Resumos
O objetivo foi conhecer a influência da escola na vida e nos cuidados com a saúde de crianças e adolescentes com fissura labiopalatal atendidas em um centro de referência do Sul do Brasil. A pesquisa foi do tipo exploratório-descritiva, com abordagem qualitativa. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 15 mães de crianças e adolescentes com fissura labiopalatal participantes de um programa de acompanhamento da saúde bucal. A análise dos dados foi fundamentada na técnica de análise temática, pertencente à análise de conteúdo, originando duas categorias temáticas centrais: enfrentando e superando o preconceito relacionado à má formação; e a escola influenciando a saúde bucal da criança e adolescente e o seu desenvolvimento. A escola traz à criança e adolescente com fissura labiopalatal possibilidades de cuidados e inclusão social, mas também pode trazer conflitos pelo preconceito gerado pela sua aparência física. O apoio da comunidade escolar é essencial para que possam ter um desenvolvimento adequado com qualidade de vida.
Fissura labial; Fissura palatina; Saúde bucal; Saúde escolar
El objetivo fue estudiar la influencia de la escuela en la vida e en el cuidado de de niños y adolescentes con fisura labiopalatina atendidos en un centro de referencia en el sur de Brasil. Investigación cualitativa de tipo descriptivo-exploratorio que realizó entrevistas semiestructuradas con 15 madres de niños y adolescentes con fisura labiopalatina de un programa de vigilancia de la salud bucal. El análisis de los datos se fundamentó en el análisis temático, destacando dos temas centrales: Enfrentando y superando los prejuicios relacionados con la malformación, y La escuela como influencia en la salud bucal de los niños y su desarrollo. La escuela trae a los niños y adolescentes con fisura labiopalatina posibilidades de cuidados e inserción social, pero también trae conflictos generados por los prejuicios de su apariencia física. El apoyo de la comunidad escolar es esencial para el desarrollo adecuado con calidad de vida.
Labio leporino; Fisura del paladar; Salud bucal; Salud escolar
The aim of this study was to understand the influence of school in the life and care of the health of children with cleft lips and palates, treated at a reference center in southern Brazil. This qualitative descriptive-exploratory study was performed using semi-structured interviews, conducted with 15 mothers of children and teenagers with cleft lips and palates of an oral health surveillance program. The data analysis was based on the thematic analysis, which highlights two central themes: facing and overcoming the stigma associated with the physical appearance, and the school as an influence on the oral health of children and teenagers and their development. The school provides children and teenagers with cleft lips and palates with opportunities of social integration, but it also contributes to conflicts generated by the prejudice against their physical appearance. The support of the school community is essential for proper development of quality of life.
Cleft lip; Cleft palate; Oral health; School health
ARTIGO ORIGINAL
A escola na promoção da saúde de crianças com fissura labiopalatal
La escola en la promoción de salud para los niños con fisura labiopalatina
Cintia Magali da SilvaI; Arno LocksII; Daniela Lemos CarcereriIII; Denise Guerreiro Vieira da SilvaIV
IDoutora em Odontologia em Saúde Coletiva. Santa Catarina, Brasil. E-mail: cintiamagali1@hotmail.com
IIDoutor em Ortodontia. Professor do Programa de Pós-Graduação em Odontologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Santa Catarina, Brasil. E-mail: ortoarno@gmail.com
IIIDoutora em Engenharia de Produção. Professora do Programa de Pós-Graduação em Odontologia da UFSC. Santa Catarina, Brasil. E-mail: daniela_carcereri@hotmail.com
IVDoutora em Enfermagem. Professora do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da UFSC. Santa Catarina, Brasil. E-mail: denise_guerreiro@hotmail.com
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Denise Guerreiro Vieira da Silva Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências da Saúde Programa de Pós-Graduação em Enfermagem Campus Reitor David Ferreira Lima 88040-970 - Trindade, Florianópolis, SC, Brasil E-mail: denise_guerreiro@hotmail.com
RESUMO
O objetivo foi conhecer a influência da escola na vida e nos cuidados com a saúde de crianças e adolescentes com fissura labiopalatal atendidas em um centro de referência do Sul do Brasil. A pesquisa foi do tipo exploratório-descritiva, com abordagem qualitativa. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com 15 mães de crianças e adolescentes com fissura labiopalatal participantes de um programa de acompanhamento da saúde bucal. A análise dos dados foi fundamentada na técnica de análise temática, pertencente à análise de conteúdo, originando duas categorias temáticas centrais: enfrentando e superando o preconceito relacionado à má formação; e a escola influenciando a saúde bucal da criança e adolescente e o seu desenvolvimento. A escola traz à criança e adolescente com fissura labiopalatal possibilidades de cuidados e inclusão social, mas também pode trazer conflitos pelo preconceito gerado pela sua aparência física. O apoio da comunidade escolar é essencial para que possam ter um desenvolvimento adequado com qualidade de vida.
