Open-access Guerreiras Project: futebol e empoderamento de mulheres

Guerreiras Project: Soccer and Women’s Empowerment

Resumo:

Este texto objetiva analisar as ações desenvolvidas pelo coletivo Guerreiras Project, cujo foco é o empoderamento de mulheres por meio do futebol. Para tanto, recorremos a fontes documentais e iconográficas produzidas pelo próprio coletivo, além de publicações acadêmicas e não acadêmicas que o referenciam. Buscamos na História Oral um recurso teórico-metodológico para a produção de fontes, por meio da realização de entrevistas com algumas de suas integrantes e com jogadoras de futebol cuja narrativa, de algum modo, dialoga com o Guerreiras Project, com sua criação e expansão. A análise das fontes foi desenvolvida tomando como inspiração o método indiciário proposto por Carlo Ginzburg, a partir do qual descrevemos alguns fragmentos da história do Guerreiras Project, com ênfase na sua criação, na elaboração de sua proposta pedagógica e na sua intervenção política.

Palavras-chave: mulher; empoderamento; futebol; esporte; história oral

Abstract:

This paper aims to analyze the actions developed by the collective Guerreiras Project, which focuses on the empowerment of women through soccer. Therefore, we used the documentary and iconographic sources produced by the group itself, as well as academic publications and nonacademic that reference it. We seek in the oral history a theoretical and methodological resource for the production of sources, through interviews with some of its members and with football players whose narrative somehow interacts with the Guerreiras Project, with its creation and expansion. The source analysis was developed taking as inspiration the evidential method proposed by Carlo Ginzburg, from which we describe some fragments of the history of Guerreiras Project, with emphasis on its creation, the development of its pedagogical proposal and its political intervention.

Key-words: Woman; Empowerment; Soccer; Sport; Oral History

Introdução

Historicamente, incentivos e dificuldades encontrados por homens e mulheres para a prática esportiva no Brasil foram e são bastante distintos. Cabe lembrar que a elas foi imposta até mesmo uma interdição oficial, vigente entre 1941 e 19791, que proibia a prática de “desportos violentos e não adaptáveis ao sexo feminino”, uma tentativa de conformar seus corpos e suas subjetividades. Se por um lado, tal proibição parece descabida nos dias de hoje, por outro, seus efeitos ainda repercutem em discursos e práticas que reforçam uma representação normatizada de feminilidade, seja espetacularizando a beleza das atletas em detrimento de sua performance, seja apontando para sua possível ‘masculinização’ ao praticarem esportes associados ao universo dos homens.

Considerando esse cenário e a centralidade que o futebol tem na cultura esportiva brasileira, este artigo tem como objetivo analisar uma iniciativa de empoderamento de mulheres por meio deste esporte, materializada nas ações desenvolvidas pelo Guerreiras Project (GP). Criado em 2010, este coletivo é formado por atletas, artistas, acadêmicos/as e ativistas que desenvolvem oficinas, pesquisas, performances e exposições visando estimular a justiça de gênero e empoderar mulheres no esporte e fora dele.

Ao fazermos essa opção, entendemos que o trabalho desenvolvido pelo GP explora o potencial político e emancipatório da participação das mulheres no futebol, visto que, ao utilizarmos tal modalidade como ferramenta, partilhamos da ideia de que o esporte pode ser

[...] um terreno de empoderamento das mulheres, um espaço de realização individual e coletiva e uma afirmação da autodeterminação física, tendo um sentido diferente do que teria para os homens, dada toda a história de luta das mulheres contra o controle patriarcal sobre os corpos femininos (ADELMAN, 2004, p. 33-34).

Fundamentada nos feminismos, a ação do Guerreiras Project não se limita a reivindicar melhores condições estruturais para a prática do futebol feminino. Esse tema é o modo pelo qual sua equipe se aproxima de públicos diversos com vistas a discutir as desigualdades de gênero presentes na sociedade contemporânea, assim como elaborar estratégias de superação. Conforme uma de suas publicações,

O GP é um projeto global, que se utiliza do futebol como instrumento para promover justiça de gênero, para combater preconceitos, para proporcionar maneiras alternativas de entendermos a nós mesmos e a sociedade, e para criar modos mais saudáveis de pensar, de se relacionar, e de fazer (GUERREIRAS PROJECT, 2013, p. 1).

Como movimento social, os feminismos pautaram, historicamente, em suas agendas políticas temas afetos à exploração e ao controle exercido sobre os corpos das mulheres. No entanto, pouca atenção prestou aos corpos das atletas, tampouco realçou a importância da prática esportiva como uma forma de empoderamento das mulheres (HALL, 1996). Para Dunning e Maguire (1997), os esportes são importantes espaços de análise da relação entre os sexos, sobretudo por serem contextos que, tal qual o universo do trabalho, ensinaram, expressaram e perpetuaram valores patriarcais, reafirmando concepções essencialistas acerca do que é apropriado a homens e mulheres.2 Em concordância, para Theberge (1985), a hegemonia masculina3 no esporte talvez seja mais resistente à mudança do que outros contextos culturais. A desnaturalização dessas premissas, a ocupação e a apropriação dessas manifestações pelas mulheres estão, assim, diretamente relacionadas à ideia de empoderamento.

O que seria esse empoderamento que pode ser alcançado por meio do esporte? Para Horochovski e Meirelles (2007, p. 486), empoderar “é o processo pelo qual indivíduos, organizações e comunidades angariam recursos que lhes permitam ter voz, visibilidade, influência e capacidade de ação e decisão”. Nesse sentido, o empoderamento não é algo que se tem ou não de forma absoluta, mas que apresenta diferentes graus constantemente alcançados dentro de um contexto de maiores ou menores coerções sociais que enfrentamos cotidianamente. O empoderamento, por conseguinte, não é algo que é passivamente adquirido; é uma ‘conquista’ constante e necessariamente autogestionada (BRAUNER, 2015). Relaciona-se, portanto, com temas como emancipação, autonomia, libertação e conquista de liberdade.

