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Crises contemporâneas: retrocessos sociais, políticas de saúde e desafios democráticos

Resumo

No contexto da globalização, é recorrente a menção às crises contemporâneas da democracia, da ciência, econômico-sociais, sanitárias e ambientais. No Brasil, essas crises se agravam em função da estrutura histórico-social que carrega profundos problemas não resolvidos, bem como em função de governos que têm desgastado as instituições nacionais que foram arduamente reconstruídas no processo de redemocratização do país. Neste editorial, refletimos sobre o contexto de crise nacional experimentado no Brasil nos últimos anos, situando retrocessos sociais resultantes de políticas neoliberais e conservadoras levadas à cabo pelos últimos dois mandatários do governo federal, e posicionando alguns desafios a serem enfrentados pelo país, a partir de um movimento de retomada da democracia.

Palavras-chave:
Brasil; Globalização; Pandemia; Democracia; Políticas Públicas

Abstract

In the context of globalization, mentioning contemporary democracy, science, social-economic, sanitary, and environmental crises is recurrent. In Brazil, these crises have worsened due to historical-cultural structures that carry deep unresolved problems and due to governments that have worn down the national institutions that were reconstructed with hard work during its re-democratization process. In this editorial, we reflect on the national crisis context experienced in Brazil in the last years, situating social regressions resulting from neoliberal and conservative policies carried out by the last two heads of the federal government and placing some challenges to be faced by the country beginning by a movement to retrieve democracy.

Keywords:
Brazil; Globalization; Pandemic; Democracy; Public Policies

Nota introdutória

O mundo contemporâneo assiste a mudanças conjunturais e estruturais profundas e significativas, que produzem avanços, mas também crises, emergências e contradições. Esse processo multifacetado, que caracteriza um dos aspectos da globalização, tem como marca o advento científico e tecnológico, mas também as mudanças climáticas, os conflitos geopolíticos e o aprofundamento das desigualdades sociais (Ramalho, 2012RAMALHO, N. A. Processos de globalização e problemas emergentes: implicações para o Serviço Social contemporâneo. Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 110, p. 345-368, 2012. DOI: 10.1590/S0101-66282012000200007
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).

O discurso da globalização tem dois sentidos: simbólico, aludido a uma suposta homogeneização do planeta na busca por uma cidadania universal; e prescritivo, “representado pelas políticas neoliberais muito concretas, implementadas por agentes e instituições gestoras do capitalismo dominante” (Castro, 2008CASTRO, R. P. Globalização. In: PEREIRA, I. B.; LIMA, J. C. F. (Org.). Dicionário da educação profissional em saúde. 2. ed. Rio de Janeiro: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, 2008. p. 236-241., p. 237). Busca-se, com o primeiro sentido, mascarar o segundo, cuja real intencionalidade é fortalecer uma ideologia econômica fabricante de perversidades (Santos, 2001SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.).

Nesse contexto globalizante, é recorrente a menção às crises contemporâneas da democracia, da ciência, econômico-sociais, sanitárias e ambientais. No Brasil, especificamente, essas crises se agravam em função da estrutura histórico-social do país, que carrega profundos problemas não resolvidos, bem como em função de governos que têm desgastado as instituições nacionais arduamente reconstruídas no processo de redemocratização do país. Nesses cenários, as condições sociais e as situações de saúde se agravam intrinsecamente às contingências e rupturas que se sobrepõem.

Neste breve editorial, buscamos refletir sobre o contexto de crise nacional experimentado no Brasil nos últimos anos, situando retrocessos sociais resultantes de políticas neoliberais1 1 Compreendemos o neoliberalismo não apenas como uma política econômica que defende a liberdade absoluta de mercado, cuja lógica se propõe a aprofundar o modelo capitalista. O neoliberalismo é também uma prática política que busca estabelecer a lógica de mercado como norma generalizada, governando desde o Estado, que teria por função estabelecer continuamente condições de concorrência que preservem a racionalidade mercantil, até o mais íntimo da subjetividade humana, adaptando-a para o modelo econômico (Dardot; Laval, 2016). e conservadoras, levadas à cabo pelos últimos dois mandatários do Governo Federal, assim como posicionando alguns desafios a serem enfrentados pelo país a partir de um movimento de retomada da democracia. Além disso, apresentamos os artigos deste número da Saúde e Sociedade, muitos dos quais assumem como objeto de reflexão o recuo de políticas públicas de saúde e a crise sanitária protagonizada pela covid-19, parte deles organizado no dossiê Epidemias, pandemias e desigualdades sociais.

Brasil do golpe: 20 anos de retrocessos em dois2 2 Em alusão ao slogan ambíguo ‘O Brasil voltou, 20 anos em 2’ adotado por Michel Temer para comemorar os seus dois anos ocupando o cargo de presidente da República. Veja mais em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/planalto-desiste-de-slogan-o-brasil-voltou-20-anos-em-2-apos-interpretacao-ambigua.shtml>

Desde o golpe de 20163 3 Processo antidemocrático que culminou na destituição ilegítima da Presidente Dilma Rousseff mediante processo de impeachment com base legal duvidosa, e ascensão de Michel Temer, então vice-presidente, ao cargo de Presidente da República. , testemunhamos a ascensão de forças conservadoras que atuam na contramão dos interesses sociais e coletivos. Avançaram legislações e normas prejudiciais aos sistemas de saúde, educação e seguridade social. Os orçamentos de políticas importantes para a sociedade foram minorados, ao passo que o endividamento público, a pobreza e a fome cresceram. Como consequência, as desigualdades sociais se aprofundaram e os índices de violência aumentaram dramaticamente (Grupo de Trabalho da Sociedade Civil para Agenda 2030, 2018GRUPO DE TRABALHO DA SOCIEDADE CIVIL PARA AGENDA 2030. Relatório Luz da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável. Brasília, DF: GTSC; 2018.).