Descritores: Fissura labial. Fissura palatina. Saúde bucal. Saúde escolar.
RESUMEN
El objetivo fue estudiar la influencia de la escuela en la vida e en el cuidado de de niños y adolescentes con fisura labiopalatina atendidos en un centro de referencia en el sur de Brasil. Investigación cualitativa de tipo descriptivo-exploratorio que realizó entrevistas semiestructuradas con 15 madres de niños y adolescentes con fisura labiopalatina de un programa de vigilancia de la salud bucal. El análisis de los datos se fundamentó en el análisis temático, destacando dos temas centrales: Enfrentando y superando los prejuicios relacionados con la malformación, y La escuela como influencia en la salud bucal de los niños y su desarrollo. La escuela trae a los niños y adolescentes con fisura labiopalatina posibilidades de cuidados e inserción social, pero también trae conflictos generados por los prejuicios de su apariencia física. El apoyo de la comunidad escolar es esencial para el desarrollo adecuado con calidad de vida.
Descriptores: Labio leporino. Fisura del paladar. Salud bucal. Salud escolar.
INTRODUÇÃO
A formação da face e da cavidade bucal ocorre entre a quarta e a décima segunda semana da vida intrauterina. Tal episódio pode ser considerado de natureza complexa, envolvendo o desenvolvimento de diversos processos teciduais, os quais devem ser unidos e fusionados de maneira ordenada. Durante este período, eventuais distúrbios no desenvolvimento destes processos teciduais ou na fusão dos mesmos podem acarretar a formação de fendas orofaciais, também chamadas Fissuras Labiopalatais (FLPs).1 A etiologia das FLPs ainda não se encontra totalmente esclarecida, no entanto, há indícios de que fatores genéticos e ambientais atuem de maneira associada ou isolada na ocorrência das mesmas.2 As FLPs estão entre as anomalias craniofaciais mais comuns, acometendo cerca de um para cada 672 nascidos vivos no Brasil.3
O nascimento de uma criança com anomalia pode provocar uma crise que atinge toda a família, abalando sua identidade, estrutura e funcionamento. Por vezes, a família está despreparada para enfrentar, já que o filho com deficiência representa quebra de expectativas. A vida familiar sofre alterações frente às exigências emocionais e à convivência com a criança, gerando conflitos e levando à instabilidade emocional, alteração no relacionamento do casal e distanciamento entre seus membros.4
Assim, a equipe de saúde que atende crianças com FLPs tem um importante papel no desenvolvimento da criança, no apoio às famílias, bem como, na promoção da adesão ao tratamento.5 Isto envolve uma atuação profissional que tenha a integralidade da atenção à saúde como referência. Incluída na integralidade está a concepção de humanização da assistência e o acolhimento pela equipe que atua junto a tais famílias, dando suporte desde o nascimento até o processo final de tratamento e posterior acompanhamento. O sucesso do tratamento das FLPs, que envolve a realização dos procedimentos cirúrgicos na época preconizada e a realização das terapias ortodôntica e fonoaudiológica, estão relacionados diretamente com a adequada condição bucal.
Pesquisas evidenciam o quadro desfavorável de saúde bucal das pessoas com FLP, desde a primeira infância até a idade adulta, em especial no que diz respeito às doenças cárie e periodontal.6-9 Nesta população há vários fatores de risco ao desenvolvimento das doenças bucais incluindo os fatores biológicos e psicossociais.