Essa perspectiva é contemplada pelo GP, que se apropria dos feminismos para fomentar as diversas ações que coloca em circulação, cujo foco, como já mencionado, é utilizar o futebol como ferramenta para analisar questões relacionadas às desigualdades de gênero evidenciadas em temas como a violência doméstica, a empregabilidade, o assédio sexual, a sub-representação das mulheres na mídia, as desigualdades de acesso e permanência nos esportes, entre outras.

Considerando a especificidade deste projeto e sua relevância para o empoderamento de mulheres por meio do esporte, buscamos visibilizar seu protagonismo, visando descrever fragmentos de sua história com ênfase na sua criação, na elaboração de sua proposta pedagógica e na sua intervenção política. Para tanto, recorremos a fontes documentais e iconográficas produzidas pelo coletivo, muitas delas publicadas em seu site oficial.4 Para complementar a pesquisa, fizemos uso de publicações acadêmicas e não acadêmicas que referenciam o Guerreiras Project. Buscamos ainda, na História Oral, um recurso teórico-metodológico para a produção de fontes por meio da realização de entrevistas com suas integrantes, mais especificamente Caitlin Fisher, Joanna Burigo, Aline Pelegrino e Carla Oliveira, além de entrevistas com jogadoras de futebol cuja narrativa, de algum modo, dialoga com o GP, sua criação e expansão. A análise das fontes foi desenvolvida tomando como inspiração o método indiciário proposto por Carlo Ginzburg (2003), cujo trabalho pressupõe colocar em ação alguns procedimentos de investigação que focalizam os critérios de identificação dos dados a serem observados como representativos do que se quer tomar como a singularidade que revela. Na perspectiva do autor, para perscrutar indícios, faz-se necessário usar como estratégia o método da montagem. “É preciso recolher os traços e registros do passado, mas realizar com eles um trabalho de construção, verdadeiro quebra-cabeças ou puzzle de peças, capazes de produzir sentido” (PESAVENTO, 2005, p. 64). Organizadas as fontes de pesquisa, desenvolvemos as análises produzindo múltiplas combinações entre as ‘peças’ do quebra-cabeças de modo a relevar sentido aos objetivos propostos - no caso deste estudo, descrever a criação do GP, assim como as estratégias que empreende para promover o empoderamento de meninas e mulheres por meio do esporte.

O Guerreiras Project

O Guerreiras Project foi idealizado por Caitlin Davis Fisher, uma atleta estadunidense que, no ano de 2004, mudou-se para o Brasil para jogar futebol na equipe do Santos Futebol Clube. Caitlin nasceu em Cambridge, Estados Unidos, e aos seis anos começou a jogar futebol. Jogou na liga universitária, na liga semiprofissional e na liga profissional dos Estados Unidos até que, com 22 anos, mudou-se para a cidade de Santos/SP. Em sua entrevista, a ex-jogadora narra que foi no Brasil que conheceu o preconceito por ser uma mulher que pratica futebol. Escutando os relatos de suas colegas de time, aprendeu que a palavra guerreira tinha forte conotação e significado neste contexto, pois nomeava o esforço, a persistência, a dedicação que as atletas possuíam para se manter na modalidade. O nome Guerreiras Project resulta dessa percepção e é uma homenagem para as jogadoras brasileiras que, segundo Caitlin, “lutam para serem apoiadas e aceitas dentro desse esporte, que é tradicionalmente, masculino” (FISHER, 2014, p. 1).

A trajetória de Caitlin é determinante para a estruturação do GP. Além de atleta profissional com atuação na Suécia, no Brasil e nos Estados Unidos, tem formação inicial em Antropologia e mestrado em Gênero, Desenvolvimento e Globalização pela London School of Economics. Durante sua formação acadêmica, realizou pesquisas etnográficas focadas em gênero, corpo e desenvolvimento econômico, utilizando-se de conhecimentos teóricos e metodológicos que contribuíram de modo indelével para a fundamentação da proposta política e pedagógica do GP, cuja ação primeira se deu por meio da realização de entrevistas com jogadoras, técnicos e dirigentes de clubes brasileiros, tematizando, entre outros tópicos, o preconceito no futebol de mulheres.

Em 2010, Caitlin entrevistou Aline Pellegrino, então jogadora do Santos Futebol Clube e capitã da seleção brasileira. Esta entrevista serviu de base para um vídeo no qual foram agregadas imagens da equipe do Santos, produzidas por Adrienne Grunwald, também jogadora e ex-colega de faculdade de Caitlin. Contando com a narração de Aline, o vídeo integrou a exposição Guerreiras: the female warriors of Brazilian futebol,5 exibida na Embaixada Brasileira em Berlim, durante a Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2011, que aconteceu na Alemanha. Em meados desse mesmo ano, Caitlin realizou uma palestra no instituto onde realizou seu mestrado, em Londres, momento no qual conheceu a brasileira Joanna Burigo, aluna da mesma instituição naquele período. Reunidas por interesses comuns, Caitlin compartilhou com Joanna as experiências de oficinas que tematizavam discussões de gênero a partir do futebol, realizadas juntamente com Marisa Schlenker, ex-jogadora que havia atuado com Caitlin no futebol estadunidense, além de mostrar as entrevistas e as fotos que havia realizado com a equipe do Santos Futebol Clube. Caitlin sintetizou essas informações em um documento que apresentava

[...] um mapa do Brasil, um campo de futebol em cima, todos os problemas de gênero listados em baixo, e as mulheres desenhadas em cima. E o que ela queria dizer era isso. Que o que nós enxergamos necessariamente não é o que está dando base para aquele preconceito (BURIGO, 2015, p. 4).

