"Vivemos tempos sombrios..." dizia Bertold Brecht (1898-1956) em seu poema Aos que virão depois de nós . Um tempo intempestivo e perturbador que se transforma em desafio porque exige atenção e presença, como se viu nas ruas em junho de 2013 e nas recentes manifestações de março.
Este é um tempo que demarcou um coletivo que, atento aos movimentos mais "intempestivos", conseguiu antever o que estava em produção e, assim, colocou o desafio de organizar um evento completamente "colado" a esse tempo e, assim, trazer as "trevas", não se deixar "cegar pelas luzes" e conseguir "entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade", reflexões emprestadas do filósofo Agamben, em sua obra "O que é o contemporâneo" de 2009, quando ele indaga o que é o contemporâneo e o tempo.
A Associação Paulista de Saúde Pública, reafirmando a defesa da dignidade e do direito à saúde como compromisso permanente de todos, pautou, em seu 13º Congresso Paulista de Saúde Pública, debates sobre a produção do público no âmbito das sociedades contemporâneas e a produção do (bem) comum; e sobre o Sistema Único de Saúde (SUS) como um projeto ético-político em disputa, mas permeado por um conjunto de êxitos produzidos por sujeitos construtores de cidadania.
No congresso, trouxemos à discussão perspectivas teórico-conceituais distintas - das ciências humanas e sociais, do direito e da saúde e de Movimentos Sociais - que caracterizaram e demarcaram as falas e os debates. Para além das dicotomias estado-sociedade e público-privado, buscou-se ampliar o diálogo, problematizando a produção de um espaço público na relação entre usuários, profissionais da saúde, serviços, gestão, políticas setoriais no cotidiano da saúde.
A produção de sentidos, saberes, políticas e práticas que conformam o público e o comum na esfera da saúde foram os temas colocados como desafios a serem debatidos pelos convidados nas conferências e mesas. Eles reconheceram as dificuldades, os impedimentos e as restrições que se impõem à reinvenção do público e à construção do comum, entretanto, enfatizando as possibilidades e potências que o compromisso com a ética pública pode trazer à saúde pública e coletiva. Parte deste material - resumos das falas dos conferencistas e debatedores, e 700 resumos dos trabalhos apresentados no evento - foi reunido nos Anais do 13º Congresso Paulista de Saúde Pública O público na saúde pública - Produção do (bem) comum.1
E seguimos com a amplificação do debate. O tema se coloca atual a cada dia e incluir os movimentos sociais e escutar a voz do coletivo continuam sendo as atitudes necessárias para pensarmos, disputarmos e rearranjarmos a vida nas cidades. Neste suplemento, foram reunidos textos de alguns conferencistas e palestrantes que estiveram presentes no evento e outros convidados a engrossar o movimento.
Abre-se o convite à leitura com o ensaio de Áurea Maria Zöllner Ianni, cientista social, professora de Ciências Sociais em Saúde pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, que teve a incumbência de acompanhar o congresso na sua totalidade e alinhavar as principais questões tratadas no evento. Neste texto, faz importante contribuição ao debate sobre como a esfera da produção em saúde, denunciando que no bojo das relações capitalistas, que determinam a "mercadorização" da vida e da saúde da vida, produz-se constrangimento e interdição da atuação na esfera pública. O texto faz uma síntese do que foi o 13º Congresso e abre a discussão sobre uma das pautas a serem debatidas no 14º congresso, na Universidade Federal de São Carlos, SP, em setembro de 2015, cujo lema central é Saúde e Poder e sub tema "desmercantilizar o SUS!".
Peter Pál Pelbart, filósofo e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, em sua conferência de abertura, e em seu ensaio Políticas da vida, produção do comum e a vida em jogo, nos provoca: "O poder tomou de assalto a vida!" Traz a reflexão de que a vida, no contexto contemporâneo, teve corpos e afetos expropriados, medicalizados e sequestrados de toda sua potência. Pelbart nos indica que a filosofia de Foucault e Deleuze pode nos ajudar a pensar sobre as políticas da vida, a produção do comum e os modos de viver na contemporaneidade. Se, por um lado, a sociedade de controle nos tira qualquer tipo de respiro e os poderes operam por dentro colonizando o futuro, traz, em um segundo eixo, a ressignificação da própria dominação: biopotência, a potência da vida responde ao biopoder, o poder sobre a vida. O autor nos convida, ainda, a pensar a heterogeneidade da multidão e a crise do comum que se apresenta.