Especificamente no governo Temer, em atendimento às diretrizes da agenda neoliberal, foram aprovadas medidas austeras com suposta pretensão de solucionar o problema da deterioração das contas públicas, a exemplo da Reforma Trabalhista e da Lei de Terceirização (Brasil, 2017BRASIL. Lei n° 13.429, de 31 de março de 2017. Altera dispositivos da Lei n o 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros. Brasília, DF: Presidência da República, 2017.), que ferem princípios constitucionais e revelam retrocessos sociais seculares (Souza; Soares, 2019SOUZA, G.; SOARES, M. G. M. Contrarreformas e recuo civilizatório: um breve balanço do governo Temer. Ser Social, Brasília, DF, v. 21, n. 44, p. 11-28, 2019. DOI: 10.26512/ser_social.v21i44.23478
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). A primeira alterou diversos pontos da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) referentes aos direitos dos trabalhadores e deveres dos empregadores, tornando as relações de trabalho mais flexíveis, com consequências acentuadas na precarização da força de trabalho. A Lei de Terceirização, por sua vez, passa a autorizar o uso da contratação de terceiros para o desenvolvimento de atividades finalísticas da empresa, prática até então vedada pela legislação.

Neste governo, políticas sociais importantes foram desmontadas ou restringidas, a exemplo do Ciência sem Fronteiras, Bolsa Família, Programa de Aquisição de Alimentos, Farmácia Popular e Minha Casa, Minha Vida (Souza; Soares, 2019SOUZA, G.; SOARES, M. G. M. Contrarreformas e recuo civilizatório: um breve balanço do governo Temer. Ser Social, Brasília, DF, v. 21, n. 44, p. 11-28, 2019. DOI: 10.26512/ser_social.v21i44.23478
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). Entre as medidas mais radicais (e a primeira delas), a Emenda Constitucional 95/2016 (Brasil, 2016BRASIL. Emenda Constitucional nº 95, de 15 de dezembro de 2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2016. ), conhecida como EC da morte, determinou o congelamento dos gastos públicos por 20 anos, sendo abrangente em seus danos à sociedade, particularmente aos mais pobres e vulneráveis, uma vez que impossibilita o cumprimento das obrigações constitucionais do Estado (Roznai; Kreuz, 2018ROZNAI, Y.; KREUZ, L. R. C. Conventionality control and Amendment 95/2016: a Brazilian case of unconstitutional constitutional amendment. Revista de Investigações Constitucionais, Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, v. 5, n. 2, p. 35-56, 2018. DOI: 10.5380/rinc.v5i2.57577
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).

A política de saúde no governo Temer foi marcada pela já mencionada EC da morte, que pode privar o Sistema Único de Saúde (SUS) de receber R$ 1 trilhão até 2036, levando-o a uma crise de financiamento sem precedentes (Vieira; Benevides, 2016VIEIRA, F. F.; BENEVIDES, R. P. S. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do sistema único de saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Nota técnica nº 28. Brasília, DF: Ipea, 2016.); e por um rompimento do governo com as pautas e entidades do movimento sanitário. Esse rompimento se fez visto, por exemplo, no processo de revisão da Política Nacional de Atenção Básica, que dissolve a centralidade da Estratégia Saúde da Família (ESF) na organização do SUS e instiga a proposição de novos arranjos assistenciais que não contemplem equipes multiprofissionais (Morosini; Fonseca; Lima, 2018MOROSINI, M. V. G. C.; FONSECA, A. F.; LIMA, L. D. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 42, n. 116, p. 11-24, 2018. DOI: 10.1590/0103-1104201811601
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).

O rompimento também foi perceptível nas propostas de retrocessos em políticas públicas duramente conquistadas ao longo de décadas, como é o caso da Política Nacional de Saúde Mental, em cujo âmbito novas diretrizes foram estabelecidas para o funcionamento, financiamento e orientação clínica da Rede de Atenção Psicossocial, com direcionamentos “para um cuidado de característica hospitalar/asilar, em contraposição aos serviços de base comunitária” (Cruz; Gonçalves; Delgado, 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00285117, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00285
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, p. 6).

Essas ações de desmobilização do SUS e de seu caráter universal e gratuito se somaram à proposta de criação de planos de saúde ‘populares e acessíveis’, em uma clara tentativa de estabelecer mecanismos de ampliação da participação privada no setor saúde e responsabilizar a população pela fiscalização dos serviços que contratar. Expressa-se, com isso, uma visão de que a “saúde deixa de ser direito social para se constituir objetivamente em mercadoria” (Reis et al., 2016REIS, A. A. C. et al. Tudo a temer: financiamento, relação público e privado e o futuro do SUS. Saúde em Debate , Rio de Janeiro, v. 40, n. esp., p. 122-135, 2016. DOI: 10.1590/0103-11042016S11
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, p. 129).