Já naquele encontro, as duas concebem a ideia de organizar as ações do GP em duas linhas: a realização de oficinas temáticas para discussão de temas afetos às questões de gênero, e a estruturação de estratégias de divulgação do projeto via exposição de fotos, produção de vídeos, palestras etc., ambas tendo como foco a perspectiva do “Veja, Pense, Questione”. Em sua entrevista, Joanna esclarece essa centralidade:

[...] é a linha ao redor da qual nós costuramos todas as nossas entregas, seja em um workshop, seja em uma palestra, seja em uma exibição, seja em uma entrevista, seja o que for. Tudo parte dessa linha inicial. [...] Não é uma metodologia, não é um método didático formalizado, mas é o que guia todas as nossas interações com as pessoas (BURIGO, 2015, p. 5-6).

Com essa estrutura em mente e com a parceria com Joanna estabelecida, Caitlin retornou ao Brasil de forma a colocar em prática o que planejaram. Reencontrou Aline Pellegrino e, juntas, empreenderam várias ações direcionadas para as duas vertentes de ação que elegeram serem prioritárias, inaugurando, desse modo, a atuação do GP no Brasil.

“Veja, Pense, Questione”: a proposta metodológica do Guerreiras Project

Em seu discurso durante a abertura do evento Olhando para o futuro: o lugar do esporte no empoderamento das mulheres pós-2015, realizado durante a 59ª sessão da Comissão sobre a Situação da Mulher em Nova York, Phumzile Mlambo-Ngcuka, diretora executiva da ONU Mulheres, declarou que uma maior participação de mulheres e meninas no ambiente esportivo tende a refletir também em uma melhora na sua participação na sociedade e na luta contra os estereótipos de gênero, contribuindo para minimizar as desigualdades existentes neste campo.

Tal intencionalidade tem sido pauta das ações desenvolvidas pelo Guerreiras Project e pode ser observada na estruturação de todas as iniciativas pedagógicas que coloca em ação e que são observadas por Caitlin Fisher como os “braços do projeto”. Ou seja, diferentes estratégias são implementadas com o objetivo de provocar o diálogo sobre as desigualdades de gênero existentes no campo e fora dele, e suas possibilidades de superação, a saber: oficinas temáticas, produção multimídia (vídeos), palestras e formação das embaixadoras que são jogadoras e ex-jogadoras de futebol que atuam como ministrantes das oficinas.

Todas as ações do GP são realizadas em espaços não formais de educação, que, segundo Jacobucci (2008, p. 55), são descritos como “lugares diferentes da escola, onde é possível desenvolver atividades educativas”. Uma das principais ferramentas didáticas elaboradas pelo GP refere-se à proposta metodológica denominada “Veja, Pense, Questione”, pensada para subsidiar o trabalho das oficinas temáticas e da formação das embaixadoras.

Inicialmente estruturada em inglês (See, Think, Wonder), essa proposta foi testada em 2011 em oficinas desenvolvidas por Marisa Schlenker, que ocorreram nos Estados Unidos e na África do Sul. Os resultados - animadores do ponto de vista do fomento ao diálogo sobre as questões de gênero no futebol - foram determinantes para o desenvolvimento da metodologia, cuja sistematização está registrada no documento intitulado Mudando cabeças, corpos e campos: uma iniciativa comunitária com profissionais de futebol feminino como embaixadoras pela justiça de gênero, que assim se refere ao trabalho proposto:

Essa iniciativa consiste na realização de oficinas ministradas por profissionais de futebol feminino que atuam como embaixadoras nas comunidades, pela justiça de gênero e empoderamento das mulheres e meninas. A intenção da iniciativa é oferecer plataformas seguras para que as mulheres falem - sem medo e umas com as outras - sobre suas experiências, no campo de futebol e na vida (GUERREIRAS PROJECT, 2014, p. 1).

As oficinas6 envolvem várias etapas, tais como a aplicação de um questionário para apreender o que cada participante conhece ou pensa sobre as funções tradicionalmente relegadas a mulheres e homens na sociedade, sobre igualdade e preconceito, entre outros temas; a discussão das respostas advindas do questionário; análises de imagens veiculadas na mídia exibindo homens e mulheres em situações diversas, sobretudo em relação à ocupação de cargos de poder; a realização de um jogo de futebol com regras estipuladas de modo a empoderar meninas e mulheres; a discussão sobre estas regras e sua aplicação em situações cotidianas; a elaboração de modos de superação no jogo do futebol e fora dele; a avaliação por parte dos participantes das oficinas.

Tal iniciativa dialoga com o estudo realizado por Ileana Wenetz (2012), a qual aponta que o futebol praticado como brincadeira ou como esporte permite identificar como o gênero opera na constituição da identidade de meninas e de meninos no ambiente escolar. Tal como na escola, o trabalho das oficinas temáticas desenvolvido pelo GP tem evidenciado aspectos comuns relacionados à generificação do futebol, como, por exemplo, a percepção de que a ocupação da quadra ou do campo (na escola, em associações comunitárias ou em espaços públicos) é de predomínio dos meninos e dos homens, sendo raras as oportunidades de meninas e mulheres usufruírem deste espaço, sobretudo, em horários de grande circulação. Colabora para essa situação a divisão sexual do trabalho, uma vez que em nossa cultura cabe às mulheres e suas filhas a realização das tarefas domésticas, restringindo seu tempo de lazer. Além disso, há ainda a naturalização de que a apropriação dos espaços e equipamentos públicos é privilégio dos homens (GOELLNER, 2012).

Agrega-se a esta situação a representação de que o futebol, por acontecer em espaços públicos como parques, praças e ruas, expõe meninas e mulheres a situações vulneráveis, dada uma sorte de riscos que podem colocar em perigo sua vida em função da violência urbana e da criminalidade. Essa discussão não passa despercebida pela metodologia do “Veja, Pense, Questione”, visto que - quando possível, e dependendo do contexto de aplicação das oficinas - essa representação é tensionada de modo a indicar que a violência contra as mulheres, em grande medida, se dá no espaço doméstico por pessoas conhecidas e próximas. Ou seja, o GP busca colocar em debate vários temas que estão associados à justiça de gênero, fazendo com que as pessoas que participam das suas atividades reflitam sobre “a capacidade das mulheres dentro e fora do campo; igualdade; criação de espaço para todo mundo; aceitação de diferenças; respeito em relação à capacidade de todo mundo; comunicação; entendimento etc.” (GUERREIRAS PROJECT, 2014, p. 2-3).