As alterações dentárias de forma, número, estrutura e posição contribuem para o acúmulo de placa e, consequentemente, para a atividade de doenças bucais.10-11 A fibrose cicatricial resultante da queiloplastia, cirurgia reparadora de lábio, reduz a movimentação labial, dificultando a autolimpeza e a higiene bucal.12 Ainda a presença de aparelhos ortodônticos, comum na época de dentição mista, contribui também para o acúmulo de placa.13 Soma-se a tais fatores inerentes à anomalia, a introdução precoce da sacarose à dieta da criança, com o intuito de que a mesma atinja o peso corpóreo preconizado para a realização das cirurgias. Após a incorporação deste hábito ao paladar da criança, o mesmo torna-se de difícil remoção, contribuindo para uma dieta desfavorável com relação ao desenvolvimento da cárie dentária.14
A literatura apresenta a relação entre a condição bucal e a qualidade de vida em pacientes com FLP.15 É importante salientar que há vários fatores que podem influenciar no cuidado com a saúde bucal destes pacientes, que ainda não estão suficientemente investigados. Um destes fatores passíveis de influência diz respeito à socialização, estimulada com o início da vida escolar da criança com fissura labiopalatal.16
O suporte social proporcionado pelos ambientes onde as crianças com fissura FLP (con)vivem é fundamental na construção de sua saúde. Viabilizar a integralidade do cuidado e oportunizar maior autonomia dos sujeitos é importante para a construção de uma lógica diferenciada de atenção à saúde.17
O tratamento da FLP é complexo e longo, estendendo-se do nascimento à idade adulta, conforme o grau de severidade. É dependente da interação entre diversas áreas profissionais, sendo que os mesmos devem estar bem preparados tanto para o diagnóstico, quanto para a realização de procedimentos de forma interdisciplinar. Devem contribuir para a integração das pessoas com FLP na sociedade propiciando sua inclusão social. Isto leva ao entendimento de que deve haver cooperação entre os profissionais e serviços que atuam no desenvolvimento integral da pessoa com fissura, além da participação da sociedade e delas próprias.18-19
As relações escolares aparecem como rede social significativa na vida destas crianças. Podem ocorrer dificuldades da criança com anomalia em estabelecer contato com seus pares. No entanto, bons contatos podem ser firmados, desde que esta seja aceita no grupo de iguais.5 A escola e os colegas destas crianças serão fundamentais ao longo de seu desenvolvimento, no que se refere à adaptação, à socialização e à integração.16 O espaço escolar pode contribuir para a manutenção da saúde de alunos e comunidades locais.20 Autores enfatizam que a escola pode atuar como um espaço social para a promoção da saúde, com a realização de estratégias em programas coletivos de saúde bucal para crianças, o que possibilitaria um impacto positivo sobre iniquidades em saúde.20 A escola também diz respeito ao paradigma da inclusão social e contribui para a humanização da atenção à criança com fissura labiopalatal. Conviver com a diversidade humana e valorizar cada ser são princípios básicos da inclusão social.17
De maneira conjunta com as famílias, a escola pode atuar como um espaço favorável para o desenvolvimento individual e social da criança com FLP. Sendo assim, o objetivo deste trabalho foi conhecer a influência da vida escolar na vida e nos cuidados com a saúde de crianças e adolescentes com fissura labiopalatal, atendidas no programa de acompanhamento de saúde bucal do Setor de Odontopediatria (SOP) de um centro de referência do Sul do Brasil.
MÉTODO
O estudo foi do tipo exploratório-descritivo, com abordagem qualitativa, procurando entender a realidade, trazendo para a análise o subjetivo, os participantes e o meio em que estão inseridos. A complexidade e a profundidade dos problemas de pessoas com má formação labiopalatal, em seus diferentes momentos de evolução no tratamento, fazem com que estudos qualitativos contribuam de maneira mais efetiva, permitindo a compreensão das experiências vividas.16
A amostra foi intencional e seu tamanho foi definido no momento em que as informações atingiram grau de saturação, ou seja, não apresentaram mais informações novas. Assim, o estudo foi realizado com 15 mães de crianças e adolescentes com fissura labiopalatal, participantes do programa de acompanhamento da saúde bucal do SOP. Esta instituição tem como objetivo a atenção integral ao paciente com fissura labiopalatal. Entre os serviços oferecidos está o atendimento odontológico, realizado por estagiários acadêmicos de graduação em odontologia, sob supervisão de professores. Após o término do tratamento odontológico, os pacientes são convidados a participar de consultas de retorno, integrando o programa de acompanhamento das condições bucais. Estas consultas são agendadas conforme a necessidade de cada criança, sendo considerada também a possibilidade da família em retornar ao SOP e a disponibilidade de vagas.
