67 apresentaram endividamento por motivo da doença, representando 69,8% das respostas.

Tabela 3
Percentual de domicílios que se utilizaram de estratégias de enfrentamento diante da vulnerabilidade socioeconômica imposta pela microcefalia, segundo tipo de estratégia (%) – Rio de Janeiro e Fortaleza, 2018. (N=96)

Em relação às demais estratégias de enfrentamento, os respondentes de todos os 96 domicílios declararam saber a informação. Após o endividamento, a alternativa mais frequente encontrada pelas famílias para lidar com os encargos da doença referiu-se à redução do consumo familiar. Enquanto 62,5% dos domicílios tiveram que diminuir o consumo total, 22% venderam bens e ativos e 13,5% retiraram recursos da poupança. Quase 40% dos domicílios enfrentaram diminuição no consumo de alimentos, revelando a vulnerabilidade dos domicílios afetados. Esses resultados revelam um aprofundamento da privação econômica a que os domicílios ficam expostos diante de um choque de saúde da gravidade da microcefalia.

Considerando o rendimento domiciliar per capita, verificou-se que mais da metade das famílias estavam localizadas abaixo da linha da pobreza, chegando a 60,4% ao se utilizar a metodologia do Banco Mundial. Pela mesma metodologia, 4,2% se localizavam abaixo da linha de extrema pobreza. Após deduzir do rendimento domiciliar per capita, os gastos privados em saúde em decorrência da microcefalia, essas proporções elevam-se para 65,6% e 8,3%, respectivamente. Utilizando as linhas de pobreza e extrema pobreza regionalizadas, o percentual de famílias consideradas pobres salta de 48,9% para 52,1%, enquanto o percentual de famílias extremamente pobres aumenta de 3,1% para 4,2% (Tabela 4). Esses resultados evidenciam as difíceis condições socioeconômicas das famílias afetadas pela microcefalia e como a doença exerce pressão adicional para que os domicílios permaneçam na condição de pobreza.

Tabela 4
Proporção de domicílios pobres e extremamente pobres, com e sem a dedução dos gastos privados com microcefalia do rendimento domiciliar per capita (%) – Rio de Janeiro e Fortaleza, 2018. (N=96)

Percebe-se, portanto, que a microcefalia representou um choque importante na situação econômica das famílias, ao drenar recursos a serem alocados em outros tipos de bens e serviços dentro do domicílio. Esta situação se torna ainda mais preocupante em um país de renda média como o Brasil, onde predominam altas proporções de gastos privados diretos (out-of-pocket) em relação ao gasto total em saúde. Os pagamentos diretos representam o mecanismo mais iníquo de financiamento em saúde, na medida em que depende exclusivamente da habilidade a pagar dos indivíduos, sem quaisquer instrumentos de compartilhamento de risco. Mesmo diante da presença de um sistema público com pressupostos de universalidade, equidade e integralidade, o Brasil apresenta um percentual de gasto privado correspondente a 50% do gasto total do setor. Do total de gastos privados, cerca de metade refere-se aos desembolsos diretos e a outra metade destina-se ao pagamento de planos de saúde (Levi; Mendes, 2015LEVI, M. L.; MENDES, A. Gasto total com saúde no Brasil: a importância e o esforço de medi-lo. Domingueira da Saúde, n. 8, 2015.). Além disso, tem-se observado uma tendência de aumento do gasto catastrófico em saúde no Brasil nas últimas décadas, principalmente nos domicílios mais pobres e com chefes de família menos escolarizados (Boing et al., 2014BOING, A. C.; BERTOLDI, A. D.; BARROS, A. J. D.; et al. Desigualdade socioeconômica nos gastos catastróficos em saúde no Brasil. Rev. Saúde Pública, v. 48, n. 4, p. 632- 641, 2014.). Por tudo isso, os resultados aqui apresentados sinalizam a possibilidade de aprofundamento da situação de pobreza e iniquidade enfrentadas pelas famílias acometidas pela doença.