Karen de Freitas Rocha, jogadora profissional de futebol que participou de uma atividade na qual a metodologia do GP foi aplicada ao final da oficina, escreveu:

Ser mulher no Brasil é muito difícil. O fato de você ser mulher no Brasil, isso por questões culturais e outras questões, a mulher sempre foi o segundo plano do homem. Sempre, em todos os sentidos. Então, você brigar por um direito, brigar para que a mulher seja valorizada, ter os seus valores como ser humano, isso para mim é um ganho... eu tive muitas dificuldades por ser mulher (ROCHA, 2014, p. 5).

O empoderamento das mulheres por meio da metodologia desenvolvida pelo Guerreiras Project demandou a formação de pessoas com conhecimentos capazes de conduzir não apenas a parte prática das oficinas (o jogo do futebol), mas também as discussões relacionadas às questões de gênero. Para tanto, foi necessária a construção de uma estratégia de formação de embaixadoras, denominação atribuída às mulheres que o GP convidou para que atuassem como reprodutoras da metodologia. Por uma decisão política, foi decidido que essa função deveria ser exercida por jogadoras ou ex-jogadoras de futebol, possibilitando, inclusive, sua formação para atuação depois de abandonarem os campos.

Tal decisão justifica-se pela constatação de que, no Brasil, a grande maioria das atletas não consegue se manter, economicamente, na prática do futebol, seja enquanto atuam na modalidade, seja quando abandonam os gramados. Conforme Osmar Moreira de Souza Júnior (2013), o futebol de mulheres no Brasil tem caráter amador, tornando difícil para as futebolistas sobreviverem apenas do esporte, o que as faz buscar alternativas para complementarem a renda e assim permanecerem inseridas no meio esportivo.

A zagueira Bagé, que foi capitã da seleção brasileira, e a meia Prisicilinha, que também já atuou pela seleção, atualmente atletas do São José Esporte Clube, da cidade de São José dos Campos/SP, para complementarem sua renda e continuarem atuando pelo clube, investiram em negócios fora da área futebolística. O primeiro empreendimento das duas foi o lava-rápido Meninas da Águia, cujo nome remete a como são identificadas as atletas do clube. O serviço de lavagem de carros foi seguido pela venda de sorvetes após as partidas realizadas no estádio Águias do Vale e, atualmente, elas são proprietárias do Pastelzinho Meninas da Águia. No lava-rápido, além das duas proprietárias, trabalhavam também outras atletas do São José.

Outras jogadoras que não conseguiram sobreviver do esporte, após pendurar as chuteiras, foram Elane dos Santos, ex-capitã da seleção brasileira, que atualmente trabalha em uma empresa de transporte público onde é motorista de ônibus, no Rio de Janeiro. A mesma profissão foi seguida pela ex-jogadora e ex-treinadora Ivete Maria Gallas, que, após ser descoberta pela empresa como ex-treinadora, passou a ocupar cargo administrativo em uma companhia de transporte público na cidade de Porto Alegre/RS.

Em julho de 2014, Rose do Rio, a fundadora da Liga Brasileira de Futebol Feminino, enviou um pedido à Secretaria de Políticas para Mulheres, para que fosse elaborado um projeto de lei sobre a profissionalização do futebol praticado pelas mulheres no Brasil. Entre outras exigências, o documento prevê direitos trabalhistas para as jogadoras, como 13º salário e aposentadoria. Entretanto, até o ano de 2015, o que surgiu relacionado à regulamentação e à estruturação do futebol das mulheres foi a inclusão da modalidade na Medida Provisória 671, a chamada MP do Futebol. A lei, sancionada em agosto do mesmo ano, obriga os clubes que quiserem renegociar suas dívidas com o Estado a investir parte de sua receita em categorias de base e manutenção do futebol de mulheres.

A falta de estrutura que inviabiliza às mulheres sobreviverem do esporte é tema de diversas entrevistas realizadas com jogadoras e ex-jogadoras de futebol. Marisa Pires Nogueira, ex-capitã da seleção brasileira, em fala publicada em 2014, no site do Jornal de Brasília, ressaltou que “as ex-atletas não têm oportunidade dentro das federações e da CBF... É experiência jogada fora. Nunca deu para fazer do esporte uma profissão” (MONTEIRO, 2014, s/p.).

Declarações como a de Marisa demonstram como o futebol das mulheres ainda requer uma atenção no que diz respeito à estruturação e profissionalização. Tema esse que se faz presente na agenda política e pedagógica do Guerreiras Project, mais especificamente no processo de formação das embaixadoras, cuja dinâmica inclui o relato das trajetórias das participantes, visando partilhar experiências, reconhecer-se nelas, para então discutir questões afetas ao empoderamento das mulheres no futebol e fora dele.

Recorrer a jogadoras e ex-jogadoras objetiva também reconhecer a importância de suas experiências e histórias de vida. Por essa razão, o projeto teve, como marco inaugural, a realização de entrevistas com jogadoras do Santos Futebol Clube. Ao partilharem suas narrativas, as jogadoras perceberam vários aspectos relacionados à generificação do futebol brasileiro, e assim tiveram um pouco mais de consciência sobre as desigualdades enfrentadas neste país, que se reconhece como a ‘Pátria das Chuteiras’. Segundo Wittizorecki et al. (2006, p. 23), “A capacidade de narrar a si mesmo, além de envolver a capacidade de refletir sobre a experiência vivida, pode ajudar a entender e a organizar a realidade social e, dessa forma, oferecer melhores condições para que os sujeitos possam transformar a própria realidade”.

A utilização das narrativas pessoais é uma ferramenta indispensável para as ações desenvolvidas pelo projeto, pois o dizer de si é compreendido como uma possibilidade de potencializar a reflexão, a tomada de consciência e o empoderamento. Ao valorizar as histórias de vida que se encontram às sombras, o GP confere visibilidade ao protagonismo de mulheres que fazem acontecer a modalidade no país, em que pese seu pouco reconhecimento e a ausência de sua profissionalização.

