Resumo:
Neste artigo, nos apropriamos do cordel “Chica Bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba” (1984), para compreendermos o quanto o nomear pode significar às lesbianidades. Quanto ao embasamento teórico, dentre outros aqui utilizados, contamos com os apontamentos de Swain (2004), Foucault (1988), Platão (2001), para problematizarmos respectivamente os conceitos de Lesbianidade e a representação do ato de nomear as lésbicas. É possível perceber, por meio do cordel, o quanto o nomear, identificar e categorizar, mesmo mediante os estereótipos, possibilitam visibilidade em torno das lesbianidades e constatação da existência das lésbicas frente ao silenciamento histórico e ao apagamento dos registros que atestavam suas existências. O cordel, além de representar essa existência, possibilita problematizar práticas que eram negadas, suprimidas na década de 1980.
Palavras-chave:
sapatão; lesbianidades; cordel
Abstract:
In this article, we take a look at the cordel “Chica Bananinha, a Sapatão barbuda de lá da Paraíba” (Chica Bananinha,the bearded dyke from out there in Paraíba) (1984) to understand how naming can refer to lesbianities. Regarding the theoretical basis, we use the notions of Swain (2004), Foucault (1988), and Plato (2001), among others, to problematize concepts of Lesbianity and the representation of the act of naming lesbians. Through the cordel, we can see how naming, identifying and categorizing, even via stereotyping, enables visibility for lesbianities and the existence of lesbians, in the face of the historic silencing and erasure of registers that attest to their presence. The cordel, in addition to representing this existence, allows us to question practices that were denied and suppressed in the 1980s.
Keywords:
Romp; Lesbianities; Cordel
O nomear é um ato de visibilidade
Para dar nome às coisas, terá sido necessário conhecê-las; mas para conhecê-las, terá sido necessário dar-lhes nome (PLATÃO, 2001PLATÃO. Diálogos. Teeteto Crátilo. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2001., p. 29).
O que não é regulado pela geração ou por ela transfigurado não possui eira, nem beira, nem lei. Nem verbo também. É ao mesmo tempo expulso, negado e reduzido ao silêncio. Não somente não existe como não deve existir, [...] a repressão funciona, decerto, como condenação ao desaparecimento, mas também como injunção ao silêncio, afirmação de inexistência e, consequentemente, constatação de que, em tudo isso, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber (Michel FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal, 1988., p. 10).
Nas duas epígrafes acima, temos dois aspectos do ato de nomear. Com Platão (2001), percebemos que esse ato remete à visibilidade em relação a algo, visto que só se nomeia algo que se conhece. Para o filósofo, trata-se de uma questão de visibilidade, portanto, de conhecimento a partir do nome. Para Foucault (1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal, 1988.), entretanto, o silêncio remete à inexistência de algo para a sociedade, ou seja, o silêncio não está atrelado somente e, em único caso, à existência, mas também ao apagamento, muitas vezes, do que existe ou não deve existir em determinadas sociedades e que deve desaparecer. Foucault (1988) se refere, portanto, ao silenciamento que se quer imbuído de relações de poder e de dominação. Deste modo, muitas vezes, não se nomeia, não porque é proibido, como disse Oscar Wilde por volta de 1895 em seu julgamento, mas porque “não ousa dizer o nome” (Paolo ZANOTTI, 2010ZANOTTI, Paolo. Gay: La identidad homosexual de Platón a Marlene Dietrich. San Diego: Fondo de Cultura Economica USA, 2010, p. 62).
Compreendendo o contexto e o lugar de enunciação dos dois filósofos (Platão e Foucault) que abrem o artigo - o primeiro falando sobre o ato de nomear enquanto ontologia e visibilidade; o segundo falando do nomear enquanto quebra de silenciamento -, adentraremos ao cordel que suscita o nomear como visibilidade e existência para as personagens lesbianas.1 1 Sabemos que não há consenso sobre o uso do termo lesbianas nos estudos lésbicos brasileiros, porém nos apropriamos do termo a partir de dos estudos de Swain (2004).
Nosso objetivo é defender a produtividade dos termos e/ou expressões presentes no cordel “Chica Bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba” (Franklin MACHADO, 1984MACHADO, Franklin de Cerqueira. Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984.), que foi feito por um cordelista tradicional que vem de um lugar social conservador. É o único cordel do século XX encontrado em acervo digitalizado sob a guarda da Biblioteca Amadeu Amaral do Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular e que visibiliza as lesbianidades de forma intensa e protagonizando as lésbicas, desde a capa ao conteúdo do cordel. Encontramos o cordel por meio da catalogação na Biblioteca segundo o critério de seleção, que foi: nomeação atribuída às mulheres tidas como lésbicas, desde que as problematizassem.
Teoricamente, discutimos sobre as representações filosóficas e históricas em torno do ato de nomear, bem como de suas implicações para a linguagem e para o mundo social. Em seguida, analisamos a visibilidade lesbiana no cordel, uma vez que foi produzido em 1984, quando o silêncio sobre as lesbianidades ainda era uma máxima.
Optamos pelo termo lesbianidades, para nos referirmos às relações amorosas, afetivas e/ou sexuais entre mulheres, pois compreendemos que o termo se faz coerente com nossa perspectiva teórico/metodológica relacionada aos estudos de gênero. Levando em consideração defendermos que o nomear se configura como um ato de existência, o termo lesbianidades marca uma transição de quando as lésbicas passam a usar termos militantes e positivados diante de uma luta para sair do anonimato e do silêncio. Na década de 1990, quando o Código Internacional de Doenças (CID) retira a homossexualidade da condição de doença, os termos se alteram e alguns outros vão ser propostos na tentativa de potencializar as relações entre os/as iguais.
Consideramos a importância política do termo Lesbiano. Segundo Monique Wittig (2009WITTIG, Monique. “Ninguém nasce mulher”. In: CASTILHOS, Clarisse; PESSAH, Marian (Orgs.). Em rebeldia da bloga ao livro. Porto Alegre: Coleção Libertária, 2009. p. 91-102., p. 102), “é o único conceito (...) que está além das categorias de sexo”. A definição da autora é crítica em relação à formação de uma sociedade heterossexual alertando que, do ponto de vista dessa sociedade, a lésbica estaria fora do conceito de mulher.
A lésbica, nessa perspectiva, é um sujeito que tensiona o modelo hegemônico de sociedade, de mulher, pois biologicamente o é, seu corpo é marcado, mas algumas delas não assumem os supostos papéis sociais que lhes são atribuídos, como o de “rainha do lar” e, portanto, são tidas como anormais. Entretanto, as questões biológicas são insuficientes para delimitar uma identidade de gênero. De acordo com essa concepção, para Tania Navarro Swain (2004SWAIN, Tânia Navarro. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2004., p. 05), a lésbica rompe o contrato heterossexual e se torna “subversiva pela sua simples existência”. Trata-se de uma relação política, em que o afeto, o amor não passa por um referente masculino (SWAIN, 2004SWAIN, Tânia Navarro. O que é lesbianismo. São Paulo: Brasiliense, 2004., p. 05).
Segundo Adrienne Rich (1993RICH, Adrienne. “A heterossexualidade compulsória e a existência lésbica”. Revista Bagoas, Natal, v. 4, n. 5, p. 17-44, nov. 1993. Disponível em Disponível em http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05art01_rich.pdf. ISSN: 2316-6185 Acesso em 15/11/2015.
http://www.cchla.ufrn.br/bagoas/v04n05ar...
, p. 36), em “Heterossexualidade Compulsória e Existência Lésbica”, as “lésbicas têm sido historicamente privadas de uma existência política através de ‘inclusão’ como versões femininas da homossexualidade masculina”. Assim, consideramos ser relevante pensar politicamente o termo lesbianidades, suas implicações de vivências, e práticas afetivas, sexuais, e também eróticas. É preciso ainda considerar que a privação de uma existência lésbica é um tanto mais remota historicamente e localizada na colonização e na “colonialidade do poder” pois, segundo Ramón Grosfoguel (2012GROSFOGUEL, Ramón. “Descolonizar as esquerdas ocidentalizadas: para além das esquerdas eurocêntricas rumo a uma esquerda transmoderna descolonial”. Contemporânea - Revista de Sociologia, São Carlos, v. 2, n. 2, p. 337-362, jul./dez. 2012. (Dossiê Saberes Subalternos) Disponível em Disponível em http://www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/86/51 . Acesso em 20/01/2016.