Brasil sob Bolsonaro: pandemia e desmonte das políticas públicas

O governo Bolsonaro aprofundou a “herança” do governo antecessor. Foram quatro anos de retrocessos econômicos, sociais e ambientais sem precedentes, durante os quais ganharam força as iniciativas ultraliberais, as teorias anticiência e os movimentos baseados em fundamentalismo religioso. Na área ambiental, por exemplo, assistiu-se à expansão do desmatamento, dos incêndios florestais e do garimpo ilegal; ao aumento da violência contra os povos originários; e ao recorde de aprovação de pesticidas (Brzezinski, 2021BRZEZINSKI, M. L. N. Desmonte do patrimônio ambiental do Brasil: uma política pública do presidente Bolsonaro. In: NICOLÁS, M. A.; GAITÁN, F. (Org.). Desmonte do Estado e retração da cidadania: pensando alternativas de proteção social. Rio de Janeiro: INCT-PPED, 2021. p. 96-151.). Os programas sociais, que já haviam sido duramente atingidos pelo corte de recursos promovido pelo governo Temer, sofreram ainda mais com o descaso e corte orçamentário. As políticas direcionadas à habitação, direitos da cidadania, direitos dos povos indígenas e de promoção da igualdade e enfrentamento à violência de gênero foram os mais afetados (Zigoni et al., 2019ZIGONI, C.; et al. Contingenciamento: quais setores sofreram cortes de orçamento? Brasília: Inesc, 2019. Disponível em: <Disponível em: https://www.inesc.org.br/contingenciamento-quais-setores-sofreram-cortes-de-orcamento/ >.Acesso em: 22 mar. 2023.
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).

A educação foi marcada pela adoção de uma política ideológica, com censura e perseguição a funcionários, professores e estudantes; militarização das escolas; redução da autonomia universitária, com a nomeação de reitores e interventores não eleitos pela comunidade; e cortes expressivos de recursos dos institutos e universidades (Chaves, 2022CHAVES, V. L. J. A ofensiva neoconservadora contra as universidades federais no Brasil. Revista Internacional de Educação Superior, Campinas, v. 8, e022045, 2022. DOI: 10.20396/riesup.v8i00.8669158
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). Na saúde, as diferentes políticas públicas foram alvo de ataques e rearranjos. Encerrado em 2019, o Programa Mais Médicos (PMM), por exemplo, começou a ser desmontado ainda antes da posse de Bolsonaro. Ao questionar a formação dos médicos cubanos e, sob ameaça, impor condições arbitrárias para a continuidade da atuação destes profissionais no Brasil, Bolsonaro levou o governo de Cuba a encerrar a sua participação no programa e a ordenar o retorno imediato do seu efetivo médico (Dias; Lima; Lobo, 2021DIAS, H. S.; LIMA, L. D.; LOBO, M. S. C. Do ‘Mais Médicos’ à pandemia de Covid-19: duplo negacionismo na atuação da corporação médica brasileira. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 45, n. spe2, p. 92-106, 2021. DOI: 10.1590/0103-11042021E207
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). Os prejuízos para as áreas historicamente desassistidas pela escassez de profissionais de saúde, os chamados municípios rurais remotos4 4 Saiba mais sobre os municípios rurais remotos no artigo ‘Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos brasileiros: contexto, organização e acesso a atenção integral no Sistema Único de Saúde’, publicado nesta edição da Saúde e Sociedade. , começaram a ser percebidos de imediato: houve aumento do número de mortes evitáveis de crianças. Cabe lembrar que o PMM chegou a reunir mais de 18 mil médicos, garantindo atendimento a 63 milhões de pessoas. Em 19% dos municípios brasileiros, o PMM era responsável por 100% da atenção primária (Nascimento, 2022NASCIMENTO, S. Uma visão da imprensa sobre o desmonte do Mais Médicos. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 46, n. 1, p. 216-221, 2022. DOI: 10.22278/2318-2660.2022.v46.n1.a3575
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).

A Política Nacional Sobre Drogas foi completamente desvirtuada do referencial técnico e ético da Reforma Psiquiátrica Brasileira. Ao invés de liberdade, territorialização e redução de danos, a nova política deu lugar ao controle, ao aprisionamento e à abstinência compulsória como preceitos de orientação ao tratamento da dependência (Cruz; Gonçalves; Delgado, 2020CRUZ, N. F. O.; GONÇALVES, R. W.; DELGADO, P. G. G. Retrocesso da reforma psiquiátrica: o desmonte da política nacional de saúde mental brasileira de 2016 a 2019. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, e00285117, 2020. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00285
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). Considerados modelos mundiais, o programa de HIV/Aids e o Programa Nacional de Imunizações foram desarticulados. Como efeito, assistiu-se a um aumento nas taxas de detecção de novos casos de aids nas regiões Norte e Nordeste, e aos piores índices de cobertura vacinal registrados nas últimas décadas. Inclusive, com o ressurgimento do sarampo, o Brasil perdeu o certificado de território livre do sarampo, que havia ganhado da Organização Pan-Americana da Saúde em 2016 (Westin, 2022WESTIN, R. Vacinação infantil despenca no país e epidemias graves ameaçam voltar. Agência Senado, Brasília, DF: 2022. Notícias. Disponível em: <Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/05/vacinacao-infantil-despenca-no-pais-e-epidemias-graves-ameacam-voltar >. Acesso em: 23 mar. 2023.
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).