As trajetórias de vidas de jogadoras de futebol, assim como a própria história do futebol de mulheres no Brasil, ficam à margem da história identificada como oficial ou representativa da modalidade; neste caso, restrita à experiência vivenciada por homens que jogam ou que gerenciam o futebol. Trazer à tona a narrativa destas trajetórias evidencia a pluralidade de discursos, práticas e representações que envolvem esta temática (MACEDO; GOELLNER, 2013). E, segundo Brandão (2008), “o relato de vida-trabalho possibilita também a compreensão das trajetórias individuais e das culturas”.

Em entrevista para o GP, a jogadora de futebol Karen Rocha expõe a importância destas narrativas e de como elas podem ser absorvidas por outros indivíduos, mais especificamente, outras mulheres:

Eu acho que quando você dá uma coisa boa para uma pessoa, se ela realmente está escutando, ela vai receber, vai guardar aquilo e futuramente ela pode pensar: “poxa, aquela vez lá que me falaram”... ela pode em algum momento da vida dela, quando ela estiver passando dificuldades, ela vai lembrar e falar: “não, eu posso, eu quero, eu vou conseguir”, porque aquela pessoa conseguiu (ROCHA, 2014, p. 7).

O ato de possibilitar que meninas e mulheres falem de suas experiências no campo de futebol e na vida possibilita novas reflexões ao grupo participante das oficinas, tornando o empoderamento recíproco às duas partes envolvidas: embaixadoras e comunidade. Esse recurso está voltado para o próprio objetivo deste coletivo, sintetizado na expressão “Mudando cabeças, corpos e campos”. Ao colocar em ação a proposta metodológica do “Veja, Pense, Questione”, as integrantes do GP partilham da ideia de que os processos educativos grupais “podem contribuir para o desenvolvimento da autonomia dos adolescentes, na relação e ação com o próprio corpo, além de favorecer a sua autoestima e motivação para ações mais amplas na escola e na comunidade, dentre outras” (LACERDA, 2013, p. 86). Por essa razão, as oficinas apresentam uma dinâmica que envolve discussão e reflexão, e também a prática do jogo de futebol, cujo objetivo visa à possibilidade de as pessoas experienciarem os usos do corpo e suas potencialidades, de modo a desconstituir muitas das representações generificadas que circundam essa modalidade, as quais, grosso modo, minimizam as capacidades físicas das mulheres em detrimento da supremacia biológica dos homens.

Chamar a atenção para as desigualdades de gênero no futebol é o foco de outras atividades desenvolvidas pelo GP, com ênfase na produção multimídia e na realização de exposições. O projeto germinal dessas ações aconteceu no ano de 2011, em Berlim, durante a Copa do Mundo de Futebol Feminino da FIFA, por meio de uma exposição multimídia realizada na Embaixada do Brasil, intitulada Guerreiras: the female warriors of Brazilian futebol. Essa exposição deu visibilidade internacional ao projeto e demandou vários convites para apresentação do projeto ou discussão de temáticas relacionadas às questões de gênero, esporte e justiça social.7 Demandou, também, a coorganização de outras exposições. Uma delas, intitulada Futebol e mulheres: mudando corpos, cabeças e campos,8 aconteceu durante a realização da Copa do Mundo de Futebol FIFA 2014, em Porto Alegre e no Rio de Janeiro, cidades-sedes do evento. A exposição figurou em reportagem da Folha de S. Paulo do dia 7 de julho de 2014, divulgando que, no Rio Grande do Sul, sua realização aconteceu próxima à Fan Fest e contou com dezenas de objetos de jogadoras da seleção brasileira e de outras atletas profissionais. Já no Rio de Janeiro, houve um painel fotográfico produzido por imagens exclusivas do fotógrafo Daniel Kfouri.9

A visibilidade midiática desta exposição promoveu uma aproximação com o Museu do Futebol, localizado no Estádio do Pacaembu, na cidade de São Paulo, que resultou na participação efetiva do GP na organização da exposição Visibilidade para o Futebol Feminino,10 inaugurada no dia 19 de maio de 2015. Além da disponibilização de acervo fotográfico e documental, o GP cedeu o vídeo Somos todas Guerreiras,11 produzido com o objetivo de “apresentar imagens poderosas, edificantes e inspiradoras de jogadoras em campo para fazer essas mulheres visíveis e para servir como um forte exemplo contra a representação dominante do corpo feminino em torno da Copa do Mundo FIFA 2014” (GP LANÇA VÍDEO ‘SOMOS TODAS GUEREIRAS’, 2014, s/p.).

Essa exposição foi um marco na história do futebol brasileiro, visto que, pela primeira vez na história do Museu do Futebol, as mulheres protagonizaram uma atividade de grande porte. Tal afirmação pode ser observada no texto de apresentação:

A exposição Visibilidade para o Futebol Feminino chega para provocar nossa maneira de contar a história do futebol brasileiro. O que consagramos? O que deixamos esquecido por décadas? O que sabemos sobre a participação feminina no esporte mais popular do Brasil? Ouvimos nosso público e fomos buscar informações nas mais variadas fontes, incluindo os preciosos arquivos pessoais das atletas. Para o Museu do Futebol é uma grande honra incluir em seu acervo as estórias de mulheres que batalharam pelo direito de jogar bola, e não haveria melhor lugar para apresentar as novidades do que em nossa exposição principal. Há ainda um longo caminho a percorrer para que consigamos retraçar a origem dos primeiros times e as trajetórias das pioneiras nesse esporte no Brasil. Essa exposição é apenas o começo e não é nossa única ação (MUSEU DO FUTEBOL, 2015, p. 1).12