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, p. 347), depois da independência, são construídos ideais de nação de forma patriarcal, machista e heterossexual. Ainda segundo Grosfoguel (2012, p. 349), para que isso seja superado, é preciso “a descolonização das epistemologias da sexualidade, das relações de gênero, da política, da economia e das hierarquias etnorraciais”.
Entretanto, de acordo com Juliana Tolentino e Nicole Batista (2017), mesmo os autores que se dedicaram com propriedade a discutir a “colonialidade do poder” não atentaram para “a questão das sexualidades dissidentes, como a lesbianidade, apenas deixando explícito que, em intersecção com outras identidades, essa categoria se torna ainda mais opressora e violenta” (TOLENTINO; BATISTA, 2017TOLENTINO, Juliana Gonçalves; BATISTA, Nicole Faria. “Lesbianidade feminista e o pensamento decolonial: diálogos necessários”. In: II CONGRESSO DE DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO, 1ª edição internacional, 2016, Belo Horizonte, UFMG. Anais... Belo Horizonte: Initia Via, 2017. p. 152-159., p. 153). Ou seja, mesmo não problematizando as lesbianidades, reconheceram que, dentre as demais identificações, essa é a que mais oprime, talvez pelo próprio percurso histórico de silenciamento.
Por tudo isso, concordamos que, em se tratando, como querem Tolentino e Batista (2017, p. 154), do que elas chamam de “sexualidades e arranjos afetivos dissidentes” e, portanto, compreendendo a lésbica como “formas (...) pulsantes de resistência a esse regime” e, assim, percebendo-a de forma revolucionária diante da “colonialidade do poder”, é que configuramos o título do artigo Sapatão é “Revolução”,2 2 Este artigo tem como referência a Tese de Doutorado da autora, defendida em dezembro de 2017. A explicação se justifica, uma vez que, em 2018, foi produzido um dossiê intitulado: “Sapatão é Revolução”, produzido pelo grupo de pesquisa CUS da Universidade Federal da Bahia e publicado na revista eletrônica Periódicus. Sendo assim, este artigo será publicado após o dossiê, mas a pesquisa, bem como parte do título que nomeia o artigo, foi pensada antes de 2018. Todavia, reconhecemos que “Sapatão é Revolução” é uma expressão que emerge no seio dos movimentos sociais, na luta por visibilidade e reconhecimento de direitos. pensando nas representações múltiplas trazidas pelo cordel que será aqui analisado e o quanto a lésbica, apresentada no cordel como Chica Bananinha, revoluciona no seu espaço de vivência, com/no seu corpo e suas práticas do desejo e da sexualidade.
Analisamos o nomear das lesbianidades na Literatura de cordel como ato de existência, mesmo em detrimento dos termos usados serem populares e, para alguns, serem depreciativos, ou estereotipados, pois é preciso ponderar o lugar social de escrita do cordel, bem como o seu lugar histórico/temporal. Não queremos, com isso, dizer que os termos científicos também não sejam ou não possam ser depreciativos.
Na verdade, é preciso considerar os lugares sociais dos usuários da língua, pois a linguagem formal, científica pode ser tão agressiva e violenta quanto a informal, não científica. Todavia, é mais escorregadia, eufêmica, metafórica e, talvez, por causa dessas configurações, provoque ainda mais consequências negativas para aquele e aquela que a nomeia. Segundo José Fiorin (2008FIORIN, José Luiz. “A linguagem politicamente correta”. Linguasagem, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 1-5, ago. 2008. Disponível em Disponível em http://www.linguasagem.ufscar.br/index.php/linguasagem/article/view/532 . Acesso em 15/11/2016.
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, p. 03), é preciso uma ressalva em relação à linguagem do “politicamente correto”, pois “o cuidado excessivo na busca de eufemismos para designar certos grupos sociais revela a existência de preconceitos arraigados na vida social” que são explicitados a partir da suposta suavização dos termos.
Compreendemos que o inventário linguístico utilizado pelos cordelistas para versar sobre as personagens lesbianas, usando desde termos como sapatão, mulher-macho, mulher que ama mulher, mulher gay ou lésbica, dentre outros, compõe uma multiplicidade das lesbianidades e suas práticas. A utilização desde os termos tidos como mais conhecidos, populares, existentes nos cordéis tradicionais, até os politicamente corretos, nos cordéis contemporâneos, demarca uma diferenciação de tempo, contexto e também de lugar social da produção dos folhetos. Entretanto, tanto o cordel tradicional, que será aqui problematizado, bem como os cordéis militantes, configuram como tessituras para compreensão de que o nomear, mesmo de forma negativizada, atesta visibilidade, corroborando, pois, para compreender que “o nomear é um ato de existência”.
Segundo Swain (2004SWAIN, Tânia Navarro. “O que a história não diz, nunca existiu? As amazonas brasileiras”. Caminhos da História, Montes Claros, UNIMONTES, v. 9, 2004., p. 63-64), “ao nomear, identificar, catalogar as lesbianas enquanto desvio da natureza, caricatura do masculino ou certa patologia, as ciências e o senso comum criaram, ao mesmo tempo, o espaço de sua existência, de sua presença no mundo”. Os cordéis tradicionais representam até certo ponto um discurso presente no senso comum, contribuindo, portanto, para configurar a existência das lésbicas no mundo.
Pretendemos um embate com algumas das proposituras dos estudos queer, tendo como referência os escritos de Judith Butler (2000BUTLER, Judith. “Imitación e insubordinación de gênero”. In: ALLOUCH, Jean et al. Grafías de Eros: Historia, género e identidades sexuales. Buenos Aires: Edelp, 2000. p. 87-113.), pois discordamos de suas acepções relacionadas às teorias sobre lesbianidades, quando ela enfatiza que:
Eu não me sinto confortável com ‘teorias lésbicas ou teorias gays’, porque, como já argumentei em outra parte, as categorias de identidade tendem a ser instrumentos de regimes regulamentares quer como categorias de normalização de estruturas opressivas ou como pontos de uma reunião para uma disputa libertadora dessa mesma opressão (p. 87-88, tradução livre).
Não podemos desconsiderar estudos e teorias que emergiram em prol de uma luta, às vezes de uma militância por igualdade, por quebra de silêncio, por visibilidade, a partir da linguagem, até mesmo porque o termo usado por Butler (2000BUTLER, Judith. “Imitación e insubordinación de gênero”. In: ALLOUCH, Jean et al. Grafías de Eros: Historia, género e identidades sexuales. Buenos Aires: Edelp, 2000. p. 87-113.), o queer, não resolveu o problema da opressão, do preconceito, da quebra do binarismo como, por vezes, ela propõe, e nenhum outro termo resolveria, apesar de a autora dizer que não está necessariamente teorizando contra o uso de tais categorias gays e/ou lésbicas, mas que apenas acredita constituírem categorias equivocadas que representam oprimidos (BUTLER, 2000BUTLER, Judith. “Imitación e insubordinación de gênero”. In: ALLOUCH, Jean et al. Grafías de Eros: Historia, género e identidades sexuales. Buenos Aires: Edelp, 2000. p. 87-113., p. 91).
Não queremos exigir de Butler algo que ela não propõe, mas precisamos problematizar as proposituras que parecem incoerentes ou conflituosas. Então, questionamo-nos: o termo queer está representando o que ou quem? Não são também grupos ou sujeitos de alguma forma oprimidos? A própria autora admite que “isso não significa que ele não aparece em situações políticas sob o signo de lésbicas, mas preferia não ter claro o significado desse sinal” (BUTLER, 2000BUTLER, Judith. “Imitación e insubordinación de gênero”. In: ALLOUCH, Jean et al. Grafías de Eros: Historia, género e identidades sexuales. Buenos Aires: Edelp, 2000. p. 87-113., p. 88, tradução livre). Ou seja, as concepções das lesbianidades, enquanto categorias políticas nascidas da luta de suas representantes e enquanto categorias que visibilizam as relações e práticas lesbianas, não podem ser apagadas porque nasceram da necessidade de nomeação como significado de existência. Mesmo que o queer também seja fruto de lutas, as perspectivas são outras. Não estamos, com isso, querendo desconsiderar a importância dos estudos queer, mas apenas apontar as especificidades dos estudos sobre as lesbianidades e priorizá-los nessa pesquisa como escolha teórica. Dessa forma, trazer Butler para o debate se justifica pelo fato de responder ao argumento da autora, porém discordando e apontando a relevância política dos estudos lésbicos para o campo teórico.
