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Elogio da leveza

RESENHAS

Elogio da leveza

Victor da Rosa

Universidade Federal de Santa Catarina

Sinfonia em branco.

LISBOA,Adriana

Rio de Janeiro: Rocco, 200.222p.

Ao reler alguns haikais de Basho, poeta japonês, me deparo com uma forma bastante particular de percepção, de sensibilidade. Como sugere Octavio Paz, num ensaio intitulado "A tradição do haiku", do livro Convergências, a poesia de Basho é um verdadeiro calmante, que nos torna mais leves, que se constrói de forma leve. Ainda para Paz, tal efeito somente é possível porque, nos haikais de Basho, a palavra se resolve em silenciosa contemplação, em opaca musicalidade, em insustentável leveza.

Acredito que seja a partir dessa forma de sensibilidade e percepção das coisas que se configura o romance de Adriana Lisboa Sinfonia em branco. Diante do peso do viver que as personagens carregam durante suas trajetórias, há uma voz narrativa que opta por uma leveza do narrar, por uma brandura, por uma brancura.

Através de um texto em pedaços, em fragmentos espalhados no tempo, como acontece com a memória, a voz narrativa tece a história de duas irmãs, Maria Inês e Clarice. Ambas percorrem caminhos parecidos: saem do interior para estudarem na capital carioca quando ainda adolescentes, se casam e não são felizes, uma por vez. Ambas são completamente diferentes: Clarice, quatro anos mais velha, é obediente, possui duas cicatrizes causadas por uma faca Olfa (uma cicatriz em cada pulso) e leva em seu corpo as lembranças de um estupro praticado pelo próprio pai. Já Maria Inês, em silêncio, desafia as recomendações enumeradas pela mãe (os "assuntos proibidos") e teve a sorte de somente assistir ao estupro da irmã, escondida atrás da porta: alguns anos depois, um pouco antes de chegar sua vez, a mãe a enviou de Jabuticabais ao Rio para morar com a tia-avó Berenice.

Entre ambas há Tomás, sujeito que aos vinte anos de idade vê seus pais serem levados para algum lugar que não sabia onde porque eram militantes políticos e tinham livros proibidos.

Sozinho no mundo, algum dia Tomás olha pela janela de seu apartamento e vê, no prédio ao lado, uma garota vestida de branco, em frente ao espelho. Mais tarde se conhecem. Ela se chama Maria Inês. Tomás se apaixona. Maria Inês eu não sei. Sei que eles não se casam porque Maria Inês se casa com um primo.

Muitas faltas, algumas perdas, poucos afetos: esse é, portanto, o mote que perpassa as 222 páginas dos 15 capítulos de Sinfonia em branco personagens marcadas com alguma estupidez, com o fardo pesado de uma vida cheia de limitações, e que se vêem diante do peso do mundo, com o peso do mundo, sem qualquer referência, sem terem onde segurar.

No entanto, como sugere Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio, a busca da leveza surge como possibilidade de resistência, como reação ao peso do viver. Se a leveza não aparece na relação entre as personagens, ela se cria no próprio ato de escritura, no ato de narrar, ou, para retomar os haikais de Basho, numa certa forma de sensibilidade e percepção das coisas ao redor um sentir, como propõe Octavio Paz, que se localiza entre a sensação e o pensamento, entre o sentimento e a idéia.

Dessa forma, o desejo da voz que narra é sempre o de retirar peso da linguagem, de desejar o insustentável e o delicado. Sua estratégia, portanto, não é a de falar da dor das personagens, mas a de caminhar em volta dessa dor, em volta dessa falta, desse vazio. A voz que fala em Sinfonia em branco é uma voz discreta, quase secreta. É uma voz que, acima de tudo, por vezes, silencia, como nesse fragmento: "Clarice sentiu mais uma vez, com as pontas dos polegares, as duas cicatrizes gêmeas, uma em cada punho. E sorriu um sorriso involuntário e triste, um sorriso sem mistérios, ao pensar que afinal acabara sobrevivendo a si mesma" (p. 23).

Por um princípio de delicadeza, a voz não diz algo. Mas este algo está aí, implícito é o dito do não-dito. Não é necessário, não é conveniente descrever o estado de espírito de Clarice não é preciso explicação e reiteração. Basta um silencioso contemplar, basta uma pintura quieta e conformada da cena.

Roland Barthes diz, em O neutro, que a delicadeza também está ligada ao poder de criar metáforas. Ou seja, de destacar um traço e fazê-lo proliferar em linguagem, de observer uma imagem e pensá-la poeticamente, em senti-la poeticamente, como nesse trecho de Sinfonia em branco: "Sempre ela, sempre Maria Inês. Que magicamente havia sido capaz de tatuar-se, de marcar-se como se marcam bois, a ferro e fogo, na existência de Tomás. E na existência de Clarice. Um arco-íris titubeante no céu depois da chuva. A retina maculada pela pós-imagem do sol. A cicatriz que sobrou da cirurgia, ou a cicatriz da faca Olfa. A fumaça que fica no ar apesar de já extinto o fósforo, o cheiro do incenso que sobrevive ao bastãozinho. Um lenço desbotado" (p. 73). Ou, ainda, nessa bela imagem: "O amor era como a marca pálida deixada por um quadro removido após anos de vida sobre uma mesma parede" (p. 9). Há várias formas de falar de uma ausência, de uma marca, do amor: Adriana Lisboa escolhe a mais sutil, delicada, leve.

Para Calvino, a leveza também está associada à precisão, à exatidão. O autor diz que, para combater o excesso, o peso obsessões capazes de bloqueá-lo limita o campo do que pretende dizer, divide esse campo em outros mais limitados e narra o mínimo, o exato, com imagens nítidas e incisivas. Para buscar o vago, a abstração e o leve, Calvino diz que é necessária a idéia de medida, de limite. Em outras palavras, o leve só pode ser preciso.

E é também esse caminho que a voz de Sinfonia em branco percorre. Ao invés de narrar a melancolia de Clarice, a dor de Clarice, a voz narrativa opta pelo toque dos dedos nos pulsos, na cicatriz dos pulsos; pelo detalhe de um pequeno sorriso; pelo miúdo, pelo mínimo, pelo pequeno. A voz narrativa, portanto, busca na opacidade da imagem, num olhar silencioso, musical, em elementos extremamente sutis e quase imperceptíveis, um impulso para a leveza da cena, da vida. Diante do peso do viver, a leveza do narrar, como nos versos de José Miguel Wisnik: "Se meu mundo cair/ eu que aprenda a levitar".

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Maio 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005
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