As exposições e os vídeos são compreendidos pela equipe do Guerreiras Project como ações estratégicas, pois ao mesmo tempo que divulgam a temática de gênero, são ferramentas para ampliar a visibilidade do coletivo. Esses mesmos objetivos são apontados como importantes em outras ações, como a participação em eventos, a presença em meios de comunicação e a publicação de textos em revistas acadêmicas e não acadêmicas, além do seu site13 e da página no Facebook.14 A diversidade das ações propostas figura como uma de suas principais estratégias de visibilidade, divulgação e busca de reconhecimento tanto no Brasil como fora dele. No dia 7 de julho de 2014, o GP foi matéria na secção Empreendedorismo da Folha de S. Paulo. Intitulada Ex-jogadoras se unem para combater o preconceito no futebol feminino, a reportagem menciona a criação do coletivo, a origem do nome, suas principais ações e alguns resultados.15

Em artigo publicado em março de 2014 na revista do Peterson Institute for International Economics, situado em Washington, Barbara Kotschwar cita o GP como um dos principais programas na América Latina a apoiar a participação de garotas no esporte. Segundo a autora, vários desses programas têm tendência a utilizar o futebol para ensinar valores sociais a meninas e mulheres.

Dentre eles, inclui o GP, enfatizando que atua com jogadoras profissionais e que, ao encorajar a participação de meninas e mulheres no esporte, desafia barreiras de gênero e de sexo, promovendo atitudes democráticas e seguras através da atividade física e do diálogo (KOTSCHWAR, 2014, p. 5).

A visibilidade do GP no meio acadêmico também merece destaque. Nesse sentido, é notória a importância do encontro de Caitlin Fisher e Joanna Burigo durante a realização do mestrado em Gênero, Desenvolvimento e Globalização na London School of Economics. A parceria que se estabeleceu naquele momento facilitou a organização do coletivo e também sua relação com a área acadêmica,16 subsidiando inclusive a formulação de sua proposta metodológica “Veja, Pense, Questione”, que tem como foco a utilização do futebol

[...] como uma ferramenta para gerar diálogos a respeito de normas de gênero. Acreditamos que as mesmas normas estreitas de gênero que são encontradas no futebol são refletidas na sociedade em geral, e são a raiz de muita injustiça social. Pesquisas revelam que códigos rígidos de masculinidades e feminilidades tradicionais contribuem com resultados fracos na educação e saúde reprodutiva, bem como com violência de gênero e sexualidade - seja contra mulheres, ou homofobia. Estas questões não podem ser resolvidas sem que as normas de gênero mais profundamente enraizadas na sociedade sejam desafiadas. Acreditamos que o discurso do futebol (linguagem e imagens), universalmente reconhecido, seja não somente uma ferramenta poderosa, eficaz e acessível para a realização deste trabalho, mas também um instrumento inovador para a realização de mudanças sociais profundas.17

Ver, pensar e questionar não é apenas a proposta metodológica do GP; é o mote que guia todas as ações desenvolvidas e que confere densidade pedagógica à sua intervenção política em prol da equidade de gênero no esporte e fora dele.

Ser Guerreira: a luta dentro e fora de campo

Como relatado no início deste texto, a escolha de Caitlin Fisher pelo nome Guerreiras aconteceu em função da forma recorrente com a qual suas colegas da equipe do Santos Futebol Clube usavam para descrever seu esforço para se manterem no futebol. Observando a narrativa de algumas dessas jogadoras, evidenciamos que tal esforço não diz respeito apenas à dedicação inerente a todo atleta de alto rendimento ao empenhar-se em treinamentos, ao destacar-se entre seus concorrentes, ao superar problemas pessoais a fim de realizar a melhor performance possível. O empenho descrito por elas aponta para a superação das adversidades relacionadas à falta de estrutura vivenciada pelo futebol praticado por mulheres no Brasil.

[...] todo dia pra nós é uma guerra. [...] Você tem que correr atrás pra ter água, você tem que correr atrás para eles, no mínimo, te darem o dinheiro para passagem para você ir para o próximo treino. Você tem que correr atrás para eles te arrumarem um “meião”, ou se você não tem condições de comprar uma chuteira tem que correr atrás para eles te arrumarem ao menos uma chuteira decente para você poder trabalhar bem. Então, cada dia para nós é uma luta. Quando a gente chega lá na frente, na hora do jogo, olha o que fizemos lá atrás! Porque às vezes a gente tem que virar e olhar um pouquinho para trás, pra gente ver: “Não, nós merecemos estar aqui!” Nós somos guerreiras porque nós enfrentamos muitos obstáculos para estar aqui (SANTOS, 2014, p. 8-9).

Ser guerreira, portanto, refere-se a uma atitude que existe além dos gramados: “ser uma guerreira é lutar por tudo - dentro do campo, fora do campo, na vida, onde for” (PELLEGRINO, 2015, p. 6). Tais afirmações indicam que, diante do cenário futebolístico vivenciado por essas atletas, “ser guerreira” é também uma necessidade, inclusive para sobreviver no esporte. Na repetição de narrativas que refletem as dificuldades enfrentadas pelas futebolistas, mais do que a identificação de uma estrutura deficitária existente em diferentes cidades brasileiras, é possível perceber uma reação comum expressa em uma atitude que agrega persistência e revolta.

Formiga, a atleta com o maior número de participação em Jogos Olímpicos e Copas do Mundo,18 em entrevista para o GP, assim se refere com relação às suas reivindicações na modalidade:

Cara, eu quero o respeito total, da gente poder ter o direito de tudo. Porque, como eu falo para as meninas: a gente não está pedindo migalhas, a gente já mais do que provou que sabemos, sim, jogar futebol. Então a gente quer o futebol feminino em um patamar maior, e não do jeito que está. Ter o respeito, ter o direito de jogar em estádios bons, nem que seja nas preliminares deles. A gente não quer chegar no nível do masculino, mas que o respeito seja bem melhor, que tenha direito a tudo que o esporte profissional tem. Hoje ainda tratam o futebol feminino como amadorismo, e a gente não é mais amadora. Nós temos que ser chamadas de profissionais, e ser tratadas como profissionais (MOTA, 2014, p. 5).