Historicamente, sabemos que às mulheres foi instituído o espaço do silêncio e do privado. Nem mesmo quando a relação amorosa e/ou sexual entre iguais era tida como crime/pecado, as lésbicas eram visibilizadas. Segundo o tratado Hipocrático, o acesso ao corpo feminino era restrito. Depois, com a consolidação do cristianismo, debatia-se sobre a fecundação, visto que não se compreendia como funcionava anatomicamente o corpo feminino (Dulce SANTOS, 2013SANTOS, Dulce Oliveira Amarante dos. “Saúde e enfermidades femininas nos escritos médicos (séculos XIII e XIV)”. Revista Territórios e Fronteiras, Cuiabá, v. 6, n. 2, p. 7-20, jul./dez. 2013. Disponível em Disponível em http://www.ppghis.com/territorios&fronteiras/index.php/v03n02/article/view/230/159 . ISSN 1984-9036. Acesso em 15/11/2015.
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).
Segundo Thomas Laqueur (2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2001.), depois de experiências sexuais de homens com mulheres tidas como cadáveres, mas descobertas em coma e que não apresentavam reações à relação sexual não consentida, novas interpretações foram dadas à sexualidade da mulher que tivera sido relegada à passividade.
A contingência recém ‘descoberta’ do prazer abriu a possibilidade da passividade e ‘falta de paixão’ da mulher. A alegada independência da concepção com relação ao prazer criou o espaço no qual a natureza sexual da mulher podia ser redefinida, debatida, negada ou qualificada (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2001., p. 15).
Quer dizer, por experiências não consentidas, as mulheres passaram a ser consideradas passivas e desprovidas da necessidade de sentir prazer, “a natureza sexual da mulher podia ser (...) negada” (LAQUEUR, 2001LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 2001., p. 15). A partir disso, homens e mulheres tiveram sua sexualidade diferenciada pelas construções argumentativas dentro da própria composição biológica.
Mesmo depois, com o direito canônico e civil, manuais de confissão vão aparecer apenas na literatura, ou com maior expressão, as relações sexuais e/ou amorosas entre os homens, até porque se considerava que a relação sexual entre mulheres era para se contrapor aos homens e, portanto, eram obscurecidas (Minisa NAPOLITANO, 2004NAPOLITANO, Minisa Nogueira. A construção do lesbianismo na sociedade carioca oitocentista. In: ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, 14, 2004, Caxambú - MG, ABEP. Anais... Caxambú: Associação Brasileira de Estudos Populacionais, 2004. p. 01-22., p. 04).
Até o século XIX, a palavra lésbica praticamente não existia, o que existiam eram termos que nomeavam uma série de atos, nos quais as pessoas que os praticavam eram desconsideradas e, por conseguinte, a dificuldade de nomear impossibilitava o reconhecimento de existência. Eram necessários estudos específicos sobre essas relações entre mulheres, para que houvesse maior visibilidade. É interessante observar que a inexistência dessas nomeações se dava em razão de valores morais que interpretavam as práticas do sexo, dos afetos e desejos fora do normal como pecado ou patológico. Daí, o não nomear para não atrair, para não existir.
Todavia, o discurso do cristianismo em relação às práticas do sexo entre mulheres era de não reconhecimento, pois a igreja tinha no falo a legitimação da prática sexual. Segundo Ronaldo Vainfas (1989VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: Moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. (Coleção Histórias do Brasil)), esse assunto foi tratado por teólogos como Sinistrari, teólogo italiano que era “prisioneiro da morfologia dos atos, da mecânica ejaculatória e do modelo heterossexual de cópula, precisou masculinizar a mulher e dar-lhe um ‘pênis’ para reconhecê-la capaz de desvios nefandos” (Ronaldo VAINFAS, 1989VAINFAS, Ronaldo. Trópico dos pecados: Moral, sexualidade e inquisição no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. (Coleção Histórias do Brasil), p. 214). Ou seja, o reconhecimento das práticas sexuais entre mulheres passava pelo falocentrismo.
De acordo com Luiz Mott (1987MOTT, Luiz. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.), no Brasil, o termo lésbica remonta a 1894, quando foi utilizado como sinônimo de “invertida sexual” pelo médico criminalista Viveiros de Castro. Seu uso e sua acepção mudaram ao longo da história e da luta das lésbicas pelos seus direitos. De acordo com Regina Facchini (2008FACCHINI, Regina. Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo. 2008. Doutorado (Programa de Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., p. 106), as mulheres identificadas como lésbicas sempre estiveram presentes nos primeiros momentos do movimento homossexual no Brasil, mas, só no ano de 1993, portanto, quase cem anos depois, é que o termo “lésbica” passa a ser nomeado no movimento, a partir do VII Encontro Brasileiro de Lésbicas e Homossexuais (Rozeane DINIZ, 2018DINIZ, Rozeane Porto. As lésbicas no cordel: Representações léxico-semânticas. 1. ed. Curitiba: Appris, 2018., p. 109). É a partir desse momento que sua acepção aponta para o entendimento da sexualidade como questão discursiva, política e identitária, indo, pois, além das questões biológicas.
Como, então, deletarmos essas lutas representadas por determinadas categorias e suas representações? Sim, pois mesmo Butler e a teoria queer não propondo isso, o não uso dessas categorias pode, sim, trazer um apagamento de vestígios históricos importantes. É possível esquecermos de um passado histórico de lutas e não o visitarmos mais? Talvez, fosse possível, todavia, o preço seria alto demais, tendo em vista que isso requer o silenciamento de um passado, das causas desse silenciamento, dos medos que invisibilizaram as lésbicas. Tudo isso parece corroborar a performatividade que, apesar de não esquecer as condições materiais representadas na linguagem e que construíram o lugar das lésbicas, compreende ser o corpo fruto da linguagem e que sua materialidade é apenas performatividade, embora isso não seja pouca coisa, já que, segundo Pierre Bourdieu (2001BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001., p. 204-205), “a força simbólica, a de um discurso performático e, em particular, de uma ordem, constitui uma forma de poder que se exerce sobre os corpos”, não esquecendo que: “(...) a linguagem é objeto histórico, apesar de a história não ser outra coisa senão linguagem (...) (Denise PORTINARI, 1989PORTINARI, Denise. O discurso da homossexualidade feminina. São Paulo: Brasiliense, 1989., p. 18-19).
A linguagem é uma representação e, portanto, uma forma de lidar com o mundo, de estabelecer relações com ele, de existir enquanto ser do mundo e da linguagem, embora ela seja histórica e, na sua historicidade, através da linguagem, estão suas marcas. Enquanto não somos linguagem, não somos existência.
Assim, as lesbianidades se materializam a partir de um inventário linguístico múltiplo, “rizomático” (Gilles DELEUZE; Félix GUATTARRI, 1995DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995., p. 04), mesmo que seja para dizer a mesma coisa, ou seja, relação amorosa e/ou sexual entre duas mulheres, já que num primeiro contato com o cordel não vislumbramos a possibilidade das relações entre as iguais ocorrerem além do binarismo. No que diz respeito aos corpos, aos desejos, aos modos de se subjetivar, o inventário linguístico pode ser rizomático, como também binário. No entanto, independente da maneira como se compõe a tessitura dos versos no folheto, representando ou não o preconceito, criando ou reafirmando estereótipos, interessa, neste artigo, a visibilidade dada às lesbianidades, considerando o silêncio histórico associado à relação amorosa e/ou sexual entre mulheres.
Assim, o cordel proposto como texto literário que tece a visibilidade das lesbianidades a partir da nomeação é o cordel: “Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba” (1984). Neste artigo, pretendemos demonstrar que as configurações do cordel atestam existência às lesbianidades, a partir de sua representação com estruturas marcadas, com personagens que apresentam fenótipos de marcação do masculino ou do feminino que são imbuídos do binarismo e configurados de forma identitária e performática.