A seleção das participantes da pesquisa teve como critérios de inclusão: mães de crianças com fissura labiopalatal sem outras anomalias ou patologias associadas; idade igual ou superior a 21 anos; não possuíssem FLP e, também, não houvesse outros membros da família (esposo/companheiro ou outros filhos) com FLP, para evitar que a experiência prévia tivesse influência no cuidado com a saúde bucal; os filhos com fissura deveriam estar participando do programa de acompanhamento da saúde bucal na referida instituição e terem desenvolvido doenças cárie e/ou periodontal durante alguma fase do tratamento. Este critério foi incluído pelo questionamento sobre o motivo de adoecimento das crianças, apesar de tantos cuidados por parte da equipe. A opção por realizar o estudo com mães foi em decorrência das mesmas, na maior parte dos casos, serem as responsáveis pelos cuidados e acompanharem seus filhos nos atendimentos das variadas áreas profissionais envolvidas no tratamento. Para preservar a identidade das participantes foi utilizada a numeração de um a 15 para cada uma das entrevistadas.
Para a coleta dos dados, utilizou-se a técnica da entrevista semiestruturada, realizada em salas reservadas do Departamento de Odontologia, favorecendo o diálogo entre participantes e entrevistadora. Os dados foram coletados de agosto a novembro de 2008. Previamente ao início da entrevista, foram apresentados os objetivos do estudo e solicitado autorização para participação, mediante a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Após a autorização, iniciou-se a entrevista, a qual foi gravada com o auxílio de equipamento digital. Em observância à Resolução n. 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, sob o parecer n. 324/07.
A análise das informações foi fundamentada na técnica de análise temática, pertencente à análise de conteúdo.21 O material foi transcrito e analisado, tendo como etapas: leituras repetitivas visando à apreensão global do material; codificação buscando destacar as unidades de significado que emergiram das falas das entrevistadas, focalizando a apreensão da influência da escola na vida e nos cuidados com a saúde de crianças e adolescentes com FLP; organização e seleção dos códigos relacionados a vida escolar que resultaram na construção de duas categorias: enfrentando e superando o preconceito relacionado à má formação e a escola influenciando a saúde bucal da criança ou adolescente e o seu desenvolvimento.
RESULTADOS
Caracterização das mães
As mães estavam na faixa etária entre 25 e 55 anos, sendo pertencentes a famílias oriundas de diversas regiões do estado, apresentavam renda de dois a sete salários mínimos e, com relação à atenção à saúde, eram usuárias do Sistema Único de Saúde. A idade de seus filhos variava de cinco a 15 anos de idade, todos já haviam realizado as cirurgias primárias, queiloplastia e palatoplastia, e participavam do programa de acompanhamento da saúde bucal do SOP. Embora todas essas crianças e adolescentes estivessem incluídos no programa de acompanhamento, alguns desenvolveram as doenças cárie e periodontal, necessitando entrar novamente em rotina de atendimento odontológico para a realização de procedimentos curativos. Todos frequentavam instituição escolar ou pré-escolar.
Enfrentando e superando o preconceito relacionado à má formação
Embora o início das atividades escolares possa colaborar no desenvolvimento da criança e nos cuidados com a saúde, uma das primeiras situações vivenciadas diz respeito ao preconceito. O preconceito se expressa nas relações com as outras crianças que as discriminam de maneira agressiva ou mais discretamente, muitas vezes, aproximando-se pela curiosidade pela condição física diferente do outro. Esta situação gera, tanto as crianças com fissura quanto em suas mães, certa tristeza e desconforto. De modo geral, as mães entrevistadas já esperavam pelos possíveis questionamentos a respeito da anomalia advindos de crianças e de outras pessoas de convívio social. Demonstraram angústia diante das consequências e incertezas com relação ao futuro do filho.
Desde o início da vida escolar, as crianças com esta má formação congênita vivenciavam o preconceito devido à presença da fissura labiopalatal e seus comprometimentos em relação à aparência física. As implicações funcionais causadas pela má formação, em especial à função fonética, proporcionavam situações embaraçosas, já que a fala "anasalada" se tornava motivo de zombarias. As crianças geralmente não reagiam ou não contestavam a atitude dos colegas, apenas choravam como forma de expressar sua tristeza, conforme relatado por uma das participantes:
[...] na creche já diziam, já chamavam ela... sempre riam dela porque ela era meio fanhinha. No colégio, os meninos e meninas também mexem com ela: boca torta, boca aleijada... ela só chorava, chorava [...] (e 10).