Outra medida de grande repercussão do governo Bolsonaro foi o afrouxamento das regras de acesso ao porte e à compra de armas de fogo e munições pela população civil, contrariando as evidências sobre os benefícios das políticas de desarmamento (Cerqueira, 2021CERQUEIRA, D. (Org.). Atlas da Violência: 2021. São Paulo: Ipea, 2021.). Em associação, o governo passou a defender uma espécie de política de ‘tolerância zero’5 5 Expressão utilizada para designar a política criada em Nova York (EUA) na década de 1980, que considerava que os pequenos delitos deveriam ser punidos rigorosamente no sentido de se evitar a progressão da delinquência para crimes graves (Wendel; Curtis, 2002). de cunho conservador, moralista, racista e discriminatório, com foco na criminalização das classes subalternas, da pobreza e dos movimentos sociais (Silva, 2022SILVA, H. D. As violações dos direitos humanos no governo Bolsonaro (2019 - 2022): a reatualização da política de segurança pública de tolerância zero no Brasil. 2022. 78f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Serviço Social) - Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2022.).

Mais ainda, em violação aos princípios democráticos, o Governo Bolsonaro desidratou os conselhos gestores de políticas públicas integrantes da administração pública federal, no sentido de extinguir a participação da sociedade civil no processo de tomada de decisões e de fiscalização da atuação governamental (Quadros; Mussoi, 2022QUADROS, D. G.; MUSSOI, H. G. Erosão democrática e legalismo autocrático: o caso dos conselhos gestores no governo Bolsonaro. Revista Estudos Institucionais, Rio de Janeiro, v. 8, n. 3, p. 582-606, 2022. DOI: 10.21783/rei.v8i3.680
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). Participação social6 6 Os artigos “Participação social e atenção primária em saúde no Brasil: uma revisão de escopo”, “Instrumentos de gestão na pauta do Conselho de Saúde” e “Governança da Saúde Pública: conflitos e desafios para uma gestão compartilhada na fronteira Brasil-Bolívia” abordam essa temática, destacando a importância, os instrumentos e o desafios da gestão democrática e compartilhada. é democracia e busca, a partir do debate, de disputas e de pactuações, promover inovações institucionais que consolidem a democracia. Nesse sentido, “a destruição da participação social coloca em xeque a democracia e a consequente destruição dos princípios republicanos que norteiam - ou deveriam nortear - o Estado Brasileiro” (Koupak et al., 2021KOUPAK, K. et al. Democracia e participação em xeque no governo Bolsonaro. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais, Vitória, v. 9, n. 1, p. 45-67, 2021. DOI: 10.47456/cadecs.v9i1.37153
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, p. 55).

As crises política, social, econômica e ambiental brasileira somaram-se à pandemia de covid-197 7 A disseminação da coronavirus disease 2019 (covid-19) pelo mundo foi declarada Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 30 de janeiro de 2020, e caracterizada como pandemia em 11 de março de 2020. A doença é provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Veja mais sobre o histórico da doença em: <https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19> , que se espalhou rapidamente por todo o globo, afetando todos os setores da sociedade, criando desafios socioeconômicos chocantes, exigindo a adoção de amplas estratégias sociais8 8 Ver mais nos artigos ‘Os efeitos socioeconômicos da covid-19’ e ‘Trabajar en salud durante la pandemia’, publicados nesta edição de Saúde e Sociedade. , bem como a adaptação e ressignificação dos serviços e dos processos de trabalho em saúde9 9 O artigo ‘Como ser psicólogo hospitalar na pandemia covid-19 no Brasil?’, publicado nesta edição, discute o tema. . No Brasil, a pandemia expôs de forma cruel os desafios de um país marcado por imensas disparidades. A tensão gerada pelo iminente colapso dos serviços de saúde pública foi acirrada por uma crise política nefasta. O governo Bolsonaro, com sua postura negacionista, negligenciou as suas responsabilidades e se mostrou incapaz de coordenar esforços para o enfrentamento da doença e dos seus efeitos (Ortega; Orsini, 2020ORTEGA, F.; ORSINI, M. Governing COVID-19 without government in Brazil: Ignorance, neoliberal authoritarianism, and the collapse of public health leadership. Global Public Health, New York, v. 15, n. 9, p. 1257-1277, 2020. DOI: 10.1080/17441692.2020.1795223
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). Neste cenário, a taxa de desemprego atingiu o seu pico histórico em 2021 (14,9%) (IBGE, 2023IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua: 4º trimestre de 2022. Rio de Janeiro, 2023.) e a insegurança alimentar e a fome no Brasil retornaram aos patamares do início da década de 2000. Em 2018, eram 10,3 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave (fome), passando para 19,1 milhões, em 2020, e para 33,1 milhões, em 202210 10 Além das 33,1 milhões de pessoas que passavam fome em 2022, outras 92 milhões estavam em insegurança alimentar leve ou moderada (Rede Penssan, 2022). (Rede Penssan, 2022REDE PENSSAN - REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil: II VIGISAN: relatório final. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022.).