O cordel em questão, seja de forma estereotipada ou na tentativa política de visibilizar as práticas lesbianas, rompe com alguns lugares instituídos. É preciso atentar para o fato de como essa visibilidade está estruturada na linguagem do cordel, começando pelo título e pela imagética da capa que representa o amor que “ousa dizer seu nome”.
Chica Bananinha, a sapatão Barbuda de lá da Paraíba
O mundo em que vivemos é construído de imagens, não apenas as visíveis, mas igualmente as representacionais carregadas de valores, de hierarquias, de posições, de normas nas quais a vida individual se desloca, decodificando, analisando e adequando-se com maior ou menor pertinência, aos perfis preestabelecidos (SWAIN, 2004SWAIN, Tânia Navarro. “O que a história não diz, nunca existiu? As amazonas brasileiras”. Caminhos da História, Montes Claros, UNIMONTES, v. 9, 2004., p. 69).
Essas imagens descritas por Swain (2004SWAIN, Tânia Navarro. “O que a história não diz, nunca existiu? As amazonas brasileiras”. Caminhos da História, Montes Claros, UNIMONTES, v. 9, 2004.) são construídas em contextos diferenciados com espaço e tempo específicos e segundo os mais diversos meios. Quando nos adequamos, estamos construindo identificações, assim como o cordel a ser analisado que configura lugares para as lésbicas e suas vivências.
Publicado em 1984, por Franklin de Cerqueira Machado, com o título “Chica Bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba”, esse cordel versa sobre uma personagem que é apresentada como “sapatão” de forma masculinizada. Porém, segundo Line Chamberland (2002CHAMBERLAND, Line. “O lugar das lesbianas no movimento de mulheres”. Labrys - Estudos Feministas, n. 1-2, jul./dez. 2002. Disponível em Disponível em https://www.labrys.net.br/labrys1_2/chamberland1.html . Acesso em 20/11/2015.
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), foram essas mulheres masculinizadas que deram, num primeiro momento do movimento lésbico, visibilidade às lésbicas. Antes mesmo de adentrar ao conteúdo do folheto, é interessante observar o pseudônimo do cordelista: K. Gay Navara. Ele vale-se de termos que, sozinhos, poderiam apresentar um significado, mas acaba por construir uma cacofonia verbalizada como “caguei na vara”, representando não somente uma forma de ironizar a existência das práticas das lesbianidades, mas também uma forma de verbalizar, por meio desse pseudônimo, a relação sexual entre homens, trazendo o termo gay que remete à relação amorosa e/ou sexual entre homens e mulheres, mas usado comumente em relação aos homens. Machado (1984) traz o gay como se fosse sempre passivo, fazendo, por conseguinte, menção à relação sexual, já que vara seria a representação do “pênis” (Mário SOUTO MAIOR, 2010SOUTO MAIOR, Mário. Dicionário do palavrão e termos afins. Belo Horizonte: Leitura, 2010., p. 204).
Num outro contexto, Homi Bhabha (1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: EDUFMG, 1998., p. 106) vai apresentar uma leitura possível da “compreensão dos ‘processos de subjetivação’ tornados possíveis (e plausíveis) através do discurso do estereótipo”. Assim, segundo Bhabha (1998), mesmo sendo negativizadas, as construções subjetivas acontecem, as constituições de significações são plausíveis, pois acabam legitimando um espaço de existência que se inicia pela linguagem, deixando de lado as “imagens positivas ou negativas” (BHABHA, 1998BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: EDUFMG, 1998., p. 106), para que seja possível compreender tais processos de subjetivação.
Em relação à imagética da capa, há uma representação da concepção de “mulher-macho”, na Paraíba, como atrelada à “sapatão”:
[...] a concepção de mulher-macho que se constrói no Estado e que se solidifica na década de 1920 com as mulheres cangaceiras e é cantada na década de 1950, por Luiz Gonzaga, imagem esta que é corroborada pelo chapéu de cangaceiro e pela espingarda apresentada na capa do cordel, fato que motiva também a ideia de virilidade atrelada à violência trazida pela espingarda (DINIZ, 2013DINIZ, Rozeane Porto. As representações léxico-semânticas das lesbianidades no cordel. 2013. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, PB, Brasil., p. 115).
Nesse sentido, a imagética da capa, assim como o pseudônimo do cordelista, além de ser tudo linguagem, são estratégias do poeta para construir significados e uma representação para sua concepção de “sapatão”:
É preciso salientar que a representação da relação sexual na capa pode parecer grosseira para os higienizados ou até estigmatizada ou fetichizada para outros, mas é significativa para a década de 1980, em se falando de práticas das lesbianidades e dos questionamentos emergentes de tal época: Qual o contexto histórico e literário dessa década? O que se permitia como literatura? Sobre o que podia se falar? Ou até que ponto falar de “sapatão” na década de 1980, no cordel, era crível para o mercado?
No Brasil, a aparição pública de um discurso produzido por lésbicas vai ocorrer a partir de 1979, quando da criação do Grupo de Ação Lésbico Feminista que emergiu com o intuito de defender as lesbianidades. Foi o primeiro grupo surgido em São Paulo. No entanto, vamos encontrar suas vozes, seus indícios de existência, sua palavra pública no Jornal Lampião da Esquina, nascido em 1978, produzido pelo grupo de afirmação homossexual, conhecido como Somos, e que nasceu em São Paulo - em plena Ditadura Militar -, o qual durou três anos, defendendo “a livre expressão da sexualidade das minorias, o orgulho de ser gay e a necessidade maior de sair do gueto, confrontando as visões preconceituosas e as pressões intolerantes de outros órgãos da imprensa e da sociedade” (Helder HOLANDA, 2012HOLANDA, Helder de Araújo. A representatividade do espaço na expressão de subjetividades homoeróticas em três narrativas de Aguinaldo Silva. 2012. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Literatura e Interculturalidade, Universidade Estadual da Paraíba, Campina Grande, PB, Brasil., p. 21-22). “Tendo uma proposta de politização da questão da homossexualidade, o Somos, (...) adquiriu grande notoriedade e visibilidade do ponto de vista histórico” (FACCHINI, 2002FACCHINI, Regina. “Sopa de letrinhas?” Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos anos 90: um estudo a partir da cidade de São Paulo. 2002. Dissertação (Mestrado) - Programa de Mestrado em Antropologia Social, Departamento de Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil., p. 66). É conhecido como o primeiro movimento homossexual no Brasil e é apropriado por alguns estudiosos de forma engessada e unívoca, sem contextualizar e perceber os diversos outros movimentos que surgiram a posteriori (FACCHINI, 2002).
A partir dessa representação, o Jornal Lampião da Esquina convida as lésbicas para falarem:
Pela primeira vez na história deste país, um grupo de mulheres se reúne para falar e escrever sobre sua homossexualidade. Aquelas mulheres sempre esquecidas, negadas e renegadas exatamente por não se submeterem aos papéis que a sociedade machista impõe como seus papéis naturais, no mês consagrado por essa mesma sociedade à função “sublime” da mulher pedem a palavra e descem o verbo. (...) Os jornais e movimentos feministas, no Brasil, nunca tocaram no assunto (MOTT, 1979MOTT, Luiz. “Amor entre mulheres”. Lampião da Esquina, n. 2, 1979. (Centro de Documentação Professor Doutor Luiz Mott) Disponível em Disponível em http://www.grupodignidade.org.br/wp-content/uploads/2019/04/16-LAMPIAO-DA-ESQUINA-EDICAO-12-MAIO-1979.pdf . Acesso em 25/11/2019.
http://www.grupodignidade.org.br/wp-cont... , p. 07).
É a partir da militância que, historicamente, dá-se visibilidade às lésbicas e às suas práticas, seja a partir do nomear ou mesmo do direito à palavra pública desses sujeitos históricos, que foram silenciados por uma cultura ocidental, heterossexual. Inclusive, o silenciamento também ocorreu no campo do feminismo, de mulheres que participavam do Jornal Lampião da Esquina, mas que, por receio da não visibilidade ou mesmo por medo de repressão no período mais duro da ditadura militar, acabaram não falando sobre a questão.