As mães buscavam diferentes estratégias em defesa de seus filhos, com relação ao enfrentamento do preconceito. Tentavam em determinadas situações acalentar seus filhos, afirmando aos mesmos serem crianças como todas as outras, tentando não tratá-las com diferença em relação aos demais irmãos e membros da família. Outras, com o intuito de superar o desafio do preconceito presente no ambiente escolar, solicitavam ajuda de pessoas do convívio, numa tentativa de amenizar a tristeza presente na criança diante do comportamento dos colegas.
Começavam a falar que ele tinha a boca igual a um cavalo, que ele tinha a boca igual a um terneiro, e faziam caretas e imitavam a boca dele. Então ele chorava e ficava mais para baixo ainda... então foi falado com as professoras... e, um dia, minha filha foi até o ônibus falar com o motorista, e ele disse que quem falasse alguma coisa ele ia fazer descer do ônibus e ir a pé (e 5).
A chegada à adolescência pode ser considerada uma época de mudanças de comportamento, o que aliada com a presença de uma má formação labiopalatal, traz também o desejo de ser aceito e de superar o preconceito. A rebeldia na adolescência encontrava-se presente, contestando e contrariando valores repassados pelas mães para seus filhos. Um ponto destacado foi a necessidade de aceitação que seus filhos tinham, podendo até mesmo participar de grupos com comportamentos socialmente inaceitáveis.
Fui na bolsa dela e encontrei um pacote cheio de balas e chicletes [...]. Então eu fui olhar o lixeiro. Só porcaria naquela sacola de lixo. Ai, me deu um desespero, um aperto no coração que você não imagina, pois ela não tinha dinheiro para comprar essas coisas (e 11).
Para as mães, algumas dessas atitudes inadequadas dos filhos eram uma tentativa de conquistar um espaço entre os colegas, uma vez que tinham baixa autoestima e não sabiam como lidar com sua aparência diferente. Observou-se um interesse dessas mães em mudar essa situação e conseguir uma melhor aceitação social de seus filhos. O contato com professores e dirigentes das escolas era uma estratégia que usavam para avançar nesta conquista. Referiram encontrar, na maioria das vezes, apoio e compreensão.
A escola influenciando a saúde bucal da criança ou adolescente e o seu desenvolvimento
A escola pode representar uma forte influência no cuidado bucal das crianças e adolescentes com fissura labiopalatal. As entrevistadas evidenciavam duas formas da escola influenciar na saúde bucal e no desenvolvimento e socialização de seus filhos. Com relação a saúde bucal esta incluía a orientação da higiene bucal e o controle dos alimentos acessíveis na escola ou em suas proximidades. Quanto ao desenvolvimento e socialização, este estava atrelado ao apoio que recebiam, tanto relacionado à compreensão da situação específica da criança ou adolescente quanto ao encaminhamento para especialistas.
A instituição escolar, ao contar com a atuação do cirurgião-dentista e profissionais auxiliares na realização de atividades de cunho educativo-preventivo, atuava de maneira positiva em comportamentos e atitudes benéficos para manutenção de um adequado quadro de saúde bucal. As atividades preventivas eram realizadas com as crianças e adolescentes que frequentam as séries iniciais do ensino fundamental. As mães reconheciam a atuação positiva da equipe de saúde bucal nas instituições de ensino.
Por outro lado, algumas escolas, além de não contarem com a ação de equipes de saúde bucal, nem desenvolverem atividades de higiene bucal durante o período de permanência na instituição, apresentavam um agente negativo para a saúde, representado pelas cantinas, onde eram comercializados alimentos desfavoráveis para o desenvolvimento de doenças como a cárie dentária.
[...] se der dinheiro para ela, ela compra na escola. Por isso que a gente não dá mais, porque ela compra o que ela quer na escola. Compra bala, chicletes, essas coisas assim que prejudicam os dentes [...] (e 6).