Além de deslegitimar as contribuições da Ciência e da Saúde Pública, em meio ao agravamento da pandemia de covid-19, Bolsonaro instaurou um projeto de desmonte dos princípios doutrinários e organizativos do SUS, assegurado pela redução de recursos à saúde e pela implementação de um novo processo de financiamento da Atenção Básica11 11 O artigo ‘Incentivos financeiros para mudança de modelo na atenção básica dos municípios paulistas’, publicado nesta edição da Saúde e Sociedade, discute a relevância do modelo de financiamento adotado até 2017, quando da revisão da Política Nacional de Atenção Básica; já o artigo ‘Continuum desmonte da saúde pública na crise do Covid-19: o neofascismo de Bolsonaro’ centra a sua análise no novo modelo de financiamento instaurado a partir do Programa Previne Brasil. , burocrático, perverso e dificultoso (Mendes; Melo; Carnut, 2022MENDES, A.; MELO, M. A.; CARNUT, L. Análise crítica sobre a implantação do novo modelo de alocação dos recursos federais para atenção primária à saúde: operacionalismo e improvisos. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 38, n. 2, e00164621, 2022. DOI: 10.1590/0102-311X00164621
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). Ainda nessa esteira, encerrou o Programa de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)12 12 Leia mais sobre o tema no artigo ‘O fim da cooperação governo-academia no Programa de Melhorias e da Qualidade da atenção Básica do Sistema Único de Saúde’ publicado nesta edição. , cujo objetivo principal era promover a ampliação do acesso e qualidade da Atenção Básica, garantindo padrão de qualidade comparável e permitindo maior transparência e efetividade das ações governamentais direcionadas a esse nível de atenção (Brasil, 2012BRASIL. Manual instrutivo do Pmaq para as equipes de Atenção Básica (Saúde da Família, Saúde Bucal e Equipes Parametrizadas) e Nasf. 2. ed. Brasília, DF, 2012.).

A análise das mais de 3 mil normas jurídicas editadas no âmbito da União em 2020 comprovou que Bolsonaro negou a doença, desacreditou da vacina e obstruiu as respostas locais de enfrentamento à pandemia como parte de uma estratégia institucional de propagação do vírus (Assano et al., 2020ASSANO, C. L. et al. (Ed.). Boletim Direitos na Pandemia, n. 10: mapeamento e análise das normas jurídicas de resposta à covid-19 no Brasil. São Paulo: Cepedisa: Conectas, 2021.). Após quatro anos de propaganda negacionista, fake news e atraso na compra e distribuição de vacinas, 694 mil pessoas morreram de covid-19. Três de cada quatro dessas mortes teriam sido evitadas caso o governo federal tivesse empreendido esforços na testagem em massa; estímulo ao uso de máscaras, distanciamento social e isolamento de casos; promoção de medidas terapêuticas eficazes; estímulo à vacinação; e compra oportuna de vacinas (Associação Brasileira de Saúde Coletiva, 2022ABRASCO - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE SAÚDE COLETIVA. Dossiê Abrasco: pandemia de COVID-19. Rio de Janeiro, 2022.).

As ações de Bolsonaro escancararam a sua política da morte, buscando ditar quem poderia viver e quem deveria morrer. Para esse propósito, a pandemia foi útil e oportuna. Recorrendo à noção de necropolítica proposta por Mbembe (2016MBEMBE, A. Necropolítica. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, n. 32, p. 123-151, 2016. , p. 146), pode-se dizer que Bolsonaro adotou uma forma contemporânea de subjugar a vida ao poder da morte e pela qual “vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de ‘mortos-vivos’”.

Epidemias, pandemias e desigualdades sociais

A necropolítica não é particular do governo Bolsonaro. Trata-se de um reflexo - ou mesmo desejo - do percurso político e socioeconômico trilhado pela globalização, cujo processo revela-se bem distante da sua pretensa aproximação dos povos e de acesso mais igualitário aos benefícios do desenvolvimento científico e tecnológico. Ao contrário, se impõe como uma produtora de perversidades, que elimina a compaixão e instiga a competição e as disparidades entre países e entre indivíduos, elevando os níveis de pobreza de um conjunto majoritário de nações e de populações (Santos, 2001SANTOS, M. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 6. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.).

Nesse cenário, crises sanitárias, como epidemias e pandemias, produzem mais riscos e mortes em territórios e em pessoas socialmente menos favorecidas, dizimando parcelas significativas da população. Nesse sentido, concordamos com as autoras do artigo ‘Muro, segregação e semeaduras: recultivando uma investigação da vida em um território de invis(c)ivilizações’, publicado no dossiê temático desta edição, para as quais “há uma estrutura de valoração de vidas que importam mais e vidas que importam menos”.

Vale lembrar que as desigualdades sociais e os demais impactos decorrentes de contextos de crises sanitárias são produzidos durante o curso desses fenômenos, mas também nos anos e décadas subsequentes, como bem nos ensina o artigo ‘Tudo pela hora da morte! História, epidemias e desigualdades’, publicado no dossiê. A partir de uma análise historiográfica sobre a gripe espanhola, as autoras do estudo concluem que o fenômeno epidêmico, após arrefecer na dimensão biológica, segue “alterando condicionantes sociais e culturais e incidindo sobre estruturas sócio-históricas e em nossa corporeidade, tornando-se acontecimento histórico de longa duração”.