Todavia, segundo Silva (2017SILVA, Zuleide Paiva. A aventura de inventar-se ativista lésbica em tempos verde oliva: considerações sobre a primeira organização lésbica da Bahia. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENLAÇANDO SEXUALIDADES, 5. 2017, Campina Grande, UEPB. Anais... Campina Grande: Realize, 2017. p. 1-10.), “um grupo de estudantes lésbicas, militantes do movimento estudantil da Universidade Federal da Bahia, UFBA, criaram o GLH-Grupo Libertário Homossexual no bojo da primeira onda do movimento homossexual”. A pesquisa de Silva nos alerta sobre a existência de grupos que lutavam pelos direitos das pessoas que se orientam para o/a igual no Nordeste também na década de 1970. Esse estudo nos mostra o quanto o silenciamento em torno desses movimentos foi violento e tentou suprimir existências.
Segundo Gilberta Soares e Jussara Costa (2012SOARES, Gilberta Santos; COSTA, Jussara Carneiro. “Movimento lésbico e Movimento feminista no Brasil: recuperando encontros e desencontros”. Labrys - Estudos Feministas, v. 20-21, p. 01-20, jul./dez. 2012. Disponível em Disponível em https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/direitos-da-populacaolgbt/artigos_teses_dissertacoes/movimento_lesbico_e_movimento_feminista_no_brasil_recuperando_encontros_e_desencontros_1.pdf . Acesso em 10/01/2016.
https://www.mpba.mp.br/sites/default/fil...
, p. 09), “[...] muitas lésbicas feministas construíram sua atuação política junto aos grupos feministas e não romperam com a invisibilidade das mulheres lésbicas”, fazendo com que os feminismos não problematizassem aquilo que estava relacionado às mulheres lésbicas, uma vez que algumas feministas tinham uma ligação direta com setores da igreja católica e/ou com partidos políticos que não admitiam, ainda, que as lesbianidades saíssem de seu lugar de mordaça e, assim, não faziam parte nem de produções teóricas, nem de uma “agenda política” (SOARES; COSTA, 2012SOARES, Gilberta Santos; COSTA, Jussara Carneiro. “Movimento lésbico e Movimento feminista no Brasil: recuperando encontros e desencontros”. Labrys - Estudos Feministas, v. 20-21, p. 01-20, jul./dez. 2012. Disponível em Disponível em https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/direitos-da-populacaolgbt/artigos_teses_dissertacoes/movimento_lesbico_e_movimento_feminista_no_brasil_recuperando_encontros_e_desencontros_1.pdf . Acesso em 10/01/2016.
https://www.mpba.mp.br/sites/default/fil...
, p. 09).
Ao se institucionalizarem, os feminismos vão lutar por aceitação; em detrimento disso, “passa[m] a negar a lesbianidade” (SOARES; COSTA, 2012SOARES, Gilberta Santos; COSTA, Jussara Carneiro. “Movimento lésbico e Movimento feminista no Brasil: recuperando encontros e desencontros”. Labrys - Estudos Feministas, v. 20-21, p. 01-20, jul./dez. 2012. Disponível em Disponível em https://www.mpba.mp.br/sites/default/files/biblioteca/direitos-humanos/direitos-da-populacaolgbt/artigos_teses_dissertacoes/movimento_lesbico_e_movimento_feminista_no_brasil_recuperando_encontros_e_desencontros_1.pdf . Acesso em 10/01/2016.
https://www.mpba.mp.br/sites/default/fil...
, p. 15). Esse é, segundo as autoras, um dos motivos suficientes para impedirem que as lésbicas consigam adentrar com sua agenda política no movimento feminista. Entretanto, ao historicizar a trajetória da relação entre as lésbicas e o movimento feminista, as autoras compreendem que “a constituição de articulações de mulheres lésbicas no campo feminista foi tardia e a visibilidade das questões lésbicas no movimento feminista ainda é tênue” (SOARES; COSTA, 2012, p. 28), ou seja, pouco foi resolvido, as relações ainda são tensas, exatamente, pelas tessituras que percorreram ou pelas que deixaram de percorrer, especialmente, no que diz respeito ao desenvolvimento epistemológico.
Para Miriam Martinho (2009MARTINHO, Miriam. 19 de agosto: Dia do Orgulho Lésbico no Brasil, 2009. Disponível em Disponível em https://gay.blog.br/wp-content/uploads/2017/08/19deagostolivreto-120828140253-phpapp02.pdf . Acesso em 15/11/2016.
https://gay.blog.br/wp-content/uploads/2...
), a atuação militante lésbica é muito importante para rememorar momentos históricos marcantes e com significações práticas para as lesbianidades.
Nessa luta em constante movimento e transformação, as lésbicas têm um papel importante a desempenhar. Desde Safo - poetisa grega que fez alguns dos mais lindos versos de amor pelas mulheres e que, vivendo na ilha de Lesbos, deu origem à palavra com qual orgulhosamente nos denominamos - as lésbicas não tiveram voz e foram oprimidas (MARTINHO, 2009MARTINHO, Miriam. 19 de agosto: Dia do Orgulho Lésbico no Brasil, 2009. Disponível em Disponível em https://gay.blog.br/wp-content/uploads/2017/08/19deagostolivreto-120828140253-phpapp02.pdf . Acesso em 15/11/2016.
https://gay.blog.br/wp-content/uploads/2... , p. 12).
Apesar das transformações e até das divergências entre movimentos de militância, é preciso historicizar e trazer à representação, como bem afirma Martinho, um momento muito marcante para as lesbianidades, quando as primeiras identificações, a partir de um termo, lhes foram atribuídas. São as conquistas visíveis mais cotidianas nos mínimos detalhes que fazem com que as lésbicas encontrem espaços para suas vivências de forma mais positiva. Martinho (2009, p. 13) deixa claro que é o empoderamento que faz a diferença, ou seja, foi a luta coletiva para direitos individuais que fez com que as conquistas acontecessem. A união das lésbicas foi fundamental para alcançar alguns objetivos, como o simples direito de ir e vir. São conquistas que trazem consequências positivas para o cotidiano das práticas das lesbianidades e, portanto, da vida amorosa, afetiva e/ou sexual entre as mulheres.
Sendo assim, em relação à imagética da capa do cordel, temos a relação sexual, com a penetração pr meio dos dedos, que acaba por configurar a vagina como órgão de prazer na relação lesbiana, por um lado, mantendo um discurso tradicional que tenta igualar ou não a relação lesbiana a uma relação heterossexual. No entanto, também quebra com o que já apontava Swain (2004SWAIN, Tânia Navarro. “O que a história não diz, nunca existiu? As amazonas brasileiras”. Caminhos da História, Montes Claros, UNIMONTES, v. 9, 2004., p. 82), ao afirmar que “uma das ideias preconcebidas e que aparece com frequência na Literatura é que entre as lésbicas a sexualidade não tem relevância e elas priorizam as carícias amorosas e os sentimentos”. É evidente que a sexualidade tem, sim, significância e a capa do cordel acaba a representando.
Ao fazer uma crítica ao folheto, precisamos atentar não só para seu inventário linguístico, mas para o contexto histórico de produção e não podemos exigir que o cordelista fale de um universo de militância que não é o seu, visto que, segundo Swain (2004SWAIN, Tânia Navarro. “O que a história não diz, nunca existiu? As amazonas brasileiras”. Caminhos da História, Montes Claros, UNIMONTES, v. 9, 2004., p. 15-16): “As representações sociais, imagens que nos são transmitidas, desde o aprendizado da linguagem, estabelecem para cada momento vivido em espaços e tempos diversos uma história”.
Assim, as representações do cordelista são próprias do seu tempo e do seu espaço, embora essas representações não sejam comuns entre os cordelistas na década de 1980. “Falar de mulheres na História já é complicado, falar de lesbianismo é quase um crime” (SWAIN, 2004SWAIN, Tânia Navarro. “O que a história não diz, nunca existiu? As amazonas brasileiras”. Caminhos da História, Montes Claros, UNIMONTES, v. 9, 2004., p. 31). Isso se evidencia quando percebemos a disparidade entre a quantidade de folhetos produzidos que versam sobre personagens gays masculinos em detrimento dos que versam sobre personagens lésbicas.