O Guerreiras Project, ao promover espaços de diálogo entre jogadoras e ex-jogadoras, tem possibilitado uma reflexão sobre um tema que muitas das atletas vivenciam, mas que, por vezes, não percebiam: as desigualdades de gênero no futebol. Nesse sentido, conhecer os feminismos e suas perspectivas teóricas foi fundamental para o desenvolver do projeto. Segundo Joanna Burigo, “o feminismo é a gente falar em público dos problemas que fomos ensinadas a achar que eram individuais e que na verdade são totalmente sociais” (BURIGO, 2015, p. 2-3).

A perspectiva feminista do GP não se restringe, contudo, apenas à reflexão. A partir do reconhecimento de uma estrutura de desigualdade socialmente construída, o grupo busca estabelecer vetores de mudança, conforme é possível identificar na fala de algumas embaixadoras. Beatriz Vaz e Silva, atual jogadora da seleção brasileira, expressa:

[...] o Guerreiras me fez refletir sobre muitos temas e, principalmente, como eu poderia usar tudo que eu vivi até hoje para ajudar de alguma forma. Então tem muitas coisas que a gente conversou, que a gente conversa - a gente do grupo do Guerreiras - que eu nunca tinha pensado, temas que eu nunca tinha refletido sobre, mas que hoje, principalmente, tem me transformado. Tem me feito refletir, tem feito eu pensar, tem feito eu questionar minhas atitudes. Então mais do que qualquer outra coisa que eu possa fazer agora, [o Guerreiras] tem feito muito bem pra mim como pessoa (SILVA, 2014, p. 8).

Ao ser indagada sobre o impacto percebido pelo público participante das oficinas, palestras e seminários realizados pelo GP, Joanna complementa:

É sempre muito difícil de mensurar esse impacto, mas o feedback que recebemos das pessoas é exatamente o mesmo, seja se for uma menina de cinco anos da favela, ou um acadêmico, branco, homem, cis, cristão de setenta anos. É exatamente o mesmo! E é tipo “eu nunca havia pensado nisto assim” (BURIGO, 2015, p. 13).

A percepção que as pessoas têm sobre temas pouco discutidos em seu cotidiano e a identificação com situações semelhantes vivenciadas por outras pessoas no que respeita às injustiças, sobretudo de gênero, reitera o potencial empoderador das ações empreendidas pelo GP. Aline Pellegrino, uma de suas fundadoras, descreve aspectos relativos à importância que o trabalho fora do campo - no caso, com o Guerreiras Project - tem na sua trajetória de vida, fundamentalmente depois que decidiu se aposentar dos gramados:

E aí estressei, frustrei com o futebol e a Caitlin retomou a conversa comigo “ó têm umas coisas acontecendo”... E eu abracei total e foi aquele um mês no Rio de Janeiro, vivendo esse outro lado, de palestras, de conhecer pessoas, de falar de futebol para desenvolvimento, de falar para futebol, e eu pensei, “talvez acho que a coisa está aí, talvez eu consiga através do Guerreiras, através da nossa discussão, através das outras possibilidades que surgem, falar da realidade do futebol feminino e colocar uma sementinha aqui para que essas meninas que gostam e que sonham...”, apesar do projeto não ter esse intuito, tentar colocar algum tipo de mensagem diferente do que eu vinha tentando fazer de cima para baixo, e o Guerreiras foi tomando proporção... Hoje eu estou muito envolvida tentando mudar isso de alguma forma (PELLEGRINO, 2015, p. 13-14).

A fala de Aline revela o significado deste trabalho extracampo, inclusive para manter viva sua história no futebol brasileiro. Cabe destacar que Aline é uma referência no esporte nacional, sendo a capitã mais longeva da seleção brasileira de futebol.19 Em função dessa representatividade, sua participação no GP extrapola a realização de palestras e oficinas, e sua figura é presença recorrente tanto nos vídeos e materiais de divulgação do projeto quanto nas imagens que são utilizadas na realização das oficinas. Em sua entrevista, Joanna Burigo explica o uso que se faz de fotografias da atleta na dinâmica do “Veja, Pense, Questione”:

Mostramos as imagens... Aí tem o Neymar levantando uma taça do Campeonato Brasileiro e a Aline levantando a mesma taça, no mesmo estádio, do mesmo campeonato, está ali a foto, veja. As pessoas veem e nós não falamos nada; o Guerreiras fala pouquíssimo, eu falo pelo Brasil, mas as Guerreiras falam pouquíssimo. Nós mostramos a foto e damos a dica: “see, think and wonder”; a pessoa imediatamente depois de ver ela, pensa “tem alguma coisa errada com essa imagem”. E ela se questiona “por que tem menos fotógrafos na foto da Aline do que na do Neymar?”. E a partir daí que a conversa começa (BURIGO, 2015, p. 9).

A perspectiva de manter-se no futebol por meio da intervenção política do Guerreiras compõe o espectro de outras jogadoras profissionais. Karen de Freitas Rocha explicita essa percepção:

Hoje eu estou em um projeto que eu sei que está todo mundo em prol de um pensamento só: mostrar o valor da mulher. Então acho que esse que foi o fato que mais me impactou realmente para que eu pudesse dar continuidade, fora usar também o futebol - que o projeto usa o futebol como ferramenta -, isso facilita para que a gente possa divulgar também uma coisa pela qual eu sempre briguei (ROCHA, 2014, p. 1.).

A fala das jogadoras que integram ou que participaram de alguma atividade proposta pelo GP remetem à esperança de construção de um novo espaço em prol do desenvolvimento da modalidade, incentivando, de certa forma, as futuras gerações. Nesse sentido, fazem referência tanto à superação das dificuldades encontradas em um cenário precário em termos de apoio, reconhecimento e visibilidade, quanto à possibilidade de combatê-lo. Carla Oliveira, conhecida nos campos como Índia, afirma:

Sou guerreira porque diante de tantos motivos que eu tinha pra desistir da minha carreira, eu consegui me agarrar aos poucos que eu tinha pra continuar. Ser uma guerreira é lutar por tudo - dentro do campo, fora do campo, na vida, onde for. Para mim, uma guerreira é isso. Eu sou uma guerreira (OLIVEIRA, 2014, p. 4).