Ricardo Rodrigues Teixeira, professor do Departamento de Medicina Preventiva da USP, em sua conferência e em seu ensaio As dimensões da produção do comum e a saúde, traça para o campo da saúde a possibilidade de constituir novas potências de invenções na superação da produção do comum. Explora, em seu artigo, a saúde como valor-afeto e como resultado do trabalho. A naturalização da desapropriação dos recursos comuns que ocorre em nossos tempos neoliberais é mais do que privatização, é privação de direitos, onde tanto "o mercado quanto o Estado contribuem para os processos de cercamento". Tratando dos cenários multidimensionais da produção do comum, o autor nos coloca como desafio expandir a sensibilidade ao comum na saúde, avançando na luta pela saúde como direito, buscando o que mobiliza a todos nesse sentido. Aproxima-nos em vários momentos de Hardt e Antonio Negri, lembrando que a multidão que se expressa e se constitui no trabalho e nas lutas contemporâneas também se encontra num processo de aprendizado de autogoverno e de invenção de formas democráticas de organização social duradoura.
Emerson Elias Mehry, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em sua conferência e em seu ensaio Multidão: esfinge da saúde pública, lugar de inflexão, ideias do bem comum, nos provoca a pensar a multidão como uma esfinge que a saúde pública tem que desvelar. O fazer-se multidão põe em xeque as estratégias governamentais que apostam na categoria população como objeto do agir sanitário. De Negri nos traz também a multiplicidade da multidão: de um lado, há a variedade de redes de existências coletivas como um poder constituinte de um comum assentado em processo de diferenciação e, de outro lado, o da ordem capitalista, o comum como uma identidade, o "anormal" a ser normalizado. Reflete como a saúde pública tem se interrogado e construído possibilidades de se encontrar com os "coletivos que não abrem mão de cuidarem de si e de serem protagonistas de suas próprias existências, defendendo de modo radical que a diferença é riqueza na produção da vida coletiva e não substrato de desigualdade". Estamos diante de novas questões no campo da política: "anormal desejante é o capital e não as multidões"!
No 13º Congresso, na mesa que indagou Que crise é essa do Estado moderno?, contamos com a presença de Marcos Orione Gonçalves Correia, doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da USP, e Áquilas Nogueira Mendes, doutor em Ciências Econômicas, professor de Economia da Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP. Ambos partem da afirmação de que não se trata de uma crise do Estado, mas de uma profunda e extensa crise econômica, uma crise do capitalismo. Marcos Orione inicia seu texto indagando sobre a limitada visão de que a produção do bem comum é responsabilidade do Estado. Em seu texto revisita os textos de Marx e nos convida a pensar a análise da produção do bem comum a partir do entendimento de que, segundo ele, o "Estado é, na sua mais acabada estruturação, forma típica do capitalismo" e suas correspondentes políticas públicas são, como tal, respostas aos interesses da acumulação do capital. Tratando da saúde pública brasileira no contexto da crise estrutural do capitalismo, Áquilas Mendes analisa a natureza desta crise, caracterizada pela queda tendencial da taxa de lucro e a dominância do capital portador de juros a partir das últimas décadas do século XX e os impactos na apropriação do capital sobre os recursos das políticas sociais de direito, em especial no direito universal da saúde no Brasil.
Célia Maria Sivalli Campos e Cássia Baldini Soares, enfermeiras, professoras na Escola de Enfermagem da USP, e Nildo Viana, cientista social, professor na Universidade Federal de Goiás, tomam o Sistema Único de Saúde brasileiro como objeto de seu artigo, discutindo como ele foi se constituindo, desde seu nascimento, no bojo do capitalismo neoliberal. Também colocam em foco a organização da Atenção Básica pelo Programa Saúde da Família. Finalizam o ensaio destacando os caminhos de resistência e luta que estão sendo criados a partir da produção de práticas emancipatórias, como a organização dos trabalhadores, os movimentos sociais e as instituições sociais públicas.
Eduardo Passos, psicólogo, professor do Departamento de Psicologia na Universidade Federal Fluminense e Yara M. Carvalho, formada em Educação Física, professora do Departamento de Pedagogia do Movimento Humano na Universidade de São Paulo, recortam o tema da formação em saúde a partir de um campo problemático que tem o sujeito do movimento constituinte do SUS como questão central. Como se forma o sujeito deste movimento? Como pensar a formação como prática social que produz relações e cuidado, associando clínica e gestão? O que se produz nas relações que convoca para diferentes formas de contração de coletivo e de criação de zonas de comunalidade? Túlio Batista Franco, psicólogo, professor do Departamento de Psicologia na Universidade Federal Fluminense, aborda o processo de subjetivação no processo de trabalho e cuidado. Sua referência teórico-conceitual é Bento de Espinosa. A partir de sua obra, elabora a ideia de que o trabalhador opera na liberdade se conseguir controlar as afecções e suas capturas; se agir capturado pelas linhas capitalísticas, da moral ou da ciência, age na servidão. E instiga pensarmos como se dá essa variação no cotidiano do trabalho em saúde.
Boa leitura pelo bem comum!
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Apr-Jun 2015