“Ser ou estar lesbiana”? Não importa, o que importa são as transgressões
A estrofe a seguir incita uma discussão que permeia as práticas das lesbianidades, pois fala sobre a “pessoa lésbica”. Teria, então, a personagem Chica nascido lésbica ou se tornado?
01
O mundo tá tão mudado
Que ninguém entende nada
Tem mulher que está nascendo
Macho e até barbada,
Como o caso da tal Chica,
Que é mulher só na fachada (MACHADO, 1984MACHADO, Franklin de Cerqueira. Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984., p. 01).
A construção da personagem se dá a partir de sua masculinização, visto que “as significações que acompanham a palavra ‘lésbica’ [nesse caso, acompanham a palavra ‘sapatão’] são sempre negativas” (SWAIN, 2004SWAIN, Tânia Navarro. “O que a história não diz, nunca existiu? As amazonas brasileiras”. Caminhos da História, Montes Claros, UNIMONTES, v. 9, 2004., p. 35), pois o próprio termo permite a inserção social, mas se apresenta sempre de forma negativa, com exceção dos folhetos militantes. A questão é que o cordelista diz que a personagem já teria nascido supostamente “sapatão”, assim, ele vai atribuindo uma identidade tomada por uma essência, discussão trazida por Olga Viñuales (2002VIÑUALES, Olga. Lesbofobia. Barcelona: Bellaterra, 2002., p. 72) sobre “Ser ou estar lesbiana”, quando, segundo a autora, “essa maneira estereotipada [ou não] de pensar a lésbica, como mulher masculina, negadora dos papéis de gênero, ainda se encontra no imaginário popular, gerando desigualdade e discriminação”. Ou seja, o folheto configura algo que faz parte do imaginário popular, gera preconceitos, mas, também, possibilidades de conhecimento e visibilidade pela própria enunciação do discurso. Não podemos, todavia, desconsiderar que se trata de um modo exagerado de o cordelista falar, uma vez que, para ser lido, seu cordel precisa, por vezes, ser polêmico. É preciso considerar também que a masculinização da lésbica faz parte das possibilidades de ser lésbica e não pode, necessariamente, ser associada a algo negativo.
O cordelista ironiza a personagem, dizendo que “é mulher só na fachada”, ou seja, na aparência, o que significa que sua configuração social aparentemente não destoava do modelo de mulher para a sociedade, querendo, pois, impor uma identidade fixa à Chica. Se era sapatão, então, como deveria se apresentar? Segundo Mott (1987MOTT, Luiz. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987., p. 61), “(...) a aparência física, ou os modos do comportamento de uma pessoa, não têm correspondência necessária com suas preferências ou orientações eróticas”.
Não acreditamos na lesbianidade como orientação erótica apenas, mas assim, como defende Viñuales (2002VIÑUALES, Olga. Lesbofobia. Barcelona: Bellaterra, 2002., p, 74), “a lésbica como uma pessoa que se identifica como mulher que ama e deseja a outras mulheres”. Nessa perspectiva, ela não é orientada, ela se orienta para a lesbianidade. Pode parecer que essa é uma observação simples, mas é muito significativa, pois, com isso, queremos dizer que ela não é passiva e nem é depósito das vontades sociais e/ou culturais. Destarte, precisamos considerar que nenhuma sociedade liberta seus “súditos” para serem só ativos e fazedores de sua própria vontade.
Entretanto, a linguagem apresenta relações dicotômicas e ambivalentes que precisam ser consideradas, pois se cria um termo para deturpar ou patologizar pessoas, mas, ao mesmo tempo, dá vida, torna visível pessoas, apenas indivíduos, não sujeitos. É preciso, dessa perspectiva, considerar que a dicotomia da linguagem acaba por criar tanto configurações positivas, quanto negativas, da mesma forma termos mais politicamente corretos, por vezes, podem ser metaforicamente representativos de uma “higienização” que promova uma violência quando suprime significações que invisibilizam as lésbicas. Logo, o nomear, apesar do lado tenso que impulsiona um dizer “feio” a mulheres, é produtivo do ponto de vista da cultura, porque faz emergir um grupo que vive no seio dos conflitos socioculturais.
O cordelista diz que a mulher “tá nascendo macho” ou que “é mulher só na fachada” (MACHADO, 1984MACHADO, Franklin de Cerqueira. Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984., p. 01), ou seja, só na aparência. Segundo Wittig (2009WITTIG, Monique. “Ninguém nasce mulher”. In: CASTILHOS, Clarisse; PESSAH, Marian (Orgs.). Em rebeldia da bloga ao livro. Porto Alegre: Coleção Libertária, 2009. p. 91-102., p. 238), retomando Beauvoir, “ninguém nasce mulher”, ou seja, essa afirmação se refere a uma construção que é feita por meio de discursos que tentam naturalizar papéis de gênero, quando, na verdade, são construções. Tanto é assim que, quando o cordelista diz que Chica é mulher só na suposta aparência, é porque ele considera que, na prática, ela destoa do que deveria ser seu papel numa sociedade heterossexista. Ainda de acordo com Wittig (2009, p. 248):
[...] o sujeito designado [lesbiano] não é uma mulher, nem economicamente, nem politicamente, nem ideologicamente. Pois o que faz uma mulher em uma relação social específica com um homem, um relacionamento que temos chamado de servidão, uma relação que implica uma obrigação pessoal e física e também econômica (WITTIG, 2009WITTIG, Monique. “Ninguém nasce mulher”. In: CASTILHOS, Clarisse; PESSAH, Marian (Orgs.). Em rebeldia da bloga ao livro. Porto Alegre: Coleção Libertária, 2009. p. 91-102., p. 248, tradução livre).
Sendo assim, a lésbica liberta-se dessa submissão em relação ao homem, o que provoca questionamentos como o do cordelista, discursos do medo de perder o poder de quem domina ou dominou por tanto tempo, sem questionamentos visíveis ou com questionamentos que eram punidos, silenciados. A relação mulher com mulher promove uma ruptura do ideal de mulher, construído em função de sua relação com o homem, e a personagem Chica descontinua também essa relação, pois se apresenta como alguém que sente desejos e sentimentos por mulheres, o que acaba configurando, na visão de Machado (1984MACHADO, Franklin de Cerqueira. Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984.), a personagem como anormal, diferente e, portanto, estigmatizada. Entretanto, de acordo com Céline Perrin e Natcha Chetcuti (2002PERRIN, Céline; CHETCUTI, Natcha. “Além das aparências: sistema de gêneros e encenação dos corpos lesbianos”. Labrys - Estudos Feministas, n. 1-2, jul./dez. 2002. Disponível em Disponível em https://www.labrys.net.br/labrys1_2/natacha1.html . Acesso em 10/01/2016.
https://www.labrys.net.br/labrys1_2/nata...
, p. 01), é preciso ir além da aparência, pois a masculinização pode ser vista como “recusa das definições normativas do feminino”. Sendo assim, a representação de uma lésbica masculinizada, por parte do cordelista que a coloca num lugar de anormal, nem sempre seria negativa, já que a recusa pela normatividade pode ser um dos objetivos.
Céline Perrin e Natcha Chetcuti (2002PERRIN, Céline; CHETCUTI, Natcha. “Além das aparências: sistema de gêneros e encenação dos corpos lesbianos”. Labrys - Estudos Feministas, n. 1-2, jul./dez. 2002. Disponível em Disponível em https://www.labrys.net.br/labrys1_2/natacha1.html . Acesso em 10/01/2016.
https://www.labrys.net.br/labrys1_2/nata...
) trazem outras possibilidades para falar da lésbica masculinizada, pois, segundo as autoras, tanto as lésbicas de aparência e/ou comportamento masculino quanto feminino apresentam vários “usos e funções”. Desde a “masculinidade pragmática, (...) a masculinidade como estratégia de proteção (...) como alternativa ao feminino imposto” ou ainda “como código identitário” (PERRIN; CHETCUTI, 2002PERRIN, Céline; CHETCUTI, Natcha. “Além das aparências: sistema de gêneros e encenação dos corpos lesbianos”. Labrys - Estudos Feministas, n. 1-2, jul./dez. 2002. Disponível em Disponível em https://www.labrys.net.br/labrys1_2/natacha1.html . Acesso em 10/01/2016.
https://www.labrys.net.br/labrys1_2/nata...