O pessimismo demonstrado por algumas atletas e a força de vontade necessária para superá-lo está intimamente ligado com a estruturação do futebol de mulheres em nosso país. Daiane Rodrigues (Bagé), ex-capitã da seleção brasileira e atual campeã mundial interclubes pelo Esporte Clube São José, em entrevista para o GP, afirma:

Eu acho que é o pessoal que trabalha com a gente deve respeitar o futebol feminino da maneira que merece ser respeitado, não só vir pra dentro do campo nos colocar lá e pronto, é o que a gente tem que render... Porque muitos dos clubes no Brasil, eles simplesmente colocam as meninas dentro do campo e pronto... Eu acho que a gente é muito, muito forte, muito esperançosa por alguma coisa melhor, porque o pouco que a gente tem dentro do Brasil a gente tenta se virar e eu acho que até que a gente se vira até que muito bem, não é (RODRIGUES, Daiane, 2014, p. 4)?

A falta de estrutura vivenciada pelas futebolistas foi uma das razões pelas quais emergiu o Guerreiras Project. Não é sem razão que suas fundadoras são jogadoras profissionais de futebol, cuja trajetória esportiva possibilitou viver por dentro todas as dificuldades apontadas. Nesse sentido, é possível afirmar que as vozes dessas guerreiras, ao mesmo tempo em que se originam dessa precariedade, são fortes o suficiente para semear esperanças e buscar outras possibilidades de forma a empoderar meninas e mulheres no futebol e para além de sua abrangência.

Referências Bibliográficas

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  • 1
    O Conselho Nacional de Desportos, órgão extinto em 1993, proibiu oficialmente a prática de esportes considerados impróprios para as mulheres entre os anos de 1941 e 1979. O futebol feminino só foi regulamentado no país em 1983.
  • 2
    É importante apontar que as reflexões de Dunning e Maguire (1997) por vezes parecem refletir uma visão restrita de gênero, que não reconhece a pluralidade das masculinidades e feminilidades, se referindo a tais categorias sempre no singular e associando a elas valores hegemônicos socialmente disseminados. Apesar de não compartilharmos dessa perspectiva, trazemos esse apontamento, considerando-o relevante para a análise construída neste texto.
  • 3
    Entendemos a hegemonia como um processo fluido, produzido em meio a disputas de poder e somente garantido por meio de investimentos contínuos.
  • 4
    www.guerreirasProject.org
  • 5
    Disponível em: <https://vimeo.com/87334760>. Acesso em 2/03/2016.
  • 6
    Desde sua criação, o GP já ofereceu oficinas temáticas em várias cidades brasileiras, como Recife e Santo Antão (PE), Porto Alegre e São Leopoldo (RS), Rio de Janeiro (RJ). Fora do Brasil, o GP já realizou oficinas em Berlim (Alemanha), Londres (Inglaterra), Accra (Gana), Nova York e Providence (Estados Unidos) e Port of Spain (Trinidad e Tobago).
  • 7
    Em 2011, o GP ofereceu uma oficina na Conference on Sport for Development, em Trinidad, apresentou um painel fotográfico no Angkor Photo Festival in Siem Reap, no Camboja, e foi nomeada entre as 50 organizações do Woman Deliver: the most inspiring ideias and solutions to deliver for girls and women.
  • 8
    Informações sobre a exposição estão disponíveis em: <http://www.ufrgs.br/ceme/site/exposicoes/45_Futebol_e_Mulheres__Mudando_cabecas__corpos_e_campos_>
  • 9
    Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2014/07/1481134-vida-de-jogadoras-de-futebol-feminino-e-tema-de-exposicoes-no-rio-e-no-rs.shtml>.
  • 10
    Disponível em: <http://futebolfeminino.museudofutebol.org.br>.
  • 11
    Disponível em: <https://vimeo.com/99924620>.
  • 12
    Disponível em: <http://futebolfeminino.museudofutebol.org.br>.
  • 13
    Disponível em: <http://www.guerreirasProject.org>.
  • 14
    Disponível em: <https://www.facebook.com/GUERREIRASPROJECT>.
  • 15
    Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/empreendedorsocial/2014/07/1481251-ex-jogadoras-se-unem-para-combater-o-preconceito-no-futebol-feminino.shtml>.
  • 16
    Algumas publicações: Body Projects: making, remaking, and inhabiting the woman's futebol body in Brazil ( FISHER, Caitilin; DENNEHY, Jane, 2015 ); Futebol feminino e desigualdade de gênero: por que o gramado sintético sempre sobra pra gente? ( BURIGO, Joanna, 2015 ). Matéria publicada em 19 de julho de 2015, disponível em: <http://revistadonna.clicrbs.com.br/comportamento-2/futebol-feminino-e-desigualdade-de-genero-por-que-o-gramado-sintetico-sempre-sobra-pra-gente>.
  • 17
    Disponível em: <http://www.guerreirasProject.org/pt/about-our-work>.
  • 18
    Miraildes Maciel Mota, popularmente conhecida como Formiga, é natural de Salvador (BA) e hoje é atleta da seleção permanente da Confederação Brasileira de Futebol. Disputou as cinco edições dos Jogos Olímpicos nas quais o futebol feminino esteve presente (1996, 2000, 2004, 2008 e 2012), além de seis edições da Copa do Mundo (1995, 1999, 2003, 2007, 2011 e 2015), feito inédito para atletas homens e mulheres do futebol mundial.
  • 19
    Aline foi capitã por oito anos da Seleção Brasileira conquistando o Pan-Americano de 2007, o vice-campeonato da Copa do Mundo Feminina de 2007 e a medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Sidney (2004). Na carreira em clubes, foi campeã das Copas do Brasil de 2008 e 2009 e da Copa Libertadores da América de 2010, pelo Santos Futebol Clube.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    31 Jan 2016
  • Revisado
    12 Abr 2016
  • Aceito
    17 Out 2017
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