A preocupação com a higiene bucal em crianças com fissura teve destaque para essas mães que vinham sendo orientadas de maneira especial desde o nascimento do filho. Elas esperavam que a escola fosse um apoio na efetuação dessa higiene, especialmente por reconhecerem a dificuldade envolvida nestes cuidados. Na maioria das vezes, as crianças e os adolescentes não gostavam de realizar os cuidados de higiene bucal, considerando como uma obrigação que não era comum a todas as crianças. As orientações realizadas na escola as ajudavam a perceberem que a higiene deveria ser realizada por todos.
Obter o apoio da escola no processo de socialização de seus filhos e nos cuidados com a reabilitação era uma preocupação constante para as mães. A escola era reconhecida por elas como uma das fontes de apoio que encontravam.
A longa jornada em busca da reabilitação exigia das mães e das crianças e adolescentes inúmeras consultas em variadas áreas, incluindo a odontologia. Somam-se às consultas de rotina, a realização de exames complementares, tais como radiografias e, ainda, havia os retornos referentes ao tratamento odontológico e à realização dos procedimentos cirúrgicos. Várias alterações na rotina escolar ocorriam ao longo deste período. Neste sentido, as mães referiam certa ansiedade acerca da compreensão da escola, representada pelos dirigentes e professores, devido ao tratamento que seus filhos precisavam realizar. O apoio e a colaboração dessas pessoas envolvidas com a criança no processo de ensino-aprendizagem eram considerados essenciais.
Todas as professoras foram boas. Ela fez a cirurgia do enxerto ósseo, que ela ficou trinta dias afastada e elas ajudaram bastante. Mandaram as coisas para ela fazer em casa, as provas, as matérias, facilitou bastante (e 8).
É importante enfatizar que o início da vida escolar pode realçar a presença de um problema funcional comum decorrente da fissura labiopalatal, ou seja, a dificuldade na comunicação. Tal fato trouxe um importante conflito para as mães e seus filhos, sendo este um foco de preocupação. O encaminhamento para a terapia fonética era outra forma de apoio recebido da escola e expressava um importante avanço na integração social dessas crianças e adolescentes.
A escola conseguiu, a diretora. Daí agora ele começou fazer fono, vai fazer fono para ver se ele se desenvolve mais, porque ele não quer falar com a professora [...]. Daí para ele se desenvolver mais, ela ia conseguir para ele fazer aulas de judô lá também (e 1).
Ocorreram, portanto, casos de atuação positiva da escola e pessoas envolvidas para o progresso da reabilitação e os cuidados necessários para o sucesso da mesma, conforme relatado pelas integrantes do estudo.
DISCUSSÃO
A vida escolar das crianças e adolescentes com fissura labiopalatal é considerada pelas mães como uma possibilidade de contribuir nos cuidados com a saúde bucal de seus filhos. O início escolar constitui um momento de grande importância de integração ao meio social para a criança e o adolescente com fissura labiopalatal e para as pessoas a sua volta, tendo conseqüências no planejamento e no desenvolvimento do tratamento.16 No entanto, o início da vida escolar traz um importante conflito para estas crianças. O preconceito é vivenciado em muitos casos, sendo fonte de preocupação para as mães. Mantiveram-se envolvidas com o intuito de vencer o constrangimento e o preconceito.
Por vezes, este preconceito faz a criança sentir-se envergonhada e inferiorizada e o suporte de pessoas importantes da família, na escola e na comunidade pode levar a um encorajamento, reforçando a autoconfiança e o bem-estar,20 tendo consequências benéficas na saúde. A observação do preconceito demonstra a importância de esclarecimentos sobre a fissura labiopalatal nas instituições escolares e comunidades, desmistificando estas pessoas e contribuindo para sua saúde e bem-estar.5
A necessidade de apoio da instituição escolar e pessoas envolvidas nas mesmas, tais como professores e diretores, vem sendo destacada em outros estudos, como forma para contribuir na reabilitação das crianças e adolescentes, uma vez que esta condição de saúde exige inúmeros afastamentos da escola, em virtude do comparecimento em consultas de diversas especialidades e na realização de exames complementares pertencentes ao longo processo reabilitador.5
O suporte social é destacado como um elemento de promoção da saúde para crianças.20 Este apoio se refere ao companheirismo e ao suporte prático, informacional e a estima derivada da interação entre indivíduos com sua rede social, que envolve amigos, conhecidos e familiares. Sendo assim, o suporte social, proporcionado pelas pessoas que integram os diferentes espaços dos quais as crianças participam, é fundamental na construção de sua saúde.