, p. 8-11). Essas multiplicidades de possibilidades apresentadas pelas autoras justificam o quanto a categoria de lésbica masculinizada, independente até dos usos e funções, é uma categoria como qualquer outra e é produtiva em sua multiplicidade de significações.
Não é por acaso que o título deste artigo é Chica Bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba: Quando Sapatão é “Revolução”. Na estrofe dois, temos uma configuração das transformações que Chica provoca e que são representadas como provocadoras da destruição de um “lar”. Como assim? Década de 1980, em que lugares do social tínhamos uma lesbianidade tão escancarada, tão visível e tão pública assim? Nesse sentido, podemos sim dizer que o cordel, mesmo que não fosse intenção do cordelista, é revolucionário, borra os lugares do feminino, do masculino e do “lar”.
02
A sua maior façanha
Foi acabar com um lar.
Tomou a mulher dum homem
E, com ela, foi morar.
E o marido abandonado
Bichou para se vingar
03
Ele ficou complexado
E bastante desgostoso.
Tentou até se matar
E foi um caso escabroso.
Aí, encontrou um bicha.
E amigou com o ditoso (MACHADO, 1984MACHADO, Franklin de Cerqueira. Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984., p. 01).
Na estrofe dois, fica evidente o quanto Chica foi protagonista do seu lugar, ou, melhor dizendo, empoderada. Compreendendo que “o empoderamento de mulheres é o processo da conquista da autonomia, da auto-determinanação. O empoderamento das mulheres implica, para nós, na libertação das mulheres das amarras da opressão de gênero, da opressão patriarcal” (SARDENBERG, 2006SARDENBERG, Cecília Maria Bacellar. Conceituando “Empoderamento” na Perspectiva Feminista. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL: TRILHAS DO EMPODERAMENTO DE MULHERES, 1, 2006, Salvador, Projeto TEMPO, NEIM/UFBA. Anais... Salvador: Projeto TEMPO, NEIM/UFBA, 2006. p. 1-12., p. 02). Assim, Chica protagonizou uma conquista amorosa que é vista pelo cordelista de forma espantosa, mas mesmo demonstrando espanto, subjaz aqui a força dessa sapatão que é dada pelo próprio cordelista, quando relata sua façanha amorosa. Entretanto, quando ele se refere ao fato de que Chica “foi acabar com um lar”, logo estabelece o que define um lar, já que se tratava de um casal heterossexual. Na Idade Média, essa concepção era solidificada pelos teólogos da Igreja Católica, que compreendiam que “a sexualidade nos fora dada exclusivamente para procriar” (Mary DEL PRIORE, 2006DEL PRIORE, Mary. História do amor no Brasil. São Paulo: Contexto, 2006., p. 75). Logo, só seria legítima, diante da heterossexualidade. Qualquer outra forma de uso da sexualidade, mesmo por um casal hetero, seria tida como forma de “perverter a ordem divina” (DEL PRIORE, 2006, p. 75). Por isso, a visão do cordelista está envolvida por um imaginário cultural que é, entre outros, judaico-cristão.
Ainda na estrofe em análise, o cordelista afirma que o marido “bichou para se vingar”. No senso comum, bichar é um termo usado para designar os gays afeminados. Entretanto, bichou está relacionado com bicha, que significa: “Efeminado, pederasta, veado” (SOUTO MAIOR, 2010SOUTO MAIOR, Mário. Dicionário do palavrão e termos afins. Belo Horizonte: Leitura, 2010., p. 38). Horácio Almeida (1981ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de termos eróticos e afins. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981., p. 44) acrescenta que se trata de “pederasta passivo”. A última definição era mais comum na década de 1980, quando da escrita do folheto. Isso nos remete à ideia de que o fato de o marido levar chifre de outra mulher talvez o leve socialmente às interrogações se seria ou não um “homem de verdade”.
Segundo Eronides Araújo (2016ARAÚJO, Eronides Câmara de. Homens traídos e práticas das masculinidades para suportar a dor. 1. ed. Curitiba: Appris, 2016., p. 204), o homem que foi traído por uma sapatão é nomeado de “corno azarado”. O fato de o marido ter sido traído por sua mulher com outra mulher “deixa o masculino necessitando de terapia, o que, para esse tipo de masculinidade, ainda é considerado mais traumático, pois demonstra fraqueza e fragilidade” (ARAÚJO, 2016ARAÚJO, Eronides Câmara de. Homens traídos e práticas das masculinidades para suportar a dor. 1. ed. Curitiba: Appris, 2016., p. 204). Nesse sentido, podemos compreender que o “bichou” do marido tanto poderia ser compreendido como uma forma de o cordelista demonstrar fragilidade a partir da configuração de gays afeminados e passivos, mas também podemos compreender que seria uma forma de se igualar à sua esposa, no que diz respeito a se orientar para o/a igual, embora isso também pudesse identificá-lo com o “corno Boiola” (ARAÚJO, 2016, p. 204). Essa configuração não seria positiva, uma vez que isso traz uma dupla exclusão “da masculinidade hegemônica. Além do homem ser traído pela mulher, trai seu próprio Gênero” (ARAÚJO, 2016, p. 205).
Outra interpretação pode ser cogitada, pois, segundo o dicionário Priberam PT (2016PRIBERAM DICIONÁRIO. Bichar. Disponível em Disponível em https://www.priberam.pt/dlpo/bichar . Acesso em 10/08/2016.
https://www.priberam.pt/dlpo/bichar...
), bichou também significa “esperar”, porém, a estrofe seguinte e o fato de que o marido “encontrou uma bicha e amigou com o ditoso” nos leva a considerar que a primeira interpretação é mais coerente, embora não anule a perspectiva de que bichou pode ter sido colocado como possibilidade de demonstrar a espera do marido para depois de um tempo tentar se vingar.
As práticas do desejo e a busca pelo prazer
Compreendendo a “fluidez de um desejo móvel” (SWAIN, 2002SWAIN, Tânia Navarro. “As Teorias da Carne: corpos sexuados, identidades nômades”. Labrys - Estudos Feministas, n. 1-2, jul./dez. 2002. Disponível em Disponível em https://www.labrys.net.br/labrys1_2/anahita1.html . Acesso em 10/01/2016.
https://www.labrys.net.br/labrys1_2/anah...
, p. 30) e, portanto, sem contornos definidos e sem polarização entre a heterossexualidade e a lesbianidade, percebemos que é a partir dessa fluidez que os desejos de Chica se movimentam e rompem as fronteiras da cultura dominante. Assim, em relação às práticas do desejo, temos, na estrofe seguinte, uma configuração interessante.
04
Quando via uma moçinha
Namorando abraçada,
Ela ficava doidinha
E bastante excitada.
E, para agradar e ver,
Servia até de cocada (MACHADO, 1984MACHADO, Franklin de Cerqueira. Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984., p. 03).
Na estrofe quatro, podemos perceber que os desejos de Chica pulsavam e que era possível, quando observava meninas namorando, sentir prazer sexual, já que a expressão “servia até de cocada” está relacionada a sentir o prazer, a partir, apenas da visualização, o que funciona como estímulo sexual e provoca sensação de prazer. Todavia, o significado de cocada também pode estar relacionado a alguém que levava recado, que alcovitava relacionamentos (Aurélio FERREIRA, 1999FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio séc. XXI: o dicionário da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999., p. 492), o que também era uma forma de presenciar, estar perto das relações entre as iguais.
A descrição de uma situação na qual o desejo exala nos leva a pensar que Chica passa a prestar atenção em si mesma, a se descobrir, a conhecer seu corpo, pois, de acordo com Foucault (1984FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal, 1984.), são essas “(...) práticas pelas quais os indivíduos foram levados a prestar atenção a eles próprios, a se decifrar, a se reconhecer e se confessar como sujeitos de desejo, estabelecendo de si para consigo uma certa relação que lhes permite descobrir, no desejo, a verdade de seu ser...” (FOUCAULT, 1984FOUCAULT, Michel. História da sexualidade II: O uso dos prazeres. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. São Paulo: Graal, 1984., p. 11). Historicamente, por levar a descobertas como as descritas por esse autor, o desejo tenha passado por “(...) uma infinidade de tipos de modelização, (...) cada um em seu tempo, a disciplinar o desejo” (Félix GUATTARI; Suely ROLNIK, 1986GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 1986., p. 215). Tal constatação nos leva a concluir que se trata de algo sobre o qual não se tem controle e, portanto, incomoda e borra as normatividades.