Conclusão

Este estudo teve como objetivo analisar os gastos privados diretos domiciliares em saúde e as dificuldades socioeconômicas enfrentadas pelas famílias com crianças acometidas por microcefalia relacionada ao Zika vírus durante o surto de 2015-2016. Utilizando uma abordagem descritiva e exploratória, a partir de um questionário estruturado aplicado em dois centros especializados de atendimento às crianças com microcefalia, o estudo investiga as implicações da doença sobre a vulnerabilidade socioeconômica das famílias afetadas e as estratégias de enfrentamento adotadas pelos membros do domicílio diante dos desafios impostos pela anomalia congênita.

Os resultados mostraram que as famílias afetadas pela doença são majoritariamente chefiadas por pretos ou pardos e pertencem às classes C e D-E. Dentre as despesas médicas, destacam-se aquelas referentes à compra de medicamentos, enquanto entre as despesas não-médicas, destacam-se os gastos com o deslocamento da criança e do acompanhante, da casa ao centro de atendimento. A maioria das famílias enfrentou endividamento e redução do consumo doméstico, inclusive de alimentos, a fim de se fazer frente às despesas incorridas pela doença. De fato, a condição de microcefalia relacionada ao Zika vírus parece pressionar os encargos financeiros dos domicílios, exacerbando a condição de vulnerabilidade socioeconômica e reforçando o círculo vicioso de pobreza, característico da abordagem conceitual da armadilha saúde-pobreza. Nesse sentido, a condição de doença parece representar, simultaneamente, uma manifestação e uma causa da pobreza e da privação multidimensional.

Obviamente, que os resultados aqui encontrados não são generalizáveis para toda a população de domicílios afetados pela microcefalia, já que o estudo se apoia em uma amostra de conveniência e se restringe a apenas duas localidades do país. Ademais, não foi possível incluir, na análise, famílias afetadas que residiam nos municípios do Rio de Janeiro e de Fortaleza, mas que acessaram os serviços de saúde fora dos pontos de atendimento analisados. Contudo, os achados permitem trazer maior detalhamento das realidades analisadas e de como as famílias têm se organizado, ao menos do ponto de vista financeiro, para lidarem com os desafios postos pela doença.

Outra limitação do estudo é a ausência de grupos de controle, a fim de se comparar os gastos associados a crianças com microcefalia com aqueles relacionados a crianças sem a manifestação da anomalia congênita, mas que nasceram de mães infectadas pelo vírus Zika. A utilização de uma amostra de conveniência não permitiu alcançar grupos com diferentes desfechos de saúde. Nesse sentido, este estudo aborda apenas a descrição dos gastos privados domiciliares em saúde e da vulnerabilidade socioeconômica associados à doença, ao invés de mensurar o impacto econômico da microcefalia nas famílias utilizando um cenário de linha de base.

Outra importante limitação deste trabalho é a utilização de dados seccionais, no qual as informações são registradas em um único momento no tempo. Além de permitir captar mudanças no nível socioeconômico das famílias e no padrão de gastos domiciliares ao longo do tempo, um desenho de estudo longitudinal minimizaria a ocorrência de erros de memória, uma vez que o acompanhamento poderia aumentar a precisão das informações sobre desembolsos diretos com saúde.

Uma agenda de pesquisa deve incluir a realização de follow-up e entrevistas em profundidade, tanto com familiares, quanto com profissionais da saúde que se encontram na linha de cuidado dessas crianças, a fim de se investigar, com mais detalhes, questões ligadas a impactos indiretos referentes à capacidade de oferta e produtividade no mercado de trabalho, desigualdades de gênero, gargalos na atenção ao cuidado e nos serviços de saúde e assistência social, e impactos psicológico e na qualidade de vida dos familiares.

  • Apoio financeiro

    European Union’s Horizon 2020 Research and Innovation Programme under ZIKAlliance (Processo 734548). Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – Faperj (Processo E-26/203.210/2016). Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Funcap (Grant Number 3968228/2017 – Convênio 837577/2016).

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Editora responsável: Jane Russo

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Out 2022
  • Aceito
    16 Dez 2023
  • Revisado
    20 Set 2023
  • Corrigido
    24 Maio 2024
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