A não compreensão por parte de professores pode ser mais um fator gerador de estresse na vida da criança e de seus pais, sendo prejudicial ao bem-estar dos mesmos. Por outro lado, não somente a compreensão, mas também o desenvolvimento de práticas com intenção de auxiliar no desenvolvimento da criança também terão influência positiva na reabilitação e cuidados com a saúde.
A literatura evidencia a presença de vários fatores biológicos de risco para o desenvolvimento de doenças bucais, em especial a cárie e a doença periodontal em pacientes com fissura labiopalatal.12-14 Isto implica em alta prevalência destas doenças nestas pessoas.6-9 Portanto, outro aspecto positivo na vida escolar da criança com fissura labiopalatal diz respeito à participação em atividades preventivas coletivas relacionadas com a saúde bucal. A entrada da equipe de saúde bucal na Estratégia de Saúde da Família em muitas cidades levou ao desenvolvimento de atividades de promoção da saúde nas escolas, ressaltando a importância de atividades como o acolhimento e o trabalho interdisciplinar.23-24 Por outro lado, algumas instituições escolares ainda mantêm o acesso a alimentos desfavoráveis à saúde bucal das crianças, permitindo o comércio dos mesmos na própria escola ou em seus arredores. Vale destacar que, muitas vezes, esses hábitos já vêm de casa, iniciando muito precocemente com a oferta de sacarose em mamadeiras pelos pais, com intuito de que a criança atinja peso corpóreo para realização das cirurgias reparadoras de lábio e/ou palato.14 O paladar da criança, habituado com a sacarose, torna-se de difícil modificação, comprometendo a qualidade da dieta, que é fator de risco não apenas para a cárie dentária, mas também para outras alterações como o sobrepeso e a obesidade, cada vez mais comuns no universo infantil.7,24
Um destaque especial foi dado aos adolescentes, pois estes estão numa fase que por si só, já é permeada por conflitos e mudanças de comportamento. A presença da fissura labiopalatal pode promover sentimentos de inferioridade, que podem se agravar na adolescência, por ser um período com amplas e profundas mudanças psicossomáticas, levando-os a enfrentarem mais barreiras para atingir um desenvolvimento psicológico satisfatório.25 Estas barreiras, associadas com o desejo por um corpo perfeito, imagem, por vezes, imposta pela sociedade, acabam por influenciar na autoimagem e na autoestima. Diante da complexidade e das diversas emoções presentes nesta fase da vida, fica evidente a importância de que os profissionais envolvidos com a reabilitação e pessoas de sua convivência estejam dispostos a auxiliar crianças, adolescentes e familiares através de escuta e apoio, contribuindo para o enfrentamento de situações adversas tais como os episódios de preconceito e violência escolar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola traz à criança com FLP possibilidades de cuidados e inserção social, mas também pode trazer conflitos pelo preconceito gerado pela sua aparência física. Outro aspecto diz respeito à política de promoção da saúde que, quando presente, é um importante elemento para o cuidado em saúde. O apoio da comunidade escolar é essencial para que as crianças possam ter um desenvolvimento adequado e uma melhor aceitação de sua condição de saúde.
A importância da escola para a reabilitação e inserção social das crianças, mostra aos profissionais de saúde um espaço de atuação, que se utilizado adequadamente, poderá contribuir de forma efetiva no tratamento e reabilitação dessas crianças.
Também o papel da escola nesse processo se mostra como de grande relevância, podendo contribuir tanto para aumentar o preconceito, como de modo inverso contribuir para a inclusão social.
Neste sentido, as pessoas envolvidas na vida escolar podem atuar como uma parceria positiva para a promoção da saúde e para o sucesso da reabilitação e para o bem-estar da criança com fissura, o que irá também contribuir para sua qualidade de vida e integração na sociedade.
Na perspectiva da integralidade da atenção e com o intuito de promover saúde, o presente trabalho poderá contribuir na sensibilização do profissional de saúde, ampliando o conhecimento sobre os diferentes espaços de convivência que as pessoas com FLP cumprem em sua busca pelo viver saudável.
Recebido: 19 de Julho 2012
Aprovado: 14 de Agosto 2013
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
06 Fev 2014 -
Data do Fascículo
Dez 2013
Histórico
-
Recebido
19 Jul 2012 -
Aceito
14 Ago 2013