E que lições temos aprendido com essas crises de tamanha proporção? Estamos nós, cientistas, com os nossos estudos e pesquisas, conseguindo produzir respostas que permitam o enfrentamento dos problemas contemporâneos da sociedade? O artigo ‘Legado da epidemia de Zika vírus: o impacto da associação causal para além da ciência de laboratório’, também publicado no dossiê, nos alerta para o fato de que a ciência, muitas vezes, se concentra e se restringe em responder perguntas focais e de caráter biológico, desconsiderando a multicausalidade dos processos saúde-doença e as necessidades sociais.

A revista Saúde e Sociedade, em sua linha editorial, vem abrindo espaço para a publicação de estudos que ajudem a compreender os fenômenos sociais contemporâneos e a enfrentar as problemáticas resultantes da realidade concreta, à luz da interdisciplinaridade e da integração das diferentes ciências, como é o caso do dossiê temático publicado nesta edição, que discute questões que cercam e que foram agravadas por episódios epidêmicos e pandêmicos. Sob o título Epidemias, pandemias e desigualdades sociais, o dossiê foi produzido com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e composto por artigos produzidos por pós-graduandos e egressos do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.

Além das produções já mencionadas, o dossiê também abriga os artigos: ‘Lei do acompanhante na mídia: a pandemia e suas implicações nos direitos do parto’, que busca compreender as abordagens, os atores envolvidos e as argumentações sobre o descumprimento da lei de acompanhante durante a pandemia da covid-19; ‘A covid-19 como uma crise multifacetada e suas implicações sobre o tráfico de pessoas ou outras formas de exploração humana’, ensaio que reflete sobre os efeitos da pandemia na dinâmica do tráfico de pessoas, da exploração sexual, dos abusos laborais e no atendimento recebido pelas vítimas; ‘A gente é invisível pra sociedade: impactos das condições de trabalho na saúde e qualidade de vida de entregadores de comida na pandemia de covid-19’, que joga luz sobre a ‘uberização’ como forma de trabalho; e, por fim, ‘Ambiente, saúde e covid-19: da crise global à existência sustentável’, ensaio analítico sobre os impactos sociossanitários exercidos pelo meio ambiente e evidenciados nas repercussões da pandemia de covid-19.

Desafios urgentes e democráticos: união e reconstrução13 13 Alusão ao slogan do novo Governo Lula, iniciado em 2023. Ver mais em: <https://www.gov.br/mma/pt-br/governo-federal-lanca-manual-da-sua-nova-marca-brasil-uniao-e-reconstrucao>

É hora de resgatar a esperança! O desejo popular expresso pelo resultado das urnas elegeu um projeto de reconstrução e transformação nacional. Nosso horizonte é a criação de um país justo, inclusivo, sustentável, criativo, democrático e soberano para todos os brasileiros e brasileiras. Trata-se de um grande desafio e uma obra de muitos14 14 Extraído do relatório final produzido pelo Gabinete de Transição Governamental do atual governo federal presidido por Luís Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, publicado em 2022 e disponível em: <https://gabinetedatransicao.com.br/noticias/relatorio-final-do-gabinete-de-transicao-governamental/> .

É com esse trecho que o relatório final da Comissão de Transição Governamental do governo recém-eleito é iniciado. Lula, que assume pela terceira vez a Presidência da República, iniciou um novo mandato que se anunciou imediatamente desafiador e complexo, com a invasão dos prédios dos três Poderes15 15 Em 08 de janeiro de 2023, manifestantes antidemocráticos, apoiadores de Jair Bolsonaro, invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal para protestar contra a eleição de Lula. Tratou-se de um episódio amplamente noticiado em âmbito nacional e internacional, como pode ser visto na reportagem da BBC News Brasil, disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64208685> . Com o Brasil imerso em uma grave crise econômica que afeta fortemente a população mais vulnerável socioeconomicamente, o novo governo enfrentará desafios difíceis, que englobam o reestabelecimento de princípios democráticos, a recuperação da credibilidade das instituições públicas e a redução das desigualdades sociais. Medidas de combate à fome, de desmilitarização do Estado e de revisão e revogação de normativas arbitrárias produzidas no Governo Bolsonaro podem ser consideradas essenciais no processo de reconstrução do país.

A participação social precisa ser resgatada enquanto mecanismo de transparência, de fortalecimento do Estado democrático e de promoção do diálogo intersetorial tão necessário e urgente para o desenho, implementação e avaliação de políticas públicas plurais e solidárias. No atual cenário de desemprego, extrema pobreza e fome, políticas públicas como o Programa Nacional de Alimentação Escolar, Bolsa Família e Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar precisam ser urgentemente resgatadas e renovadas.

Face à crise climática e ao avanço do desmatamento, será preciso estabelecer estratégias de recuperação das florestas, fauna e flora, assim como modelos de desenvolvimento sustentável que não esgotem os recursos naturais para o futuro. Nesse sentido, o Brasil precisa retomar as ações voltadas para a consecução dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)16 16 São 17 os ODS, que foram construídos sobre o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Os ODS são integrados, indivisíveis e equilibram três dimensões do desenvolvimento sustentável: econômica, social e ambiental. Mais informações podem ser obtidas no link <https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustent%C3%A1vel> , entre os quais estão a tomada de medidas urgentes para combater a mudança climática e seus impactos; a garantia do acesso à educação inclusiva, equitativa e de qualidade; o alcance da igualdade de gênero; e a redução das desigualdades produzidas em função da idade, gênero, raça/etnia, origem, religião, deficiência, condição socioeconômica e outras.