Chica apresenta um desejo sem domesticação, sem adestramento, que se torna não só móvel como múltiplo, além de ser transgressor, diante da normalização da sexualidade. O mais comum é perceber que a “multiplicidade do desejo é obscurecida” (Olga GARCIA, 2003GARCIA, Olga Regina Zigelli. “Prática sexual entre mulheres: identidade ou pluralidade sexual?”. Cadernos de Pesquisa Interdisciplinar em Ciências Humanas. Florianópolis, v. 01, p. 48-74, dez. 2003. Disponível em Disponível em https://periodicos.ufsc.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/1181/4438 . Acesso em 25/11/2016.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/cad...
, p. 03). Chica, porém, faz o inverso, mostra seu desejo, revela para a sociedade, da qual faz parte, o que sente sem se preocupar com os pudores sociais. Em nenhum momento é perceptível uma preocupação da personagem com os julgamentos sociais, a não ser em relação a viver seus desejos e relações sexuais, afetivas e amorosas com outras mulheres.
Vejamos como Chica é configurada em relação aos seus anseios sexuais:
05
Ganhou o seu apelido
De Francisca Bananinha
Ao cansar de Siririca,
Esfregando a xoxotinha
Deflorou-se aí metendo
Uma banana todinha.
06
A banana quebrou dentro
na loucura da gozada
Para tirar o pedaço
Que a deixava inflamada
E inchada, foi ao médico
Pra fazer a retirada (MACHADO, 1984MACHADO, Franklin de Cerqueira. Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984., p. 03).
Segundo Machado, Chica cansa de “Siririca”, que nada mais é que “masturbação feminina” (ALMEIDA, 1981ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de termos eróticos e afins. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981., p. 244) e decide realizar a penetração com uma banana, já que “prechega era rara” (MACHADO, 1984MACHADO, Franklin de Cerqueira. Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba. Rio de Janeiro, 1984., p. 02). No entanto, não é qualquer penetração, mas com uma fruta que representa, imageticamente, o pênis, tentando enquadrar Chica no modelo heterossexista que compreende só ser possível satisfação sexual por meio da penetração, embora a penetração seja uma possibilidade na relação sexual tanto entre heteros quanto entre as/os iguais.
É importante considerar que as configurações erótico-sexuais trazidas pelo cordelista sobre Chica nos levam a pensar além, pois não seria só isso, mas um modo de vida de Chica e, segundo Foucault (2006FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: Curso dado no College de France (1981-1982). São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 660), “(...) a verdadeira resistência está em outro lugar: na invenção de uma nova ascese, uma nova ética, um novo modo de vidas homossexuais, pois as práticas de si não são nem individuais nem comunitárias: são relacionais e transversais”. O que temos aqui são as configurações das práticas de si de Chica, as quais são relacionais e fazem parte dos modos de subjetivação dela. Acreditamos que, a partir de suas subjetividades, Chica constrói “(...) uma relação consigo mesma como ser do desejo, ser de relações e consciência de si mesmo” (Alain TOURAINE, 2006TOURAINE, Alain. Um novo paradigma: para compreender o mundo de hoje. Petrópolis: Vozes, 2006., p. 219). Dessa forma, Chica reivindica para si sua sexualidade, seus desejos, seus prazeres.
Na estrofe seis, é versado o episódio da retirada da banana de Chica, a personagem é apresentada de forma tarada, degenerada e a sua busca por prazer é vista como loucura, como um desvio e, portanto, estranho ao comportamento tido como normal. Além de tentar configurar Chica enquanto praticante de um desvio, há também a simplificação de sua relação apenas ao gozo e, portanto, apenas ao prazer sexual, embora este não seja desprovido de um envolvimento amoroso, porém ao cordelista interessa a desvalorização da autonomia sexual de Chica.
Lembremos que só a partir de 1985 é que o Conselho Federal de Medicina vai dizer que a homossexualidade não pode mais ser tratada nem mesmo como desvio sexual (MOTT, 1987MOTT, Luiz. O lesbianismo no Brasil. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987., p. 16). Até então, pouco se questionava o lugar de anormalidade conferido à homossexualidade e, no caso da lesbianidade, sua defesa veio ainda mais tarde, pois as próprias feministas, como vimos, de acordo com o “Jornal Lampião” e outras fontes, as silenciaram por muito tempo.
Nesse sentido, o cordel “Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba” aloca a subjetividade/identidade lesbiana unicamente no sexo, tudo gira em torno disso, isso faz parte das estratégias de poder. Entretanto, segundo Roger Droit (2006DROIT, Roger Pol. “Um Pensador, Mil Faces”. In: DROIT, Roger Pol. Michel Foucault: Entrevistas. São Paulo: Graal, 2006. p. 19-39., p. 31), em Foucault, o poder “é criativo mais do que repressivo, ele incita, suscita, tanto quanto proíbe” e, desse ponto de vista, mesmo um cordel engendrado num discurso de poder, de regras sociais e culturais de conduta, de simplificação das lesbianidades apenas ao sexo e da configuração estereotipada, se trata de uma produção cultural de um lugar de visibilidade e foi isso que vislumbramos.
Considerações Finais
Tomando como base tudo que analisamos no cordel “Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba”, percebemos o quanto ele foi produtivo para a discussão das lesbianidades, possibilitando-nos confirmar a hipótese de que o nomear é um ato de existência, mesmo quando carregado de estigmas, estereótipos. Dessa maneira, mesmo ponderando, analisando e reconhecendo as várias formas de preconceitos construídos em torno da personagem principal, descortinamos as potencialidades do cordel para as lesbianidades pelo comportamento de Chica, pela capa emblemática do cordel e por ter uma sapatão como protagonista numa produção da década de 1980. Assim, o cordelista, na ânsia de estigmatizar, de dizer para os consumidores do seu cordel quem era Chica Bananinha ou o que era uma sapatão, acabou anunciando as lesbianidades a partir do momento em que disse seus nomes.
Em suma, temos um cordel emblemático e muito representativo sobre as lesbianidades e, mais que isso, temos a configuração de uma sapatão que o cordelista enquadrou num modelo masculinizado, a partir da construção de um estigma. Chica, porém, desterritorializa com essa construção no cordel, rompe as fronteiras do desejo, das práticas das sexualidades, do corpo e se empodera, protagonizando o cordel de forma revolucionária. Ela dá sentido ao seu nome “Chica bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba” e demonstra o quão importante foi sua identificação a partir de uma categorização que a levou a construir um lugar de existência.
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1
Sabemos que não há consenso sobre o uso do termo lesbianas nos estudos lésbicos brasileiros, porém nos apropriamos do termo a partir de dos estudos de Swain (2004).
-
2
Este artigo tem como referência a Tese de Doutorado da autora, defendida em dezembro de 2017. A explicação se justifica, uma vez que, em 2018, foi produzido um dossiê intitulado: “Sapatão é Revolução”, produzido pelo grupo de pesquisa CUS da Universidade Federal da Bahia e publicado na revista eletrônica Periódicus. Sendo assim, este artigo será publicado após o dossiê, mas a pesquisa, bem como parte do título que nomeia o artigo, foi pensada antes de 2018. Todavia, reconhecemos que “Sapatão é Revolução” é uma expressão que emerge no seio dos movimentos sociais, na luta por visibilidade e reconhecimento de direitos.
-
Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:
DINIZ, Rozeane Porto. “Chica Bananinha, a sapatão barbuda de lá da Paraíba: Quando Sapatão é “Revolução””. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 29, n. 1, e62012, 2021. -
Financiamento:
Não se aplica -
Consentimento de uso de imagem:
Não se aplica -
Aprovação de comitê de ética em pesquisa:
Não se aplica
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
30 Abr 2021 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2021
Histórico
-
Recebido
13 Mar 2019 -
Revisado
29 Fev 2020 -
Aceito
09 Jun 2020