Será preciso enfrentar, ainda, não apenas a deterioração do mercado de trabalho - caracterizada pela alta taxa de desemprego e trabalho informal, grande número de desalentados e subocupados17 17 O IBGE considera desalentados aqueles que gostariam de trabalhar e estariam disponíveis para assumir um trabalho, mas não procuraram trabalho por acharem que não encontrariam. Os subocupados são trabalhadores que têm jornada de trabalho inferior a 40 horas semanais, mas gostariam e estão disponíveis para trabalhar mais horas. Saiba mais em: <https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php> (IBGE, 2023IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua: 4º trimestre de 2022. Rio de Janeiro, 2023.) -, mas também os retrocessos e efeitos provocados pelas contrarreformas empreendidas nos últimos anos, que alçam o “empreendedorismo” como a única forma de produção do capital e, portanto, meio de sobrevivência da classe trabalhadora. Há um claro processo de naturalização e legitimação do desemprego, da precarização e da exploração da classe trabalhadora18 18 Leia mais sobre o assunto no artigo "Ideologia em produções científicas sobre o empreendedorismo em enfermagem no Brasil", publicado nesta edição. .

Especificamente no domínio do trabalho em saúde, os instrumentos normativos de regulação do teleatendimento19 19 Esse tema é discutido pelos artigos "A história da telemedicina no Brasil: desafios e vantagens" e "A competência normativa frente aos novos atores políticos: um estudo de caso da Telemedicina", publicados nesta edição. , elaborados às pressas no contexto sociossanitário da pandemia, precisarão ser cuidadosamente revistos, no sentido de assegurar uma prática não lesiva à população, bem como as responsabilidades dos profissionais de saúde e das plataformas utilizadas. Ainda no campo do trabalho em saúde, será preciso fazer ressurgir a importância do trabalho em equipe interprofissional, buscando campos comuns de atuação e a organização dos escopos de práticas em resposta às necessidades da população. Reforçar, nesse percurso, o vínculo, a clínica ampliada e os mecanismos de matriciamento e de gestão compartilhada se faz urgente. Também é requerido retomar e fortalecer os projetos de integração ensino-serviço-comunidade, dando celeridade aos processos de formação de profissionais de saúde alinhados ao contexto socioepidemiológico nacional20 20 Nesta edição, os artigos "O trabalho em saúde pode ser considerado 'tecnologia leve'?", "A clínica em odontologia: nexos e desconexões com a clínica ampliada de saúde bucal", "Planejamento estratégico em uma instituição pública de saúde de 2012 a 2022: implicação das percepções da força de trabalho e decisões gerenciais", e "Trabalho docente na Medicina em universidade federal no sul do Brasil" produzem análises sobre a temática. .

Para isso, após a acentuada focalização do hospital como local de cuidado durante a crise pandêmica e aproveitando a retomada mais democrática do país, precisamos, no âmbito da saúde, resgatar a proposta de centralidade da Atenção Básica, com estabelecimento de políticas intersetoriais e estratégias de articulação em redes de atenção21 21 Os estudos "Análise da implementação da Política Pública NutriSUS em Porto Ferreira, SP"; "Atenção primária à saúde e os serviços especializados de atendimento a mulheres em situação de violência: expectativas e desencontros na voz dos profissionais", e "A rede de atenção às urgências e emergências no Brasil: revisão integrativa da literatura" , que possam efetivamente responder às demandas que se apresentam para o setor saúde e para a sociedade.

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    » https://www.inesc.org.br/contingenciamento-quais-setores-sofreram-cortes-de-orcamento/
  • 1
    Compreendemos o neoliberalismo não apenas como uma política econômica que defende a liberdade absoluta de mercado, cuja lógica se propõe a aprofundar o modelo capitalista. O neoliberalismo é também uma prática política que busca estabelecer a lógica de mercado como norma generalizada, governando desde o Estado, que teria por função estabelecer continuamente condições de concorrência que preservem a racionalidade mercantil, até o mais íntimo da subjetividade humana, adaptando-a para o modelo econômico (Dardot; Laval, 2016DARDOT, P.; LAVAL, C. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.).
  • 2
    Em alusão ao slogan ambíguo ‘O Brasil voltou, 20 anos em 2’ adotado por Michel Temer para comemorar os seus dois anos ocupando o cargo de presidente da República. Veja mais em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/planalto-desiste-de-slogan-o-brasil-voltou-20-anos-em-2-apos-interpretacao-ambigua.shtml>
  • 3
    Processo antidemocrático que culminou na destituição ilegítima da Presidente Dilma Rousseff mediante processo de impeachment com base legal duvidosa, e ascensão de Michel Temer, então vice-presidente, ao cargo de Presidente da República.
  • 4
    Saiba mais sobre os municípios rurais remotos no artigo ‘Atenção Primária à Saúde em municípios rurais remotos brasileiros: contexto, organização e acesso a atenção integral no Sistema Único de Saúde’, publicado nesta edição da Saúde e Sociedade.
  • 5
    Expressão utilizada para designar a política criada em Nova York (EUA) na década de 1980, que considerava que os pequenos delitos deveriam ser punidos rigorosamente no sentido de se evitar a progressão da delinquência para crimes graves (Wendel; Curtis, 2002WENDEL, T.; CURTIS, R. Tolerância zero: a má interpretação dos resultados. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 8, n. 18, p. 267-278, 2002. DOI: 10.1590/S0104-71832002000200012
    https://doi.org/10.1590/S0104-7183200200...
    ).
  • 6
    Os artigos “Participação social e atenção primária em saúde no Brasil: uma revisão de escopo”, “Instrumentos de gestão na pauta do Conselho de Saúde” e “Governança da Saúde Pública: conflitos e desafios para uma gestão compartilhada na fronteira Brasil-Bolívia” abordam essa temática, destacando a importância, os instrumentos e o desafios da gestão democrática e compartilhada.
  • 7
    A disseminação da coronavirus disease 2019 (covid-19) pelo mundo foi declarada Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional, pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 30 de janeiro de 2020, e caracterizada como pandemia em 11 de março de 2020. A doença é provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2. Veja mais sobre o histórico da doença em: <https://www.paho.org/pt/covid19/historico-da-pandemia-covid-19>
  • 8
    Ver mais nos artigos ‘Os efeitos socioeconômicos da covid-19’ e ‘Trabajar en salud durante la pandemia’, publicados nesta edição de Saúde e Sociedade.
  • 9
    O artigo ‘Como ser psicólogo hospitalar na pandemia covid-19 no Brasil?’, publicado nesta edição, discute o tema.
  • 10
    Além das 33,1 milhões de pessoas que passavam fome em 2022, outras 92 milhões estavam em insegurança alimentar leve ou moderada (Rede Penssan, 2022REDE PENSSAN - REDE BRASILEIRA DE PESQUISA EM SOBERANIA E SEGURANÇA ALIMENTAR. Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil: II VIGISAN: relatório final. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022.).
  • 11
    O artigo ‘Incentivos financeiros para mudança de modelo na atenção básica dos municípios paulistas’, publicado nesta edição da Saúde e Sociedade, discute a relevância do modelo de financiamento adotado até 2017, quando da revisão da Política Nacional de Atenção Básica; já o artigo ‘Continuum desmonte da saúde pública na crise do Covid-19: o neofascismo de Bolsonaro’ centra a sua análise no novo modelo de financiamento instaurado a partir do Programa Previne Brasil.
  • 12
    Leia mais sobre o tema no artigo ‘O fim da cooperação governo-academia no Programa de Melhorias e da Qualidade da atenção Básica do Sistema Único de Saúde’ publicado nesta edição.
  • 13
    Alusão ao slogan do novo Governo Lula, iniciado em 2023. Ver mais em: <https://www.gov.br/mma/pt-br/governo-federal-lanca-manual-da-sua-nova-marca-brasil-uniao-e-reconstrucao>
  • 14
    Extraído do relatório final produzido pelo Gabinete de Transição Governamental do atual governo federal presidido por Luís Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, publicado em 2022 e disponível em: <https://gabinetedatransicao.com.br/noticias/relatorio-final-do-gabinete-de-transicao-governamental/>
  • 15
    Em 08 de janeiro de 2023, manifestantes antidemocráticos, apoiadores de Jair Bolsonaro, invadiram o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal para protestar contra a eleição de Lula. Tratou-se de um episódio amplamente noticiado em âmbito nacional e internacional, como pode ser visto na reportagem da BBC News Brasil, disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-64208685>
  • 16
    São 17 os ODS, que foram construídos sobre o legado dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Os ODS são integrados, indivisíveis e equilibram três dimensões do desenvolvimento sustentável: econômica, social e ambiental. Mais informações podem ser obtidas no link <https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustent%C3%A1vel>
  • 17
    O IBGE considera desalentados aqueles que gostariam de trabalhar e estariam disponíveis para assumir um trabalho, mas não procuraram trabalho por acharem que não encontrariam. Os subocupados são trabalhadores que têm jornada de trabalho inferior a 40 horas semanais, mas gostariam e estão disponíveis para trabalhar mais horas. Saiba mais em: <https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php>
  • 18
    Leia mais sobre o assunto no artigo "Ideologia em produções científicas sobre o empreendedorismo em enfermagem no Brasil", publicado nesta edição.
  • 19
    Esse tema é discutido pelos artigos "A história da telemedicina no Brasil: desafios e vantagens" e "A competência normativa frente aos novos atores políticos: um estudo de caso da Telemedicina", publicados nesta edição.
  • 20
    Nesta edição, os artigos "O trabalho em saúde pode ser considerado 'tecnologia leve'?", "A clínica em odontologia: nexos e desconexões com a clínica ampliada de saúde bucal", "Planejamento estratégico em uma instituição pública de saúde de 2012 a 2022: implicação das percepções da força de trabalho e decisões gerenciais", e "Trabalho docente na Medicina em universidade federal no sul do Brasil" produzem análises sobre a temática.
  • 21
    Os estudos "Análise da implementação da Política Pública NutriSUS em Porto Ferreira, SP"; "Atenção primária à saúde e os serviços especializados de atendimento a mulheres em situação de violência: expectativas e desencontros na voz dos profissionais", e "A rede de atenção às urgências e emergências no Brasil: revisão integrativa da literatura"

Disponibilidade de dados

Citações de dados

IBGE - INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua - PNAD Contínua: 4º trimestre de 2022. Rio de Janeiro, 2023.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Abr 2023
  • Aceito
    06 Abr 2023
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